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— Esse livro é para todas as mulheres que um dia foram

machucadas, vocês não estão sozinhas, e merecem o mundo.

Ou

— Dedico esse livro a todas as Mayas pelo mundo, que vocês


possam encontrar a si mesmas em algum momento.
Capítulo 1

Meu dia está péssimo, quer dizer, bem pior que os outros. Os dias em que meu pai está
em casa sempre são um inferno, por isso, logo depois que ele saiu para trabalhar
novamente, tomei a decisão de vir até aqui.
Pulo do Uber assim que ele para diante do meu destino, poderia usar o carro que meu
pai me deu quando fiz dezoito, à dois anos atrás, mas isso significa que ele iria saber
onde estou, graças ao maravilhoso GPS conectado ao seu celular que avisa sempre onde
eu vou.
Encaro o lugar diante de mim, a fachada em tons escuros e uma grande porta de vidro
do mesmo tom, que me impossibilita de ver o interior. Esse é um bar bem conhecido
entre as pessoas mais jovens da alta classe de São Paulo e já ouvi algumas pessoas da
minha faculdade falarem sobre ele. Graças a Deus é um pouco longe da minha casa, o
que torna menor a possibilidade de encontrar algum conhecido por aqui.
Empurro a porta e entro, recebendo o ar gelado em meu rosto, o que me causa certo
alívio. O dia está quente e nem mesmo o vestidinho leve que uso ameniza o calor.
O bar está vazio, não há mais de duas ou três pessoas sentadas nos bancos de couro
distribuídos pelo lugar. É cedo, não passa das quatro, então é comum que não existam
muitas pessoas querendo beber nesse horário.
Paro diante do grande balcão no meio do bar, me sento em um dos bancos que existem
ali e direciono um pequeno sorriso em direção ao barman, que retribui enquanto apoia a
cintura do outro lado do balcão, o sorriso de dentes brancos se alarga ainda mais antes
que ele comece a falar, criando um contraste lindo contra a pele escura.
— Olá, vamos de que hoje princesa?
— Humm... não sei, o que você me indica de mais forte?
— Algo forte? — Balanço a cabeça. — Ótimo, vou te trazer um whisky.
— Tá bom.
Nunca bebi Whisky, na verdade, eu nunca sequer bebi, muito menos entrei em um bar
antes de hoje. Sei que para a maioria das pessoas da minha idade isso é praticamente
impossível, mas eu nunca tive muito interesse na bebida e tinha medo que meu pai
descobrisse. Acontece que a situação chegou ao extremo e eu espero que a bebida
amenize um pouco.
O garoto pisca para mim e vai preparar minha bebida, não demora muito e ele está
deslizando um copo sobre um guardanapo em minha direção, já tinha visto meu pai e
seus amigos bebendo em um copo desse algumas vezes.
Quando ele está prestes a soltar o copo e eu esticando a mão para pegá-lo nervosa,
uma voz grossa soa a minhas costas.
Demoro um tempo para me virar, mas quando faço isso encontro um homem super
alto dentro de um terno preto que marca todos os músculos dos braços, seu maxilar é
marcado, os cabelos de um loiro pouco mais escuro que os meus, com uma boca cheia e
vermelha que traz rachaduras e pequenas manchinhas de sangue, como se ele tivesse
mordido, mas o que chama mais atenção com certeza são seus olhos, um é de um azul
extremamente claro e o outro tem uma grande mancha marrom que pega quase metade
de suas íris, são os olhos mais bonitos que já vi, bem diferente dos meus castanhos
simples.
— Quantas vezes vou dizer que precisa pedir a identidade das mulheres, mesmo que
sejam as bonitinhas, Davi?
— Foi mal, dá pra ver que ela tem mais de dezoito, cara.
— Não sei, essa menina não parece ter idade para beber. — Seu olhar queima em meu
rosto.
— Tenho vinte — sussurro, minha cabeça baixa.
— Desculpa princesa, vou precisar pedir sua identidade. — O barman, Davi, diz.
— Tudo bem.
Pego o documento dentro da bolsa e estico para o garoto, que balança a cabeça em
concordância com um sorriso e me entrega a bebida.
— Viu, chefe? Ela tem vinte mesmo. — As palavras saem com deboche.
Não volto a me virar para olhar o cara, mas ouço quando ele se afasta e um barulho de
banco se arrastando é feito.
O copo está na minha mão trêmula, e se for forte demais? E se eu não gostar?
Balanço a cabeça e decido ignorar todos esses medos, então viro o copo em minha
boca, ingerindo uma boa quantidade do líquido. O whisky desce queimando minha
garganta. Forte. Muito forte. O gosto é horrível.
O barman continua me encarando do outro lado do balcão, a expressão de diversão e
curiosidade, provavelmente devo estar com uma cara horrível. Passo a mão na boca e
respiro fundo antes de engolir mais um pouco da bebida.
— Primeira vez bebendo? — murmuro em concordância — Teve um dia ruim,
princesa?
— Péssimo. — Ainda não encaro ele.
— Bom, a bebida não faz isso passar.
— Que droga, eu tava esperando por isso. — Ele ri, eu também.
— Qual seu nome?
— Maya.
— Nome bonito. — Ele sorri. — Sou Davi, barman desse lugar, apesar de meu chefe
me demitir quase todos os dias.
Ele estreita os olhos castanhos de forma acusatória, acompanhado de um sorriso para
o cara, que apenas levanta seu dedo do meio sem o encarar, enquanto engole sua bebida.
Isso me faz rir baixinho, e o olhar do homem voa até mim, me encarando com uma
sobrancelha arqueada. Baixo minha cabeça enquanto meu rosto cora. Os anos de
ensinamentos do meu pai ecoam em minha cabeça. Sempre baixar a cabeça, sorrir e ser
educada com todos, e não encarar demais. Mesmo sendo adulta e quando estou longe
dele, muitas vezes me comporto do mesmo jeito, acho que isso está tão plantado em
minha mente que não tentei mudar nem uma única vez durante esses anos.
Davi continua conversando comigo, parando vez ou outra para atender alguns clientes.
No entanto, a conversa não se estende muito, já que preciso ir para casa e chegar antes
do meu pai, que acha que eu estou no shopping, e havia usado o Uber apenas para não
aguentar o trânsito de São Paulo.
Ao chegar em casa tudo está calmo, meu pai ainda não chegou, então aproveito para
tomar um banho e assistir um pouco de série.
Quando o homem chega já é bem tarde, e graças a Deus ele não se incomoda em vir
até meu quarto. Então posso dormir um pouco mais calma sabendo que hoje ele não me
fará nada.

Em menos de duas semanas acabo indo ao bar umas quatro vezes, pode se dizer que eu
e Davi estamos formando uma amizade, é algo novo e é impossível me sentir
completamente segura, mas está sendo legal.
Agora estou aqui, conversando com ele enquanto o moreno prepara minha bebida, o
único copo que costumo beber quando venho até o bar.
— Você vai gostar da minha irmã, qualquer dia trago ela aqui pra te conhecer, vocês são
o total oposto, mas não sei porquê aposto que vão ser amigas.
— Qual nome dela? — Sorrio.
— Elisa.
— Bonito o nome, o que acha de chamar ela aqui na semana que vem?
— Pode ser, me passa seu número depois.
— Tá bom.
Agora o copo está sendo esticado na minha frente e quando vou pegá-lo, assim como
as outras quatro vezes, a voz do loiro, que agora sei que se chama Rafael e é dono do
bar, soa ao meu lado.
— Identidade da menina, Davi.
— Cara! Você sabe a idade dela, para com isso. — O homem bufa.
— Sabe que precisa pedir a identidade.
— Por Deus, que implicância.
As palavras saem da minha boca antes mesmo que eu possa pensar, não costumo
“enfrentar” as pessoas, mas me sinto tão confortável nesse lugar que só não consigo
controlar.
— Irmão, pega uma bebida pra mim, por favor?
— Não, você tá sendo um babaca.
— Tá demitido.
— Você não demitiu ele umas quatro vezes nas últimas duas semanas? —Decido tentar
deixar minha vergonha de lado pelo menos uma vez.
— Quatro vezes que você viu gatinha, eu já contabilizei umas vinte. — Ele ri e vai
pegar a bebida. — Eu devia envenenar sua bebida.
— Devia, mas não vai. — O loiro levanta as sobrancelhas em minha direção. — Tá
contando as vezes que demito meu funcionário?
— Você demite tanto ele que fica difícil não contar.
— Se ele aceitasse a demissão eu não teria que falar tantas vezes. — Sua voz é seca mas
os olhos estão divertidos.
— A gente sabe que esse lugar não seria nada sem mim, idiota.
— Ah, que seja. — Ele faz um movimento como se estivesse fazendo pouco caso. —
Maya, né?
— Sim, como sabe meu nome?
— Gosto de conhecer quem vem ao meu bar com frequência.
— Humm.... o.k. então. — Dou um gole em minha bebida, evitando seus olhos.
— Sou Rafael.
— É um prazer, Rafael.
— Sabe, já que está distraindo meus funcionários, acho que preciso te conhecer um
pouco.
— Seus funcionários? Eu só converso com o Davi. — Aponto com a cabeça o garoto,
que prepara um drink. — Não é Davi?
— E eu não estou nem um pouco distraído. — Eu balanço a cabeça, concordando com a
fala do homem.
— Bom Maya, esse seu jeitinho puro de boa moça enquanto bebe um copo de whisky
deixa meus garotos ali doidos.
Ele aponta para os outros barmans e garçons do lugar, que vira e mexe me dão
olhadas ou sorrisos. Isso me deixa nervosa, é impossível negar. Não gosto de homens
prestando atenção em mim, de seus olhares virados em minha direção, não desse jeito,
me dá pavor. Davi me trata com todo respeito do mundo, e agradeço por isso, e Rafael
agora parece me tratar como uma menininha, e por um momento isso me deixa feliz, de
alguma forma idiota, isso me passa um pouco de confiança, pelo menos um pouco.
— Ah é! Cara, eu não aguento mais ouvir sobre como a loirinha é linda, sobre como ela
é aquilo e isso, os garotos estão fascinados por você. — Agora Davi está apoiado no
balcão enquanto fala. — Mas eu entendo, você é linda mesmo.
— Eu...Hã... obrigada.
— Relaxa May, somos amigos, não te olho desse jeito, não precisa ter vergonha. — Ele
ri. — Você é linda e quando apareceu aqui eu prestei atenção em você, não vou negar...
mas agora somos amigos de verdade.
— Obrigada, Davi.
Ele sai depois de piscar o olho para mim. Eu dou o último gole em minha bebida,
nunca bebo mais que um copo e não pretendo mudar isso hoje.
Levanto os olhos e encontro Rafael me encarando, ele está mordendo os lábios, que
parecem ao ponto de sangrar, é uma coisa que acho estranhamente fofa e parece, de
alguma forma, esquentar meu corpo de um jeito estranho, de um jeito que não entendo.
— O que foi? — digo baixinho, um pouco nervosa por estar sendo encarada.
— Estou tentando entender por que pediu obrigada por Davi só respeitar a amizade de
vocês.
— Não é todo cara, todo homem, que me respeitaria assim. — Minha voz sai quase
como um sussurro.
— Ainda assim, é a obrigação dele respeitar, não devia pedir obrigada por isso.
— Tá bom.
— Você é engraçada. — Ele ri baixinho.
— Por que morde tanto? — Aponto para meu próprio lábio, ignorando sua fala anterior.
— Bom, eu tenho um tipo de.... impulsividade. — O loiro bebe um gole de sua bebida.
— Isso ajuda.
— Já tentou aquelas bolinhas anti-estresse?
— Tenho cara de quem usa bolinhas anti-estresse, Maya? — Ele está sério, mas vejo o
começo de um sorriso em seus lábios.
— Hum hum.
Minha expressão está com um respeito exagerado, mas tenho um sorriso em meus
lábios enquanto falo. Me sinto leve, confortável, e percebo que estou encontrando o
conforto que procurava quando entrei nesse bar pela primeira vez.
Gosto disso, gosto de ter alguém para conversar, pessoas que me sinto confortável e
que acredito que posso confiar. Davi tem sido bem legal comigo, e não me pressiona
para contar sobre minha vida, pelo contrário, ele apenas fala mais e mais da sua, e eu
gosto de escutar.
E Rafael, mesmo que não sejamos amigos realmente, em nenhum momento tenta me
tocar, jogar piadinhas ou fazer perguntas íntimas, o que é impressionante para um
homem, do jeito que são.
Ele continua me encarando depois que falo, não parece que vai dizer algo, mas não me
incomodo com isso.
— Bom, Rafael, preciso ir agora, até a próxima.
— Posso te levar em casa? — Sua fala é repentina, me deixando surpresa.
— Muito obrigada, mas não é uma boa ideia, ainda moro com meu pai.
— Ele faz o estilo superprotetor?
— Tipo isso.
Dou um sorriso e me despeço de Davi, deixando meu número em seu celular. Antes de
sair dou um tchauzinho para Rafael e ele me lança um pequeno sorriso.
Capítulo 2

No dia seguinte, vou para a faculdade e logo depois saio com Amanda, minha melhor
amiga e vizinha, para o shopping. Encontro a garota na frente da grande entrada do
lugar e a abraço, entrando logo depois ao seu lado.
— Como foi hoje na faculdade?
— O mesmo de sempre, uma droga. — Minha boca se contorce em descontentamento.
— Não sei por que não faz literatura.
— Você sabe que não é muito sensato da minha parte tentar fazer algo que meu pai não
quer.
— Seu pai é um babaca. — Seu rosto está cheio de raiva. — Ainda acho que devia
deixar eu contar pros meus pais, poderia ficar com a gente.
— Amiga, você mora a três casas do meu pai, ele iria até lá — falo baixinho, esse
assunto realmente não é o meu preferido.— Sem contar o fato de ter que falar tudo para
seus pais, seria tão constrangedor.
— A gente pode dar um jeito, Maya. — Ela resmunga. — Além do mais, não tem nada
de constrangedor, isso não é culpa sua! Pelo contrário, é culpa dele, ele é o nojento de
toda essa história. Deixa eu te ajudar amiga.
— Esquece isso, por favor, não falta muito para eu me formar e ir embora.
Ela parece querer argumentar, mas sabe que não tem jeito. A situação é complicada
demais para eu simplesmente sair contando e achar que tudo vai dar certo, meu pai
nunca aceitaria minha saída de casa, mesmo que eu tenha mais de dezoito anos. Prefiro
esperar pelo fim da faculdade e poder arranjar um emprego sem que ele me impeça ou
machuque, me sinto mais segura.
Depois de andar um pouco e comprar algumas coisas nos sentamos e comemos
enquanto conversamos sobre nossa semana, conto para Amanda sobre a faculdade que
odeio, sobre o bar e sobre Davi.
— Uhh, e você tá de olho nele? — Ela sorri maliciosa.
— Não, não mesmo. — Minha boca se contorce. — Você sabe que eu não consigo... eu
sei lá.
— Eu entendo, mas ele parece um gato. — Seus lábios estão presos entre os dentes
como se ela estivesse com prazer, o que me faz rir.
— Ele é lindo, mas fico muito feliz com sua amizade.
— Tudo bem, mas eu acharia ótimo se me levasse até esse bar. — Ela ri, estreitando os
olhos para mim. — Quem diria que a doce Maya adora um whisky.
Solto uma risada constrangida, mas Amanda diz para eu parar com isso e me pede
mais detalhes do lugar, insistindo pra que eu a leve até lá, o que eu prometo fazer.
Não saímos do shopping muito tarde, meu pai costuma ficar bem irritado quando
chego muito mais tarde que o normal, o que nunca resulta em coisa boa. Minha amiga
sabe de toda a situação, por isso me entende. Depois do caminho rápido até nosso
condomínio, com cada uma em seu carro, nos despedidos antes de irmos para nossas
casas. Nesse horário meu pai ainda não chegou, o que me dá algumas horas de paz antes
do grande inferno.
Não demora muito e estou de volta ao bar, que está bem cheio devido ao dia ser uma
sexta de calor. Me encaminho diretamente para o balcão, dando pequenos sorrisos para
alguns garçons que tive um rápido contato das outras vezes. Quando me sento no banco
alto, Davi está preparando a bebida de um cliente, mas logo acaba e vem até mim, me
lançando um lindo sorriso de dentes brancos.
— Fala aí, loira.
— Oi Davi, muito movimento hoje?
— Demais, não passa das sete e eu já tô morto. — Um resmungo sai por seus lábios.
— Coitado. — Solto uma risada, enquanto vejo ele preparando minha habitual bebida.
— E aí, quantas vezes foi demitido hoje?
— Uma seis.
Uma voz se pronuncia, mas não é Davi, e sim Rafael, que está atrás de mim. Posso
sentir sua presença, o calor que vem do seu corpo e passa para o meu. Me viro e o
encaro, seu rosto está com uma expressão de diversão enquanto ele se senta ao meu
lado.
— Não seja tão mau com ele. — Sorrio sem me conter.
— Eu tento. — Ele sorri de volta.
— Cara, você tava quase me matando a meia hora atrás e agora tá aí todo sorrisos?
Loirinha, você tem uma sorte.
— Va al diavolo! — Sua voz é bruta, mas dá para ver que está brincando.
— Para de falar em italiano comigo, seu idiota. — O garoto diz, logo indo preparar
alguma bebida.
— Você acabou de mandar ele ir pro inferno?
— Sim, eu mandei. — Ele ri. — Sabe falar italiano?
— Bem, sim. Meu pai e minha mãe sempre quiseram que eu aprendesse o máximo
possível.
— Sabe falar outras línguas? — Apenas balanço a cabeça em afirmação. — Quais?
— Inglês, espanhol e francês.
— Uau, é muita coisa.
— Meus pais eram mesmo rígidos em relação a educação, e eu sempre gostei muito de
livros, facilitou.
— Ah! Então gosta de livros?
— Sim, sou apaixonada, tenho uma pequena biblioteca em casa, mas já não uso tanto.
— Por que não usa?
— Fica no escritório do meu pai e ele é um pouco... — Aperto meus lábios. —... chato
em relação ao espaço dele.
— Sei como é. — Uma risada sai por seus lábios. — Quando era moleque meu pai não
gostava que eu entrasse no escritório dele, por que fazia uma puta bagunça, sempre fui
viciado em ver como as coisas funcionavam, não foi surpresa nenhuma quando decidi
cursar direito assim como ele.
— Você cursa direito? Jura? — Minha expressão é de surpresa.
— Ah que é, eu não tenho cara de um bom advogado?
Ele me encara com uma sobrancelha levantada e eu passo a analisar todo seu corpo,
seus sapatos sociais brilhantes, a calça do terno se moldando perfeitamente nas pernas
grossas, a camisa branca de botões por baixo do paletó que marca seu peito e está um
tanto aberta, o paletó aberto e marcando seus músculos dos braços. Ele não está usando
gravata, mas ainda assim não parece desarrumado. Então passo meu olhar por seu rosto,
o maxilar marcado e que está apertado agora, seu rosto é intimidador, com certeza é
quase impossível negar algo a esse homem.
— Ah não, você tem cara de um homem de família rica que ainda é sustentado pelos
pais. — Minto.
— É mesmo? — Ele ri. — Muito bem, pra mim parece que essa bolsinha Channel
bonita aí foi um presente do papai depois de você ter ficado muito chateada com ele
porque não pôde ir viajar com as amigas.
Ele ri mas nesse momento eu não acho graça nenhuma, bolsa da Channel? Viagem
com amigas?
Que ridículo, por que ele precisa pensar nisso?
O problema não é ele me comparar a uma garota mais preocupada com bolsas e
viagens do que outras coisas, com certeza não é, mas a forma como simplesmente
deduziu algo sobre mim, mesmo em uma brincadeira, me irrita.
Fico com raiva, tanta raiva que nem penso duas vezes antes de ir embora.
— Davi, aqui. — Estico o dinheiro. — Pra pagar minha bebida, já estou indo. Esses dias
volto aqui pra te ver.
Minha expressão deixa claro que não gostei da brincadeira. Saio dali rápido e peço um
carro enquanto espero do lado de fora. Ouço quando a porta se abre, mas não me
incomodo em virar para ver quem é. Logo ouço os barulhos de passos chegarem perto
de mim, fazendo com que eu levante a cabeça e encare o homem na minha frente,
apenas pisco os olhos em sua direção mas não digo nada.
— Ei, desculpa por aquilo, não devia ter deduzido que é um tipo de pessoa que nem ao
menos sei se é, apesar de não ter nenhum problema em gostar de bolsas. —Seu ombros
sobem.— Mas foi só uma brincadeira.
— Você não sabe nada sobre minha vida Rafael, eu apareci aqui umas quatro vezes e
conversamos por menos de uma hora em todo esse tempo, você não me conhece e nem
eu a você, então por favor, só me deixa em paz.
— Você tem razão, não nos conhecemos e talvez eu já tenha começado da forma errada,
foi mal.
Ele se estica e sua mão vai em direção a meu rosto, o medo do toque de qualquer
homem faz com que eu me encolha e dê um passo para trás, ele percebe e afasta sua
mão de mim, com as sobrancelhas franzidas, está mordendo os lábios.
— Eu ia só tirar o cabelo do seu rosto, desculpa. — Seus lábios tem um pontinho de
sangue agora. — Desculpa, mesmo, por tudo. Será que podemos começar de novo?
Penso sobre isso. Ele foi um pouco babaca, realmente. Mas como ele poderia saber
sobre o que eu passo? Foi só uma dedução, uma brincadeira inocente, além do mais, eu
também tinha brincado com ele. E sua expressão e a pressa em se desculpar quando viu
que eu não gosto que me toquem foi algo de se admirar, os caras costumam me olhar de
forma estranha quando isso acontece, e mesmo que ele não esteja fazendo mais do que
sua obrigação em se manter afastado quando percebeu que não gosto de proximidade,
decido que não tem porquê não deixá-lo se aproximar, talvez eu esteja exagerando um
pouco.
— Tudo bem, eu só... eu preciso ir.
— Claro, até a próxima Maya.
— Até, Rafael.
O carro finalmente chega e vou até ele, antes de fechar a porta encaro Rafael, que me
lança um sorriso ladino.

O dia está quente, muito quente, e eu mal comi no café da manhã. Sinto que se passar
mais uma hora sem que algo entre em meu estômago, vou desmaiar, por isso sigo até o
shopping perto da faculdade para poder comer algo.
Meu pai manda mensagem perguntando onde estou, como se ele não soubesse graças
ao GPS que colocou no carro. Já tentei arrancar essa porcaria umas três vezes, nas três
foi bem pior para mim, no mínimo um mês sem poder aparecer na rua devido às marcas.
Estremeço com o pensamento e fecho meus olhos, por um momento esquecendo que
estou dirigindo, mas logo volto a me concentrar.
Encaro os carros à frente, o trânsito de São Paulo está horrível, como sempre. Mas
isso não é surpresa nenhuma, por isso apenas espero de forma paciente no volante até
chegar no shopping.
Lá eu apenas como algo e compro um perfume novo que estou precisando, logo
voltando para casa.
Não demoro a chegar, está tudo silencioso, todos que trabalham na casa já foram
embora.
Subo até meu quarto e troco de roupa, me deitando logo em seguida. Gosto de
aproveitar esses momentos de paz e silêncio em casa, é tão bom ficar sozinha, livre por
algum tempo e fazer o que eu quiser.

Estou ouvindo uma música baixinha enquanto leio um livro deitada quando ouço
alguns barulhos no andar de baixo, meu pai chegou.
Continuo lendo, tentando não transparecer que estou tensa, como sempre fico com ele
por perto. Não demora para que o homem esteja diante da porta aberta de meu quarto,
apenas levanto a cabeça para forçar um pequeno sorriso, sei que tenho que
cumprimentá-lo, mesmo que não queira.
— Oi pai, como foi o trabalho? — Detesto forçar essas conversas com ele, mas é bem
melhor do que ignorá-lo.
— Olá minha filha, tive um fim de dia cansativo depois que voltei para a empresa. —
Ele diz enquanto afrouxa a gravata. — Vou tomar um banho e já volto para podermos
conversar um pouco.
— Claro.
Meu corpo fica ainda mais tenso, odeio as conversas do meu pai, odeio qualquer
contato com ele, sempre acaba em uma situação horrível que eu não quero.
Eu posso ir embora, de certa forma, mas sempre que falo em arrumar emprego ele diz
que se eu fizer isso vou ter que sair da casa dele no mesmo dia, então complica a
situação, e é claro que sempre têm as ameaças, de que as coisas ficarão piores, e eu nem
posso imaginar como tudo seria ainda mais terrível. Pode parecer bobo e um problema
fácil de resolver, mas só quem passa por isso pode entender o quanto é paralisante, o
medo te impede de ir embora, de tomar uma decisão, e quando você toma, existem mil
coisas te impedindo.
Meu pai não é burro, ele sabe que eu quero ir embora, por isso tem todas essas regras
sobre emprego, coloca o GPS no meu carro e quando eu não uso é coisa rara e ele exige
saber onde eu esto indo, sempre me dá dinheiro em mãos apenas em pouca quantidade,
deixando o cartão livre para que eu use, no entanto, toda vez que o utilizo, é notificado
em seu celular onde comprei, dessa forma ele pode me impedir antes de eu fazer
qualquer coisa. Tudo isso é uma droga e eu passo todos os meus dias pensando em
formas de ir embora logo, sem precisar esperar pelo fim da faculdade.
Quando ele volta está vestido com roupas simples e tem um sorriso no rosto, deve estar
num “bom dia” para ele, o que para mim, é péssimo, isso quer dizer que deve ficar aqui
por um bom tempo.
— Posso me sentar querida? — Ele aponta para a cama.
— Claro. — Sei que negar será pior.
— Então, como foi no shopping? Comprou muitas coisas?
— Acabei comprando só um perfume, comi algo por lá e voltei para casa.
— Claro. — Ele sorri. — Nada daquelas besteiras né?
— Não, pai.
— Muito bom, você tem um corpo lindo florzinha, não quero que estrague ele comendo
essas besteiras, entende o papai?
Sua mão está em minha perna, subindo pela coxa em um carinho nojento, que me faz
encolher um pouco e meus olhos enchem de lágrimas, odeio isso. O olhar que ele me
lança me diz que é melhor que eu responda, já que não gosta de ser ignorado.
— Sim pai, eu sei.
— Que bom querida, porque precisa se manter linda assim, com esse corpo perfeito. —
A mão continua subindo, indo onde não quero que vá. — Só estou cuidando da minha
garotinha.
As lágrimas enchem ainda mais meus olhos, deixando minha visão turva, odeio isso,
odeio toda essa parte da minha vida. Odeio o sorriso que ele me lança agora, como se
isso fosse normal, seu toque nojento que está por cima do meu short, me fazendo
estremecer de medo, odeio sua mão tocando meus lábios. Mas ainda não posso impedi-
lo quando ele se inclina por cima de mim e segura meus braços para que eu fique quieta,
não tem ninguém aqui para me ajudar, não posso fazê-lo parar. E doí muito,
fisicamente, mentalmente, tudo doí enquanto eu imploro para qualquer tipo de Deus que
existe para que isso acabe, mas é em vão, como todas as vezes durante esses anos.
Capitulo 3.

