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O papel das práticas

na formação inicial dos


educadores de infância
Américo Peças

1. Apresentação 2. Formação Inicial e Construção


da Profissionalidade

N um momento de intensos desafios para a


Educação Pré-Escolar, propomo-nos re- A formação inicial constitui-se quase sem-
flectir sobre alguns percursos da formação ini- pre como o primeiro momento de construção
cial dos educadores de infância no quadro uni- intencional da profissionalidade dos educado-
versitário. res. E, como tudo o que é de origens, esta «ini-
Com os constrangimentos resultantes do ciação» pode ser determinante para o desen-
academismo desviado (atomização disciplinar, volvimento da profissão, apesar da consciência
intelectualismo dos percursos, pobreza de in- de que «a parte mais eficaz da construção da
teracções), contar-vos-emos a experiência de- profissionalidade se faz ao longo do exercício
senvolvida no âmbito de uma cadeira semes- da profissão» (NIZA, S. 1997).
tral denominada «Prática Pedagógica», único Uma visão abrangente e interactiva da for-
momento de confronto significativo das futu- mação inicial dos educadores implica a com-
ras educadoras com o contexto de intervenção preensão de que este tempo e os processos
do jardim de infância. que nele ocorrem podem ser valiosos para o
É nosso objectivo partilhar a organização avanço das instituições de formação e para o
que imprimimos à cadeira, tentando transfor- avanço das escolas e dos educadores profissio-
mar a rigidez e o formalismo processual, as re- nais que cooperam na formação inicial. Uma
lações de poder e a aridez reflexiva que carac- formação inicial de qualidade é consequência
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terizam o estágio clássico, em tempos e per- e tem efeitos intensos sobre uma multifacto-
cursos de desenvolvimento para os formandos, riedade de contextos e de sujeitos, consti-
para os contextos onde intervêm e para a pró- tuindo-se referente importante para a mu-
pria casa de formação. dança.
Deste percurso, infelizmente muito curto e É neste pressuposto que tentámos imprimir
isolado, faremos pretexto para sublinhar algu- um carácter mais científico e mais interpela-
mas linhas gerais que hoje se perfilam como tivo a uma pequena parte do percurso de for-
referências incontornáveis nos percursos de mação inicial de uma turma de formandas do
formação inicial, evidenciando implicitamente Curso de Formação de Educadores de Infância
a modernidade e o carácter percursor das pro- (ainda, ao tempo, bacharelato), mais precisa-
postas do modelo de formação do Movimento mente no âmbito da disciplina de Prática Pe-
da Escola Moderna Portuguesa. dagógica IV.

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Moveram-nos três propósitos fundamen- mais avança a profissão e os profissio-
tais: nais. O projecto quis-se assim «instru-
a) Acentuar a importância das práticas no mento ordenador da intervenção, por
currículo de formação inicial, utilizando ajustamentos progressivos, e um pro-
esse tempo de confronto com o real da cesso de desenvolvimento pessoal e pro-
profissão não como uma simples (?) apli- fissional pela resolução continuada de
cação de conhecimentos teóricos mas, problemas reais e pelo aperfeiçoamento
fundamentalmente, utilizando o valor das formas de operar» (NIZA, S. 1997 a.).
epistemológico das práticas, isto é, a im-
portância e o significado dessa experiên- 3. As práticas pedagógicas na formação
cia para o questionamento do próprio inicial
processo de formação, bem como o seu
contributo para o melhor conhecimento É hoje consensual que «a formação do fu-
sobre as condições da profissionalidade. turo educador deve incluir uma forte compo-
b) Facilitar a consciencialização sobre a nente de reflexão a partir de situações práticas
complexidade dos processos educacio- reais» (ALARCÃO, I. 1991). As práticas peda-
nais, tentando contrariar as análises di- gógicas devem constituir o eixo central da for-
cotómicas e redutoras que, perversa- mação, o ponto de partida e o referente do de-
mente, são consequência de percursos senvolvimento da identidade profissional em
formativos magistocêntricos, transmissi- início de construção. As práticas pedagógicas
vos e centrípetos. Num apelo constante facilitam ao formando o investimento no seu
ao discurso sobre o que os formandos próprio processo de formação, gerando e re-
viam e sobre como intervinham no con- criando sentidos para a inter e intradimensio-
texto das práticas, quisemos promover nalidade do percurso de formação.
as condições para um exercício efectivo O espaço da prática pedagógica dever-se-ia
de comunicação entre os vários sujeitos assim assumir como centro do design curricu-
(formandos-formandos, formandos-edu- lar na formação inicial (ZEICHNER, 1993). In-
cadores cooperantes, formandos-educa- felizmente esta centralidade está ainda longe
dores cooperantes-docentes), fazendo de ser vivenciada em muitos dos percursos de
avançar os processos metacognitivos so- formação inicial que têm lugar nas nossas uni-
bre os amplexos da profissionalidade de versidades. Uma matriz permanentemente re-
educador. forçada no magistocentrismo determina um