Se passam dois dias, mas as marcas que meu pai deixou em meu corpo ainda estão
vivas, duas linhas roxas bem claras em meu pulso esquerdo são a única prova do que ele
fez. Ainda estou me sentindo mal, suja e estou demorando mais tempo no banho
tentando tirar a lembrança de seu toque nojento em mim, como sempre fico depois do
que ele faz, mas tudo é em vão, não passa, não consigo esquecer aquilo.
Por algum milagre, ele vem se mantendo longe de mim nesses dois dias, o que faz eu
me sentir apenas um pouco mais calma.
Mas deixo um pouco de lado meus problemas, já que hoje vou conhecer Elisa, a irmã
de Davi. Estamos trocando mensagens desde que dei meu número a ele, e o garoto
decidiu que realmente era hora de conhecer sua irmã. Como Davi parece estar sempre
trabalhando, o que ele já disse ser escolha dele, escolhemos nos encontrar no bar.
Já está anoitecendo quando chego no lugar, meu pai está em uma de suas viagens que
faz de vez em quando, são os únicos dias em que tenho paz, é uma pena que durem
pouco e demorem a acontecer. Dessa vez posso ficar até um pouco mais tarde.
Entro no bar que está gelado devido ao ar e de longe vejo Davi preparando bebidas
para os clientes, a coqueteleira roda em suas mãos e eu fico vidrada no movimento
enquanto caminho em sua direção. Reparo que cortou o cabelo por esses dias, já que o
mesmo está baixo dos lados, mas ainda alto em cima, e dou graças a Deus que suas
reclamações intermináveis de estar sem seu “disfarce” no cabelo finalmente vão acabar.
Acho incrível o que ele consegue fazer com a coqueteleira, com tanta facilidade, eu já
teria derrubado tudo no primeiro movimento.
Sentada em frente ao grande balcão, na frente de Davi, está uma garota linda, ela é
alta, a pele é tão escura como uma pedra ônix. O cabelo é cheio e escuro, e sua roupa é
incrível, o vestido vermelho escuro quase vinho caí muito bem em seu corpo. Ela é
perfeita.
Me aproximo mais e os cumprimento, mesmo que Davi esteja de costas agora.
— Oi.
— Oiiii — Seu cumprimento é esticado.— Você é a Maya, né? Fala a.
— Sou eu mesmo. — Solto uma risadinha. — Você deve ser Elisa.
— Euzinha. — Ela sorri.
— Oi May, tudo bem? — O garoto me cumprimenta sem se virar.
— Ótimo, e você? Quantas demissões?
— Estou perfeitamente bem. — Ele arrasta um copo para Elisa e outro para mim. —
Hoje ele está bonzinho, só uma.
— Só uma? Meu Deus! Isso é um recorde dos últimos dois meses.
— Eu falei pro Davi que algo de errado deve estar acontecendo com o Rafa, o moleque
tá calmo demais. — A garota se pronuncia.
— Acredita que na semana passada ele demitiu o Davi seis vezes em um único dia?
Soltamos uma risada juntas e continuamos conversando sobre várias coisas. Elisa é
legal e a conversa com ela flui bem, me sinto como se estivesse conversando com uma
amiga de infância, o que é bom. Apesar de gostar da amizade de Davi e até mesmo de
Rafael, é bom ter alguma garota por perto, além de Amanda, que infelizmente tem
estado bem ocupada com a faculdade.
Não demora até que Davi deixe outro garoto atendendo os clientes e venha bater papo
também, enquanto bebe apenas uma coca. É irônico o fato de um barman não beber, e
eu digo isso a ele, que apenas afirma que não gosta de beber enquanto trabalha porquê
tira sua concentração.
Depois de um tempo, Rafael aparece, está vestido com calças jeans e uma blusa de
botões branca. Ele sempre está assim, vestido de um jeito formal mesmo quando não
precisa. Eu acho isso legal, o deixa bonito.
— Posso saber por que você tá batendo papo como uma menininha ao invés de estar
trabalhando?
— Você me demitiu, esqueceu? Não trabalho mais aqui.
— Cazzo — Ele brada, mas não parece irritado.— Pode pelo menos trazer uma bebida
pra mim, seu idiota?
— Claro. — O garoto ri, esticando um copo e despejando bebida ali.
— Rafael D’Lucca, eu não sei se você percebeu mas existem duas damas aqui que você
não cumprimentou, seu mal educado.
— Oi meninas. — O homem nos lança um sorriso sedutor, encarando só a negra ao meu
lado logo depois. — Satisfeita, Lis?
— Não, seu idiota. — Ela bufa e me encara. — Você não odeia ele?
— Claro que não, todo mundo me ama, até você Elisinha do meu coração.
— Por Deus, você precisa parar de me chamar pelo diminutivo, isso acaba com minha
pose de mulher sexy.
— Elisa!
Dessa vez os dois homens falam juntos, dá para ver que cuidam dela como dois
irmãos mais velhos, o que Davi realmente é. A garota do meu lado bufa e revira os
olhos, o que me faz soltar uma risadinha baixa.
Logo ela está de pé e estende sua mão para mim, fazendo meu rosto tomar uma
expressão confusa.
— Vamos dançar May, e deixar esses homens controladores pra trás. — Ela sorri. —
Espero que saiba dançar.
— Hã.... eu sei mas.... melhor não, sei lá.
— Melhor sim, vamos, por favooor. — Exagera em seu pedido. — Você não veio toda
gata assim só pra ficar aqui parada né?
— Tudo bem, tudo bem. — Me levanto, completando. — Mas só um pouco!
— Isso! Vamos. — A mulher se vira para os garotos, que estão conversando. — Ei,
estamos indo dançar e deixar os caras, e as garotas desse bar inteiro babando, beijos.
Ela se vira sem esperar a resposta dos dois, que parecem chocados. Sua mão é firme na
minha, que está sendo puxada quando eles parecem acordar do transe que estavam.
— Ei, ei, claro que não. — Davi já está do nosso lado agora. — Vocês não vão mesmo
ficar dançando na frente desses pervertidos.
— Ah não vão mesmo. — Rafael parece rosnar. — Olha a porra da roupa de vocês, nem
pensar.
— Tem razão. — Elisa me encara. — Sua roupa realmente tá meio errada, Maya.
Então ela se abaixa em minha frente, me encarando com as sobrancelhas arqueadas
em um pedido silencioso, que é respondido com um dar de ombros meu. A garota
começa a mexer em minha roupa. Estou com um vestido branco curto e larguinho, que
tem um elástico marcando a cintura. Elisa puxa um pouco mais meu vestido para cima,
fazendo com que ele, que antes estava apenas um dedo acima do joelho, fique a pouco
mais de um palmo. É bem mais curto do que costumo usar, mas não reclamo, já que
ficou mesmo melhor assim. Suas mãos vão para o meu cabelo e soltam meu rabo de
cavalo, ajeitando meus fios.
— Agora sim, perfeito, você fica ainda mais linda de cabelo solto.— Ela pisca para
mim.— Aliás, sapatos sexys.
Meu rosto fica vermelho com sua afirmação e eu baixo a cabeça, encarando meus
sapatos de saltos de 12 centímetros prata.
Quando levanto a cabeça, Davi e Rafael estão de braços cruzados na nossa frente, não
parecem estar felizes.
— Nem por um caralho que vocês vão dançar estando desse jeito.
— Qual é o problema Rafa, não estamos bonitas?
— Elisa, vocês estão lindas. — É Davi quem responde, parecendo ser o mais coerente
dos dois. — Lindas até demais, eu vejo como os garçons daqui olham pra loirinha toda
vez que ela chega, imagina esses caras aí?
— Já chega disso, tá? A Maya quer ir comigo, não estou a obrigando, e vocês não vão
impedir a garota, nem eu, de fazer algo que queremos. Vocês são meus irmãos, mas não
meus donos, e a Maya aqui está super solteira pelo que sei, e mesmo que não estivesse,
ela iria fazer o que quer. Agora estamos indo dançar, tchau, tchau.
E então ela me puxa de novo e eu me deixo ser levada. Quero dançar, quero me sentir
livre, sentir que posso fazer isso sem que meu pai faça algo, sem os traumas de tudo que
ele me fez.
Não menti para Elisa quando disse que sabia dançar, eu realmente sei, fiz aula de
ritmos até meus treze anos, quando meu pai decidiu que ninguém deveria me ver
naquelas roupas e me fez parar.

Dançamos por muito tempo, duas horas talvez? Não sei ao certo. Mas quando voltamos
para nossos bancos em frente ao grande balcão, estamos suadas e cansadas. Davi
estende duas garrafas de água em nossa direção e nós as secamos bem rápido. Os dois
garotos ainda estão no mesmo lugar que estavam a duas horas atrás, suas expressões
irritadas mostram que eles ainda não superaram nossa dança, já que ficaram o tempo
todo de olho em nós duas.
— Viu? A Maya se divertiu pra caramba, e nenhum cara nem chegou perto da gente. —
Ela sorri e logo depois sussurra. — Até porque, o olhar fulminante de vocês dois afastou
qualquer um que estivesse a dois metros de distância.
— Estávamos protegendo vocês. — Davi afirma, mas sua cara amarrada parece estar
sumindo.
— Vocês estão sendo é ciumentos e territorialistas, e machistas.— Ela bufa.
— Não somos machistas! — Rafael parece indignado.
— Não somos, mesmo. — O homem ao seu lado confirma.
Elisa ignora totalmente os dois, rolando os olhos enquanto torce a boca em deboche,
logo me encarnado.
— Tem certeza que quer ser amiga desses dois homens das cavernas? Porque eu sofro a
uns bons anos com isso.
Eu solto uma risada, e as próximas horas se estendem com Elisa falando de todas vezes
que Davi e Rafael afastaram meninas e meninos de perto dela. É inevitável não rir, e
depois de um tempo minha barriga já está até doendo. Eles negam tudo durante todo o
tempo, e recebem olhares acusatórios da garota ao meu lado.
A conversa está tão boa que nem vejo a hora passando e quando percebo já se
aproxima de uma da manhã. Preciso ir embora logo, meu pai tinha dito que eu deveria
dormir no máximo às duas, e que faria uma ligação de vídeo para ter certeza que eu
estaria deitada em minha cama. Me levanto e pego minha bolsinha que Davi tinha
guardado para mim, me despeço do garoto e de Elisa, que me passa seu número e me
faz prometer que iremos marcar de ir ao shopping juntas, e por fim me dirijo à Rafael.
— Boa noite Rafael, até a próxima. — Dou um sorriso para ele.
— Vou te levar até lá fora, tá muito tarde pra você ficar sozinha, sabe como é essa
porra de cidade. — Começo a negar, mas ele logo me corta.— Eu vou te levar Maya,
sem discussão.
— O.k.
Caminho junto de Rafael para o lado de fora. O vento gelado da madrugada bate em
meu rosto e meu vestido quando saímos, me refrescando. Depois de pedir um carro, eu
espero ao lado do loiro em silêncio.
Quando levanto meu braço para colocar meu cabelo para trás, sua mão para a minha
antes que eu possa chegar ao meu destino. Seu aperto é firme em meu pulso marcado,
mas não me incomoda tanto como eu achei que seria, na verdade é reconfortante, apesar
de meu corpo automaticamente se retesar com o medo.
Seus olhos estão grudados na marca roxa.
— Quem fez isso com você, Maya? — Seu tom é baixo, mas ele parece ao ponto de
explodir.
— Eu...humm... eu me machuquei. — Minto o mais rápido que posso.
— Isso são marcas de dedos. — Ele respira fundo. — Quem fez isso, Maya?
— Não são, eu juro que só me machuquei.
Minha respiração fica forte, não quero mentir para ele, mas preciso. Não posso contar
quem fez isso, e porque fez. Sua mão não solta meu pulso, seu dedo passa de forma
lenta por cima do machucado e eu me arrepio, não sei se por medo, porque quero que
ele pare, ou simplesmente porquê é bom. Mas vejo o carinho em seus olhos quando ele
volta a me encarar.
— Se algum dia qualquer pessoa que seja te machucar, pode falar comigo. Fale comigo
Maya, não pense duas vezes. Eu juro que... — Um som como um rosnado sai de sua
boca. — Eu juro que mato qualquer filho da puta que encostar as mãos em você, está
bem?
— Sim. — sussurro, nervosa.— Mas ninguém me machucou, é sério.
— Tudo bem. — Ele sorri apenas um pouco. — Seu carro chegou.
Levanto a cabeça e vejo por cima do ombro que um caro já está parado encostado no
meio fio. Rafael solta meu pulso com um leve carinho e me lança um sorriso, dessa vez
bem grande, como um garotinho de cinco anos. Eu lanço um sorriso de volta, ainda um
pouco tensa pelo toque, e ao mesmo tempo um tanto inebriada por sua presença. Mesmo
com tudo que eu passo, consigo entender que Rafael é um homem atraente.
— Tchau Rafael, se cuida.
— Você também Maya, lembra do que falei.
Apenas balanço a cabeça e continuo caminhando até o carro, quando entro e o
motorista dá partida Rafael ainda está parado ali, com os braços cruzados, esperando
para ter certeza de que sai em segurança. Acho isso fofo, não sou de achar os homens
qualquer coisa, normalmente sinto medo deles e me afasto, mas com Rafael me sinto
diferente, me sinto segura, pelo menos o máximo que dá para se sentir segura com um
homem. Seu toque não me dá medo, apesar de ser quente e firme, sinto que não vai me
machucar. E mesmo que ele seja mesmo meio territorialista e mandão, acho que gosto
disso também.
Quando chego em casa fico feliz em estar sozinha, e depois de tomar um banho e
avisar para Davi que cheguei bem, me deito em minha cama e infelizmente preciso ligar
para meu pai. Por algum motivo, a ligação é breve, ele se certifica que estou em meu
quarto e apenas diz que logo volta para garota dele, o que me faz querer vomitar. No
entanto, quando desligo e fecho meus olhos para enfim dormir, a única pessoa que me
vem à mente é um certo loiro de olhos azuis.
Capítulo 4.

Os dias passam e meu pai vem ficando a maior parte do tempo fora de casa desde que
voltou de sua viagem, o que me deixa mais calma durante todo o dia.
Hoje, depois que minha aula na faculdade acabar, irei sair com Amanda e Elisa, a
última vem conversando muito comigo e estamos nos tornando realmente amigas.
Pisco enquanto tento me manter acordada e concentrada na aula super chata desse dia,
os dez minutos finais parecem se arrastar enquanto eu ouço a voz do professor a frente
da sala. Quando finalmente chega o final da aula eu suspiro alto, já cansada de ficar ali
durante todo esse tempo. Saio quase correndo em direção ao estacionamento e o
aconchego do meu carro, que me protege do frio que assola São Paulo nessa manhã,
nem mesmo a calça jeans e a camisa de manga longa e gola alta me aquecem por total.
Não demoro a chegar no shopping que vou com frequência após as aulas e logo
encontro Amanda e Elisa na porta, as duas já estão conversando e super entretidas.
— Oi meninas. — Dou um sorriso. — Desculpa a demora, tive que ficar até o último
minuto da aula.
— Relaxa querida. — A negra me lança um sorriso. — Agora vamos porque eu tô
morrendo de fome.
— Ah nem fala, preciso de batata frita. — A ruiva enlaça o braço no meu enquanto
andamos. — O que acham de hambúrguer com fritas?
— Humm. — Elisa fecha os olhos com prazer. — Com certeza, já posso até sentir o
cheiro.
— Acho que vou comer só comida mesmo.
— Ah não vai me dizer que você tá de dieta?
— Ela não tá. — Amanda me lança um olhar reprovador. — Você tá com um corpo
ótimo amiga, come com a gente vai.
Acabo cedendo e como o lanche com elas, eu evito comer esse tipo de coisa para não
engordar, Deus sabe o quanto meu pai fica irritado quando eu ganho alguns quilos a
mais.
Depois de comermos vamos em direção às lojas e passamos todo final da tarde
comprando. Roupas, perfumes e outras coisas. Quando decidimos ir embora, Amanda
nos chama para sua casa para assistir algum filme e nós aceitamos. Por ser praticamente
ao lado da minha casa acredito que meu pai não vá reclamar, mas mando uma
mensagem para ele pedindo, quase implorando, para que deixe. Sua resposta apenas diz
para que eu não chegue tarde.
Então vou sem preocupação para casa de Amanda e lá nós assistimos dois filmes,
romance e terror, enquanto conversamos sobre nossas infâncias, nossas faculdades.
O tempo passa sem que eu nem perceba e quando vejo já se aproxima das onze, me
despeço das garotas e sigo para minha casa, chegando menos de um minuto depois.
Assim que abro a porta encontro meu pai sentado em uma das poltronas, ele ainda está
vestido com o terno do trabalho, um copo igual aquele em que eu bebo no bar está em
suas mãos, com uns dois dedos de whisky. Quando me encara seu rosto está
inexpressivo, mas lá no fundo de seus olhos posso ver que está irritado, muito irritado.
— Boa noite, pai. — Baixo a cabeça enquanto tiro os sapatos.
— O que eu disse? — Ele se levanta. — Pra não chegar tarde!
— Não são nem meia-noite pai.— Dou um passo para trás, a voz baixa. — Desculpe,
achei que onze não seria tão tarde.
— Claro que é tarde! Onze horas não é horário pra uma garota andar por aí, eu já
cheguei tem duas horas! O que eu já te falei tantas vezes que quero você aqui quando eu
chegar porra!
Eu me encolho e dou mais alguns passos para trás, já encostada na porta. Ele se
aproxima ainda mais, seu corpo a menos de um palmo do meu, o que faz eu me
encolher mais.
— Quero você dentro dessa casa um mês, é daqui para a faculdade e de lá direto para
cá, e nem pense em não usar o carro, entendeu? — Eu balanço a cabeça em
concordância. — Suba agora, tome um banho e coloque uma roupa decente, agora!
Ele sai da minha frente e eu corro em direção a meu quarto, batendo a porta atrás de
mim, várias lágrimas rolam por meu rosto, o medo corre por todo meu corpo, assim
como em todas as vezes em que ele age assim.
Sabendo que ele virá até o quarto logo para ver se obedeci ao que mandou, me dirijo
para o banho onde algumas lágrimas ainda caem. Quando acabo meu rosto está
vermelho e um pouco inchado pelo choro, mas não passo muito tempo em frente ao
espelho. Visto calças de moletom e uma camisa confortável e me deito encolhida no
canto, a coberta grossa me protegendo do frio, infelizmente não do meu pai.
Não demora até que ele entre no quarto, já está vestido com outra roupa e parece calmo,
controlado. O que me assusta ainda mais.
O homem se senta ao meu lado na cama, fazendo com que eu me encolha mais. Sua
mão toca minhas costas, e eu estremeço de medo.
— Desculpe ter gritado, florzinha. — Nojo, só isso que consigo sentir. — Me preocupo
com você na rua, ainda é só uma garota.
— Eu já tenho vinte anos pai, e estava só na casa da Amanda. — Falo baixinho.
— Pra mim você ainda é minha garotinha. — Sua mão desce ainda mais por minhas
costas. — E você sabe que gosto da minha garota aqui quando eu chego.
Sinto ânsia ao ouvir suas palavras, mas não demonstro isso, continuo parada, quase
sem respirar. Sua mão sai de minhas costas e passa por minha coxa, apertando com mais
força que o normal, fazendo com que eu arfe alto. Mesmo vendo minha dor ele não
para, sobe por minha barriga, meus braços, sempre apertando com força.
— Por favor. — Eu sussurro. — Por favor, pare.
— Ah querida, fique calma. — Um sorriso nojento toma seu rosto. — O papai só
precisa relaxar, você foi uma má garota e me deixou muito chateado, precisamos
resolver isso.
Abro minha boca para voltar a falar, mas sua mão aperta com força meu seio, me
fazendo soltar um grito, que é abafado por sua mão e um comando para que eu fique
quieta. E assim, mais uma vez, meu pai traz o inferno até mim.
No dia seguinte acordo com meu corpo dolorido e não consigo parar de chorar nem
por um segundo, por isso não vou para a faculdade. Passo o dia no quarto, saindo
apenas para comer mas voltando rápido, não tenho nem sequer coragem de me olhar no
espelho, ver as marcas que ele com certeza deixou por todo meu corpo, e não só nele,
mas em mim, em minha alma, minha mente, nesse momento, olhar as marcas só
deixaria tudo que aconteceu ainda mais real.
Nessa noite, ele não vem para casa, e agradeço a Deus algumas muitas vezes por isso.

No próximo dia, sei que não posso mais ficar trancada dentro do quarto, por isso vou
para o banho, onde é inevitável não encarar meu reflexo no espelho, e posso ver com
clareza todas as marcas. Minhas coxas estão cheias de pequenos roxos, em meu seio
existe uma grande marca roxo esverdeada, pequenos pontinhos de sangue são visíveis.
Sem conseguir me encarar por mais tempo visto minhas roupas, optando por calças
para esconder as marcas. Quando estou pronta, vou direto para a faculdade, usando meu
carro. Aproveito para mandar uma mensagem a Elisa, Davi e Amanda, explicando que
meu pai havia ficado um pouco irritado por eu ter chego tarde e agora eu estou de
castigo, a desculpa é de que ele é um homem rígido. Os dois primeiros apenas dizem
que entendem, e que vamos nos encontrar no bar assim que eu puder. Amanda pergunta
se eu preciso de ajuda, eu digo que não. Agora não tem muito o que fazer afinal, o pior
já aconteceu.

O mês se arrasta, ficar só em casa ou na faculdade é uma tortura, um inferno na terra,


ainda mais com a presença do meu pai. É difícil não poder nem receber Amanda na
minha casa.
Pelo menos, ele não se incomoda em tirar meu celular, e eu posso falar com meus
amigos enquanto estou nesse castigo injusto e ridículo, já que eu nem tenho mais idade
para isso.

Estou desesperada para ficar longe de casa assim que o castigo termina, então marco
com todos de nos encontrarmos no bar, e Amanda vai comigo. Ela usa um vestido preto
de seda e saltos, está linda. O quê me faz comparar minhas roupas com as suas, estou
tão simples com minha saia longa branca, uma blusinha de alças azul clara e um salto
bem baixinho. Digo isso para minha amiga, mas ela dispensa a preocupação, afirmando
que eu estou perfeita.
Quando chegamos no bar, o sol já está sumindo no céu, dando lugar a uma noite
bonita e fresca. Hoje meu pai deixou eu dormir na casa de Amanda, dizendo que era por
eu ter me comportado no castigo. Não contestei e apenas vim, feliz por me manter longe
dele. Adentramos o bar uma ao lado da outra, logo avistando Davi, Elisa e Rafael
conversando perto do balcão principal. Nos aproximamos deles, Amanda sentando ao
lado de Elisa e eu ficando entre a garota e Rafael, de pé.
—Vocês não fazem nada mesmo aqui né? — Dou um olhar de reprovação a Rafael e
Davi, brincando. — Preciso de uma bebida.
— Eu sou o dono dessa porcaria, preciso descansar um pouco, meus funcionários estão
trabalhando. — Ele estreita os olhos para o amigo. — Pelo menos quase todos eles.
— Olha só, você me demitiu, portanto não vou fazer nada, só a bebida da minha
loirinha.
— Traídor, a minha você não faz.
— Rafinha — Ele ri, debochado. —, você tem mãos.
O loiro lança um olhar indignado a ele, que apenas levanta os ombros como quem diz
“fazer o que né?”
Solto uma risada, achando engraçado a provocação. No final de tudo, Davi acaba
preparando bebidas para todos, até mesmo para Rafael.
A noite está maravilhosa, o clima leve enquanto conversamos amenidades. Elisa fala
sobre a faculdade e como está para terminar um vestido. Amanda fala sobre a
organização do seu aniversário, que ainda está distante, e convida todos. Rafael diz
sobre o cansaço de cuidar do bar, fazer a faculdade e malhar. E Davi resmunga sobre
como o “chefe carrasco” dele o está fazendo trabalhar muito, mesmo que nesse
momento esteja conversando enquanto seu trabalho fica para os outros vários barmans.
Eu apenas escuto, rindo dos absurdos que ouço e algumas outras vezes apenas me
concentrando quando meus amigos compartilham coisas importantes de suas vidas.
Prefiro não dizer nada sobre a minha.
Já é tarde quando decidimos ir embora, Elisa ainda está com toda energia do mundo,
Davi diz que precisa trabalhar, Rafael está quase dormindo sobre o balcão, e eu e
Amanda talvez tenhamos bebido mais do que devíamos. Me arrependo de ter
transformado o único copo habitual em uns três. Quando Rafael percebe nosso estado
decide que minha amiga não pode dirigir, muito menos eu. Então insiste em nos levar
até em casa, eu nego, mas ele nem liga. Teimosia.
— Vou levar vocês e pronto, Maya. — A chave do carro de Amanda já está sua mão, e
eu sinceramente não sei como ela saiu da minha bolsa.— Com o tanto que beberam, não
me surpreenderia se dormissem antes mesmo de chegar em casa, não vão dirigir
bêbadas assim.
— Chato. — Reviro os olhos. — Tá bom, bora.
Depois de nos despedirmos dos irmãos, seguimos até o lado de fora, para o carro de
Amanda. Minha amiga está andando cambaleante. Talvez ela tenha bebido mais que eu,
que ainda me sinto bem sóbria para falar a verdade, as coisas só rodam um pouco e eu
não me lembro oque aconteceu nas últimas meia hora, então acho que estou
relativamente bem.
O loiro ao meu lado me encara como quem diz “eu falei”, logo levando seu olhar para
a ruiva cambaleante, mas eu finjo que não vejo.
Quando chegamos ao carro ela simplesmente se joga sobre o banco traseiro inteiro, sem
deixar espaço para mim.
— Amanda! Vai pro lado vai, precisamos ir pra casa — resmungo, empurrando seu
corpo com toda força que não tenho.
— Shhhh, não grita não amiga. — Ela fala baixinho e ri.
— Amanda!
— Vem na frente Maya, bora. — O loiro se pronuncia, sua voz parece distante, ele já
está assumindo o banco do motorista. — Preciso levar vocês antes que eu fique com
sono demais.
— Tá.
Entro no carro e bato a porta, me acomodando enquanto Rafael dá partida, minha
amiga já está totalmente adormecida na parte de trás do carro. Minha cabeça roda um
pouco e talvez as coisas estejam meio embaçadas, talvez. Então isso é ficar bêbada?
Porque é péssimo! Como as pessoas podem gostar tanto disso? Essa sensação de ter seu
corpo pesado, e de nada parecer ficar parado em seu lugar, meu Deus, é horrível!
Recosto minha cabeça no banco, esperando que a tontura passe e o enjoo também,
mas isso não acontece. Porcaria de whisky! Eu vou matar Davi por me servir isso
quando estiver melhor, e vou matar Rafael também, por ter isso no bar dele e....Rafael!
Ele está no carro, posso matar ele aqui mesmo!
Dou um tapa forte em seu braço, seguido de mais dois até ele segurar meu pulso com
uma mão e continuar segurando o volante com a outra.
Sua expressão está chocada, como pode ficar chocado? Ele merece muito mais depois
de ter esse tipo de coisa forte naquele bar!
— Maya! Tá doida? — Sua voz é alta, e Amanda resmunga no banco de trás. — Eu
podia ter batido, caralho! Para com isso!
— Claro que não. — Eu quase grito, minha cabeça dói com a altura do meu próprio
tom. — Você merece muito mais por ter essa porcaria de bebida forte no seu bar.
— O quê?
— Esse Whisky, eu tô tonta e com muita vontade de vomitar, a culpa é sua e do Davi,
seus caras de pau.
— Está dizendo que eu não devia ter whisky em um bar? — ele me encara como se eu
fosse doida.
— Sim! Eu proíbo que você tenha whisky e vou proibir o Davi de servir isso.
Demora um tempo para que ele me responda, o homem parece respirar fundo e se
acalmar muito enquanto coloca meu braço apoiado em minha perna, focando seus olhos
na estrada à frente.
— Claro. — Ele finalmente ri, me encarando rápido. — Como quiser, amor.
— Muito bom.
Cruzo os braços e volto a apoiar minha cabeça no banco, ainda tentando espantar a
tontura. Mas então eu percebo, é claro, não estou tão bêbada para não perceber como ele
me chamou, amor. Ele nunca me chama assim, é sempre Maya, nunca May, nunca outra
forma. Mas ele me chamou de amor.
Esse pensamento não sai da minha cabeça enquanto vou explicando o caminho até
nosso condomínio para Rafael, e ele ainda não saiu da minha cabeça quando o homem
estaciona o carro em frente a casa de Amanda, à três casas da minha, que está
totalmente escura, o que quer dizer que meu pai está dormindo, graças a Deus.
Me viro para ele, pensando em como vai embora e pronta para agradecer, e me
desculpar pelos tapas, agora que me sinto um pouco mais sóbria e vejo a besteira que
fiz.
— Obrigada Rafael, e desculpa por aqueles tapas, acho que não estava muito bem. Não
tô ainda. — Dou um sorriso sem graça
— Tá tudo bem, Maya. — Um sorriso se forma em seus lábios. — É a primeira vez que
bebe tanto, é normal que tenha ficado bêbada.
Balanço a cabeça, ainda um pouco constrangida por meu comportamento, eu poderia
mesmo ter causado um acidente.
— Como vai embora?
— Eu peço um Uber, não tem problema.
— Mesmo?
— Sim, Maya. — Ele ri. — Vocês duas precisam de um bom banho e muita água antes
de dormir, eu espero pelo carro aqui sem problemas.
— Obrigada mesmo, Rafael. — Aperto sua mão. — Eu não duvido nada que dormiria
se tivesse sozinha e no volante até aqui.
— Eu sei. — Mais uma risada. — Descansem e bebam muita água quando acordarem,
aposto que Amanda sabe lidar com uma ressaca, mas é a sua primeira.
— Sim, com certeza, ressaca, vou ter isso.
Toco minha têmpora com os dedos, já sentindo a dor forte se instalando ali. Rafael sai
do carro e espera de pé enquanto tento acordar Amanda, que depois de umas duas ou
três tentativas finalmente acorda e consegue levantar cambaleante, parecendo
desnorteada.
Ela segue para casa enquanto eu me aproximo de novo do loiro, parando a centímetros
de seu corpo.
— Obrigada, de novo.
— Não tem oque agradecer. — Ele encara Amanda tentando chegar na porta principal,
dando pequenos passos. — Vai ficar com ela hoje?
— Sim, consegui uma noite um pouquinho livre. — Meu sorriso é um pouco forçado
nesse momento.
— Espero que tenha outras. — O homem inclina a cabeça em direção à rua do
condomínio. — Qual é sua casa?
— Aquela ali. — Aponto para a casa de fachada branca assim como todas ali. — Por
quê?
— Não sei.
Ele morde o lábio, adicionando mais uma marquinha no meio de tantas outras que eu
adoro observar, meus olhos sobem para o seu e ele sorri ao perceber que estou o
observando, eu coro e mentalmente ponho culpa nos três copos de bebida. Maldito
whisky!
— Gosto de pensar que talvez venha te buscar aqui algum dia — confessa, a expressão
séria.
— Me buscar?
— Sim. — Dá um passo, se aproximando mais. — Para sair.
— Sair? — Estou tão nervosa que não consigo fazer outra coisa a não ser repetir tudo
que ele fala.
— É, comi.....
Mas ele não termina a palavra, porque Amanda acaba de quase cair enquanto tenta
abrir a porta de casa, o que me obriga a dar um sorriso para ele em despedida e pegar a
chave do carro, correndo para ajudar minha amiga, só dando tempo de ver seu aceno de
confirmação, dizendo que entende. Depois de abrir a porta e antes de entrar na casa, eu
olho para trás e encontro Rafael ainda me encarando, então um sorriso rasga em seu
rosto, o qual eu retribuo com um dos maiores sorrisos que já dei na vida, entrando logo
em seguida.
Depois de ajudar minha amiga a ir até o quarto e tomar banho sem que seus pais
ouçam, eu vou até a janela que dá para a frente da casa e vejo que Rafael não está mais
ali. Finalmente posso tomar banho enquanto penso em o que ele me diria, ele estava
falando sobre me buscar, para sair, sair com ele? Acho que sim mas...
E ele me chamou de amor, ninguém nunca me chamou assim....
Eu gosto disso, muito. Na maioria das vezes não gosto da atenção de homens, mas a
de Rafael não faz eu me sentir mal, ele não me olha como se eu fosse um pedaço de
carne, como a maioria dos homens olham. Ele me olha como se eu fosse só... eu, como
se eu fosse linda, incrível. E eu gosto muito mesmo disso, talvez mais do que devo.
Claro que ainda existe muita insegurança, não sei algum dia conseguirei confiar
completamente em um homem, ainda mais em um que me sinto atraída, mas só o fato
de me atrair por alguém é um grande avanço.
Capítulo 5.

Depois do único dia livre após o castigo, meu pai fica ainda mais controlador, é difícil
que eu consiga sair de casa sem ser para ir a faculdade ou ao shopping e ele me manda
mensagens a cada dez minutos, oque é realmente sufocante. Quando explico a situação
para meus amigos, por alto, espero que eles achem estranho, porque sei que é, uma
garota de vinte anos não deve ser tão controlada assim pelo pai. Mas eles apenas
concordam em nos encontrarmos mais no shopping durante o dia. Davi para de pegar o
turno de outros funcionários e passa a trabalhar só no seu, durante a noite, para
podermos sair. Elisa e Amanda só fazem faculdade pela manhã, assim como eu, o que
nos dá todo o resto do dia desocupadas. Até mesmo Rafael nos encontra as vezes, mas
para ele é mais difícil, já que tem o bar e a faculdade, nem imagino o quanto deve ficar
cansado. Mas quando está com a gente o homem é sempre muito legal e eu adoro
quando ele e os dois irmãos falam sobre a infância, já que cresceram juntos.
Nos dias em que meu pai me impede de sair, Amanda vai até minha casa, e até Elisa
chega a me visitar algumas vezes, o que é legal. Fazemos noite de filmes com direito a
muitos doces e refrigerante.
As coisas não estão péssimas, a faculdade vai bem, eu me distraio e criei ótimas
amizades nesses meses, no entanto, a sensação sufocante nunca sai do meu peito. Estou
sempre rezando pelos dias em que meu pai fica fora de casa ou faz pequenas viagens.
Em alguns dias, sinto como se estivesse me afogando, como se estivesse prestes a cair
de um precipício, e tem momentos que peço por isso, por algo que me tire dessa
realidade, qualquer coisa que me leve para bem longe, mesmo que seja a morte. E eu sei
que estou me deixando ser consumida por tudo que ele me faz, por tudo que um pai não
deveria fazer com uma filha, estou deixando que ele me leve a um ponto perigoso
dentro da minha mente, um ponto do qual eu talvez nunca mais possa voltar.
Está claro, pelas roupas largas, que eu perdi peso nas últimas semanas e todas as vezes
em que me olho no espelho não consigo mais enxergar o brilho mínimo que tinha
preservado nos últimos anos.
Claro que escondo isso de todos, mas há dias que eu só me deito e choro, sem querer
compartilhar esses momentos com ninguém, nem mesmo Amanda. Para mim, é de certa
forma vergonhoso e ainda me sinto com medo só por pensar em compartilhar isso com
qualquer pessoa no mundo.
Mas, mesmo com a dor dilacerante no meu peito, eu sigo com meus dias, me apoiando
em meus amigos e no pensamento de que não falta muito tempo para finalmente me ver
livre desse homem.

Esse é um dos dias em que eu só preciso ficar sozinha com tudo que tenho para lidar,
talvez me afogando em algum copo de bebida.
Sabendo que Davi não vai estar trabalhando e é bem provável que Rafael não vai estar
no bar também, eu decido ir até lá para beber um copo ou dois. O caminho até o lugar é
rápido e eu salto ansiosa do carro depois de pagar o motorista. Encaro a fachada em tons
escuros, me questionando como um bar pode me passar tanto conforto e acolhimento e
me trazer pessoas tão queridas.
Quando me aproximo, percebo que o lugar está fechado, uma plaquinha na porta avisa
isso. Estranho. Afinal, Rafael jamais fecha esse bar, e Davi ou Elisa teriam dito se algo
sério estivesse acontecendo... A não ser que eles não saibam...
Quando estou prestes a desistir e pedir outro carro, vejo que a porta está apenas
encostada, e não trancada, então alguém deve estar aqui. Disposta a descobrir quem, eu
adentro o bar, sem pensar em como isso pode ser errado. Nesse momento só posso
imaginar o que pode ter acontecido para que esteja tudo tão silencioso e vazio. Mas
quando encaro o lugar diante de mim, meu coração dá um sobressalto dentro do peito e
eu arfo de surpresa. Está tudo... destruído. Totalmente destruído. Bancos jogados no
chão, vidros de garrafa de bebidas em pedacinhos.
Seguro o celular com força na mão e decido ir embora e ligar para Rafael e Davi, com
medo de alguém ter entrado aqui e feito isso. Mas então vejo algumas pequenas
manchas vermelhas no chão. Sangue. São pingos de sangue, eu já vi muitos para saber
reconhecer, e fazem um trilha por entre os vidros, seguindo para os fundos do bar.
Decido ignorar meu medo e sigo a trilha de sangue. Afinal, alguém pode estar
machucado. Preparo meu estômago para o que pode estar por vir, já que o sangue vai
aumentando de quantidade enquanto eu me aproximo do balcão principal. Mas eu não
poderia ter me preparado para o que encontro.
Jogado no chão, com a cabeça apoiada na parte de dentro do balcão, a mão segurando
uma garrafa de bebida e a outra apoiada sobre a perna, sangrando de um jeito
preocupante, está Rafael. Meu coração dá um pulo no peito e eu me ajoelho ao seu lado,
já pegando em sua mão cheia de pequenos cortes, ignorando qualquer pedaço de vidro
que possa me cortar.
Rafael abre seus olhos apenas um pouco, parece cansado e bêbado.
Um sorriso pequeno rasga em seu rosto e ele larga a garrafa de bebida, levando sua
mão até minha bochecha, acariciando.
— Você está aqui — sussurra.
— Rafael, o que aconteceu? — Minhas sobrancelhas se franzem em preocupação. —
Sua mão... precisamos cuidar disso.
— Ah amor.... tudo aconteceu, a vida! — Uma risadinha bêbada deixa seus lábios.
— Por Deus. — Suspiro. — Fique parado aqui, vou pegar algo pra cuidar dessa mão, e
não beba isso.
— Uhumm.
Ele nem ao menos parece escutar ou ligar enquanto pega a garrafa de bebida de novo,
levando para os lábios. Antes mesmo que uma gota de álcool pare em sua boca, eu puxo
a garrafa dele, fazendo com que me encare irritado. Apesar do crescente medo em meu
peito, apenas dou de ombros e saio dali, caçando alguma coisa para limpar os
ferimentos. No depósito do bar, encontro só gaze e álcool, terá que servir.
Volto até onde o loiro ainda está jogado, como mandei. Mas outra garrafa de bebida
está em sua mão, o que me faz suspirar irritada. Me abaixo em sua frente, arrancando a
garrafa de bebida dele novamente.
Seguro sua mão entre as minhas, irritada com sua teimosia.
Primeiro, passo uma das gaze molhada com água em cima dos ferimentos, limpando.
Rafael resmunga, mas continua parado enquanto eu limpo. Quando termino com isso,
pego outra gaze e molho com álcool, encostando com cuidado sobre os cortes. Dessa
vez o homem tenta puxar a mão, enquanto resmunga como uma criança birrenta. Puxo
de volta com força e volto a passar a gaze, cansada de sua teimosia.
— Cazzo! Isso dói!
— Eu sei. Da próxima vez tente ter mais cuidado — resmungo, mais irritada. — Aliás,
como isso tudo aconteceu?
— Tive alguns problemas.
Ele xinga baixinho quando passo a gaze mais uma vez, puxando a mão de novo. Porém
para quando eu o encaro com raiva, segurando com mais força. Quando o homem
sossega, posso voltar a limpar com cuidado cada corte.
— As vezes eu explodo um pouco quando estou com raiva.
— Um pouco? — Levanto as sobrancelhas, desdenhosa.
— Engraçadinha. — Ele suspira quando acabo de limpar sua mão.— Acho que herdei
isso do meu pai, tenho tentado controlar mas as vezes eu só... explodo, não sei.
— Já pensou em ir ao médico? Sabe, existe muita gente que tem esses problemas de
raiva e tudo mais.
— Não, não. — O loiro observa a mão. — Não é nada demais, juro. São momentos
raros.
— Tudo bem, se você diz. — Sorrio fraco, um tanto assustada por seu comportamento
— Vamos limpar toda essa bagunça que você fez?
— Não precisa me ajudar Maya, eu dou um jeito em tudo.
Ele se levanta, já pegando o que usei para cuidar de seus machucados e também a
garrafa de bebida. Quando deixa tudo sobre o balcão, sua mão se estende para mim, me
ajudando a ficar de pé.
— Vou te ajudar, Rafael. — Dou de ombros, já recolhendo as coisas. — Onde você
enfiou seus funcionários?
— Mandei todos para casa, os caras são muito sensíveis e não aguentam me ver quebrar
uma ou duas garrafas.
— Ah, claro... sensíveis, sim.
Eu solto uma risada, e continuamos em um silêncio confortável enquanto arrumamos
toda a bagunça, catando as garrafas e levantando os bancos e cadeiras.
Durante a limpeza meu choque pela cena que encontrei some, e consigo enxergar que
Rafael realmente tinha tido apenas um momento ruim. É claro que não vou deixar de
observar, quando se passa tantos anos morando com um cara agressivo, é quase
impossível não notar os sinais, e eu não deixarei nada passar. Não, com certeza não
deixarei, não estou disposta a... me aproximar de alguém assim.

Uma hora depois o bar está limpo, sem um vidro sequer pelo chão. Rafael liga para
seus funcionários e dá folga para eles pelo resto do dia, eu fico em sua frente, esperando
que ele peça desculpas a cada um dos meninos, com uma expressão ameaçadora.
— Me sinto como uma criança...— Pausa, enquanto guarda o celular. —... sendo
obrigada a pedir desculpas aos amiguinhos.
— Você está se comportando como uma criança, oras. — Coloco as mãos na cintura,
como via minha mãe fazer a muitos anos atrás. — Devia desculpas a eles, sabe disso.
— Eu sei, eu sei. — Ele suspira, pegando a chave do carro em cima do balcão .—
Vamos comer algo? Te deixo em casa depois.
Encaro a tela do meu celular, ainda tenho umas boas horas antes do meu pai chegar
então não tem mal nenhum eu sair com ele para comermos algo, mas ainda me sinto
receosa. Penso durante um tempo, mas acabo concordando e saímos do bar lado a lado,
Rafael parando apenas para trancar a porta.
Conversamos sobre coisas bobas no caminho até uma hamburgueria que segundo
Rafael, faz o melhor cheddar do mundo. Falamos sobre filmes, séries, livros e ficamos
falando em todas as línguas que sabemos, rindo quando nosso espanhol saí um pouco
embolado ou quando erramos uma palavra em inglês, devido à falta de prática. Mas o
italiano ele sempre fala muito, muito bem. Não ouço o homem se embolar ou esquecer
algo uma única vez, quando digo isso Rafael explica que os pais e os avós eram
italianos, mas que vieram morar no Brasil quando ele era bem pequeno.
No rápido caminho até a hamburgueria, aprendemos muito um sobre o outro, nossos
gostos, conhecimentos, falamos sobre nossas infâncias. E é bom, Rafael é até melhor do
que parece.
Quando em fim chegamos no lugar pedimos dois hambúrgueres com cheddar extra e
refrigerantes. Eu solto risadas com Rafael enquanto ele conta da primeira vez que beijou
uma menina, sobre como estava todo envergonhado e mesmo assim foi até ela e apenas
disse “ei, vou te beijar”.
— Você não ficou com medo de ser rejeitado, não?
— Não. — Ele balança a cabeça, a expressão séria. — Eu acredito que se você fica com
medo do que pode vir a seguir, acaba não vivendo sua vida, fica preso ao pavor da
situação, nunca se arriscando... então eu apenas fui lá e fiz o que tinha que fazer.
— Acho que você tem razão — sussurro. — Queria ser mais assim, corajosa, sabe?
— Não acho que você seja medrosa, Maya. — Sua mão remexe nos sachês de
maionese. — Todo mundo sente medo, só lidamos com ele de formas diferentes. Eu
encaro, você provavelmente prefere deixar pra lá, o que tem de mais?
— É, não sei...
Olho pela janela para a rua do lado de fora, onde vez ou outra um carro passa. Me
pergunto como seria se eu enfrentasse meu pai, se contasse para todos, se pedisse ajuda
a alguém. Mas nesse caso, acho que não adianta enfrentar, tentar ser corajosa só seria
pior.
Quando nossos lanches chegam, continuo em silêncio enquanto penso em como seria
bom ter coragem, viver livre e feliz. Deus, essas são as únicas coisas que eu quero na
vida, liberdade e felicidade, só isso.
Rafael respeita meu silêncio e me deixa sozinha com meus devaneios, mas vejo que
ele me observa, seus olhos analisando cada centímetro meu. Quando terminamos de
comer e estamos bebendo nossos refrigerantes, ele finalmente fala.
— Sabe, acho que os outros não tem reparado. — Seus dentes cravam nos lábios
vermelhos. — Mas você está... diferente
— Diferente? Como assim?
— Pode parecer estranho, mas mesmo quando estamos nos divertindo você parece...
distante, e tem perdido peso nas últimas semanas, eu vejo isso.
Meus olhos ardem quando ouço ele falando. Eu realmente acreditei que ninguém
estava reparando, e fiquei feliz com isso, não queria envolver mais ninguém em todo
esse drama. Mas ele reparou, Rafael percebeu, só ele.
— Ah!... imagina Rafael, deve ser impressão sua. — Disfarço, tentando deixar o assunto
acabar.
— Não é, eu sei que não é — Outra mordida nos lábios. — Não quero te obrigar a
compartilhar nada comigo, sei que é mais amiga do Davi mas... se precisar, bem, eu
estou aqui e posso te escutar.
— Obrigada Rafael, mas prometo que não é nada demais, só alguns problemas em casa
com meu pai e seu controle extremo.
Seguro sua mão sobre a mesa, surpreendendo a ele e a mim mesma pelo toque
repentino. Não sou de fazer esse tipo de coisas.
— Não se preocupe, tá bom?
— Impossível. — Ele sussurra, a mão agarrando a minha. — Pelo menos prometa que
vai se alimentar bem?
— Eu prometo. — Dou um sorriso, mesmo que talvez não consiga cumprir a promessa.
— Sabe que vou te perturbar né? Nem que eu tenha que te obrigar a comer.
— Tá bom, tá bom.
Eu solto uma risada, e ele faz o mesmo junto comigo. Continuamos ali durante algum
tempo, nossa conversa é leve e rimos o tempo inteiro, chamando a atenção das pessoas
presentes na hamburgueria, mas não ligamos. Quando finalmente vamos embora o sol já
sumiu a pouco, dando lugar a uma noite quente mas com um vento gostoso.
Rafael abre a porta do carro para mim, e eu agradeço sorrindo enquanto me acomodo
no banco. O caminho até minha casa é feito em um silêncio confortável, tínhamos
conversado muito durante o dia e o assunto parece nunca acabar, mas ainda assim fico
quieta olhando pela janela.
Quando estamos nos aproximando do meu bairro Rafael começa a falar comigo, e eu
fico feliz com isso, gosto de conversar com ele.
— Sabe, quando minha mãe morreu... — Ele para de falar enquanto passa a marcha.
—... eu fiquei um bom tempo meio... perdido.
— Deve ter sido horrível. — Aperto os lábios, segurando sua mão de novo. — Acho
que te entendo um pouco.
— Foi péssimo, eu tinha só quinze anos. — Sua mão se enrosca na minha. — Eu
lembro que com os meses foi ficando mais fácil. Acho que quando você tem essa idade
tudo sempre é mais fácil, né? Mas era minha mãe e mesmo nos momentos em que eu
estava feliz, conseguia sentir aquela sensação horrível no meu peito, como um aperto
que me impedia de seguir em frente.
Ele suspira, olhando para o trânsito a frente, parecendo perdido em suas memórias.
Minha mão aperta mais contra a sua e ele me encara, me lançando um sorriso enquanto
desliza seu dedo no dorso da minha mão em um leve carinho.
— Aos poucos essa sensação foi diminuindo, mas depois que meu pai morreu, a dois
anos atrás, ela voltou com tudo. Tem dias que são mais fáceis, outro mais difíceis, mas o
aperto nunca vai embora, a sensação de impotência, de não poder resolver tudo, sabe?
— Acho que sim. — Dou um sorriso triste. — Sinto muito que se sinta assim.
— Eu sei lidar com isso, acho que faz parte da vida, sei que pode ser uma depressão,
mas ainda não tratei isso direito. — Seus dentes forçam contra os lábios já marcados. —
Mas Maya, eu acredito que se sinta assim em relação a situação com seu pai, vejo o
quanto tem te feito mal e sei que não é só a superproteção dele, parece ser muito mais.
Só quero que entenda que nem sempre podemos resolver as coisas, nem todos os dias
vão ser fáceis, mas você não pode deixar isso acabar com você.
— Olha, eu devo estar mesmo magrela pra você estar dizendo isso. — Sorrio,
brincando.
— Boba. — Ele ri, a mão ainda enroscada na minha. — Mas estou falando sério. Maya,
nunca deixe a ação de outras pessoas acabarem com sua felicidade, nunca.
— Uau, isso foi épico. — Eu solto uma risada, mas o encaro com os olhos brilhando. —
Obrigada Rafael, você foi incrível comigo hoje.
— Era o mínimo que eu podia fazer depois de você ter me ajudado tanto mais cedo. —
Ele sorri. — E eu gosto de você.
Ficamos em silêncio, ele concentrado no trânsito e eu o observando, é engraçado
como um vinco se forma entre suas sobrancelhas enquanto dirige, como morde os lábios
o tempo inteiro, os deixando vermelhos e com pequenas marquinhas de sangue.
Em nenhum momento Rafael solta minha mão, e eu também não faço questão disso, é
a primeira vez que me sinto completamente confortável com o toque de alguém, é bom
ficar assim com ele. Em algum momento do caminho até minha casa eu adormeço,
acordando com o loiro me sacudindo para que eu possa permitir nossa entrada no
condomínio. Depois que faço isso me ajeito no banco e arrumo meu cabelo, que ficou
todo embolado.
— Meu cabelo está muito ruim? — questiono, com um pequeno sorriso.
— Não. — Ele ri. — Você está linda.
— Mentiroso. — Dou um tapa fraco em seu braço.
— É sério, você tá linda.
— Obrigada.
Coro perante seu elogio e o sorriso, Rafael está mesmo um amor hoje.
Não demoramos para parar em frente a minha casa, ele se lembrou do dia em que
mostrei a fachada para ele. Sorrio mais, lembrando que ele disse que gostava de se
imaginar vindo me buscar aqui.
— Bom, você não veio me buscar, mas veio deixar... — digo baixinho, envergonhada.
— Hum? — Ele parece confuso, mas no momento seguinte ri. — Ah! Sim, tem razão,
mas ainda posso vir buscar.
Ficamos nos encarando em silêncio durante um bom tempo, apenas observando um
ao outro com sorrisos em nossos rostos. Quando vou falar, Rafael decide fazer o
mesmo, então falamos juntos.
— Preciso entrar antes que....
— Me dê seu número. — Ele ri. — Droga, pode falar.
— Meu pai já deve estar chegando então eu preciso entrar. — Aponto com o dedo para
a porta de casa, mas estou sorrindo. — Me dê seu celular.
Ele estica o celular para mim e eu anoto meu número, largando o aparelho em sua
mão logo em seguida. Lhe dou um sorriso grande, percebendo que nossas mãos estão
unidas novamente, assim como estavam antes que eu dormisse, Rafael parece perceber
também, e aperta minha mão com mais força.
— Preciso mesmo ir — sussurro.
— Eu sei. — Ele solta o ar com força. — Vá, não quero te causar problemas.
— Tudo bem. — O sorriso não saí do meu rosto. — Avise quando chegar em casa,
Rafael.
— Pode deixar. Se cuida Maya, lembra que se precisar de mim, é só chamar, eu venho a
hora que for.
— Muito obrigada, te digo o mesmo.
Saio do carro e bato a porta, me apoiando ali enquanto sorrio uma última vez para o
homem. Ele retribui meu sorriso com um aceno de cabeça.
Me desencosto do carro e vejo Rafael saindo rápido com o mesmo.
Enquanto entro em casa meus suspiros são altos. Feliz, eu estou feliz. Comecei o dia
achando que ficaria bebendo e sentindo toda dor da minha vida em meu peito, mas
apesar de ter encontrado Rafael naquele estado, ele transformou o que devia ser um dia
horrível em um dia incrível, cheio de risadas.
Capítulo 6.

Mesmo sem poder sair com frequência encontro meus amigos, ou somente Rafael,
sempre que posso. Quando é todos nós juntos costumamos ir ao shopping ou para o bar.
Quando só eu e Rafael saímos quase sempre acabamos no Lola’s burguer, a
hamburgueria com o melhor cheddar do mundo.
Estou estudando quando uma mensagem de Elisa chega, dizendo que precisa
desabafar com alguém e me perguntando se podemos nos encontrar no dia seguinte, só
eu e ela. Claro que concordo, decidindo nos encontrarmos em uma pequena lanchonete
perto da minha faculdade.
Depois de largar o celular, volto a encarar os cadernos jogados pela cama, constatando
que odeio a faculdade que curso.

No dia seguinte encontro Elisa na lanchonete após uma prova de matemática financeira
extremamente estressante. Nos sentamos e eu a encaro, esperando que desabafe, estou
aqui para escutar e aconselhar.
— Então? — falo baixinho.
— Eu estou saindo com uma menina da minha faculdade, ela é linda Maya, linda
mesmo, o nome dela é Maria e ela sempre teve um jeito incrível comigo e eu estava
começando a... — Ela em fim respira depois de tanto falar. — Começando...
— A se apaixonar — sussurro, um sorriso pequeno em meus lábios. — E qual é o mal
nisso Lis?
— Eu não sei. — Ela bufa. — E se for cedo demais? Eu tô morrendo de medo de estar
apressando as coisas.
— Olha, eu nunca namorei. — Solto uma risadinha. — Mas acredito que se você gosta
de alguém, então nunca é cedo demais.
— Será? Eu nem sei se ela sente algo por mim — confessa, choramingando. — Droga,
estou agindo como uma menina de quinze anos apaixonada.
Solto outra risada baixa e Elisa continua contando sobre seus problemas amorosos,
enquanto dou minha opinião mesmo que eu tenha uma experiência quase nula, isso se
você ainda contar com o primeiro beijo aos onze anos, depois disso nunca mais cheguei
perto de garotos. Quando digo isso para Elisa, ela ri, depois vê que eu falo sério e me
olha com uma expressão preocupada. Eu apenas sorrio e digo que é por opção, oque não
é exatamente uma mentira, dependendo do que você considera opção.
Isso faz com que ela inicie muitas perguntas, se tem algum motivo para isso, se tenho
alguma orientação sexual diferente da que é considerada “convencional” para a maioria
e por isso não namorava com ninguém. Não me importo em responder nenhuma delas,
somos amigas e me sinto até bem em ver que Elisa sente que somos tão íntimas assim.
Esse é um dos motivos de eu gostar tanto dela, a garota é bem direta em tudo, e não
fica te rondando quando quer dizer algo, simplesmente fala. Admiro isso.
Quando Elisa cansa de falar sobre aquele assunto, passamos a conversar sobre a
faculdade e ela me conta um pouco sobre sua vida, o que quer para seu futuro.
— Como você sabe, tô fazendo a faculdade de moda. — Balanço a cabeça em
concordância. — Pretendo criar minha marca, e quero que sejam só mulheres, sabe? É
uma coisa que sinto que preciso fazer.
— Isso é bem legal, sério.
— Valeu. — Ela dá de ombros. — Também penso em chamar as meninas que moram
no meu antigo bairro, treinar elas, preparar pro mercado da moda. Quero ajudar, dar
uma oportunidade maior pra elas, uma como a que eu tive.
— Acho isso incrível. — Dou um sorriso. — Ia ser uma ajuda imensa pras meninas.
— Sim, é o que me motiva muito. — Elisa me encara. — E você, o que pretende fazer?
— Não sei. — Sou sincera, torcendo os lábios. — Provavelmente vou seguir na área da
administração mesmo, e mais pra frente fazer um curso de letras, talvez.
— Letras? Que legal, não sabia que gostava.
— É, eu acabei fazendo administração mais pelo meu pai mesmo.
— Péssima ideia.
— Pois é — concordo. — Mas agora já to aqui né, então vou terminar e depois vejo o
que faço.
— Se não gosta do curso que faz, então troca amiga. Não vale a pena continuar com
algo que não te faz feliz.
Apenas balanço a cabeça em silêncio, evitando os detalhes do assunto, então ficamos
as duas quietas enquanto eu jogo batata fritas em sua direção. É incrível como ela
consegue pegar todas com a boca. Eu solto uma risada a cada vez que minha amiga
engole uma das batatas arremessadas em sua direção.
Volto para casa antes mesmo de anoitecer, deixando Elisa em seu apartamento antes de
seguir meu caminho.