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c) Quisemos ainda que as práticas se de- sistema isomórfico cristalizado que vem desde
senvolvessem em torno de e referencia- a Idade Média, reproduzindo modelos trans-
das a um projecto: projecto de formação missivos, atomistas, selectivos e intelectualis-
que deveria emergir, integradamente, do tas (NIZA, S. 1998). Neste quadro, a disciplina
diálogo contratual entre sujeitos e sinais de prática pedagógica dificilmente ultrapassa,
de procedência diversa (instituição de para os formandos, o nível do desconforto
formação, docentes, instituições de aco- provocado pela dualidade (percebida) entre
lhimento, educadores cooperantes, con- dois mundos: o da academia e o do jardim de
texto de intervenção, grupo de crian- infância. Desconforto que os formandos ten-
ças...). Projecto forjado na tensão tam ultrapassar com a colagem possível ao
criadora entre visões, entre sentidos, en- «modelo» da educadora cooperante, não con-
tre interesses, entre necessidades, a que- seguindo sequer traduzir algumas boas inten-
rer facilitar o entendimento de que é esta ções que foram edificando, num permanente
conflitualidade que melhor caracteriza e reforço do divórcio entre teoria e prática.

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Assumir as práticas como centralidade do intervenção, sendo mais uma agregação
design curricular na formação inicial, implica de dados do que uma interpretação signi-
necessariamente uma nova racionalidade so- ficante sobre os contextos.
bre as práticas pedagógicas, investindo-as de c) A intervenção propriamente dita organi-
cientificidade e significação para todo o per- zava-se em três momentos:
curso da formação. Daqui decorrerá uma ou- – um período em que as formandas ti-
tra epistemologia da formação, uma outra or- nham que fazer planificações diárias
ganização curricular, novas tarefas, novas para todas as actividades que se propu-
competências, novos sentidos. É uma reflexão nham realizar com a tuma (objectivos
intensa (e urgente) mas que não é agora o pro- específicos, descrição pormenorizada
pósito deste escrito. das actividades, tempos, organização
do grupo e recursos necessários);
4. O contexto da intervenção – um período em que as formandas ti-
nham que fazer planificações sema-
Delineadas algumas linhas gerais, sem pre- nais, decorrentes de um centro de inte-
tensões de aprofundamento, sobre a questão resse que deveria «integrar» as várias
das práticas pedagógicas na formação inicial actividades diárias;
dos educadores profissionais, passamos agora – um período em que as formandas con-
a descrever a breve experiência em que parti- ceptualizavam um projecto e que em
cipámos no âmbito de uma cadeira semestral nada se diferenciava dos centros de in-
(6º semestre) do 3º ano do (então) bacharelato teresse a não ser na temporalidade que
em educação de infância da Universidade de era exigida a este «projecto» (normal-
Évora. mente um mês);
A cadeira denomina-se Prática Pedagógica d) Os modelos e os instrumentos que su-
IV e corresponde à dimensão interventiva sis- portavam o planeamento eram os avan-
temática (4 dias por semana, 5 horas por dia) çados por uma outra cadeira (teórica),
das formandas numa sala de jardim de infân- que tinha lugar num semestre anterior
cia com quem existe protocolo de cooperação. (denominada de Métodos e Técnicas de
Durante esse semestre (sensivelmente de Acção Educativa), cadeira que não acom-
Março a Junho) as formandas são responsáveis panhava agora o desenvolvimento, no
pela organização do trabalho na turma, com a contexto de intervenção, da aplicação
«supervisão» das educadoras cooperantes e o desses modelos e instrumentos;
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acompanhamento pontual dos docentes da e) As educadoras cooperantes assumiam


universidade. Sobre que pressupostos assen- fundamentalmente um papel de con-
tava tradicionalmente a cadeira? trolo, não havendo durante o período da
a) As alunas eram colocadas em salas de Prática Pedagógica IV espaço e tradição
jardim de infância (uma por sala) sendo de demonstração de práticas que pudes-
essa distribuição da exclusiva responsa- sem constituir-se como referente para as
bilidade das docentes da universidade; formandas;
b) As duas primeiras semanas decorriam à f) A avaliação das formandas era de natu-
volta do que se designava por activida- reza bastante subjectiva e impressionista,
des de observação, das quais deveria ser tendo como objectivo principal a dimen-
produzido um relatório de caracteriza- são sumativa;
ção do contexto da intervenção. Este g) Diariamente era recomendado um
«conhecimento» inicial raramente era tempo de reflexão entre educadora coo-
convocado para o desenvolvimento da perante e formanda, mas essa reflexão

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g) caía em apreciações pessoais que não fa- 2. Conhecer e experimentar propostas
ziam avançar a consciência dos sujeitos emergentes dos principais modelos curri-
nem os quadros organizativos; culares para a Educação Infantil.
h) A visita dos docentes da universidade 3. Ensaiar (em contexto de intervenção)
era feita de surpresa e dava lugar a uma uma matriz organizacional que suporte e
avaliação quantitativa. avance as práticas educativas no Jardim
de Infância.
5. Outras premissas para a Prática 4. Experimentar práticas de autoscopia so-
Pedagógica bre a intervenção pedagógica que os alu-
nos desenvolvem nos Jardins de Infância,
Quando nos coube assumir a coordenação inscritas e potenciadas em circuitos de
da cadeira de Prática Pedagógica IV decidimos comunicação, de modo a potenciar a for-
intervir no sentido de aumentar a coerência mação de profissionais reflexivos e críti-
deste tempo de formação enquanto percurso cos.»
de desenvolvimento para os formandos, para
os contextos e para a própria casa de forma- 5.2 A organização
ção. Animava-nos o entendimento de que A organização da cadeira procurou servir
«formar-se (...), é antes de mais, reflectir, pen- os princípios e os objectivos que explicitámos,
sar numa experiência vivida (...) formar-se é para além de decorrer de uma relação educa-
aprender a construir uma distância face à sua tiva democraticamente perspectivada, dialo-
própria experiência de vida, é aprender a gante e obsessivamente contratuada.
contá-la através de palavras, é ser capaz de a A primeira mudança visível e socialmente
conceptualizar» (HESS citado por NIZA, percepcionada pelas formandas foi a sua colo-
1997). cação nas salas de jardim de infância: essa dis-
tribuição foi feita em grande grupo, depois de
5.1 Os objectivos recolhido um inquérito com as preferências e
as rejeições (fundamentadas), escutadas razões
Com todos os constrangimentos decorren-
e ponderadas situações, sendo a distribuição
tes de uma estrutura curricular desajustada, os das formandas o resultado de um intenso (e
nossos objectivos para a cadeira foram assim violento) processo negocial no grupo, exausti-
explicitados: vamente explicitado e colectivamente assu-
«A Prática Pedagógica IV constitui-se como mido.