Nos dias que se seguem, eu e Rafael saímos muito sozinhos, só nós dois e
hambúrgueres com cheddar duplo, e nosso assunto nunca acaba. Conversamos sobre
filmes, música, livros e bebidas.
Rafael me ensina as diferenças entre cada cerveja, vinho, whisky. É bom, confortável e
ficar com ele sempre me traz a sensação de estar em um lar, em casa.
No dia de hoje em questão meu pai me proibiu de sair. No entanto, isso não afeta
Rafael, nada nunca o afeta por muito tempo sem que encontre uma solução, e é o que
ele faz. Isso quer dizer que tenho uma ligação de vídeo marcada para daqui a meia hora.
Sim, marcada. Rafael fez um pedido formal e disse que estará muito bem vestido, como
se ele não estivesse assim sempre. Até rolou um convite on-line que ele insistiu que eu
marcasse presença. Rafael é hilário.
Quando faltam apenas dez minutos para nossa ligação vou até o corredor e confirmo
que meu pai está imerso em papéis e trabalho dentro do escritório. Tranco a porta do
quarto depois que entro, só por segurança.
Mantenho um sorriso no rosto enquanto me jogo na cama. Estou vestida com calça de
moletom e uma camisa, será engraçado o contraste entre o homem todo arrumado e meu
moletom velho. Poucos minutos depois meu celular se acende, mostrando uma nova
chamada de vídeo. Eu aceito. Meus lábios estão formando um grande sorriso quando
Rafael aparece na tela, e ele realmente está vestido como se estivéssemos indo a um
jantar chique. O cabelo está penteado e no lugar, uma camisa de botões cor grafite cobre
todo seu corpo. Não consigo ver a baixo do tronco, mas não duvido nada que esteja de
calças jeans.
— Oi, Maya. — Ele me olha de forma acusatória, brincando. — Bem arrumada né?
— Nem vem. — Dou uma risada. — Está frio, nem por um milhão eu me arrumaria.
— Ah é uma pena, minha mala está bem aqui recheada de dinheiro.
— Engraçadinho.
Soltamos uma risada juntos e começamos a conversar, Rafael fala sobre a finalização
que está fazendo em seu TCC e eu resmungo sobre as provas difíceis da minha
faculdade. Falamos sobre a série que estamos assistindo e ele janta enquanto fala
comigo, como se estivéssemos mesmo um na frente do outro. Quase três horas depois
decido que é hora de desligar, meu pai costuma parar de trabalhar nesse horário e Deus
sabe o quanto eu não quero que ele me pegue falando com Rafael.
— Ei, preciso desligar. — Dou um meio sorriso triste.
— Já? — Seus lábios fazem um pequeno bico, Rafael é mesmo um bebêzão.
— Sim Rafa, amanhã acordo cedo.
— Tem razão. — Ele bufa. — Tudo bem, boa noite Maya.
— Boa noite, Rafael. — Lhe dou um sorriso. — Até amanhã.
— Até amanhã.
Sorrimos um para o outro de novo antes que eu vá em direção a tela para desligar.
Quando estou quase fazendo isso, Rafael diz um “ei” alto, me dando um susto.
— Foi mal. — Ele ri. — Mas preciso confessar uma coisa.
— O quê?
— Estou de bermuda, e não arrumado.
— Ah não! Como você pôde Rafael? — Minha mão está no peito de forma exagerada.
— Eu me arrumei tanto para isso e você está de bermuda?
— Mil perdões senhorita, eu não deveria ter feito isso.
Meus lábios estão apertados, estou quase sorrindo, oque Rafael faz. Ele gargalha alto,
jogando a cabeça para trás e essa é uma das risadas mais lindas que já vi, tornando
impossível não sorrir junto. Nos despedimos quando sua crise de risada boba acaba,
com outra ligação marcada para o dia seguinte.
Na madrugada, meu pai vem até meu quarto. E a única coisa que não deixa que meu
coração quebre completamente é o pensamento de que isso vai acabar, que eu serei
livre. Livre e feliz. Nesse momento, o que me mantém sobre controle é a esperança, a
única coisa que eu tenho.

No final da semana, Elisa e Davi nos convidam para um jantar na casa deles,
preparado pelo garoto, que segundo o que ele diz, tem um dom dentro da cozinha.
Eu tenho que pedir ao meu pai, mesmo que tenha quase certeza que ele não deixará.
Para minha surpresa, ele deixa, assim como permite que eu durma na casa da minha
amiga, que ele já conhece. Ainda bem que o homem não sabe que o apartamento é de
Elisa e Davi.
Arrumo minha mochila na mesma hora e vou rápido até a casa dos meus amigos, digo
a Elisa que chegarei um pouco mais cedo e vou ajudar ela e Davi com a comida, a
garota apenas me responde com uma mensagem de áudio do irmão dizendo para eu
levar refrigerante e uma boa cerveja. Com certeza não sei o que é uma boa cerveja, mas
prometo levar de toda forma.
Pouco antes de chegar no apartamento dos meus amigos paro em um supermercado e
compro duas garrafas de refrigerante e algumas latas de cerveja que Rafael confirma ser
boa, depois que ligo pra ele fazendo essa pergunta. Depois que saio dali, chego rápido
ao apartamento deles, onde um dos dois libera minha subida. Quando chego ao andar
certo bato na porta, e ouço Davi gritando para que eu entre.
Assim que abro a porta me vejo em uma pequena sala que grita “jovem universitário”
em cada canto, desde o grande sofá cinza, ao bar no canto e até a TV ligada em um canal
de música.
Encaro Davi, que está cortando algo no balcão que divide a cozinha da sala. Elisa não
está por perto.
— Eai, loirinha.
— Oi, Davi — Me sento no banquinho que tem ali.— Trouxe o que pediu. Cadê Elisa?
— Ah cara, você é demais, e Elisa foi... — Ele faz uma pausa enquanto guarda tudo na
geladeira. —...na casa do Rafael, pegar as taças dele, o filho da mãe é mesmo mais
sofisticado que nós dois.
Solto uma risada, e começo a ajudá-lo a cortar tudo para a comida. Não demora e
Elisa volta com taças e uma caixa de chocolate, que ela sacode sorrindo depois de me
cumprimentar.
Pouco tempo depois a caixa de chocolate está praticamente no fim, sobrando apenas
um único bombom, e os irmãos brigam para saber quem o comerá. Pretendendo acabar
com essa discussão, só por isso, eu mesma como o delicioso chocolate. Os dois me
encaram com expressões incrédulas enquanto limpo os últimos resquícios de chocolate
dos dedos e solto uma risadinha.

Menos de duas horas depois, a comida está pronta e Amanda já chegou, esperamos
apenas Rafael, que está se certificando de que tudo ficará certo no bar sem ele e Davi
por perto antes que venha para o jantar. Quando ele chega Davi já terminou com metade
das cervejas que eu trouxe e as duas meninas e eu já bebemos pelo menos três taças de
vinho cada uma. Estamos morrendo de fome.
— Foi mal a demora, mas agora podemos comer? Estou cheio de fome. — Ele foca seu
olhar em mim. — Oi, Maya.
— Oi, Rafael. — Minha voz sai quase em um sussurro.
— Legal, legal. — O moreno ao meu lado se levanta, com a lata de cerveja ainda nas
mãos. — Tá todo mundo morrendo de fome então vamos logo comer minha
maravilhosa comida.
— Não se iludam, eu provei e está simplesmente horrível. — A ruiva brinca, enquanto
segue nosso amigo até a cozinha.
— Bem engraçado Amandinha, bem engraçado...
Sacudo a cabeça enquanto uma risada baixa sai por meus lábios e os acompanho até a
cozinha, onde todos pegamos nossas comidas e voltamos para sala, e comemos
espalhados pelo lugar. Elisa e Amanda estão jogadas em cima do tapete da pequena
sala, Davi está na poltrona que colocou bem ao lado do sofá, onde eu estou com Rafael
logo ao meu lado. Comemos enquanto conversamos sobre todo tipo de coisa, e muitas
vezes quase cuspo o refrigerante que bebo de tanto que meus amigos me fazem rir.
Depois da janta, que por sinal estava uma delícia, nós continuamos jogados por ali,
cheios e com preguiça demais para levantarmos ou fazermos qualquer coisa que não
seja conversar. Um bom tempo se passa até que Elisa vá até a cozinha e volte com
nossas taças e o vinho, logo depois buscando mais cerveja para Davi, que não bebe
vinho de forma alguma, segundo ele. Ficamos tão distraídos em nossa conversa que
nem vemos a hora passar, não que isso importe muito, levando em consideração que três
de nos moram nesse mesmo andar, e eu e Amanda vamos ficar na casa de nossos
amigos durante essa noite.
Quando termino minha quarta taça de vinho da noite — ou será a quinta? Não sei a
certo — , Rafael volta a sentar ao meu lado, batendo seu ombro no meu de brincadeira,
me fazendo sorrir.
— Não querendo me intrometer, mas já fazendo isso. — Ele ri. — Já são quase meia-
noite, você não devia estar indo pra casa?
— Por incrível que pareça, meu pai me deixou ficar aqui essa noite.
— Uau! Isso é uma novidade. — A surpresa é nítida em sua voz.
— Pois é, né? — Eu solto uma risada, balançando a cabeça em concordância. — Mas
eai, como ficou o bar?
— Bem, graças a deus. — Ele levanta as mãos para o teto, de forma exagerada. — Os
garotos sabem o quanto aquele bar significa para mim, não deixariam nenhuma merda
acontecer lá.
— Você ama aquele bar como se fosse sua família, né? — questiono, um tanto
admirada com tamanha devoção por um bar.
— É quase isso. — Seu dedo aponta para os dois irmãos jogados no chão. — Depois
deles, aquele bar foi uma das únicas coisas que me sobrou, sabe?
— Acho que te entendo. — Suspiro, completando logo em seguida. — Depois que
minha mãe morreu... eu fiquei muito perdida, muito mesmo, então, todos os dias eu ia
até o jardim dela e ficava lá por horas, apenas cheirando e passando a mão pelas flores
que ela plantou, fazia eu me sentir mais próxima dela, foi a única coisa que me sobrou...
— E seu pai, tipo... onde ele estava no meio de tudo isso?
— Meu pai é... — Dou de ombros, soltando o ar com força. — Complicado...Ele mudou
muito depois que minha mãe morreu.
— Mudou como?
— Hã, ele era bem mais calmo, amoroso e compreensível quando ela estava viva. —
Mordo meus lábios, nervosa. — E depois que ela se foi, ele se tornou outra pessoa,
ficou agressivo, controlador e quando não estava em casa bebendo, estava se afundando
em trabalho, e eu posso até ser uma filha horrível por dizer isso, mas eu preferia, eu
prefiro, quando ele está bem longe, trabalhando ou viajando.
— Você não é uma filha horrível! Não diga isso. — Ele afirma com veemência e sua
mão se enrosca na minha. — Posso te fazer uma pergunta, Maya?
— Sim, pode.
— Aquela marca em seu pulso que eu vi, não foi ele que fez aquilo, né? — Encara meu
pulso, como se ainda pudesse ver a marca ali. — Porque se foi, você pode me falar,
deve me falar, tá entendendo? Eu faço qualquer coisa pra te ajudar.
Encaro o loiro enquanto penso no que responder. “Sim Rafael, meu pai abusa de mim,
e quando não estou cooperando, ele decide que devo apanhar”. Isso é péssimo até
mesmo em pensamento, só em pensar na palavra, abuso, pensar em dizê-las em voz
alta... Um amargor toma minha boca. Não, não mesmo, eu não posso falar sobre isso,
principalmente com ele. Decido mentir, assim como venho fazendo durante esses oito
anos. Dessa vez, é ainda pior, e tenho que engolir a seco antes de respondê-lo.
— Não, aquele machucado não foi... — Balanço a cabeça. —...não foi ele. Eu só me
machuquei, como já disse a você.
Ele apenas me encara em silêncio, enquanto balança devagar a cabeça, em afirmação.
Depois disso, não voltamos a conversar, mas nossas mãos continuam enroscadas
enquanto Rafael faz um carinho no dorso da minha.
Quando já se aproxima das três da manhã, Elisa vai para o quarto e nos deixa
conversando, dizendo que nossas camas estarão prontas quando formos deitar. Davi e
Amanda continuam conversando deitados no chão, enquanto a garota o explica um
pouco sobre a mente dos seres humanos, já que ela estuda na área de psicologia. Eu e
Rafael continuamos nos olhando em silêncio, sua mão não solta a minha por nem um
segundo, e por incrível que pareça, isso é bom. Normalmente eu não deixo nenhum
homem me tocar, e quando digo normalmente quero dizer sempre, não lembro de deixar
qualquer cara que seja me tocar nos últimos anos. Mas com Rafael é um tanto diferente,
bem diferente, ele nunca tentou sequer tocar qualquer outra parte do meu corpo que não
seja minha mão, ele me passa segurança, conforto, seu toque nunca é bruto e ele nunca
insiste em segurar minha mão quando eu me solto. Com ele é diferente mesmo.
— Sai para jantar comigo? — pede, me tirando de meus pensamentos.
— O quê? — Minha voz sai um pouco mais alta devido a surpresa.
— Sai comigo. Para um jantar de verdade, em um restaurante, só nós dois. — Então ele
completa, com um olhar acusatório, brincando. — E nada de parte de cima arrumada e
bermuda na parte de baixo, ou pijamas.
— Ah não! Sem pijama? — Eu solto uma risada.
— Isso mesmo. — O homem também ri. — Então?
— Um jantar? — Ele balança a cabeça, concordando. — Como... como amigos?
— Como o que você quiser Maya, se quiser jantar só com um amigo, então é isso que
vai ser.
— Tudo bem. — Decido não pensar muito na situação. — Eu quero, é claro.
— Tá bom, você escolhe o dia, eu escolho o lugar. — fala, enquanto se levanta. —
Agora eu preciso ir, já passou do meu horário.
— Vou dormir também, boa noite Rafa.
O loiro murmura um boa noite enquanto deixa um leve beijo em minha testa, logo
depois passando por Davi e lhe dando um tapinha no ombro. Quando passa por Amanda
ele faz o mesmo que fez comigo, deixando um beijo em sua testa. Depois que Rafael se
vai, eu sigo para o quarto de Elisa, deixando os outros dois conversando.
Capítulo 7.

Uma semana depois eu estou na portaria do meu condomínio, esperando Rafael, que
me levará para o jantar que marcamos. Menti para meu pai para que ele me deixasse
sair, dizendo que vou sair com Elisa e que ela virá me buscar.
Depois de alguns poucos minutos de espera, o carro de Rafael para diante de mim, e o
loiro sai. Está vestido com calças jeans que inevitavelmente marcam suas coxas, que por
algum motivo me pego reparando com frequência e a costumeira camisa de botões
cobre seu tronco, a da vez é preta e o deixa ainda mais bonito.
Rafael está tão incrível que na mesma hora passo a me sentir sem graça. Estou vestida
com calças jeans apertadas e blusa branca de mangas longas e largas, o tecido é leve,
parecido com seda, nos pés estou com meu sapato preto, o salto me dá uns bons doze
centímetros a mais. Mas do lado de Rafael, tão lindo e incrível, eu estou simples, muito
simples. Gemo em descontentamento quando ele se aproxima e posso constatar que está
mesmo perfeito.
— Boa noite, senhorita. — Ele está sorrindo, mas seu cenho franze quando me encara.
— Que cara é essa? Estou tão ruim assim?
— Ah não, é totalmente o contrário. — Bufo, resmungando em chateação. — Se
soubesse que você iria vir tão perfeito assim, teria vestido algo melhor.
O homem para a alguns bons centímetros de mim, me encarando de cima a baixo, seus
olhos parecem fazer uma observação minuciosa de cada parte do meu corpo. Me
encolho, cruzando os braços, esperando pela resposta dele. No entanto, Rafael apenas
balança a cabeça e me puxa até o carro, abrindo a porta e esperando que eu me acomode
antes de fechá-la. Ele não fala nada até que o carro esteja em movimento, então espero.
— Sei como seu pai é superprotetor, por isso preferi sair logo da portaria. — Abro a
boca para responder, mas ele estica a mão, pedindo que eu espere. — Sobre minha
aparência, estou vestido como sempre me visto. E sobre você, está linda Maya,
simplesmente perfeita, pare de se diminuir.
— Estou tão simples e...
— Não, para com isso. — Ele suspira. — Não vou deixar que fique se autodepreciando
quando está tão incrível, quando você é tão linda.
— Rafael...
— Estou falando sério, caramba! — Bufa, reclamando baixinho. — Você não tem
noção de como é incrível, de como todos os caras olham para você quando está em
algum lugar. Você é linda, muito linda, tanto por fora quanto por dentro, então...só não
se trata assim.
— Não gosto de ninguém me olhando. — Meu nariz se franze em desgosto. — E
obrigada, acho que você tem razão sobre a autodepreciação.
— Acredite, eu também não gosto de ninguém te olhando. Nenhum pouco.
Depois disso, nosso assunto se foca em coisas diferentes, e eu deixo para trás minha
insegurança. Falamos sobre as maiores bobagens enquanto jantamos. Animais de
estimação da infância, viagens que fizemos, sobre comidas e todas essas coisas.
No meio do jantar, Rafael propõem uma brincadeira que fazia com os primos da Itália.
Duas mentiras, uma verdade.
— O quê?
— Ah o nome já deixa óbvio! — Ele ri. — Você fala duas mentiras e uma verdade e eu
tenho que adivinhar qual é qual.
— Humm... tudo bem, eu começo. — Bato os dedos na mesa, pensando em algo. — Tá
legal, vamos lá. Eu já fui suspensa na escola, eu já quebrei meu braço enquanto andava
de skate e meu animal preferido é o cachorro.
— A verdade é que seu animal preferido é cachorro, as outras duas são mentira —
afirma com convicção, o olhar convencido de quem diz que ganhou essa rodada.
— Você errou — aviso, sorrindo com ironia em resposta. — Meu animal preferido é
gato, a verdade é que eu quebrei o braço andando de skate.
— Uau, Maya! Quem diria que você é uma aventureira, hein? — Nós rimos juntos
enquanto estreito os olhos em sua direção.— Beleza, minha vez! Eu fumava até cinco
meses atrás, eu tenho um vinho que era do meu pai e nunca abri e meu lugar preferido
na Italia é o restaurante de um hotel que tem lá.
— A verdade é sobre o vinho, é claro.
— Errou feio, ragazza. — Ele bebe um gole de sua bebida, balançando a cabeça em
falso descontentamento. — A verdade é que fumava até cinco meses atrás.
— Você fumava? — Ele confirma com um leve menear de cabeça. — Mas... a cinco
meses atrás a gente tava se conhecendo já.
— Eu tinha parado no dia em que nos conhecemos.
— Ah! Isso é ótimo Rafael, fico feliz que não fume mais. — Minha voz expressa a
felicidade real por saber que ele se livrou do vício.
— É, eu também.
Não muitas horas depois, Rafael me deixa na portaria do condomínio depois de se
despedir com um carinho em minha mão. Na madrugada, nem mesmo a visita nojenta
de meu pai faz com que a felicidade se esvaía totalmente de mim. E mesmo que tenha
ido dormir com dores e marcas em meu corpo e mente, com ainda mais raiva daquele
homem, bem lá no fundo, a esperança e felicidade se fazem presente.

Nas semanas seguintes eu e Rafael passamos quase todos os dias que dão juntos,
algumas vezes com nossos amigos, em outras só nós dois. E apesar de não conseguir me
abrir totalmente com ninguém, Rafael me conhece, ele sabe quando eu não estou bem,
se preciso de um copo de bebida ou de um grande hambúrguer, nos dias em que eu
apenas preciso ficar em silêncio ele me dá isso, e não sai do meu lado nunca. Vamos a
jantares, ao cinema, ficamos na casa de Elisa e Davi bebendo vinho e algumas vezes
vamos todos para o bar. Esses são os meus melhores dias, os momentos em que estou
mesmo feliz.
E apesar de ficar muito tempo com Rafael, sempre tiro algum tempo para ficar com
Amanda e Elisa, as vezes com as duas, e vou muito ao bar para ficar com Davi.
Hoje, vamos todos para um barzinho que o amigo de Rafael está inaugurando, por isso
estou pronta dentro de um vestido preto liso que desce quase até o final de minhas
coxas, a roupa é simples e até um tanto fechada, mas meu pai não costuma deixar que
eu compre qualquer coisa mais ousada que isso, então precisa servir. De certa forma, já
me acostumei com esse estilo de roupa, talvez até goste.
Quando já estou maquiada e completamente pronta, saio de casa em direção a de
minha amiga, feliz por meu pai finalmente estar viajando depois de dois meses seguidos
em casa. Na verdade, apesar de estar piorando em suas agressões e abusos, ele tem se
mantido longe na maior parte do tempo, e me dando certa liberdade. Talvez até esteja
com alguma mulher, o que me alivia, mesmo sabendo que é errado não me preocupar
com qualquer pessoa que esteja com ele, meu lado egoísta agradece por se ver um
pouco livre, mesmo que isso queira dizer que ele vai estar sendo um babaca com outra
mulher.
Continuo divagando sobre isso enquanto espero que Amanda me atenda, e quando ela
aparece em minha frente, já estou arrependida por meu pensamento anterior. Ninguém
merece ele.
Encaro a garota, que está com o cabelo ruivo brilhando e liso. Suas pernas estão
apertadas dentro de uma saia jeans curta e ela veste um body decotado e brilhoso.
— Você está linda! — Seus braços rodeiam meu corpo em um abraço apertado.
— Obrigada, você também está incrível. — Lanço um sorriso para a garota enquanto ela
me solta e fecha sua porta. — Podemos ir no seu carro? Sabe como é usar o meu,
mesmo que ele esteja viajando...
— Claro que podemos.
Caminhamos lado a lado em direção ao carro da ruiva, que fica em silêncio até o
momento em que arranca com ele em direção a entrada do condomínio.
Ela me encara mordendo os lábios, parece dividida entre olhar a rua ou a mim.
— Quero te perguntar uma coisa! — A garota parece nervosa, então apenas balanço a
cabeça. — Eu sei que você tem todos aqueles problemas com seu pai...e que pode não
estar preparada pra isso...
— Sim, preparada para o quê?
— Você gosta do Rafael? — Sua pergunta é direta e me deixa um tanto surpresa. —
Desculpa perguntar assim, mas eu precisava saber se tá rolando um... romance?
Fico em silêncio, ainda a encarando enquanto ela volta seu olhar para o grande portão
por onde passamos agora. A pergunta se repete várias vezes em minha cabeça. Você
gosta do Rafael? Você gosta do Rafael?
Me sinto um pouco confusa, a verdade é que apesar de ter me aproximado muito de
Rafael, nunca pensei nisso, sobre o que sinto por ele. Sentir esse tipo de coisas por
alguém é uma novidade para mim, e nem sei se consigo me aproximar o suficiente para
formar um laço. Então acho que não, eu não gosto de Rafael, pelo menos não da forma
literal, não como deveria ser.
— Não. — Balanço a cabeça em negação. — Não estou pronta pra isso. Enquanto
estiver com meu pai, acho que não... não consigo.
—O.k. — Ela concorda, mordendo o lábio de novo. — O.k.
O resto do caminho é feito sem mais comentários sobre Rafael e nosso sentimento
inexistente, e falamos apenas sobre nossas faculdades, o que pretendemos fazer no
futuro, é visível que o assunto presente é ignorado propositalmente, já que eu e minha
amiga sabemos que não tenho nada de bom para dizer.
Capítulo 8.