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um momento e uma experiência de síntese di- A segunda mudança foi a organização da
nâmica dos saberes adquiridos ao longo do prática propriamente dita. Esta organização
curso e de novos saberes emergentes. Este ca- resultou já do encontro entre o grupo de for-
rácter de transversalidade e de contextualiza- mação: formandas, educadores cooperantes e
ção dos saberes exige um processo ampla- docentes da universidade – avançou-se assim
mente participado e sublinhadamente coope- decisivamente para uma «apropriação co-
rado, desenvolvendo-se sempre sob uma mum» dos sentidos e das acções que deve-
matriz reflexiva que permita um avanço efec- riam enformar os projectos de formação, in-
tivo dos sujeitos e dos contextos de interven- tensificando os níveis de implicação e de
ção. São objectivos da Disciplina: cooperação tão fundamentais à acção educa-
1. Caracterizar a organização do ambiente tiva e aos processos de formação. Aqui deixa-
educativo prosseguida nos Jardins de In- mos o resultado deste esforço de explicitação
fância e reflectir criticamente sobre as (ver fig. 1).
opções organizativas subjacentes.

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Figura 1

5.3 Práticas de Planificação Em multiplicados e frutuosos encontros fo-


mos construindo e afinando um conjunto de
Uma das nossas preocupações fundamen-
novos instrumentos, abertos e permanente-
tais foi a de ajudar a compreender que a peda-
mente reformulados de acordo com os dados
gogia é muito a ciência da organização de am-
da experimentação. Revelaram-se suportes
biências de aprendizagem estimulantes para
fundamentais para a inovação dos procedi-
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todos (NIZA,S. 1997 b.) e não a estruturação


mentos e atitudes e cumpriram uma função de
didáctica de um conjunto de actividades pen-
organizadores das práticas, facilitando a com-
sadas pelo educador para aplicar sobre as
preensão sobre a emergência da pedagogia.
crianças. Os modelos tecnocráticos de planifi-
Porque poderão ser úteis a outros colegas,
cação reforçam esta vertente manipulativa e
aqui deixamos alguns exemplos:
redutora da profissionalidade, confundindo
aprendizagem com prescrição e exercícios va-
zios de sentido, ainda que racionalmente per-
feitos. Foi assim que fomos edificando um
sentido de planificação que exigia outras com-
petências (sobretudo de escuta e de comunica-
ção) e outros instrumentos que captassem, or-
ganizassem e potenciassem essa outra forma
de fazer pedagogia.

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Figura 2

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Tempos
Descrição das Actividades Previstas Organização do Grupo Recursos Necessários Produtos de Aprendizagem
Previsíveis

Observações:

Figura 3
Ponto de Partida:

Problematização/Complexificação:

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Figura 4

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Unidades Operativas para a Acção: Recursos Principais:

Estratégia de Comunicação e Regulação:


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Observações:

Figura 5

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Descrição breve:

Actividades a Desenvolver Tempos/Cronograma Organização do Grupo Recursos Necessários

Produtos e Registos das Aprendizagens: Estratégia de Comunicaçã e Regulação

Registos do Processo:

Figura 6

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REFLEXÃO COOPERADA SOBRE AS PRÁTICAS

Situações em Análise Comportamentos a Evidenciar Comportamentos a Reformular Questões

Observações:

Figura 7
A um percurso de formação ainda quase Estes registos semanais deverão ficar guar-
todo marcado pelo verbo, importava-nos asso- dados na sala, organizados numa capa com o
ciar esta vertente do «fazer», construir instru- nome do conteúdo (ilustrada com uma bele
mentos e produzir recursos para a organização pintura). São um instrumento pedagógico de
pedagógica. Assim foram surgindo fichas- grande valor para a reflexão sobre o currículo
guião para desenvolver propostas organizati- para o Jardim de Infância; são instrumentos
vas na classe. previlegiados de formação; são uma memória
(uma história) do processo educativo. O Plano
Exemplo 1– Planificação Semanal Semanal deve ser assumido por todo o grupo;
Toda a planificação deverá suportar-se em são por isso fundamentais os momentos se-
três objectivos fundamentais: manais de avaliação).
a) Ser o mais participada possível (técnicos,
crianças e famílias); Exemplo 2 – Caracterização dos
b) Ser emergente, isto é, contemplar inte- espaços/cantinhos/ateliers
resses e sinais das crianças e dos contex- A questão da acessibilidade com autono-
tos; mia aos «cantinhos» exige que as educadoras
c) Constituir-se como factor de referência e organizem ajudas ao trabalho das crianças.
de visibilidade social e educativa do J.I.. Uma das ajudas fundamentais, para além da
A sexta-feira à tarde e/ou a segunda-feira exposição clara dos materiais e instrumentos,
de manhã constituem-se como os momentos é a organização de inventários de tarefas pos-
mais adequados para esse exercício democrá- síveis de concretizar em cada «cantinho». Eis
tico e científico que é o planificar a vida do uma proposta simples: (ver fig. 9).
grupo.
Sugere-se que a planificação seja registada Exemplo 3 – Cadernão/Livro de Vida
em folha grande (folha de papel kraft ou papel O «cadernão» ou «livro de vida» constitui-
de cenário), em letras maiúsculas de imprensa, -se como a memória activa dos quotidianos no
exposta durante a semana e avaliada em grupo Jardim de Infância. É o nosso «album de foto-
no final da semana. (ver fig. 8). grafias», o retrato fiel do pulsar da vida do

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Figura 8

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Figura 9

grupo. Organizado em folhas grandes (tipo pa- trato de todo o grupo. É um apelo ao bom-
pel kraft), cada folha do «cadernão» corres- senso das educadoras. O cadernão pode estar
ponde normalmente a um dia de actividade, organizado com uma bela capa, duas molas
mas a periocidade «2 em 2 dias» ou até mesmo grandes, um fio, e fica pendurado num prego
semanal pode, inicialmente, assumir-se como da parede. Que interessante poder mostrar à
o compromisso possível. «minha mãe» as coisas que fazemos!... Que
No «cadernão» surgem descritivos do pro- óptimo instrumento para a formação contínua
cesso, quase sempre da responsabilidade das das educadoras, para partilhar processos, refle-
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educadoras (embora partilhados com as crian- xões, aprendizagens!...Que belo contributo


ças) e produtos/criações/afirmações/perguntas para edificar um currículo para o Jardim de In-
das crianças: uma pintura, um texto, uma co- fância!... Que belas páginas para fazer uma ex-
lagem, uma ficha, o registo de uma observa- posição sobre os sentidos do Jardim de Infân-
ção significante, uma fotografia, a visita que ti- cia!... Aqui fica um pequeno exemplo. (ver
vémos, o passeio que fizémos, um incidente, fig. 10)
uma pergunta, a carta dos correspondentes, o
conto que adorámos, a lengalenga que a Rita 5.4 Práticas de Avaliação
copiou, ilustrou e ofereceu para o «cadernão», A avaliação situa-se no cerne da organiza-
a receita do bolo de anos da Sofia, a notícia do ção pedagógica e, nos percursos de formação
dente que caiu ao Sérgio,... académica, é efectivamente vivida com todo o
Há que estar atento à inclusão de trabalhos dramatismo que as idiossincrasias escolásticas
de todos os meninos, pois o «cadernão» é o re- lhe foram reforçando. Acresce o facto de que a