Quando chegamos ao bar do amigo de Rafael, encontramos ele e os dois irmãos


parados perto da entrada esperando por nós duas, e resmungo baixinho quando percebo
a longa fila, já sentindo meus pés doerem dentro dos saltos.
Descemos do carro e caminhamos até eles, que notam nossa presença e logo estamos
trocando abraços e cumprimentos.
— Vamos mesmo aguentar essa fila gigante? — Amanda parece tirar as palavras de
minha boca, e agradeço mentalmente por isso.
— Não, eu disse pra vocês que meu amigo é o dono — lembra o loiro, caminhando em
direção à entrada. — Nosso nome tá na lista.
— Vantagens de sermos amigos do chefão. — Elisa desdenha, jogando um dos braços
em meus ombros e o outro nos de Amanda.
— Cara, não chama ele assim, vai dar moral demais. — O moreno ao nosso lado ri.
— Deixa ele, o pai tá super on. — Ela nos faz rir, mas está com uma cara de nojo. —
Cara, isso soou tão hétero.
— Calem a boca vocês dois — esbraveja o homem, brincando. — Não sei por que ainda
os considero meus irmãos.
— Porque somos perfeitos, Rafinha.
Rafael apenas sorri em resposta a Elisa, logo encarando o segurança, que após uma
rápida conversa e uma conferida na lista vip nos deixa entrar.
Lá dentro o local está razoavelmente cheio, o que me faz imaginar como ficará quando
todos da longa fila do lado de fora entrarem. Algumas mesas estão distribuídas pelo
local, mas no geral parece mais uma boate do que um bar.
Depois de escolhermos uma mesa Rafael manda uma mensagem para o amigo
avisando que já chegamos e vai até o bar junto com Elisa para buscar nossas bebidas,
enquanto eu, Davi e Amanda tentamos conversar sobre a música alta.
Não demora muito para que os dois voltem com várias bebidas e as distribuam pela
mesa, então todos nós começamos a beber. Um tempo depois, o amigo de Rafael
aparece, um cara alto e corpulento, se já não soubesse que ele é proprietário do lugar e
organizador de eventos, poderia apostar que ele é um lutador. Seu tamanho e postura
beiram o assustador.
— É um prazer conhecer todos vocês. — Seu sorriso se direciona principalmente para
Amanda, que desvia o olhar parecendo estar envergonhada. — Espero que gostem da
minha casinha.
— Tá tudo incrível mano, vamos voltar mais vezes com certeza.
— Real. Isso aqui ficou brabo. — concorda Davi.
— Bom, eu já vou indo, inauguração deixa a gente cheio de coisa pra fazer. — O
homem solta uma risada junto à todos da mesa. — Mas aproveitem, vou deixar meu
barman avisado para que prepare uma rodada por conta da casa pra vocês.
— Obrigada. — Um coro se inicia na mesa, fazendo com que ele solte outra risada.
— Valeu, irmão. — Rafael deixa um tapinha no ombro do amigo. — Aparece lá no bar
qualquer dia.
— Pode deixar meu amigo, já vou indo.
O cara se afasta e no momento seguinte já voltamos a conversar sobre aleatoriedades.
Algumas horas mais tarde o lugar está muito cheio, o que me deixa um tanto nervosa.
Minha claustrofobia vem com força sobre mim, apesar dos muitos anos em que não
sofro disso, que sempre foi um traço pequeno em meu corpo, me sinto presa, preciso de
ar. Aviso a meus amigos que vou ficar um tempo na área aberta da boate, onde é
possível se sentar e evitar um pouco do barulho e a multidão de pessoas.
Caminho até o lugar me espremendo entre as pessoas que estão de pé, dançando e
conversando, e depois de ter que passar por tanta gente e esbarrar em tantos corpos
chego a área aberta com falta de ar, um pouco pelo cansaço, um pouco pelo nervosismo
de ter tantas pessoas colada e próxima de mim. Não penso duas vezes antes de me jogar
em um dos sofás de madeira rústica que ficam ali, tentando melhorar minha respiração.
Quando finalmente me controlo e consigo respirar bem, posso enfim reparar na vista
que o lugar proporciona, não é nada muito bonito ou diferente, já que essa é uma rua
comercial cheia de lojas já fechadas nesse horário, além de dois bares mais distantes,
mas as luzes ao longe, combinadas com a música abafada que vem de dentro do bar
parece tornar as coisas mais bonitas, ou talvez seja só a bebida, eu não sei.
Fecho meus olhos e inspiro um pouco do ar gelado de São Paulo. Está frio e posso
sentir minhas pernas e braços gelando agora que estou do lado de fora, sem todo o calor
humano de dentro do bar.
Alguém sai pela porta que dá para a área que estou, e logo entro em alerta, levando
meu olhar até o lugar, onde encontro Rafael parado. Ele está perfeito, usando uma
camisa branca comum, diferente das de botões que costuma usar e calças jeans,
enquanto segura dois copos de bebida nas mãos.
— Ei, decidi trazer uma bebida para esquentar. — Ele se senta ao meu lado, me
entregando o copo. — Está um puta frio aqui fora.
— Tá mesmo — murmuro enquanto levo meus lábios até o copo. — Estava chato lá
dentro?
—Não, mas eu fiquei preocupado com você aqui fora sozinha, ainda mais depois de ter
saído com tanta pressa.
— Tudo bem, se quiser pode ficar lá dentro — afirmo com um sorriso. — Eu sou um
pouco claustrofóbica desde pequena, ficar em lugares tão cheios as vezes me agonia um
pouco.
— Devia ter dito, não teríamos vindo ou eu teria pedido para o Alex separar um local
pra gente.
— Tá tudo bem Rafa, não é nada sério — conforto o homem. — Só fico assim em
alguns momentos, já volto pra lá.
— Se é assim, então vou ficar contigo até decidir voltar. — Ele se acomoda no sofá,
mostrando que vai mesmo esperar. — Se não se importar, é claro.
— Não me importo.
— Ótimo.
Ele me lança um sorriso e enfim bebe o primeiro gole de sua bebida enquanto
encaramos a vista a nossa frente, apenas a fachada de uma loja de cosmético e outra de
roupas, e algumas luzes distantes de outras ruas e bairros. O silêncio é confortável e só é
preenchido pelo barulho de carros que passam ocasionalmente por ali e o barulho das
músicas vinda dos três bares da rua.
Depois de um tempo, nossas bebidas acabam, e Rafael volta a falar.
— Elisa me fez uma pergunta esquisita hoje — conta ele enquanto me encara.
— É? O quê?
— Ela perguntou se... — Uma mordida é deixada em seus lábios, como ele sempre faz
quando está nervoso. —...se sinto algo por você.
—Ah! — Fico tão surpresa que nem sei oque falar, mas percebo uma coisa. — Amanda
me fez o mesmo tipo de pergunta no caminho até aqui.
— Sério? — Balanço a cabeça em concordância e ele ri. — Será que elas combinaram
de perguntar isso?
— Parece que sim.
Solto uma risadinha sem graça e nós ficamos em silêncio durante algum tempo, um
constrangimento parece pairar entre nós dois.
— E o que respondeu? — Sua pergunta me surpreende e eu o encaro um tanto confusa.
— O que respondeu para a pergunta de Amanda.
— Hã...— Mexo a perna em nervosismo enquanto penso em como responder. —
Respondi que não sei se estou pronta para sentir algo por alguém, e que prefiro ver você
só como amigo.
— Ah. — Sua voz contém um certo tom de desânimo, mas ele logo se anima. — Mas e
se estivesse pronta, você acha que sentiria algo?
— Eu...Hã...— Minha resposta não vem, estou confusa e um tanto ansiosa. — É... eu
não sei Rafael, mas... eu acho que sim.
— Eu respondi que sim, que sinto, mas não sei o que é.
Não respondo ele com palavras, apenas balanço a cabeça e continuamos em silêncio
durante todo o tempo que ficamos ali, quando voltamos para dentro do bar o assunto é
totalmente esquecido e terminamos outra noite como bons amigos.

Hoje, decidi vir visitar a casa de Amanda, durante todo o dia assistimos filmes,
jogamos alguns jogos de tabuleiro e almoçamos com seus pais. Vir à casa dela sempre é
bom e ruim, eu amo passar meu tempo com minha melhor amiga e gosto de seus pais,
mas é doloroso ver a união que eles têm como família, enquanto eu não tenho nada
disso, me sinto culpada muitas vezes por sentir inveja da família da minha amiga, mas é
inevitável não pensar em como seria incrível crescer tendo uma mãe presente, para me
ajudar nas matérias da escola e depois da faculdade, em como seria bom ter um pai
amoroso e normal, e não um pai que machuca a própria filha, um pai que sente prazer
em algo tão nojento e doloroso...
Interrompo meus pensamentos quando minha amiga sai do banheiro vestida com seu
biquíni e me chamando para piscina. Depois de me vestir adequadamente, saímos em
direção aos fundos da casa, onde fica a grande piscina. Entramos e ficamos conversando
enquanto bebemos um suco que trouxemos.
— Você já pensou em o que vai fazer depois da faculdade? — A ruiva questiona.
— Não, eu só sei que quero arrumar um emprego e ir embora. — Minha voz trás toda a
ansiedade em me livrar desse pesadelo. — Ficar o mais distante possível dele.
— Eu estava pensando e achei que talvez seria legal se fôssemos para o Rio de Janeiro
juntas. — Sua voz é cautelosa enquanto faz a proposta. — Morar por lá, sabe?
— Seria incrível. — Minha mente está longe, imaginando a vida incrível que seria. —
Mas não teria dinheiro para ir e me sustentar até achar um emprego.
— Eu falei com meus pais um pouco sobre isso. — Ela se aproxima, pegando em minha
mão enquanto tenta me convencer. — Eles pagariam tudo enquanto não tivéssemos
emprego.
— Ah não amiga, é muito errado eu deixar seus pais pagarem tudo pra mim.
— Maya, você sabe que eles te consideram uma filha. — Ela bufa. — E pensa só,
depois da faculdade de letras, quando você virar uma escritora famosa e milionária,
pode recompensá-los com um carro, sei lá.
— Amanda, não sei não. — Minha voz está incerta.— Não acho que seja legal fazer
isso.
— Só pensa, tá bom? — Ela me encara, inquisitiva. — Prometa que vai pensar, por
favor!
— Tá bom, tá bom. — Solto uma risadinha enquanto a ruiva me abraça.
—Isso! Pensa com carinho.
Quando começa a anoitecer eu finalmente vou para casa, depois de prometer para
minha amiga e até mesmo à seus pais que pensarei sobre o Rio de Janeiro com muita
calma e carinho. Eu posso me imaginar no Rio, com todo aquele sol, as praias, a
distância do meu pai, é tudo que eu posso querer, mas não acho certo aceitar que a
família de Amanda gaste tanto dinheiro comigo, eu posso demorar um bom tempo até
arrumar um emprego e me sentirei muito mal por deixá-los me sustentar. A ideia é
incrível, sim, por isso não vou deixar de considerar, mas ainda fico receosa.

No dia seguinte, justo no fim de semana, não acordo em um dia bom, não fisicamente,
mas emocionalmente. A saudade que sinto de minha mãe parece ter sido ampliada e eu
me sinto ainda mais perdida, machucada, magoada. Passo o dia deitada, escondida em
meu quarto, sem vontade de fazer nada a não ser encarar o teto enquanto vez ou outra
lágrimas escorrem por meu rosto.
Sinto como se estivesse definhando, como se cada coisa boa dentro de mim estivesse
sumindo aos poucos. São várias as vezes em que não consigo comer, ou que boto tudo
para fora logo ao final de cada refeição. Eu queria poder acabar com isso, com toda essa
angústia, toda a dor dentro do peito. Sinto vontade de não estar mais aqui, de me enrolar
em minha coberta e só dormir, ou sumir no mundo, me tornar só a garota que eles
conheceram, ir embora para sempre.
Mas o que posso fazer? Meu pai me mataria se eu sequer pensasse em ir embora, me
me abrir com alguém, nem consigo imaginar o tanto que ele me machucaria se soubesse
que contei sobre o que ele faz para apenas uma pessoa, seria pior ainda se eu contasse
para alguém que poderia expor o que faz comigo durante todos esses anos.
Ao longo do dia recebo mensagens e ligações de todos os meus amigos, e vejo a
necessidade de respondê-los para que não fiquem preocupados. Minha resposta é curta e
apenas digo que não posso sair com eles e que estou em um mal dia. É claro que não
desistem, principalmente Amanda e Rafael, que mandam pelo menos vinte mensagens
na próxima hora. Todas são ignoradas.
Vou para cama cedo, os olhos ardendo e o rosto vermelho, com a esperança de que o
dia seguinte seja melhor.

O mês se passa de forma dolorosa, meu pai vem ficando cada vez mais agressivo e
irritado e eu me sinto cada dia mais próxima de me quebrar completamente. Na maior
parte do tempo não consigo me sentir... completa, feliz de verdade, e nos poucos
momentos que sinto qualquer centelha de felicidade é quando estou com Rafael ou com
meus amigos.
Me sinto cansada de tudo que está acontecendo, de como eu não tenho o mínimo
controle da minha própria vida, como não tenho escolhas. Me sinto cada vez mais presa,
acorrentada a uma vida que eu odeio, à um homem que eu odeio ter como pai.
A cada dia que passa a ideia de ir para o Rio de Janeiro parece ainda melhor.
Capítulo 9.

Aproveitando o feriado que temos nessa semana eu decido sair do meu poço de
sofrimento e aproveitar com meus amigos. Vou com Amanda até a casa de Elisa sem
precisar mentir para meu pai, que fez outra pequena viagem. Levamos hambúrgueres,
batatas fritas e milkshake e o banco de trás do carro de Amanda fica repleto de pacotes.
Quando chegamos lá todos nos sentamos no chão e comemos enquanto conversamos
sobre nossa semana, eu apenas fico quieta, não querendo compartilhar com ninguém o
quanto todos os meus dias tinham sido horríveis, em como passei todos eles estudando
ou deitada, encarando o teto do meu quarto enquanto pensava em mil formas de acabar
com tudo isso.
No final da noite todos estamos jogados nos cantos, como sempre cheios depois de
comer mais do que devemos. Elisa está fazendo pequenas tranças nos fios ruivos de
Amanda enquanto Davi encara admirado, como se isso fosse a coisa mais incrível do
mundo. Eu estou estirada em um dos sofás enquanto Rafael chuta meu pé com o seu,
brincando como uma criancinha de cinco anos, ele ri achando muito engraçado, o que
torna impossível não rir junto.
Um pouco depois ele sobe para o sofá, deixando minhas pernas em cima da suas, acho
admirável a forma como ele tenta me tocar o mínimo possível. Rafael sempre tem
cuidado em seus movimentos quando está perto de mim, é como se sentisse quando eu
não quero muitos toques ou proximidade.
Ficamos conversando até a madrugada, quando um a um, todos vão se retirando para
poder dormir, quando saio da sala, apenas Rafael está ali, pegando sua chaves para
poder ir para casa. Espero que ele saia antes de entrar no quarto de Elisa e me deitar ao
lado de Amanda na cama improvisada no chão.

A semana de provas na faculdade finalmente chegou e todos estamos ao ponto de


enlouquecer.
Já ouvi Amanda chorar pelo menos duas vezes nessa semana por medo de não passar
de semestre, Elisa está entrando em colapso com um vestido que não consegue terminar,
eu me sinto cada vez mais perdida na faculdade de administração e Rafael até mesmo
teve um pico de ansiedade durante a semana e foi parar no hospital pelo nervosismo
com seu TCC. E Davi? Bem, esse espertinho só ri de nós quatro e diz que seu trabalho
não precisa de provas e que é bem provável que passará a vida toda ganhando o mesmo
que nós. Ele brinca, mas nós sabemos que no fundo se preocupa com cada um,
principalmente Rafael que, como ele mesmo diz, é o mais frágil.

Nesse sábado, ninguém pôde sair, cada um com seus milhões de matérias para estudar.
Eu estou deitada no chão da sala a horas, tentando entender o mínimo para não precisar
repetir um período da faculdade detestável que faço, infelizmente meu pai está em casa,
mas se trancou em seu escritório logo após o café da manhã, o que me deixa aliviada,
até mesmo sua presença está se tornando cada vez mais insuportável, mesmo quando ele
nem me olha ou se aproxima, não consigo relaxar com ele por perto, é como se cada
célula do meu corpo estivesse se rebelando contra tudo isso, como se estivesse cansada
de tudo e chegando ao ponto de enfrentá-lo de vez, de explodir.
Quando as letras do longo artigo que eu leio começam a embaralhar pelo cansaço,
percebo que é hora de tomar um banho e relaxar durante algumas horas, não adianta
tentar continuando estudar quando eu nem ao menos estou concentrada, provavelmente
não lembro nem os conceitos básicos da matéria que acabei de estudar a poucos minutos
atrás.
Vou para o meu quarto e pego roupas limpas, me encaminhando para o banheiro
depois de deixar os livros, meu notebook e meu celular em cima da cama. Me demoro
no banho, a água quente escorrendo por minhas costas fazem todos meus músculos
relaxarem e um suspiro de cansaço sai por meus lábios.
Quando decido sair de baixo da água minha pele está enrugada e embranquecida nos
dedos. Penso ouvir um barulho no quarto, mas quando se estabelece um silêncio decido
ignorar, acreditando ser meu pai em seu escritório ou seu quarto, afinal eu tinha
trancado a porta do banheiro de qualquer forma. Me visto com calças de moletom cinza
e uma camisa estampada com pequenas margaridas, esperando que a noite seja mais
relaxante que toda a tarde de estudos que tive.
Quando abro a porta do banheiro meu corpo trava, um arrepio percorre minha espinha
enquanto encaro o homem sentado em minha cama, meu celular está em sua mão, que
parece pálida de tanto apertar o aparelho.
Seu olhar está preso em mim, ele está irado. Muito, muito irritado. Dou um passo para
trás, mas antes que eu possa sequer pensar em formas de fugir ele já largou meu celular,
que cai no chão, e vem até a mim com fúria. Sua mão agarra meu pescoço com força,
fazendo com que o ar fuja de meu corpo. Meu coração acelera mais a cada segundo.
Os minutos seguintes são os mais dolorosos de minha vida, sinto pancadas, chutes e
tapas em todo meu corpo e em certo momento meu reflexo já não é o suficiente para me
proteger. Aos poucos meu corpo vai ficando fraco, em vários momentos perco a
consciência, mas ele não para, como sempre foi.
Depois do que me parece uma eternidade ele finalmente termina, se afastando
enquanto xinga coisas que não consigo entender, perdida demais em meu completo
torpor. Porém, seu grito em meu ouvido me faz despertar e me encolher ainda mais no
chão.

— VOCÊ É REALMENTE UMA VAGABUNDA! — Sua mão agarra meus cabelos


com força, fazendo mais lágrimas descerem por meu rosto. — Estava esse tempo todo
me enganando, achou mesmo que isso duraria? Que eu ia deixar que ficasse com algum
homem? Enchendo a cara como uma qualquer em um bar por aí?
Não respondo, qualquer movimento parece doloroso, até mesmo respirar, e eu sei que
não adianta de nada respondê-lo. Sua mão puxa meus fios com ainda mais força, irritado
por não obter nenhuma reação minha.
— Arrume essa bagunça, sua piranha.— Ele rosna em minha cara.— E acho bom ir até
meu escritório assim que acabar! Seu castigo ainda nem começou.
Mais um tapa ardido é deixado em meu rosto, e sinto quando o gosto de sangue
preenche minha boca. O homem solta meus cabelos, fazendo com que minha cabeça
bata no chão, e em seguida sai dali, me deixando encolhida e machucada contra o piso
frio.
Tento me mexer, uma, duas, três vezes, na quarta finalmente tenho um mínimo
sucesso, conseguindo me sentar e me apoiar contra a parede atrás de mim.
Meu rosto arde e sinto meu olho esquerdo inchando, uma grande quantidade de sangue
escorre por meu lábio e um corte grande feito por suas unhas está presente em meu
braço. Inspiro, percebendo que até isso se tornou difícil, minhas costelas doem,
provavelmente machucadas por seus chutes.
Me arrasto até onde está meu celular, jogado ao pé de cama. e o pego com dificuldade,
me apoiando na primeira coisa que sinto por perto. Meus dedos trêmulos clicam no
primeiro contato em minha lista, a única pessoa que eu tenho coragem de pedir ajuda.
Nesse momento não quero pensar em nenhum dos meus outros amigos, Davi ficaria
desesperado, Elisa ia querer quebrar essa casa inteira e Amanda... Eu só não posso
deixar que ela veja isso.
A ligação toca por poucos segundos antes de ser atendida, sua voz soa sonolenta.
— Oi Maya, estava dormindo, te deixei esperando muito na chamada?
— Rafael... — Minha voz sai baixa, minha garganta doí. — Rafael eu preciso de ajuda,
por favor.
— Maya? — Ouço quando ele provavelmente se levanta. — O que foi? Maya o que
aconteceu? Onde você está?
— Em casa. — Soluço, tentando falar sussurrando para que meu pai não ouça. — É o
meu pai... Rafael você precisa me tirar daqui.
— O que esse filho de uma puta fez contigo? — Ele rosna, enquanto parece mexer em
algumas coisas. — Estou indo, chego em dez minutos, como você está?
— Machucada, muito machucada. — Tento me levantar. — Rafael, não sei se consigo
andar até a porta.
— Porra! Não se mexa amor, fica bem aí, eu te busco aí dentro.
— Mas o meu pai...
— Não importa, só me espere.— Sua voz parece desesperada, prestes a explodir. — Ele
não vai te machucar de novo, pode ter certeza que não, eu prometo.
Rafael não desliga a chamada em nenhum momento, me prometendo a toda instante
que tudo ficará bem, dizendo que já está chegando. Eu só fungo e soluço, sem conseguir
parar de chorar.
Menos de dez minutos depois, ouço um barulho alto vindo do andar de baixo, o que
soa em meu celular também, e eu sei que Rafael chegou. Ele desliga o celular depois de
me perguntar onde fica meu quarto.
Segundos depois a voz de meu pai soa alta e raivosa no andar de baixo, me encolho,
ainda com medo, todo meu corpo reagindo a sua voz odiosa.
—QUEM É VOCÊ MOLEQUE?
Ouço um som de pura fúria e sei que vem de Rafael, sua expressão deve estar das
piores nesse momento, porque por um momento o homem que chamo de pai se cala. No
entanto não demora a voltar a exclamar aos gritos.
—SAÍA DA MINHA CASA AGORA MESMO ANTES QUE EU TE MACHUQUE,
GAROTO!
—ESTOU DOIDO PRA TE VER TENTANDO.
Sei que preciso descer, Rafael já é esquentado de natureza, não duvido de que nesse
momento ele possa até mesmo matar esse homem. Preciso me levantar, preciso chegar
até ele.
Depois de muitas tentativas eu me levanto e saio do quarto me apoiando nas paredes e
móveis, o celular ainda na minha mão. Cada movimento é doloroso, mas me esforço
mais ainda a cada barulho que ouço, o que me diz que nesse momento os homens no
andar de baixo estão tentando se matar. Quando finalmente chego a escada, encaro a
sala de cima, sem conseguir me mexer sequer mais um passo. Rafael está em cima de
meu pai, uma de suas mãos segura o pescoço do homem assim como ele havia feito
comigo, enquanto a outra soca seu rosto várias e várias vezes.
— Você nunca mais encosta nela, porra! Nunca mais!
Mais socos, o sangue começa a escorrer, manchando sua mão, o chão, sua roupa.
Não. Eu não quero ficar aqui vendo isso, não preciso disso, só preciso ir para bem
longe.
— Rafael! — Tento gritar, mas minha voz sai fraca e quebrada. — RAFAEL!
Ele finalmente me ouve, e parece acordar de seu acesso de raiva, largando meu pai
contra o chão, e o homem se levanta rápido. Rafael, no entanto, não parece perceber, ele
dá alguns passos em minha direção e para, revezando seu olhar entre mim e o sangue
em suas mãos e roupas, parece desesperado. O chamo de novo, as lágrimas presas em
minha garganta. O homem corre até mim, me pegando em seu colo, meu rosto
pressionado contra seu ombro quando volto a chorar copiosamente. Rafael parece me
carregar em direção a saída quando a voz do homem que eu havia passado a odiar soa
novamente.
— Largue minha filha! Largue ela agora mesmo! — Ele se aproxima e Rafael o
empurra com uma mão enquanto ainda me segura firme contra seu corpo com a outra.
— Não encoste nela, PORRA! — O tom de sua voz me faz estremecer e ele baixa seu
olhar para mim.— Desculpe, desculpe, vamos sair daqui amor.
— Não pense que vai tirar minha filha de mim assim! Ela vai voltar para o papai
quando perceber que a vida não é como ela pensa!
Rafael nem parece ouvir, apenas curva seu corpo contra o meu, como se quisesse me
proteger, enquanto me carrega em direção a saída, ainda sussurrando palavras de
consolo e desculpas em meus ouvidos.
Quando saímos de dentro da casa um grande barulho me faz levantar a cabeça,
encontrando diversos vizinhos parados diante de suas portas. Me encolho ainda mais
contra Rafael e sinto quando seus braços ficam ainda mais fortes ao meu redor,
protetores.
Ouço um grito entre todas aquelas pessoas e logo alguém se aproxima. A voz de
minha amiga se tornando coerente em meus ouvidos.
— Amanda! Cazzo, preciso tirar ela daqui, pega a chave do carro no meu bolso.
Sinto minha amiga se aproximando ainda mais e mexendo no bolso de Rafael, logo
depois voltamos a andar e então sou deitada no banco de couro do carro com cuidado
por Rafael, que deixa um leve carinho em meu rosto machucado.
— Fique... Fique com ela, eu dirijo, não quero correr o risco de tocá-la com muita
brutalidade e machucar.
— É melhor, mesmo. — A voz de minha amiga vem abafada do lado de fora do carro.
Logo sinto ele se afastando de mim e Amanda se sentando ao meu lado, colocando
minhas pernas sobre as suas. Tento me levantar, mas ela me segura no banco com
delicadeza, fazendo um leve carinho em meu braço.
— Shhh, fica quietinha amiga, vai ficar tudo bem. — Mais um carinho em meu rosto.
— Vamos te levar para o hospital, tá tudo bem, acabou, você tá livre.
—Não... Não Amanda, hospital não.
—Maya você precisa...
—Por favor, hospital não.
— Tudo bem, se você não quer então não precisa. — Dessa vez quem me responde é
Rafael. — Vou pedir para um amigo meu que é médico ir te ver mais tarde, tudo bem?
Apenas balanço a cabeça antes de sentir minha consciência sendo engolida pela
escuridão, a escuridão do sono me parecendo um ótimo lugar para se estar.
Capítulo 10.