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Figura 10

nota da Prática Pedagógica costuma ser assu- análise de competências em situação e


mida, pelas formandas e pelos empregadores, na organização do trabalho;
como referencial no percurso de formação. d) Elementos de Avaliação do Docente da
Esta especificidade da avaliação das práticas Universidade: elementos centrados na
exigiu-nos pois uma atenção redobrada, pro- escuta e no acompanhamento do pro-
curando que a luta por uma nota final não per- cesso de intervenção, funcionando como
vertesse as premissas do processo. factor desbloqueador dos nós e tensões
Edificámos então, cooperadamente, uma surgidas aos vários níveis da interven-
estratégia de avaliação centrada em: ção.
Este edifício permitiu construir três grandes
a) Registos e descritivos sobre a prática:
sentidos da avaliação:
fundamentalmente constituídos pelas
a) Função de regulação, facilitando a cons-

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planificações e registos diversos sobre os
ciência permanente e progressiva sobre o
quotidianos nos contextos de interven-
processo e permitindo uma melhor ade-
ção;
quação aos contextos;
b) Elementos reflexivos sobre o processo:
b) Função de registo, construindo uma me-
eram os «diários de bordo» que todas as mória, uma história, capaz de funcionar
formandas construíam de natureza refle- como referência estruturante para o edi-
xiva e crítica sobre o processo, partilha- ficar da profissionalidade;
dos nas sessões de formação em sala (na c) Função de socialização, pondo em co-
universidade) e potenciadores do apro- mum o que fizémos e aprendemos (orga-
fundamente sobre a dimensão sistémica nizámos uma Semana Aberta expondo
e intrapessoal das práticas; todos os percursos-ver figura 1), consti-
c) Elementos de Avaliação das Educadoras tuindo-se como momento fundamental
Cooperantes: elementos centrados na para a explicitação das práticas e para a

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visibilidade acrescida das práticas pedagógicas Talvez que as palavras de Paulo Freire
no currículo da formação inicial. (1997) possam sintetizar o que tentámos edifi-
car: «Eu continuo a dizer, homens e mulheres
6. Algumas evidências finais não viemos para o mundo para ser treinados,
fizemo-nos no mundo seres modificadores. A
As marcas do percurso que fomos descre- adaptação ao mundo é apenas um momento
vendo, e que as práticas pedagógicas nos per- do processo histórico. Adapto-me hoje para
mitiram, afastam-se decisivamente de qual- amanhã, desadaptando-me, corrigir o mundo
quer abordagem didactista e redutora da e inserir-me nele. Uma pedagogia do puro
formação. Foi nossa preocupação ir clarifi- treino não faz isso, insisto.»
cando que o sentido do planeamento e da in-
tervenção no Jardim de Infância é um exercí-
cio científico e cívico, a enunciar-se na Bibliografia:
promoção activa dos direitos da criança, no di-
reito à educação para todos os meninos, nos ALARCÃO, I. (1991). «Reflexão crítica so-
trajectos da descoberta cooperada da cultura, bre o pensamento de D. Schon e os programas
na alegria construtora do encontro entre pares, de formação de professores» in Supervisão e
no respeito pelos tempos e modos diferentes Formação de Professores. Aveiro: Cidine.
de ser e sentir, a solicitarem uma visão aberta FREIRE, P. (1997). «Nós somos seres da
e fraternal do homem e do mundo. Essas mar- briga» in Cadernos de Educação de Infância, nº
cas enunciam também o Pré-Escolar como ins- 42. Lisboa: A.P.E.I.
tiuição de referência ao serviço da infância, NIZA, S. (1997 a). Formação Cooperada.
com uma forte implicação social, associando Lisboa:Educa
as famílias e as comunidades ao processo edu- NIZA, S. (1997 b). «Para uma escola da ci-
cativo, promovendo as identidades e o res- dadania» in Palavras, nº 12. Lisboa: Associação
peito pelos valores culturais comunitários. Professores de Português.
Essas marcas revelam por fim, e fundamental- NIZA, S. (1998). Conferência produzida no
mente, uma organização pedagógica que não Seminário «Formação Inicial de Professores –
pode assentar em qualquer emanação intelec- Pré-Escolar/1º Ciclo». DEB, 28 e 29 Maio, ESE
tualista e académica ou, no outro extremo, em de Setúbal.
pseudo-improvisos que mais não fazem do NÓVOA, A. (org) (1995). Profissão Profes-
que mascarar a autocracia do adulto sobre os sor. Porto: Porto Editora.
educandos. Daí termos construído um quadro PERRENOUD, P. (1993). Práticas pedagógi-
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que nos lembrava, a todo o momento, os sen- cas, profissão docente e formação: perspecti-
tidos abertos, transversais e einteractivos do vas sociológicas. Lisboa: IIe e D. Quixote.
planeamento no Jardim de Infância. (Ver pág. ZEICHNER (1993). A formação reflexiva de
seguinte). professores. Ideias e práticas. Lisboa: Educa.