Acordo quando já estamos quase chegando ao apartamento de Rafael, minha amiga me


sacode um pouco.
— Ei, estamos chegando. Maya?
— Sim, estou acordada — sussurro.
Sinto o carro parar mas me mantenho de olhos fechados, ainda estirada sobre o banco.
Ouço quando a porta do motorista bate e a de trás é aberta, trazendo um vento gelado
que me faz estremecer, logo depois Amanda está sussurrando em meu ouvido.
— Está tudo bem para você se ele te carregar até lá em cima? Seu corpo está muito
machucado...
— Tudo bem, Rafael pode me levar.
Quando digo isso, ela finalmente se levanta e deixa que o homem tome seu lugar, me
pegando em seus braços de forma protetora. Ele me tira do carro com cuidado e passa a
me carregar em direção ao seu prédio.
— Rafael — sussurro, e ele me encara. — Por favor não fale para Elisa e Davi... Não
agora.
— Não pense nisso, Maya.— Sua voz é calma e reconfortante. — Primeiro vamos
cuidar de você, amor.
Eu apenas balanço a cabeça, percebendo logo em seguida que entramos em um
elevador.
Enquanto Rafael me segura de forma protetora, Amanda não sai do nosso lado, sua
postura tensa mostrando que afastará qualquer um que ouse se aproximar, e mesmo em
meio a dor excruciante, um pequeno sorriso se abre em meu rosto, fazendo meu lábio
dolorido latejar. O homem que agora aperta seus braços cada vez mais forte em volta de
mim, mas ainda assim com cuidado, não para de me encarar.
— Me perdoe. — Ele sussurra, os olhos estão brilhando com as lágrimas. — Me perdoe,
me perdoe.
— Shhhh, você não fez nada. — Tento alcançar seu rosto com a mão, mas quando meu
braço lateja volto com ele para o lugar.
— Eu perdi a cabeça e agi como um babaca explosivo quando você precisava de mim.
— Você me ajudou, está aqui agora, isso importa mais que tudo.
Antes mesmo que possa ouvir sua resposta já voltei a dormir, meu corpo e mente
esgotados demais para se manterem por mais tempo.
Com o sono leve, sinto quando sou colocada em uma cama e dois corpos me ladeiam,
sentados ao meu lado enquanto eu durmo.
Meu sono é cheio de pesadelos. Cenas em que meu pai me bate mais e mais, onde eu
não tenho ninguém que me ajude. Pesadelos que vão desde lembranças dos primeiros
toques nojentos até criações de minha cabeça atormentada, onde eu não recobro a
consciência depois de tanto apanhar.
Em algum momento finalmente desperto, duas vozes baixas soam pelo quarto,
parecem distantes e sussurradas. Meus olhos continuam fechados, não acordada por
total.
— Já são nove da noite, ela está dormindo a seis horas seguidas, Amanda!
— Rafael, a gente precisa esperar, olha o estado dela, é normal estar dormindo tanto.
— Eu estou vendo o estado dela! Estou vendo muito bem a porra dos machucados que
aquele figlio di putanna deixou nela. — Ele parece andar pelo quarto, nervoso. —
Preciso ter certeza que ela está bem, que nenhum osso... Santo cielo eu não sei o que
faço se ela estiver ainda mais machucada do que parece.
— Você precisa se controlar mano, e parar de falar em italiano! — Ela sussurra irritada.
— Quando ela acordar vai precisar de calma e conforto, se não controlar seu
nervosismo eu juro que te tranco fora do quarto e não deixo você vê-la.
— Como eu posso me controlar quando você não me diz o que caralhos ele fazia com
ela. — Rafael bufa, parecendo desesperado. — Eu sabia que tinha algo, sabia, porra!
Eu vi aquela marca vermelha no pulso dela, eu devia ter feito algo.
— Rafael eu juro que se você não se controlar eu te ponho para fora! — Minha amiga
grunhe. — Ela vai te explicar quando for o tempo dela.
— Cazzo!
Ver Rafael usando tanto os xingamentos italianos quase me faz rir, já percebi que
quando está irritado o idioma acaba aparecendo mais.
Eu desperto completamente, tento me levantar um pouco na cama mas a dor forte em
minha costela faz com que eu solte um pequeno grito de dor, o que chama a atenção dos
dois no canto do quarto, fazendo com que venham até mim, as mãos estendidas como se
fossem me amparar, Rafael é mais rápido e logo me alcança, sendo seguido por
Amanda, que fica do meu outro lado. Os dois me encaram preocupados, esperando que
eu fale algo.
— Maya. — Ele sussurra, a mão passando por meu rosto, mas logo recuando. —
Desculpa, me desculpe. Eu... não vou mais te tocar sem sua permissão, imagino que...
que depois de hoje, você não queira o toque de ninguém em você.
— Rafael, está tudo bem. — Minha garganta está seca, preciso de água. — Um de vocês
dois pode me arranjar água?
— Eu vou. — O homem encara minha amiga. — Dá um banho nela, a banheira está
cheia e liguei o aquecimento para ela, vou deixar roupas e a água aqui no quarto... E
Amanda... Por favor...
— Eu sei, não se preocupa, vai ficar tudo bem.
Ele apenas balança a cabeça para a garota e finalmente me encara, seu olhos focam em
uma parte do meu rosto que eu sei estar machucada e vejo sua expressão de dor, ele se
aproxima, mas parece se conter antes que chegue perto demais, apenas me lançando um
sorriso triste e um balançar de cabeça.
— Eu vou estar bem aqui, qualquer coisa, se precisar de mim, eu estou no cômodo ao
lado.
— Não se preocupa — falo baixinho, a garganta ainda doendo.
— Impossível.
Então ele sai rápido como uma bala.
Fico encarando a porta fechada durante alguns segundos, mas logo após viro meu rosto
para minha amiga, que me encara com grande pesar no rosto. Sei o que ela está
pensando, como está se sentindo.
— Não é culpa sua.
— Eu deveria ter feito algo. — Algumas lágrimas descem por seu rosto. — Eu sabia,
sabia e não fiz nada.
— Você apenas fez o que eu pedi. — Minha mão agarra a sua. — Você tá aqui agora e
tudo que posso pedir é que me ajude a caminhar até o banheiro.
E é o que ela faz, praticamente me carrega até o banheiro, onde me faz sentar na
beirada da banheira e me ajuda a tirar minhas roupas com manchas de sangue, que eu
sei serem mistura do meu, da mão de Rafael e do meu pai.
Me encolho quando vejo todas as marcas por meu corpo e me envergonho por Amanda
ver aquilo, ela parece perceber e tentando fazer com que eu fique mais confortável, trata
de me colocar na banheira com rapidez. A água quente faz com que os cortes ardam,
mas ajuda a amenizar as outras dores. Minha amiga limpa meu rosto e as partes onde eu
não consigo, não saindo do meu lado durante nenhum momento. Depois de terminar de
me lavar, fico ali durante bons minutos, apenas encarando a parede a frente, tentando
assimilar tudo que aconteceu durante todo o dia, toda dor. Encaro Amanda, a ficha
finalmente caindo enquanto lágrimas escorrem por meu rosto.
— Acabou. — Soluço, chorando alto. — Acabou. Eu tô... Livre.
— Sim. — Ela sussurra.— Sim.
Não nos importamos com o chão sendo molhado ou até mesmo com as roupas de
Amanda enquanto nos abraçamos tão forte quanto é possível, as duas chorando. Toda a
situação caindo sobre mim, a liberdade, finalmente a liberdade. Não tem o gosto doce
que eu imaginei que teria, não, tem gosto amargo do sangue e da dor, mas ainda assim é
minha tão esperada liberdade.
Solto minha amiga, as lágrimas ainda escorrendo por nossos rostos, e percebo que
daqui em diante tudo será diferente. Eu sei que não tenho uma casa para onde ir, uma
família ou até mesmo roupas, mas não me importo com isso, só consigo sentir o alívio
percorrer todo meu corpo, não é felicidade, está longe disso, mas eu em fim sou uma
mulher livre, livre para ser quem eu quiser, onde eu quiser e com quem eu quiser.
— Não é como nenhum de nós queria.— Seu rosto se contorce em tristeza. — Mas
ainda estou aliviada por você ter sua liberdade. É um recomeço, Maya.
— Sim... Um recomeço. — Suspiro — Uma nova vida.
Um pequeno sorriso toma nossos lábios e apesar de tudo, me sinto agradecida por ter
me livrado daquela vida. Não é como eu esperava e eu ainda me sinto frágil,
machucada, prestes a quebrar, mas esse com certeza é um recomeço.
Depois de sair do banho, me enrolo em uma toalha e volto para o quarto me apoiando
em Amanda. As dores diminuíram um pouco, mas não consigo apoiar minha perna
direita no chão, já que meu joelho traz um grande roxo junto a um inchaço, o corte em
meu lábio ainda arde e minhas costelas estão doloridas, mas nada se compara a dor em
meu olho esquerdo, que está parcialmente fechado devido ao inchaço.
Encontramos uma longa blusa masculina junto a cuecas com etiquetas na cama e logo
me visto com o auxílio da minha amiga. Quase seco a garrafa de água e logo após volto
a me deitar, sentindo ainda um grande cansaço.
Amanda se senta ao meu lado, seu semblante me dizendo que está prestes a fazer
perguntas.
— O que aconteceu, Maya?
— Eu não sei ao certo.— Engulo em seco. — Eu acho...acho que ele pegou minhas
conversas com o Rafael, disse algo sobre eu estar enganado ele.
— Meu Deus. — Sua mão está na boca, parecendo horrorizada.— Eu o odeio tanto.
— Eu também.
— Você precisa denunciar ele.
— Não! — Minha voz sai mais alta do que o esperado. — Não. Eu não consigo encará-
lo nunca mais. Não posso.
— Tudo bem. — Ela suspira, conformada. — Mas se algum dia decidir fazer justiça por
tudo isso, eu vou estar aqui, sempre estarei.
— Eu sei que sim. — Seguro sua mão com carinho.
— Vai contar tudo pra ele? — Encara a porta, e entendo o que quer dizer.
— Acho que tenho que contar, não é?
— Você não precisa contar nada se não quiser, ele vai te entender. — A ruiva bufa,
soltando uma risadinha nada animada. — Vai surtar um pouco com todo mundo, mas te
entenderia, ele nunca passaria por cima das suas vontades.
— Ele merece saber.
— Eu concordo. — Sua mão aperta a minha, me encorajando. — Quer que eu chame
ele?
— Por favor. — Balanço a cabeça.
— Tudo bem. — Um beijo é deixado em minha testa. — Vou chamar, me grita se
precisar. Vai ficar tudo bem.
— Obrigada. Espero que sim.
Ela aperta minha mão mais uma vez antes de soltá-la e sair pela porta do quarto.
Consigo ouvir barulhos de conversa durante algum tempo e logo depois passos
apressados em direção ao quarto, que param quando parecem chegar a porta. Depois de
um bom tempo, Rafael finalmente adentra o cômodo. Parece desesperado, nervoso,
tenso. Ele para diante da cama em que eu me encontro deitada e oscila, incerto sobre o
próximo movimento, seu olhos estão vermelhos.
— Rafael?
— Sim?
— Senta aqui, por favor. — Puxo a coberta, lhe dando um espaço na cama. — Acho que
precisamos conversar.
— Acho que sim. — Ele se senta, seus olhos nunca desviando dos meus. — Mas
primeiro, você está bem? Como estão as dores?
— Não vou mentir, meu corpo está doendo muito, mas uma boa parte da dor já foi
embora. — Lhe lanço um sorriso triste.
— Que bom. — O homem balança a cabeça, mas não parece satisfeito. — Posso ligar
para meu amigo a hora que quiser.
— Obrigada — agradeço, mas não estou disposta a passar por isso ainda. — Mas só
depois que conversar com você.
—Tudo bem.
Ele espera paciente durante todos os minutos que levo para tomar a coragem
necessária e lhe contar tudo o que vinha me acontecendo nos últimos oito anos, conto
sobre o começo, como eram apenas toques que eu não via maldade, uma punição mais
severa. Até que se tornaram toques descarados e marcas e cicatrizes. Então sobre a
primeira vez que aquele homem passou a realmente abusar de mim, falo sobre o
controle e as ameaças, em como isso vinha piorando nos últimos meses, os abusos, os
ataques de fúria cada vez pior. Rafael apenas me ouve calado, mas vejo como é grande
o esforço para fazer isso, suas mãos abrem e fecham rapidamente, o rosto está vermelho
e ele parece prestes a explodir, mesmo se controlando em minha frente.
Quando acabo de falar, me sinto envergonhada, machucada e com uma raiva crescente
do homem que um dia havia chamado de pai. Algumas lágrimas escorrem por meu
rosto, mas não me incomodo em limpá-las.
Capítulo 11.

— Eu... — Ele inspira de forma profunda. — ... Eu queria poder matar esse verme filho
da puta, Maya, santo cielo, se você soubesse o quanto quero machucar ele.
— Acho que bem lá no fundo também sinto essa vontade — admito.
— Me sinto ainda pior em saber que ele te machucou assim por causa de mim, se não
fosse por mim...
— Ele iria arrumar outra desculpa a cada dia. — Abaixo a cabeça. — O problema era
ele, não importava o que eu fizesse, ele sempre encontraria formas de me punir.
— Me perdoa, Maya. — Esfrega o rosto parecendo desesperado. — Por Deus, me
perdoa por tudo isso, pelas vezes que te toquei sem pedir, em pensar que você devia
simplesmente...
— Rafael. — Ele me encara, ficando em silêncio. — Você nunca me machucou, nunca
me desrespeitou, eu permiti todas as vezes em que me tocou, não precisava dizer isso
com palavras, mas permitia.
— Ainda assim, me sinto culpado. — Bufa, parecendo revoltado consigo mesmo. —
Por não ter feito nada.
— Você nem sabia o que eu passava — sussurro.— E quando eu precisei de você, você
estava lá, Rafael.
— Eu desconfiava que algo estava errado! — O desespero parece crescer em seu corpo.
— Eu só não imaginava que era isso mas eu sabia que algo estava errado, eu sabia!
— Você precisa ficar calmo. — Ele parece voltar a si quando me ouve.— Respire, não
surta.
— Desculpa — sussurra depois de respirar fundo várias vezes.
— Não precisa ficar se desculpando e evitando me tocar Rafael, eu vou dizer se
qualquer toque que seja me incomodar.
— Mesmo? — Seus olhos parecem brilhar quando balanço a cabeça. — Eu posso... Eu
posso abraçar você?
— Claro. — Engulo as lágrimas que ameaçam vir.
O homem se aproxima de mim e lentamente me aperta, ainda sem levantar eu estico
meus braços e rodeio sua cintura, deixando as lágrimas insistentes voltarem a cair.
Ficamos ali, agarrados um ao outro durante vários minutos, minha cabeça afundada em
seu ombro, seu queixo apoiado no topo da minha cabeça, os dois fungando vez ou outra.
De vez em quando, Rafael me sussurra desculpas e promessas de que tudo ficará bem.
— No final de tudo, pelo menos estou livre dele — sussurro quando nos soltamos.
— Sim. — Ele sorri um pouquinho. — E eu sei que você pode não querer, que pode ser
complicado, mas gostaria de que ficasse aqui durante um tempo, pelo menos até você se
estabelecer e termos certeza que ele não vai vir atrás de você.
— Rafael...— Pauso, querendo pensar no assunto. — Eu não acho que seja uma boa
ideia eu ficar muito tempo, não por não confiar em você, eu confio, sei que não tocaria
em mim, mas a gente... A gente é só amigo?
Ele parece aliviado e nervoso ao mesmo tempo, enquanto segura o ar. Um tempo se
passa até que ele expire com força.
— Não, não somos só amigos.
— Sim, não só amigos. — Lhe dou um sorrisinho. — Se não for te atrapalhar, vou ficar
alguns dias até encontrar um lugar.
— Fica pelo menos até arrumar um emprego — fala rápido, parecendo ansioso. — Por
favor.
— Eu acho que... — Suspiro, pensando melhor. — Tudo bem, até eu arrumar um
emprego.
— Isso! Sim.— Ele se aproxima, acariciando meu cabelo. — Me sinto mais calmo com
você aqui comigo, quando eu estiver na faculdade, pode ficar com Elisa e Davi se não
quiser ficar sozinha, e quando for para o bar você pode ir junto, se quiser.
— Obrigada, prometo que vou sair o mais rápido possível.
— Não, não. Você não precisa ter pressa, fica o tempo que for — Afirma, segurando em
minhas mãos. — Me acalma saber que você está comigo, que ele não vai chegar perto.
— Tudo bem, muito obrigada.
— Agora, por favor, posso chamar meu amigo? Não aguento te ver machucada sem
saber o que posso fazer.
— Sim, só por favor, você e Amanda podem ficar no quarto? — peço, um tanto
envergonhada.
— Eu não pretendo sair de perto de você nem tão cedo, e pelo jeito Amanda também
não. — Ele ri baixinho. — Ela já avisou aos pais que vai ficar por aqui.
Balanço a cabeça, e ele decide ligar para o amigo, ainda sem sair do meu lado.
Quando o médico chega Amanda o leva até o quarto. Ele me examina sem fazer muitas
perguntas, assim como Rafael pede que seja, mas eu vejo seu olhar entristecido. Quando
termina de olhar os machucados e cuidar de todos, ele finalmente fala.
— Bom... — Seus lábios se apertam. — Não temos muito o que fazer com seu olho e o
corte no braço, já estão limpos e você pode passar uma pomada cicatrizante, isso vai
ajudar. Sobre o joelho, você teve uma luxação e vai ficar alguns dias sem conseguir
pisar, procure passar cremes e pomadas cicatrizantes também no local, e nas costelas.
Sinto muito que isso tenha acontecido, não hesitem em me chamar caso precise, Rafael
tem meu número e eu venho na mesma hora.
— Muito obrigada, mesmo.
— De que forma podemos te pagar? — questiona Amanda.
— Sim. — Suspiro, completando logo depois. — Desculpa por não perguntar.
— Imagina, esse foi o favor de um amigo. — Ele pisca para mim. — Não deixe de se
cuidar, o.k?
— Obrigada, vou me cuidar.
Ele se despede dizendo precisar ir para seu turno no hospital. Rafael o leva até a
porta, mas volta mais rápido do que acho ser possível, se sentando ao meu lado
novamente, encarando enquanto Amanda passa a pomada pelos machucados, graças a
Deus Rafael já a têm ali e não precisamos ir comprar.
— Você e Amanda podem dormir aqui na minha cama. — Ele diz, segurando minha
mão quando puxo o ar pela ardência no corte. — Será que... que eu posso dormir aqui
no quarto? Eu pego um colchão do outro quarto e durmo no chão, vou ficar mais calmo
estando perto.
— Pode, sim.
Amanda e Rafael só saem de perto de mim para tomar banho e pegar comida para nós
três, mesmo assim, nunca saem os dois ao mesmo tempo.
Vamos deitar depois de matar uma fome que eu não tinha percebido que estava.
Amanda deita ao meu lado, vestida com outra camisa de Rafael. O homem está
esparramado no colchão que jogou no chão, bem do meu lado da cama, mas assim como
eu, não parece conseguir dormir conforme as horas vão passando.
Quando já é madrugada, preciso ir ao banheiro, então tento me levantar com cuidado,
apertando os lábios a cada vez que as dores vêm forte, me fazendo querer gritar.
Quando finalmente consigo me sentar, Rafael se levanta em um pulo e vem até mim, os
olhos aflitos.
— O que foi? Tá passando mal? Maya? — questiona desesperadamente.
— Calma, calma — sussurro, com medo de acordar a ruiva. — Você pode, por favor,
me levar até a porta do banheiro?
— É claro. — Ele suspira aliviado. — Vem.
Estico um braço em sua direção afim de passá-lo por sua cintura e me apoiar, mas me
surpreendendo, Rafael apenas me pega no colo, fácil como se eu mal pesasse.
— Vai me carregar assim sempre? — Solto uma pequena risada. — Além do mais, da
onde anda tirando toda essa força?
— Enquanto você não melhorar, sim. — A convicção em sua voz me faz perceber que
ele está falando sério. — E não é muita força, eu te disse que você emagreceu muito.
— Eu sei. — Solto um resmungo quando ele para em frente à porta do banheiro. —
Pode me esperar aqui, por favor?
— Consegue andar até lá dentro?— Balanço a cabeça. — O.k. Estarei aqui, me chame
qualquer coisa.
Me apoio na porta, só um dos pés encostando no chão, aos poucos vou andando e
finalmente estou onde preciso, entro no banheiro e deixo a porta fechada. Quando acabo
com tudo, refaço o caminho e encontro Rafael apoiado na parede do lado de fora, o
homem novamente me pega no colo, logo me deitando sobre a cama macia com
cuidado, em seguida se jogando em seu colchão.
Depois disso, finalmente dormimos, meu sono é inquieto durante toda a noite, mas a
cada vez que acordo me vejo agradecida por não estar mais naquela casa com aquele
homem.
O dia seguinte é no mínimo estranho, sou carregada de um lado para o outro por
Rafael, e Amanda me enche de cuidados, muito mais do que eu estou acostumada, com
certeza. A garota liga para os pais, que não sabem tudo sobre a situação, mas viram o
suficiente para que não liguem que ela falte um dia de faculdade para ficar comigo.
Rafael se recusa a ir para a faculdade também, e pede para Davi cuidar do bar durante
todo o dia, com a desculpa de precisar resolver coisas urgentes, respeitando meu pedido
de não contar nada. No entanto, sei que não posso esconder isso de meus amigos, ainda
mais se realmente for ficar um tempo no apartamento de Rafael, vai ser estranho minha
presença aqui sem um motivo.

Passo o dia perdida em pensamentos, na maior parte do tempo calada, mal tendo
consciência da presença das duas outras pessoas na casa, é como se o torpor da noite
anterior ainda estivesse aqui, parece que a ficha ainda caiu, tudo é tão... Irreal. Quando
anoitece, Amanda precisa ir, e parece arrasada por isso enquanto se despede, eu a
consolo, lhe prometendo que está tudo bem, que ficarei bem, não digo, no entanto, que o
que eu mais preciso nesse momento é de sua presença, sei que ela precisa ir, então
apenas me calo. Depois da janta que Rafael traz até a mim no sofá, finalmente tenho um
pouco da coragem que preciso e o encaro com uma decisão formada.
— Eles precisam saber. — Ele me encara surpreso. — Mas eu não consigo,
simplesmente não consigo contar tudo mais uma vez.
— Eu entendo, quando estiver pronta, eles vão entender.
— Não. — Balanço um pouco a cabeça. — Preciso que conte por mim, por favor.
— Maya...— Ele parece hesitante enquanto me encara.
— Por favor, eu não consigo — sussurro, envergonhada pela situação.
Ele suspira parecendo contrariado, mas balança a cabeça em concordância. Logo após,
liga para Davi, pedindo que feche o bar e passe em casa e traga Elisa. Dentro de uma
hora, uma batida soa a porta, me fazendo ficar tensa, Rafael pede que esperem antes de
me levar para o quarto como eu havia pedido, não quero que me vejam machucada
dessa forma antes que ele conte tudo.
Ouço quando o homem abre a porta e as vozes dos irmãos, parecendo ansiosos para
descobrir o que o loiro quer. Consigo ouvir pouco de suas vozes enquanto conversam no
cômodo ao lado, mas nada é coerente devido a distância. Depois de vários minutos,
finalmente uma batida soa em minha porta, fico ainda mais tensa, mas respondo dizendo
que podem entrar.
Os três estão parados no limiar, como irmãos, parecem uma unidade, dá para ver a
união e sintonia desenvolvida nos anos de convivência. Elisa parece furiosa, mas seu
olhar para mim é suave, Davi está com o rosto muito vermelho, transtornado, e Rafael
parece ainda mais culpado e desolado do que no dia anterior. Eles caminham em minha
direção, cada um deles se sentando devagar em volta de mim, Elisa fica mais próxima
que os outros dois e logo me puxa em um abraço delicado, provavelmente com medo de
encostar nos machucados. Retribuo seu abraço, uma sensação de alívio tomando conta
do meu corpo. Livre, sem segredos, sem estar presa a ninguém, simplesmente livre.
— Ah Maya! — Ela exclama, e então começa a soluçar um pouco com o choro preso.
— Eu sinto tanto.
— Eu também. — Respondo, a voz embargada. — Mas eu tô bem, vou ficar bem.
Logo em seguida Davi se aproxima, sua irmã ainda está agarrada a mim e não parece
que vai soltar. Ele se senta mais perto, mas em uma distância segura, sem me tocar. Seu
rosto está menos vermelho agora, mas ele ainda parece um pouco desnorteado. No
entanto, é uma grande surpresa quando no minuto seguinte, depois de me encarar um
pouco, ele apoia o rosto entre as mãos e começa a chorar alto, os ombros tremendo sem
parar enquanto soluços e mais soluços saem por seus lábios. Elisa finalmente me solta,
parecendo preocupada com o irmão, dividida entre consolar ele ou a mim. Me ajeito na
cama, me aproximando mais do homem.
— Davi. — Ele não parece me escutar enquanto continua chorando. — Davi!
Falo mais alto, fazendo com que ele finalmente me encare, as lágrimas ainda
escorrendo por seu rosto, não parece um homem de vinte e três anos ali, parece apenas
um menino, desesperado, desolado. Seguro sua mão com a minha e sinto ele
devolvendo o aperto, parecendo um pouco mais calmo. Sorrio em sua direção, tentando
mostrar que estou bem, que ele não precisa se preocupar.
— Eu posso...— Mais um soluço, as lágrimas ainda escorrendo. —... Eu posso te
abraçar?
— Sim — Balanço a cabeça, meus olhos já cheios. —, é claro que sim.
Ele me abraça quase se jogando em cima de mim, mas ainda com cuidado para não
me machucar, e ali abraçados nós choramos juntos, choramos alto, os ombros
balançando e o ar quase faltando nossos pulmões, seu rosto está apertado contra meu
ombro e eu sinto as lágrimas escorrendo e molhando a camisa que uso, mas não me
importo, assim como ele parece não se importar com a sua. Alguns minutos depois,
sinto mais alguém se juntando ao abraço e pela delicadeza percebo ser Elisa, mais um
tempo depois Rafael também se junta a nós três, e ficamos ali por um longo tempo, os
quatro abraçados fortemente, eu no centro dos três, me sentindo acolhida. Por um
momento sinto que pertenço a algum lugar, me sinto menos perdida.
Quando finalmente nos soltamos, todos temos os olhos úmidos, mas somente eu e
Davi estamos com marcas de lágrimas secas que antes escorriam por nossos rostos.
— Somos uma família. — A garota se pronuncia, fungando. — Eu, Davi e Rafael,
estamos juntos desde sempre e nunca saímos um do lado do outro, nós nos protegemos,
cuidamos e amamos uns aos outros, Maya. E agora você também é nossa família, vamos
te proteger, te amar e cuidar de você, estamos aqui e não vamos a lugar algum.
— Não mesmo. — O homem concorda, limpando as lágrimas da pele escura.— Não
vou deixar que aquele homem nojento encoste de novo em você.
— Obrigada, os três, por me ajudarem tanto.
— Não agradeça. — O loiro finalmente se pronuncia, a voz rouca. — Estaremos aqui o
tempo todo.
— Quando Rafael não estiver em casa, eu estarei, e se nós dois precisarmos sair juntos,
o que pode ter certeza vai ser algo raro, ou você vem conosco ou fica com Elisa, por
favor.
— Tudo bem Davi, eu estou bem. — Repito, talvez pela décima vez naquele dia. —
Estou bem.
— Você vai ficar. — Minha amiga aperta minha mão, me dando um pequeno sorriso
triste.
O final da noite é um pouco melhor, Amanda convence os pais de deixá-la voltar
depois de jantar com eles, então assistimos filmes e bebemos chocolate quente para
espantar o frio, todos enrolados em cobertas grossas, espalhados pelo chão e sofá da sala
de estar. Ainda me sinto dolorida e várias vezes minha mente me leva a todos os
acontecimentos dos últimos oito anos. Sei que não é algo que se supera de um dia para o
outro, e talvez eu nunca me recupere totalmente, mas sei que estou no caminho certo, no
caminho certo para realmente me conhecer e ser quem eu quiser.
Capítulo 12.

Os dias se passam rápido, como se eu nem sentisse. Aos poucos, meus machucados
vão sumindo e eu finalmente consigo pisar, mesmo que ainda sinta leves fisgadas
quando caminho, as marcas e cortes já estão praticamente todos cicatrizados. No
entanto, me sinto um tanto entorpecida, muitas vezes horas se passam sem que eu
sequer veja o que está acontecendo, me vejo parada em locais da casa sem saber como
cheguei ali, como se eu só estivesse no automático o tempo inteiro. As vezes, bebo um
pouco para tentar sair disso, nunca funciona, mas continuo tentando.
Em alguns momentos me sinto realmente feliz, quando eu e Rafael terminamos a noite
com um filme bobo de comédia ou quando todos estamos no bar, bebendo e rindo
durante toda a noite.
Mesmo sendo bom ter a companhia deles, eu me sinto um fardo, vejo o quanto tentam
nunca sair ao mesmo tempo quando eu decido ficar em casa. E me sinto culpada por
ficar aqui usufruindo de tudo dentro da casa de Rafael sem ter dinheiro para ajudá-lo,
ainda mais quando no terceiro dia em que eu estava aqui ele chegou com bolsas e mais
bolsas de roupas recém compradas, dizendo que eu não podia continuar a usar as roupas
de Elisa e que não voltaria na casa do meu pai para buscar as minhas. É claro que estou
agradecida, sempre serei agradecida, mas ainda assim me sinto mal por deixar que ele
me sustente. Tento compensar arrumando muito bem a casa nos momentos em que ele
não está, por que se estiver não deixa eu levantar um dedo, fazendo uma comida ou o
ajudando a fazer as compras do mês.
Hoje, depois de pensar muito, decidi que voltarei para faculdade, o pagamento é
debitado diretamente de uma conta que meu pai e mãe haviam guardado uma boa
quantia assim que nasci, por isso acredito que ele não pensará em suspender o
pagamento, talvez nem se lembre que o dinheiro vem dali. Enquanto faço a janta do dia,
que aos poucos estou aprendendo a levar jeito, penso em como contarei isso para Rafael
e os irmãos que moram no andar de baixo, eles são ainda mais protetores do que
Amanda e eu tenho certeza que os três serão completamente contra minha volta em tão
pouco tempo.
Quando a janta finalmente fica pronta, Rafael já está quase chegando, pelo que diz em
sua mensagem, por isso arrumo a mesa e já vou pegando nosso refrigerante. Em menos
de dez minutos ele finalmente chega, se livrando do tênis e subindo as mangas da blusa
de botões, alguns botões são abertos deixando seu peito bronzeado a mostra, o que me
faz encarar durante um bom tempo enquanto ele se aproxima, deixando um beijo em
minha testa.
— Boa noite. — Ele se senta de frente para mim. — Como foi seu dia?
— Entediante. — resmungo.— Você bem que podia deixar eu ir trabalhar lá no bar né?
— Não mesmo. — Balança a cabeça enquanto me serve da comida.
— Não precisa me pagar, Rafael!
— A questão não é pagar, Maya. — Ele suspira. — Por favor, entenda, eu tenho medo
por você, aquele lugar é cheio desses caras com dinheiro que ficam bêbados e acham
que podem encostar na mulher que quiser.
— Você e Davi vão estar lá, podem interferir se algo acontecer. — Praticamente
imploro — Por favor!
O homem continua me encarando em silêncio enquanto mastiga, quando termina, dá
um gole no refrigerante, suspirando logo em seguida, parece dividido entre aceitar ou
não, mas só em ver sua dúvida já me sinto esperançosa. É extremamente entediante ficar
dentro de casa e ainda por cima me sinto uma aproveitadora deixando que ele me
sustente em tudo, se puder trabalhar para ele isso pelo menos vai compensar um pouco.
Rafael finalmente se pronuncia depois de um longo tempo.
— Tudo bem. — Suspira, parecendo derrotado. — Você pode ficar lá, mas vai aceitar
meu pagamento.
— Nem pensar.— Discordo com a cabeça. — Eu estou ficando na sua casa.
— Não ligo, se não aceitar, depositarei na sua conta e não aceitarei de volta.
— Por que você precisa ser tão teimoso, hein? — Bufo. — Tudo bem, mas vai deixar eu
ajudar com as contas.
— E eu sou o teimoso. — Ele ri. — Tudo bem Maya.
— Valeu! Você é incrível. — Me levanto, lhe dando um beijo na bochecha. — E eu
também queria falar sobre outra coisa com você...
— Diga, amor. — Meu coração acelera quando ouço o apelido, mas logo me
recomponho.
— Eu estou pensando em voltar para faculdade — sussurro e vejo que ele fica tenso. —
O pagamento é debitado diretamente de uma conta que minha mãe e meu pai fizeram
quando eu era bem pequena... acho que ele nem se lembra que o pagamento sai dali.
— Maya. — Suas mãos esfregam seus olhos, parecendo nervoso. — Eu não sei se é
uma boa isso.
— Eu não posso parar minha vida, Rafael! — Por um momento, me exalto. — Eu não
posso simplesmente me sentar aqui e deixar você me sustentar quando você não tem
nenhuma obrigação comigo! Eu não posso, não posso ficar aqui pensando em tudo que
aconteceu e... E me sentindo... Perdida.
Minha explosão o surpreende e o faz levantar, se apoiando na mesa. Parece nervoso e
um pouco desnorteado. Suas mãos vão para o cabelo, os puxando e bagunçando
enquanto eu continuo sentada. Rafael caminha até o armário na cozinha e pega uma
garrafa de gin que guarda ali, se servindo de um copo, parece um tanto desesperado pela
bebida.
Eu finalmente levanto, me aproximando aos poucos dele, com cuidado. Apoio minha
mão em seu ombro acariciando levemente, fazendo com que ele finalmente me encare,
me puxando para que eu apoie a cabeça em seu ombro.
—Desculpa, eu realmente não sabia que se sentia assim. — Dá um gole em sua bebida.
—Acreditava que estava te protegendo, te ajudando.
— Tudo bem Rafael. — Me aconchego mais a ele. — Me desculpa por explodir
também.
— Não, não pede desculpa, eu devia ter te perguntado o que você queria, e não só
deduzir o que é era melhor, e além do mais — Um carinho é feito em meu cabelo. —,
você tem razão sobre a faculdade, devia voltar mesmo.
— Obrigada. — Dou um sorriso. — Agora basta contar pra Elisa e Davi.
— Boa sorte. — O homem dá uma leve gargalhada. — Eles vão surtar.
— Maaas... — A palavra sai arrastada.— Você vai me ajudar a convencê-los.
— Eu até posso ajudar. — Ele se vira, laçando minha cintura, os lábios formando um
sorriso. — Mas só se me prometer deixar eu te levar todos os dias.
— Não Rafael, eu posso facilmente ir de ônibus.
— Nem pensar, é cheio, perigoso e cansativo. — Me aperta mais ainda em seus braços.
— Por favor, me deixa fazer isso.
— Tá bom, tá bom, seu chato. — Eu reviro os olhos, brincando.
— Você me chamou de chato, senhorita? — Seus olhos se estreitam. — Ah não
ragazza, ninguém me chama de chato.
— Eu chamo. — Levanto as sobrancelhas em desafio, me soltando de seus braços.
— Não adianta correr, Maya. — Uma gargalhada gostosa sai por seus lábios. — Você
sabe que eu sempre te pego.
— Não pode me pegar se a porta estiver trancada, bobão.
Eu solto uma risada e rapidamente corro em direção ao quarto onde durmo, mas antes
que eu possa trancar a porta Rafael me alcança, me pegando pela cintura e jogando
sobre seus ombros, parece no meio de uma crise de risadas. Meu corpo é jogado na
cama e suas mãos vão para minha barriga, fazendo cócegas. Eu rio tanto que minha
barriga doí e lágrimas escorrem por meus olhos.
— Rafael! — Mais risadas. — Rafael eu juro que quando você me soltar... Eu vou...
— Você vai o quê? — Ele faz mais cócegas, me fazendo rir mais ainda.
— Calma aí! Eu preciso respirar seu doido!
Ele finalmente para, se jogando ao meu lado, os dois rindo alto.
São esses momentos que me mantém sã, esses momentos de risada e felicidade,
quando tudo parece simples e incrível, quando jantamos juntos e jogamos jogos de
tabuleiro.
Nossa risada finalmente vai cessando, minha barriga ainda doí, mas a dor é o de
menos nesse momento, quando me sinto tão feliz. Me viro para Rafael e vejo que ele me
encara com um pequeno sorriso ainda presente no rosto, fazendo com que eu sorria de
volta. Ficamos assim durante muito tempo, encarando um ao outro em silêncio, meu
olhos analisam cada detalhe de seu rosto. De repente, sua mão pousa em minha
bochecha, um carinho lento que se estende até meus lábios, nariz e sobrancelhas, me
fazendo relaxar. Minhas pálpebras pesam e meu sorriso se aumenta mais ainda quando
finalmente fecho os olhos. Quando volto a abri-los, Rafael parece estar ainda mais perto
e encara o movimento que sua mão faz sucessivamente por meu rosto. Bochecha, lábios,
nariz, sobrancelha, e tudo novamente. Ele parece hipnotizado no movimento, o que acho
engraçado. Mas não falo nada, apenas aprecio o carinho que não me lembro a última
vez que ganhei, seu toque é gentil e leve e me deixa confortável. Quando nossos olhos
finalmente se prendem um no outro, sua mão está em meu lábio e um arrepio passa por
todo meu corpo, me fazendo estremecer. Ele parece perceber e um sorriso preguiçoso de
dentes brancos aparece enquanto ele desliza sua mão para meu pescoço, somente um
dedo passando lentamente por minha jugular, me fazendo arfar baixinho e me arrepiar
mais ainda. Rafael aproxima seu rosto com cuidado, parecendo receoso com a reação
que eu posso ter, mas não tenho vontade de me mexer, me sinto inebriada por seu toque,
sua proximidade.
— Meu amor. — Ele sussurra, e dessa vez o apelido soa completamente diferente do
que em todas as outras. — Acho que nunca disse o quanto te considero uma mulher
forte e incrível.
— Rafael — resmungo, envergonhada. — Para.
— Não. — Sua voz sai gentil. — Não, eu preciso dizer. Você é incrível, tão forte, eu
juro Maya, nunca vi uma mulher tão forte como você, tão corajosa.
— Não me sinto assim. — Mordo os lábios. — Me sinto... Me sinto uma medrosa que
não teve coragem de acabar com isso durante oito anos. Sinto que nunca estarei
completamente consertada, nunca serei alguém admirável, alguém completa.
— Não fala isso. — Ele parece perturbado. — Você é muito admirável, e não está
quebrada amor, não mesmo.
— Sim, acho que estou sim — sussurro.
— Preciso te contar uma coisa. — Sua mão segura a minha. — Quando eu tinha dez
anos, me estressei com meu primo e acabei cortando a mão enquanto dava um soco em
uma mesa de vidro.
— Rafael...
— Me escuta, por favor. — Balanço a cabeça, concordando. — Com doze, tive um
surto do nada e quebrei meu notebook ao meio. Com quinze, acabei batendo tanto em
um garoto que ele desmaiou, e isso porque ele chamou minha namoradinha da época de
linda.
“O meu pai, que sofria com Transtorno Explosivo Intermitente desde bem novo,
percebeu as características que eu tinha e me levou em um psicólogo. Fui diagnosticado
com TEI aos dezesseis, o TEI faz com que eu tenha comportamentos impulsivos e
agressivos em alguns momentos, o que quer dizer que as vezes explodo do nada e por
motivos idiotas, principalmente quando estou sem remédio”.
— Aquele dia no bar... — Ele concorda baixinho. — Eu não sabia, Rafael...
— Eu não costumo contar pra todo mundo. — Sua mão faz um carinho na minha. — E
não queria te assustar e fazer com que se afastasse.
— Eu nunca me afastaria por isso.
— Agora eu sei que não. — Um pequeno sorriso. — Mas continuando, no começo eu
me senti um idiota, achava que eu era problemático e não podia ser consertado, que eu
era apenas um babaca irritado e santo cielo, só eu sei como eu lutei contra isso, como eu
tentava não me estressar e explodir por coisas idiotas, e como me sentia mal quando
acontecia.
“Cada dia que passava eu me sentia pior, a cada dia sentia que eu era um caso
perdido, um erro, que eu estava quebrado e nada poderia me ajeitar. Mas eu estava
enganado Maya, ainda tenho TEI, sempre vou ter, mas isso não quer dizer que eu seja
problemático ou que preciso ser consertado, por que não preciso, eu nunca estive
quebrado, só sou diferente de muitas pessoas, é sim uma doença séria e que precisa ser
tratada, mas não me faz pior do que ninguém, eu só tenho um problema, e tá tudo bem,
assim como você também não precisa ser consertada, meu amor. Você só passou por
coisa demais e eu sei que deve se sentir desnorteada, mas isso vai passar, espere. Cada
um tem um tempo, respeita o seu, tudo bem?”.
— As vezes você sai com umas coisas tão carinhosas que é difícil acreditar que
realmente está estudando direito, o povo dessa área é tão frio. — Eu solto uma risada,
brincando.
— Sua bobona. — Ele faz um bico fofo. — Tô falando sério.
— Eu sei, muito obrigada por isso. — Me aproximo, minha cabeça apoiada entre seu
braço e seu peito. — E fico feliz que tenha entendido que não é problemático, não tem
nada de errado com você.
— E nem com você, gata. — Me encara, piscando. — Agora, o que acha de um
daqueles filmes de terror que você tanto gosta?
— Sim! Sim, com certeza sim. — Fico animada, e o homem ri alto.
— Vamos sua maluca.— Ele me puxa, fazendo com que eu levante. — Quer chocolate?
Trouxe pra você, acabei esquecendo na sala antes de ir jantar.
— Aquela barra com castanhas? — Gemo em felicidade.
— Sim.— Arregala os olhos com exagero. — E uma bem grande de chocolate meio
amargo.
— Você é o cara! — afirmo enquanto caminho para sala, apontando em sua direção. —
É sério, não existe amigo melhor do que você Rafinha.
— Eu sei meu amor, eu sei.
Acabamos assistindo filmes até a madrugada, sem nos importarmos se teremos que
acordar cedo no dia seguinte.
Capítulo 13.

Aos poucos, eu e Rafael estamos ultrapassando a linha da amizade, sinto isso a cada
dia, cada jantar, a cada abraço que está mudando de toque amigável para algo mais. Nós
dois sabemos que temos muito mais que amizade, mas não estamos prontos para admitir
isso, porque reconhecer esse avanço quer dizer nos arriscar em algo totalmente novo,
principalmente para mim, é confortável e inofensivo o que temos, então por que mudar?
Mas eu sei que isso vai acabar mudando, em algum momento um dos dois decidirá se
arriscar, e não é o ideal que estejamos morando na mesma casa quando isso acontecer,
não sei se é ideal nem agora. Por isso, decido que é hora de agir, e preciso da ajuda de
Elisa para isso, apesar de ter pedido a Rafael para me deixar trabalhar no bar, não posso
aceitar seu dinheiro, é injusto em muitos níveis diferentes, então acharei um trabalho
que não me atrapalhe na faculdade e assim que puder terei minha própria casa. Minha
casa. Isso é ao mesmo tempo assustador e satisfatório. Pensar em cuidar da minha
própria casa, somente eu e minhas decisões é extremamente prazeroso, mas junto com
isso vem a solidão e o medo de ficar sozinha. De qualquer forma, preciso superar isso,
não posso ficar aqui me apoiando em Rafael a vida toda. Eu preciso esquecer tudo que
aconteceu, aprender a ser independente, descobrir quem eu mesma sou.

Alguns dias depois eu estou na cozinha de Elisa enquanto bebemos um vinho e


conversamos, ela me conta sobre seu relacionamento com a garota da faculdade, e eu
escuto pacientemente, apesar de já não gostar da garota antes mesmo de conhecê-la.
Está claro que ela não dá o mínimo valor para minha amiga, que é uma mulher incrível
e merece muito mais do que uma mulher que lhe manda mensagem quando dá e nunca
tem tempo para sair, mesmo que não faça nada.
— O que você acha? — Ela resmunga. — Estou sendo uma idiota, com certeza.
— Não Elisa, claro que não está sendo idiota, você só... — Dou um gole em meu vinho.
— Está apaixonada, acho que isso é normal.
— Eu nunca sei se ela realmente quer estar comigo, se sente algo por mim.
— Posso ser sincera? — Torço o lábio.
— Sempre — concorda, balançando a cabeça.
— Por tudo que você disse, eu percebi que ela talvez não esteja te dando valor
suficiente — declaro enquanto mais vinho é posto em nossas taças.— Você merece
muito mais, e se ela não está disposta a te dar isso, então não sei se é a pessoa certa.
Mas isso é uma escolha sua.
— Onde você aprendeu tanta coisa, hein? — Ela ri, balançando a cabeça. — Acho que
tem razão sobre isso, na verdade.
— Acho que essas coisas são intuitivas, não precisamos tanto aprender. — Dou de
ombros.
— Eu claramente não nasci com essa intuição. — Nossa risada juntas é alta, talvez o
vinho já esteja fazendo seu efeito. — Mas então, como você tá? Rafael anda te
enchendo muito?
— Eu tô bem, e o Rafael mais me mima do que me perturba na verdade — comento
enquanto mexo a bebida. — Na verdade, preciso da sua ajuda justamente por isso.
— Precisa da minha ajuda por que Rafael anda te mimando demais?
— Exatamente! — confirmo, bufando logo em seguida. — Eu não concordo nem um
pouco com ele me sustentando e me trazendo chocolates e um milhão de coisas. Até
pedi pra trabalhar no bar e ele aceitou, mas ainda assim não acho uma boa ideia.
— Te entendo, de verdade, você tem razão. — Ela concorda. — Como posso ajudar
você?
— Eu sei que você conhece muita gente no meio da moda, pensei que poderia me
arrumar algo — peço enquanto mordo os lábios. — Eu aceito qualquer coisa, preciso ter
meu espaço, minha casa, e não depender de Rafael.
— Ele sabe disso? — questiona, as sobrancelhas levantadas em descrença. — Que você
quer sair da casa dele?
— Na verdade não, depois de contar que vou voltar pra faculdade não tive coragem...
— Faculdade? Vai voltar para faculdade?
— Sim, já faz quase dois meses, Elisa — reclamo. — Não posso ficar trancada dentro
de casa enquanto a vida continua.
— Eu sei, é só que...— Ela suspira, logo depois dando um longo gole na bebida.— Fico
preocupada, nós três ficamos preocupados, você sabe.
— Eu sei que sim, mas sendo sincera — Respiro fundo. — , eu não posso ficar presa
dentro de casa, é como se eu voltasse um pouco a vida que tinha antes. Não fique
chateada, por favor, mas é como me sinto.
— Tudo bem, eu entendo. — Seus lábios estão apertados. — Eu realmente entendo,
posso ir com você até a faculdade pra reabrir sua matrícula?
— Claro que pode, pretendo ir amanhã. — Me animo, feliz por ter o apoio dela. —
Pode me ajudar com o Davi?
— Eu converso com ele, prometo que vou manter a criança controlada.
— Já me basta Rafael querendo me levar e buscar todo dia. — Reviro os olhos. — As
vezes a superproteção desse homem é algo enlouquecedor.
— Não concordo com todo esse cuidado que ele tem, acho exagero. — Um pequeno
bico se forma em seus lábios. — Mas eu aceitaria a carona, ir de ônibus pra faculdade é
um saco, acredite, sofro com isso quando Davi não pode me levar.
— Por que não compra um carro pra você?
— Morro de medo de dirigir. — A garota solta uma risada. — Tentei uma vez na aula
de direção e acabei chorando antes mesmo de sair com o carro.
— Jura?
Minha amiga continua me contando o fiasco que tinha sido sua primeira vez dirigindo,
ou melhor, não dirigindo, e eu só rio enquanto acabamos com toda garrafa de vinho.
Quando já é tarde demais, talvez lá para três, Rafael finalmente chega junto a Davi, os
dois parecem cansados e irritados, e estão machucados, o que me faz questionar
enquanto os examino, vendo que os nós dos dedos de Rafael estão com cortes e marcas
de sangue enquanto Davi tem um pequeno corte na têmpora. Quando Elisa traz álcool,
pomada e uma bandagem para enrolar a mão de Rafael, eu começo o trabalho. Tenho
experiência em fazer isso, pelas vezes que meu pai me machucava e eu acabava sem
opções a não ser cuidar de mim mesmo. Aos poucos aprendi a fazer ótimos curativos.
Termino rapidamente e espero que Rafael e Davi comecem a falar, eles parecem muito
irritados, mas isso não intimida a mim ou minha amiga, estamos acostumadas com suas
personalidades e sabemos que não terão a coragem de nos tratar mal.
— Falem logo! — berra a negra, assustando a todos nós. — Vocês chegam em casa
todo machucados e ficam aí, de cara feia e calados. Como pode? Não temos mais dez
anos caramba! E só pra lembrar, eu sou a irmã mais nova, não vocês.
— Elisa, dá pra ficar quieta e esperar?
— Davi, somos amigos, mas fala assim com ela de novo, e eu te coloco pra fora da sua
própria casa. — ameaço, encarando os dois a minha frente. — Isso vale pra você
também, Rafael.
— Desculpe. — O garoto resmunga. — Não estou estressado com vocês.
— Aconteceu uma briga no bar. — Rafael admite. — Eu fui afastar, por isso a mão.
— Eu já disse que você precisa de um segurança! — Elisa exclama, exasperada.
— Não preciso de segurança, estou lá e posso impedir o que for.
— Valeu super-homem. — Ela encara Davi. — E você? Da onde veio essa marquinha
bonita?
— Rafael socou meu rosto quando tentei separar ele do cara que ele tava quase
matando. — O moreno tem um tom desdenhoso em sua voz.
— Eu já pedi desculpa, porra!
— Você precisa se controlar! — Eles gritam um com o outro de uma forma que nunca
vi. — E voltar a tomar o caralho do remédio.
— CALA A BOCA!
— Fiquem quieto os dois, agora! — Minha amiga grita, fazendo com que os dois se
calem enquanto eu apenas observo. — Por que parou com a merda do remédio, Rafael?
— Não é nada disso. — O loiro se levanta, bagunçando os cabelos.
— Fala a verdade.— O garoto ordena, nos encarando logo depois. — Ele não toma os
remédios já faz dois meses.
— SERÁ QUE DÁ PRA VOCÊS NÃO SE METEREM NA MINHA VIDA?
Ele finalmente explode, o rosto mais vermelho que nunca, e sai logo depois, batendo
a porta com força, ficamos os três sentados, nos encarando em silêncio, até que Davi
enfia o rosto entre as mãos e grunhe alto, parece desesperado, irritado e sem saber o que
fazer. Me aproximo, por um segundo irritada demais com Rafael para ir atrás dele.
— Ele não toma a porra do remédio, parou de ir às consultas. — O garoto confessa. —
Já é a terceira briga que ele se mete em menos de dois meses! Eu não sei mais o que
fazer.
— Isso foi uma crise, não é?
— Uma das piores. — Elisa concorda e Davi apenas balança a cabeça.
— Vou falar com ele.
Saio dali rápido, não estou mais tão irritada pela briga, entendo que ele praticamente
não pode controlar isso, mas ficar sem tomar os remédios e ir as consultas com a
terapeuta já é demais, ele me prometeu que estava fazendo tudo isso à apenas dias atrás,
e está mentindo, mentindo para mim, quando eu venho sendo tão sincera e aberta com
ele, quando confio tanto nele.
Adentro a casa irritada e vou diretamente até seu quarto, onde sei que ele está, não
bato na porta antes de entrar, imaginando que ele não vai me atender.
Encontro Rafael sentado na beirada da cama, os cotovelos apoiados nas pernas e a
cabeça enfiada entre as mãos enquanto ele puxa os fios com força, parece machucar.
Quando fecho a porta, ele nota minha presença e murmura algo como “vá embora”, que
eu ignoro completamente, me aproximando ainda mais, não vou mesmo ser a mesma
garota de sempre, a que abaixava a cabeça e fazia o que era mandado, não. Chega disso.
Capítulo 14.

— Você mentiu — acuso enquanto me aproximo, a raiva se transformando em mágoa.


— Você mentiu pra mim.
— O quê? — Sua voz sai atordoada.
— Mentiu para mim, disse que tava indo nas consultas e tomando seus remédios,
quando na verdade não faz isso já tem meses. Por que mentiu? Por que parou com os
remédios?
— Maya, sinceramente — Ele bufa, as mãos esfregando o rosto fortemente. — , não é
uma boa hora.
— Eu acho que é. —Aumento a voz, tomando coragem de enfrentá-lo.— Eu fui sincera
com você, me abri com você, e você mentiu. E ainda por cima não está se cuidando.
Precisa se cuidar.
— Maya, Sai. Agora. — Seu tom de dispensa é claro, o que me deixa ainda mais
magoada.
— Sair? — Engulo a seco. — Você está agindo como um babaca desde que chegou,
machucou o rosto do Davi, não está se cuidando, mentiu pra mim, e agora está me
mandando sair?
— É, porra! Estou mandando você sair! — Sua voz se altera, mesmo que não grite. —
Vocês precisam parar de cuidar da merda da minha vida! Eu sei me cuidar, faço o que
quiser!
Seu tom me magoa, a raiva em seus olhos, a forma como todas as palavras parecem
cortar meu coração em pequenos pedacinhos. Isso faz com que eu dê alguns passos para
trás, me sentindo acuada, magoada demais. No entanto, não vou deixar que ele me
magoe assim, não posso. Não vou deixar mais nenhum homem, ninguém, me tratar mal,
nunca mais.Volto a me aproximar dele, levantando o rosto para que possa encarar seus
olhos azuis, que estão escuros. Meus dentes estão trincados quando falo:
— Vá. Se. Foder.
Provavelmente essa é a primeira vez que eu falo um palavrão, e seria engraçado se
não fosse a situação. Não lhe dou tempo de responder e saio dali, caminhando
diretamente para o quarto onde durmo, meus olhos cheios de lágrimas que não me
permito derramar. Pego algumas coisas necessárias e bato a porta da entrada quando
saio dali, indo para o apartamento do andar de baixo, esperando que meus dois amigos
me recebam. Quando bato à porta, Davi me atende e sem ao menos perguntar nada, me
dá passagem, dizendo que eu posso ficar quanto tempo quiser. Um tempo depois um
sanduíche e chocolate quente estão em minhas mãos enquanto assistimos TV, Elisa está
sentada ao meu lado e eu apoio minha cabeça em seu ombro, e Davi está no chão
enquanto sua cabeça se apoia em minhas pernas, ele parece satisfeito como um filhote
de cachorro enquanto ganha um carinho no cabelo que está cheio de pequenos cachos já
que o homem não corta tem um tempo.
Alguns minutos mais tarde, uma batida soa a porta, nós três já sabemos quem é.
O moreno levanta e está prestes a ir para a porta quando sua irmã o impede, afirmando
que ele vai desculpar o outro homem muito rápido, Davi nem ao menos discute e volta a
se sentar enquanto a irmã vai atender. Quando abre a porta, Elisa não a escancara, e sai
para o lado de fora para atender o homem, apenas um fresta torna possível ouvir suas
vozes.
— O que está fazendo aqui, seu idiota? — Sua voz é firme.
— Vim pedir desculpas. — Seu tom parece derrotado. — Ao três, principalmente à
Maya.
— Iremos te desculpar quando Maya decidir te desculpar. — As vezes o fato de minha
amiga ser tão protetora é reconfortante. — Fim de papo, agora volte para casa.
— Me deixe falar com ela.
— Não.
— Elisa. — O homem resmunga. — Por favor, eu preciso...
— Pensasse nisso antes, porra! — Eu nunca vi a morena usando um tom tão raivoso e
magoado. — Eu não sei o que você disse pra ela Rafael, mas pra Maya ter vindo até
aqui é porque foi algo sério, vi como ela tá magoada, quando Davi contou que você não
tava se cuidando, eu vi nos olhos dela o quanto machucou, tá óbvio que não contou pra
ela, droga, você não contou pra mim! Somos irmãos, cuidamos de você durante todas as
suas crises, nos preocupamos com você!
— Eu sei...eu...
— Cala a boca! — Ela ordena, e Rafael fica em completo silêncio. — Ela não ficou
chateada por ter socado a cara de alguém do bar, nenhum de nós ficou, mesmo que
tenha socado também a cara do nosso irmão. Mas mentir sobre os remédios, sobre todo
o tratamento? Nós somos uma família, dividimos tudo!
“E Maya? Ela colocou a vida dela nas suas mãos! Contou tudo sobre a vida dela, os
problemas dela, e você retribui escondendo coisas da garota? De nós? Não pode fazer
isso Rafael, nada justifica mentir pra família”
— Eu tô errado, eu sei. — Seu suspiro é alto. — Quero me desculpar com vocês, só por
favor, me deixa falar com ela, deixe eu levar ela pra casa.
— Mas nem pensar, ela não vai. Maya vai falar com você e voltar pra sua casa quando
quiser, se quiser. Enquanto isso, ela fica aqui, e só desculparemos você quando ela
decidir que quer desculpar, entendido?
— Entendido. — Ele parece conformado. — Diga a ela boa noite, e que o chocolate
dela está na geladeira.
— Boa noite Rafael, vai para casa.
Rapidamente Elisa fecha a porta e tenho um vislumbre do homem, a cabeça baixa
enquanto parece desolado. Isso doí meu coração e faz com que eu queira consolá-lo,
mas me controlo, não posso deixar que ele me trate dessa forma e depois vá consolá-lo,
como se não fosse eu que preciso ser consolada depois disso tudo. Elisa me encara com
um sorriso estranho antes de voltar para o sofá. Parece tão magoada quanto eu, e isso
faz com que eu me irrite um pouco mais com Rafael.
Não demora para irmos dormir, Davi vai para seu quarto depois de deixar beijos
rápidos em nossas bochechas, enquanto eu e Elisa deitamos juntas em sua cama de
casal, adormecendo rapidamente.
Na manhã seguinte, acordo com o barulho da porta do quarto, é leve mas meu sono
raramente é profundo nessa hora da manhã, ainda mais quando estou em um lugar
diferente. Encaro Elisa, que já está arrumada e sacode peças de roupa na minha frente
quando vê que eu estou acordada, me fazendo pegá-las e perceber que são roupas
minhas que estavam na casa de Rafael.
— Que bom que já tá acordada. — Ela sorri. — Vamos sair.
— Pra onde?
— Primeiro, vamos fazer sua rematrícula na faculdade. — A garota se movimenta pelo
quarto, dando uma ajeitada em algumas coisas. — Depois vamos almoçar enquanto
falamos mal da minha não-namorada.
— Humm. — Minha mente recém despertada está um tanto confusa. — O.k.
— Agora levanta daí e vai tomar um banho gatinha, seu café tá na cozinha. — Ela já vai
saindo enquanto fala, mas para abruptamente, se virando para mim. — Aliás, arrumei
um emprego pra você, se tiver interessada começa na próxima semana.
— JURA? — Pulo em sua direção, agarrando seu pescoço em um abraço afobado. —
Obrigada! Obrigada!
— Na verdade, não precisa agradecer, o trabalho foi mais seu do que meu. — A garota
ri. — Te explico tudo no caminho, Davi vai deixar o carro dele e você dirige, pode ser?
Eu concordo e Elisa sai enquanto eu vou para o banheiro de seu quarto. Não demora
muito e eu estou na cozinha tomando meu café junto aos irmãos. Davi não parece nada
chateado pelo corte em seu rosto ou pela discussão no bar, no entanto quando olha para
mim seu semblante fecha, parece magoado e me pergunta pelo menos cinco vezes se eu
estou bem, em todas as vezes eu digo que sim.
— Mas então, pode me contar o que é o emprego, por favor? — suplico.
— Eu liguei hoje de manhã pra uma amiga minha que tem uma loja de roupas, e ela me
disse que apesar de não estar precisando de ninguém, conhecia alguém que poderia
precisar. — Ela levanta as sobrancelhas, parece nervosa. — Então me mandou o número
de uma fotógrafa amiga dela e ela pediu uma foto sua, e ficou simplesmente encantada
quando mandei a foto.
— Mas, no que eu trabalharia?
— Como modelo, óbvio. — Um sorriso grande estampa seu rosto. — Ela disse que
você é exatamente o tipo de garota que procura, eu perguntei sobre alguns detalhes e
fiquei sabendo que você só vai trabalhar com mulheres, é uma empresa feminina, e que
não vai precisar expor demais seu corpo usando biquínis ou algo assim.
— Modelo? — Encaro meu corpo. — Mas eu sou tão...baixa?
— Isso não importa muito hoje em dia, existem modelos menores que você. — Ela
sacode a mão. — O que acha Davi?
— Acho que se você tá confortável com isso, Maya — Ele me encara. — , deveria ir,
tenho certeza que vão fazer de tudo para te deixar bem confortável, são só mulheres e
você não vai mostrar seu corpo. Além do mais, seu salário seria espetacular.
— Eu... eu não sei. — Suspiro. — Nunca fiz isso, nem sei como faço para ser modelo.
— Não precisa saber, é algo natural, vão te ensinar o que precisa saber aos poucos.
— Eu posso responder depois? Preciso pensar.
— É claro que pode, já avisei que vamos responder até o meio da semana.
Agradeço e continuamos tomando nosso café, alguns minutos depois Davi sai,
dizendo que precisa ir até o bar pegar bebidas que vão chegar junto à Rafael, que
aparentemente se tornou “o idiota do Rafael” desde a noite passada. Ele deixa um beijo
em nossos rostos e diz que me apoia em voltar para faculdade, Elisa provavelmente
falou com ele antes que eu acordasse, ele também pede que eu cuide da garota dele com
carinho. Demoro um tempo para perceber que ele fala do carro.
Capítulo 15.