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SENTIDOS DO PLANEAMENTO

CRIANÇA
Promover os direitos da criança
Multiplicar/desenvolver serviços para a infância
Minimizar situações de risco

ALUNO
Desenvolvimento de competências de aprendizagem
Facilitação de percursos de desenvolvimento
Apoios e ajudas específicas
Desenvolvimento Sócio-Moral

CLASSE
Organizar uma ambiência de aprendizagem estimulante para todos
Diversificar os acessos e os processos de construção dos saberes
Promover a democracia, a cooperação e a interajuda
Valorização sistemática dos vividos, dos saberes vários, alargando as mundivivências.

INSTITUIÇÃO
Promover a instituição como referência na educação das crianças
Melhorar as respostas educativas – inovação
Incentivar o trabalho de equipa
Desenvolver/potenciar parcerias e redes de cooperação

COMUNIDADE
Promover a identidade cultural e o respeito pelos valores comunitários
Associar a comunidade ao processo educativo
Desenvolver estratégias de extensão educativa e educação ao longo da vida
Promover a cooperação e a corresponsabilização
nos percursos e nos processos educacionais

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FAMÍLIA
Promover a cooperação instituição-família: organização/participação
Apoiar as famílias no desempenho da sua função educativa
Associar as famílias ao processo educativo: ( aprofundar a clareza do que fazemos)

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Investigações matemáticas
como base para a
construção de conceitos
Pascal Paulus

E stou convencido de que a percepção da lin-


guagem matemática passa pela capacidade
de fixar a realidade observada num registo es-
discussão constatámos que utilizamos mais a’s
que x’s, para só ficar com este exemplo.
O Daniel propõe contar letras.
crito, como referem autores como John Allen Isto gera alguma discussão.
Paulos ou Gerard Vergnaud. Contar letras como? onde?
Isto implica formulações e reformulações Decidimos escolher um parágrafo do livro
mas também a análise cuidadosa de situações que estou a ler para a turma e contar todas as
vivenciadas. letras daquele parágrafo.
Escolhi os dois relatos que seguem por que
descrevem acontecimentos que necessitaram Dividimos as letras do alfabeto por 6 gru-
de um tratamento aprofundado, o que impli- pos de crianças.
cou abordagens sucessivas do problema, ten- Tentámos que o trabalho fosse distribuído
tando fixar pouco a pouco o seu significado de forma mais ou menos igual. Isto revela al-
matemático. São duas situações vividas na gumas coisas interessantes:
mesma turma: a primeira no 3º ano de escola- – os alunos consideram que as vogais são as
ridade, a outra um ano mais tarde. No se- mais importantes e frequentes. Atribuem logo
gundo relato, o trabalho envolve dois grupos, uma vogal a cada grupo, ficando o sexto com
pelo que o «nós» se refere à actuação conjunta duas consoantes que pensam serem as mais
com a professora do outro grupo de crianças. utilizadas.
– consideram s (aparecendo em todos os
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Investigar a frequência de letras para plurais) menos frequente que d ou n. Não con-
construir um jogo. sideram y, k e w, mas introduzem o ç.

Propus aos alunos a construção de um Cada grupo procura a sua própria estratégia
scrabble português para a sala, para o qual eu para contar as letras que lhes foram distribuí-
tinha já desenhado e plastificado o tabuleiro. das:
Faltavam as letras. Sugeri que procurasse- – num grupo, os alunos distribuem as le-
mos uma distribuição das letras do alfabeto, tras. Uma criança não recebe letras mas soletra
no total de 100. o texto, e vai ditando as letras ao grupo. Cada
Como fazer? um aponta as letras que lhe couberam.
O P. pergunta quantas letras tem o alfabeto – noutro grupo, cada elemento circunda
e acrescenta: «Como são mais ou menos 25, 4 primeiro as letras designadas, depois contam
letras de cada: 4 x 25 igual 100.» dois a dois as letras que escolheram.
O R. sente que não deve ser tão fácil. Após – noutro grupo ainda, cada um aponta as le-

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tras conforme um código combinado entre os A resposta é muito mais unânime do que
elementos do grupo para facilitar a contagem eu estava à espera:
que cada um faz. Depois conferem resultados. – Claro que não. Depende das palavras do
– em dois grupos utilizam 4 cores diferen- texto, disse um.
tes para realçar as letras, e depois cada ele- – Queres uma prova? Neste texto não há
mento do grupo conta as letras numa das có- nenhum ç, mas sabemos que há textos com ç,
pias do texto. senão não existia o ç, acrescenta outro.
– o último grupo pede uma cópia do texto Afirmo à turma que esta discussão é muito
para cada letra da qual faz o levantamento. importante, e que a iremos retomar, mas que
Cada um dos elementos lê as quatro cópias existe ainda outra dificuldade: como saber
controlando o que já está apontado e o que foi quantas letras de cada é que temos que pôr no
esquecido. No fim registam a frequência de nosso jogo?
cada letra, contando por grupos de 5.
Após contagem, aparece o seguinte quadro:

grupo 1 grupo 2 grupo 3 grupo 4 grupo 5 grupo 6


a 127 e 91 i 50 o 82 u 20 d 27
b 10 c 14 f 7 h 10 g 16 n 29
j 1 l 14 m 36 p 24 q 6 r 46

Com este quadro já feito, peço os alunos Um dos alunos propõe tirar letras «De 711
uma estimativa do total das letras. Eis os re- para 100, tiramos 611 letras. Basta fazer a
sultados: mesma coisa para todas elas.»
entre 200 e 300 letras: 3 alunos Há logo um embate:
entre 300 e 400 letras: 4 alunos – Assim, cada letra fica em 0.
entre 400 e 500 letras: 6 alunos – Não, algumas ficam mais em 0 que as ou-
entre 500 e 600 letras: 2 alunos e o professor tras.
entre 600 e 700 letras: 1 aluno – Mais em zero, quer dizer abaixo de 0,
entre 700 e 800 letras: 1 aluno como no termómetro.1
sem ideia: os outros – Mas se todas as letras ficam abaixo de 0,
então não temos letras no jogo!
Controlámos a estimativa de duas manei-

ESCOLA MODERNA Nº 4•5ª série•1998


ras: dum lado, faz-se a soma de todos os totais É claro que algo está mal. Proponho que re-
de letras apuradas, do outro lado, conta-se as presentemos com o material MAB o que te-
letras de cada linha de texto, somando estes mos e o que queremos:
subtotais. Como por magia (entendida de ma-
neira diferente por mim e pelos alunos) os dois
valores coincidem: 711 letras.

Abre-se nova discussão: já sabemos que


neste texto de 711 letras há 127 a’s, 91 e’s, 50
i’s, etc.
– Mas isto é mesmo assim? Isto é, qualquer
texto de 711 letras dará esta distribuição? per-
gunto eu. o que queremos o que temos

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