No caminho para a faculdade, Elisa nos ocupa lamentando sobre seu relacionamento
com Maria, que ela intitula como “não-namorada”, apesar de ter jurado que deixaria
isso para o almoço. Eu ouço pacientemente, e nos momentos que acho que meus
conselhos inexperientes serão úteis, falo um pouco. A cada dia eu realmente concordo
menos com o relacionamento das duas, mas não quero me meter, ainda mais quando
Elisa não pede uma opinião tão direta assim.
Não demora para chegarmos na faculdade, que é ainda mais perto do prédio deles do
que minha casa, minha antiga casa. Elisa me acompanha até a secretaria da faculdade, o
braço enganchado no meu até que finalmente podemos entrar no pequeno escritório.
Mesmo assim, ela não sai dali, ficando sempre por perto. Tenho que inventar um motivo
para ter ficado afastada por tanto tempo e finalmente consigo convencer a mulher, que
começa a resolver tudo para minha rematrícula. Em certo momento, suas sobrancelhas
se juntam, a cabeça se inclina e ela parece extremamente confusa.
— Você vai adicionar outra conta para fazermos o débito de suas mensalidades ou será
de outra forma? — questiona, enquanto me encara.
— Outra conta? — Fico bem confusa. — Já existe uma conta.
— Bom, foi desvinculada a uma semana atrás, senhorita. — Seus lábios se apertam. —
E vendo aqui no sistema, parece que foi seu pai quem fez isso, já que tinha direito a
fazer alterações por ter feito sua matrícula.
Respiro fundo, sentindo vontade de vomitar. Isso não pode estar acontecendo, não
pode. Minha mãe tinha feito isso por mim, é algo meu, que eu tenho direito, e mesmo
assim ele tirou isso de mim. Como tantas outras coisas, é mais uma coisa que ele está
me tirando, me privando.
A mulher a minha frente ainda espera uma resposta, por isso apenas assinto e digo
que ele deve ter se enganado, que falarei com ele e voltarei ali. A secretária concorda, e
avisa que durante esse tempo a matrícula continuará suspensa. Depois de concordar e
agradecer eu saio dali correndo, mal lembrando de Elisa ao meu lado, quando entro no
carro, preciso de um momento, minha respiração está ofegante e eu não sei se consigo
dirigir estando desse jeito. Apoio minha cabeça no volante e tento respirar, eu me sinto
sufocada, o ar falta de uma forma que faz minha cabeça rodar. Isso é demais pra mim.
Acho que vou desmaiar.
— Ei, Maya. — Minha amiga apoia a mão em meu ombro levemente. — Você tá tendo
uma crise de pânico, Rafael tem dessas, eu já vi. Precisa se acalmar.
— Ele... — Puxo o ar. — Ele só continua tirando tudo de mim, mesmo quando estou
longe. Quando acho que me livrei dele, ele consegue tirar mais algo de mim.
— É, eu entendo, imagino como deve se sentir. — Ela me puxa para um abraço um
pouco estranho devido ao espaço do carro. — Mas vamos dar um jeito nisso, tá bom?
Vamos dar um jeito.
— Que droga! — Grito, as mãos esmurrando o volante. — Que droga! Eu odeio essa
faculdade, ODEIO! Ele me obrigou a fazer essa merda e agora, quando isso é a única
coisa que me sobra, meu futuro, ele tira isso de mim?
— Eu sei, eu sei. — Sua voz é sussurrada em meu ouvido. — Deixe isso para lá, logo
você vai ter seu dinheiro e pagar a faculdade que realmente quiser fazer.
Eu balanço a cabeça, tentando concordar, meu peito parece que vai explodir, minha
tontura está em seu máximo e eu não sei como ainda consigo respirar. Puxo o ar com
um pouco mais de força e sinto os braços de Elisa se apertando ao meu redor. Muitos
minutos passam enquanto estamos ali, eu tentando a todo custo respirar, e ela agarrada a
mim, me consolando. Quando finalmente me sinto um pouco melhor, a garota me solta,
e percebo que eu estou chorando durante todo esse tempo sem nem ao menos perceber.
Em silêncio, eu ligo o carro e saio dali, seguindo para nossa próxima parada. Não quero
conversar, não sei nem o que dizer nesse momento. Minha amiga respeita meu silêncio
e espera até que eu esteja confortável em falar, o que só acontece quando já estamos
quase chegando ao restaurante.
— Antes de tudo, eu vou aceitar esse trabalho como modelo. — Encaro a garota
rapidamente. — Eu preciso ter meu dinheiro, inclusive para te devolver esse almoço.
— Ah fique quieta. — Ela ri. — Mas estou feliz que quer aceitar, acho que pode se
encontrar nisso.
— Talvez. — Dou de ombros. — Mas realmente não posso ficar dependendo de Rafael
o tempo todo, preciso ter meu dinheiro, meu espaço. E preciso sair um pouco de casa
antes que eu enlouqueça.
— Você está certa. — Ela segura minha mão. — E sabe de uma coisa? É preciso muita
coragem para fazer tudo que está fazendo, não sei se eu teria toda essa coragem.
— Você? É claro que teria, Elisa! Você é uma das pessoas mais corajosas que já
conheci — admito enquanto finalmente estaciono o carro.
— Humm, não sei.
Depois disso, não dizemos mais nada, e todo almoço é feito em um silêncio
confortável e contemplativo. Ao que parece, Elisa mudou de ideia sobre reclamar da
não - namorada durante o almoço. Quando finalmente terminamos, a garota pede duas
taças de vinho, dizendo que precisamos. A verdade é que Elisa ama vinho e tudo é uma
desculpa para degustar uma taça. Quando nossa bebida finalmente chega, ela começa a
falar.
— Fiquei pensando durante todo o almoço, e tomei uma decisão. — Uma boa
quantidade do líquido desce por sua boca. — Vou acabar tudo com a não-namorada
Maria.
— Terminar tudo?
— Sim — afirma, parece inabalável. — Isso tem me feito mal, e sinceramente, eu nem a
amo para ficar sofrendo tanto assim por alguém que não me dá o valor e atenção
suficiente.
— Você está certa — concordo, convicta. — Não acho que ela seja boa pra você.
— Ela não é, chega disso. Não vou aceitar menos do que mereço receber.
— É isso. — Balanço a cabeça em concordância. — E logo você arruma alguém muito
melhor.
— Quem sabe? Eu tenho muitos amigos e amigas — A frase sai com malícia. —, que
poderiam me ajudar a esquecê-la rapidamente.
Eu apenas solto um riso enquanto tomo o restante do meu vinho. Algum tempo depois
estamos finalmente voltando para casa enquanto Elisa me explica um pouco mais sobre
o que eu terei que fazer sendo modelo, parece tudo bem simples, o que me acalma um
pouco. Eu nunca tive vergonha de ficar em frente a câmera, então isso não será um
problema.
Estamos quase chegando em casa quando finalmente percebo que é começo de
semana e Elisa deveria estar na faculdade e não aqui comigo, e que Rafael também
devia estar na faculdade, mas ao invés disso está no bar.
Encaro a garota ao meu lado, confusa.
— Me diz, por que você não foi para faculdade hoje? — questiono. — E Rafael
também?
— Bom, o idiota do Rafael não foi por que é um sortudo que já fez tudo que precisava e
não tem necessidade de realmente ir nas aulas, só terminar o TCC. — Ela dá de ombros,
como se isso fosse tudo.
— E você, bonitinha? — Estreito os olhos, acusadora.
— A aula de hoje era uma parte teórica horrível. — A garota sacode a mão, como se
espantasse o assunto. — Besteira.
Balanço a cabeça, mas não discuto, todos eles são adultos e responsáveis, e eu tenho
certeza que não vão fazer nada que possa prejudicá-los.
Quando finalmente chegamos ao apartamento de Elisa, Davi ainda não voltou e o
lugar está em completo silêncio. Depois de falar com a fotógrafa, minha amiga me passa
o número da mulher e eu converso com ela por meu celular, que ainda existe graças a
Rafael que tinha lembrado de pegá-lo antes que saíssemos de minha antiga casa. Menos
de duas horas depois, tudo já está resolvido, no final da semana eu vou junto com Elisa
até o estúdio de Luciana, a fotógrafa que me contratou, e lá acertaremos as últimas
coisas. Eu vou ganhar muito bem para tirar apenas algumas fotos por semana, o que é
realmente incrível, mesmo que o trabalho não seja tão fácil assim, vai valer a pena.
Fico tão feliz que na hora penso em compartilhar isso com Rafael, mas logo me lembro
que não estamos nos falando. Ficar longe dele é estranho, nós estabelecemos uma rotina
e quebrar isso deixa meu coração apertado, mas sei que não posso desculpá-lo tão
rápido assim depois de ele ter me tratado mal daquela forma, por isso ignoro minha
vontade de correr até ele e lhe contar tudo e me ofereço para ajudar Elisa com a
arrumação da casa. Quando finalmente terminamos com a faxina, a casa está
perfeitamente limpa e até comida Elisa tinha feito, apesar de afirmar que Davi, que
puxou os dotes culinários da mãe, faz uma comida mais gostosa.
Nos jogamos no sofá depois de um banho e ficamos conversando sobre a família de
Elisa, que eu pouco conheço.
— Eles tão morando no Rio agora — Ela sorri, parece amar os pais mais que tudo. —
Foram embora já tem dois anos.
— Vocês sentem muita falta deles?
— Sempre, não tem um dia que não sentimos falta, eu acho. — Um biquinho se forma
em seus lábios. — Mas eles estão tão felizes lá que não poderíamos pedir que
voltassem, é a vida deles sabe? E na verdade, na maior parte do tempo a distância é boa,
apesar da saudade. Nós três preferimos eles felizes e livres como querem ser.
— Rafael também é apegado aos seus pais? — questiono, curiosa para saber mais.
— As vezes até mais que eu e Davi. — A garota solta uma risadinha. — Ele é o xodó da
mamãe.
— Como foi que se aproximaram?
— Estudamos juntos desde os três anos, dá pra acreditar? — Elisa parece nostálgica. —
Rafael já era um idiota naquela época, só pra constar, mas nós sempre nos demos bem.
Lembro que quando tínhamos uns doze anos, íamos pra casa do Rafael brincar com os
brinquedos de rico dele.
— Vocês também não tinham...?
— Dinheiro? Ah não, meus pais economizavam muito para pagar a escola para Davi e
eu, foi só quando já estávamos quase nos formando no colégio que a empresa deles
finalmente deu certo.
— Isso é tão bonito, essa irmandade de vocês — confesso, um tanto admirada.— Eu e
Amanda temos uma amizade assim, mas vocês, os três juntos parece que são ligados, as
vezes chega a ser bizarro.
— Eu sei! — Ela concorda rindo.— Acho que é muito tempo convivendo juntos, não
saiamos um do lado do outro em nenhum momento.
— Como foi pra vocês, essa... — Gesticulo com as mãos. — Mudança, né?
— De meus pais estão passarem a ter dinheiro?
— Sim.
— Não sei. — Ela dá de ombros. — Tiveram mudanças, fomos pra uma casa maior e
essas coisas, mas... Sei lá, na nossa casa o amor sempre foi o mais importante sabe?
Meus pais nos ensinaram que a família vem antes de qualquer dinheiro, isso vale mais
pra gente do que a casa bonita, as viagens legais, e por incrível que pareça, quando
passamos a ter dinheiro isso ficou mais claro pra mim. A grana é o de menos quando
você tem uma família, amigos, apoio, eu não trocaria isso nem por milhares de reais, tá
ligada? É um amor tão... Lindo, tão puro.
— É realmente lindo. — sussurro, nesse momento, só consigo pensar em Rafael.
— Você quer falar com ele não é?
— Quero — resmungo batendo a mão na testa, indignada por ser tão fácil de ser lida.—
Mas não vou, eu tô cansada de deixar as pessoas falarem o que quiser e não fazer nada.
— O que ele falou? — Nos encaramos enquanto eu mexo em meu cabelo. — Se não
quiser falar, tudo bem.
— Não, tudo bem. — Dou de ombros, voltando a ficar um pouco chateada. — Não foi
nada demais, na verdade. Ele só me disse para sair, que sabia se cuidar e que devíamos
parar de cuidar da vida dele, mas magoou pra caramba, sabe? Eu fui tão sincera com
ele, e ele simplesmente mentiu pra mim, depois ainda se achou no direito de gritar, e
bateu no Davi!
— Ele é um babaca às vezes — acusa, parecendo mais irritada depois do que contei. —
Apesar de ser um amor, tem vezes que realmente quero matar ele.
— Acho que te entendo agora. — Solto uma risada.
— Vai falar com ele?
— Agora não, ele pode esperar mais um pouco.
Minha amiga ri, concordando, e nas próximas horas ficamos jogadas ali, conversando
sobre sua família, sua infância. Nunca sobre a minha, nós nunca falamos sobre minha
infância, meu passado, é um assunto pesado demais para abordar em uma simples
conversa, e particularmente eu não gosto de falar disso.
Quando se aproxima da meia-noite, Davi adentra a casa e fecha a porta rapidamente,
se escorando ali, parece um pouco mais feliz do que de manhã, e imagino que esteja
tudo bem entre ele e Rafael, isso não me deixa chateada, na verdade, fico feliz por saber
que estão se dando bem de novo, eles são irmãos e não devem ficar brigados por tanto
tempo por algo que Rafael fez para mim.
— Rafael tá bem atrás dessa porta, e tem algo pra mostrar pra vocês duas. — O garoto
aponta com o dedo para trás. — Aliás, eu perdoei o idiota.
— Ah, jura? — Minha amiga revira os olhos. — Quem diria que isso ia acontecer?
— Fica quieta — Ele bufa, brincando. — Posso deixar ele entrar?
— Maya? — Ela me encara, esperando minha decisão.
— O.k.
Davi finalmente se desencosta da porta e deixa que Rafael entre, ele parece um tanto
abatido, mesmo que só tenha se passado um dia desde que nos vimos. O homem se
aproxima em silêncio e se senta no chão, jogando algumas coisas em cima da mesinha,
coisas que identifico sendo remédios e alguns papéis, fico confusa, mas ele faz sinal
com a mão para que nos aproximemos. Quando me aproximo pegando um dos papéis,
vejo ser uma receita médica, a letra confusa não me permite saber o que está escrito,
mas imagino ser os remédios que ele precisa. Elisa, ao meu lado, segura um outro papel,
onde está anotado o nome de uma médica e um horário logo abaixo. Nós duas o
encaramos enquanto ele continua de cabeça baixa, parece envergonhado.
— Fui comprar os remédios de tarde. — Aponta com a cabeça na direção da mesa. — E
marquei consulta com a terapeuta.
— Marcou e vai ou apenas fez isso pra gente te desculpar?
— Eu vou, Elisa. — Seus olhos reviram, mas ele parece brincar.
— Como eu já falei, te desculpo quando Maya te desculpar. — Ela dá um tapinha no
ombro do homem a nossa frente. — Mas não estou irritada com você, idiota.
— Obrigada. — Ele finalmente me encara. — Podemos ir pra casa conversar?
— Humm... sim, podemos.
Ele apenas balança a cabeça e se levanta, pegando suas coisas. De pé, Rafael espera
por mim enquanto eu levanto. Passamos a caminhar juntos até a porta, e antes de sair
olho para os dois irmãos parados na sala, lançando um pequeno sorriso para os dois.
Vamos até ao apartamento de Rafael em silêncio e nos sentamos no sofá, distantes um
do outro enquanto eu espero que ele comece a falar. Suas mãos se retorcem uma na
outra e parecem suar. Ele está nervoso, isso faz meu coração dar uma pontada e me
causa certa pena, por isso me aproximo um pouco mais, deixando claro que está tudo
bem, que escutarei o que ele for dizer.
Capítulo 16.

— Me perdoa, eu fui um babaca. — Ele finalmente me encara. — Não consigo acreditar


que te tratei daquela forma, não sei se eu consigo me desculpar por ter feito isso.
— Eu só fiquei um pouco nervosa — admito enquanto mordo os lábios. — O tom que
usou comigo... e ter mentido pra mim quando eu confiei tanto em você.
— Eu sei amor, realmente sinto muito — lamenta enquanto se aproxima mais. — Nada
justifica eu ter feito o que fiz, mas prometo que voltarei a tomar os remédios, tomo na
sua frente, todos os dias.
— Não precisa...
— Precisa sim, eu quero — admite. — Quero te provar que estou fazendo o certo, você
pode até ir às consultas comigo se quiser.
— Tudo bem Rafa, acho que podemos esquecer isso. — Sorrio, batendo meu ombro no
seu. — Mas se você falar daquele jeito comigo de novo, vamos brigar sério, entendeu?
— Sim gata, bem entendido. — Confirma, se levantando. — Tenho algo pra você.
— Rafael. — Gemo em repreensão. — Você precisa parar de me comprar coisas.
— Não preciso não. — Sua voz fica distante enquanto ele saí do cômodo. — É um
presente de desculpas.
Prefiro ficar quieta, no último mês Rafael sempre vem inventando desculpas para me
dar presentes, que em sua maioria são chocolates de todos os tipos e marcas, um
presente porquê eu estou em um dia ruim, um presente por ter feito a janta, um presente
por lavar a roupa, um presente por fazer sua comida preferida. Para mim, isso não é
mais do que minha obrigação, eu estou na casa dele sem ajudar com dinheiro, o mínimo
que posso fazer é ajudar dentro de casa, e pra falar a verdade eu estou desenvolvendo
um certo prazer em cozinhar, é divertido e me deixa calma.
Logo ele volta, trazendo uma sacola que parece bem cheia. Rafael volta a se sentar do
meu lado e me estende a sacola, apesar de relutante, acabo aceitando, sabendo que ele
não desistirá.
Abro a pequena sacola e encontro três caixas de um chocolate suíço no qual eu sou
apaixonada, ele sabe disso desde que saímos a primeira vez para comermos em nossa
hamburgueria preferida. Aquilo parece ter acontecido a uma vida atrás, e acho carinhoso
da parte dele que se lembre.
— Eu passei em uma loja para comprar algum chocolate pra você e vi esse, lembrei que
disse que eram seus preferidos.
— São mesmo, sou apaixonada nesses chocolates — concordo, sorrindo. — Muito
obrigada.
—- Não agradece, é um presente de desculpas. — Ele abre a caixa, me dando um dos
chocolates na boca. — Tá gostoso?
— Hummm. — Solto um gemido de satisfação. — Muito bom.
De repente, Rafael fica bem calado enquanto me encara, seus olhos estão fixos em
meus lábios enquanto eu mastigo, o que me faz corar um pouco. Ele molha os lábios
com a língua e um arrepio incontrolável toma meu corpo, isso é... não sei explicar, mas
é bom, parece que meu corpo está quente e algo me faz querer me aproximar de Rafael
e... Deus, eu quero beijá-lo, estou desejando Rafael. O que é que eu estou pensando?
Ele se aproxima ainda mais e passa o dedo no canto do meu lábio, logo me mostrando
um resquício do chocolate, e depois lambendo todo o doce que fica em seu dedo, isso
esquenta meu corpo mais ainda. Mais um chocolate é posto em minha boca, dessa vez
da segunda caixa, e na hora sinto o gosto do meio amargo, meu preferido. O silêncio é
imenso enquanto Rafael continua colocando um a um os chocolates em minha boca, de
certa forma isso é algo extremamente íntimo.
Quando ele finalmente abre a última caixa, que contém chocolate suíço com pedaços
de avelã, eu praticamente me sinto sucumbir ao prazer do delicioso chocolate, resmungo
com prazer enquanto limpo os lábios com a língua.
— Deus, isso é delicioso — murmuro, pegando mais um. — Não vai comer?
— Não. — A voz dele parece rouca, o que me faz encará-lo. — prefiro ver você
comendo.
— Tudo bem — concordo, ficando um pouco envergonhada, o que me faz mudar de
assunto. — Aliás, os planos da faculdade foram cancelados.
— Por quê? — questiona, parece muito confuso. — Davi me disse que vocês foram
hoje fazer a rematrícula.
— Aquele fofoqueiro. — Dou uma risada. — Parece que meu pai se lembra sim da
conta, e fez o favor de desvinculá-la da minha matrícula, então estou sem grana para
continuar.
— Aquele filho da puta realmente fez isso? — Rafael está irritado, ele se irrita tão fácil.
— Eu não acredito nisso.
— É, foi o que ele fez. — Torço os lábios. — Mas de qualquer forma, eu odiava aquela
faculdade.
— Ele não devia tirar isso de você. — Balança a cabeça. — Você devia poder escolher,
mesmo que não gostasse...
— Tá tudo bem. — Balanço a mão, espantando o assunto. —Além do mais, arrumei um
trabalho hoje, logo vou ter dinheiro para pagar minha faculdade.
— Um trabalho? Você não ia ficar no bar?
— Bom, eu pensei bem e talvez não seja muito bom para nós dois que eu fique no bar.
— Comprimo os lábios. — Eu ia me sentir como se você ainda estivesse me
sustentando, então pedi para Elisa me ajudar.
— Tudo bem. — Ele suspira, conformado. — Eu entendo que não queira trabalhar para
mim, mas o que vai fazer nesse emprego?
— É em uma empresa de fotografia, só trabalha mulheres e a dona me chamou para ser
modelo — conto enquanto pego mais um chocolate
— Modelo? — Suas sobrancelhas levantam enquanto um sorriso se forma em seus
lábios. — Não sabia que se interessava por isso.
— Até hoje, não. — Solto uma risada. — Mas o trabalho é bom, e vou ganhar o
suficiente para poder ter minha casa e pagar minha faculdade, com certeza não vou
poder morar em um apartamento como esse mas...
— Como assim sua casa? — Sua voz sai engasgada. — Aqui é sua casa.
— Não Rafael, aqui é sua casa.
— Você não pode ficar sozinha. — O homem se levanta, andando de um lado para o
outro. — Só de imaginar você sozinha em uma casa, longe de mim... Não Maya, por
favor, fica aqui. Eu sei que errei ontem mas por favor, não vai embora amor.
— Rafa. — Suspiro, indo até ele. — Eu não quero ter minha casa só por causa de
ontem, eu não posso ficar aqui pra sempre, você sabe.
— Pode sim, a gente se entende. — Ele me encara sério demais. — Tá tudo tão certo, eu
gosto tanto de ter você aqui.
— Eu também gosto de estar com você, mas não posso ficar aqui dependendo de você,
tirando sua privacidade quando você poderia. — Engulo em seco, só a ideia daquilo me
irrita. — Poderia estar trazendo alguém e...
— Isso não importa! — Suas mãos agarram meu rosto com delicadeza. — Eu só quero
você aqui, Maya.
— Olha, eu vou tentar arranjar um apartamento por perto e prometo aparecer toda
semana, o.k?
— Maya...
— Rafael, vai ficar tudo bem, eu não vou morrer morando sozinha. —Sorrio, apoiando
as mãos em seus ombros. — Você vai poder me visitar a hora que quiser pra ter certeza
que estou viva, e prometo mandar mensagem todos os dias.
— Vai me ver todos os dias também?
— Eu não sei se com o trabalho vai dar tempo.
— Deixa então eu te levar e buscar no trabalho — Ele suplica, parecendo desesperado.
—, por favor. Eu já ia fazer isso se fosse para faculdade, por favor.
— Tudo bem! — concordo, bufando de brincadeira.
— Não acredito que vou ter que ficar longe de você, sem saber o que está acontecendo.
— Pense que eu vou estar por perto e sempre me comunicando com você, tá bom?
— Tá bom
Ele me abraça apertado e eu retribuo, seu cheiro é de gin e um perfume um pouco
doce e me faz inspirar um pouco mais forte enquanto ainda estamos agarrados um ao
outro. Quando Rafael me solta está com um bico nos lábios, e eu sei que não está
satisfeito com minha escolha de me mudar, mas que vai aceitar. Ele nunca vai impor sua
escolha sobre mim, Rafael sabe como isso é importante para mim, o quanto eu preciso
de espaço e de tomar minhas próprias decisões. Minha mão vai para sua bochecha,
dando um pequeno aperto. Ele sorri de forma boba para mim quando faço isso.
— Hora de ir até a casa deles e pedir desculpa de novo pros dois, não acha?
— Uhum. — Ele resmunga, concordando. — Acho que sim.
— Muito bem, vamos lá Rafinha.
No final, tudo termina literalmente em pizza, e também alguns filmes de comédia
bobos. Tudo finalmente parece certo enquanto rimos das piadas e acabamos com meu
chocolate suíço junto à um sorvete de creme delicioso que Davi tinha comprado.

Na semana seguinte, eu já estou fazendo minha segunda sessão de fotos como modelo.
No primeiro dia tinha sido estranho e eu tinha ficado bem tímida, mas aos poucos vou
me soltando com as dicas da fotógrafa e dona do estúdio. Estou posando para fotos de
uma loja de peças exclusivas e a cada peça eu me vejo cada vez mais apaixonada,
ficaria com todas se pudesse. A cada meia hora fazemos uma pausa e eu posso mandar
mensagem no grupo composto por eu, Amanda, Rafael, Davi e Elisa. Eles ficam muito
preocupados comigo, mesmo que Rafael me deixe na porta do estúdio e me busque
todos os dias. Eu entendo a preocupação dos quatro, então sempre mando uma
mensagem ou outra quando tenho um tempo entre as sessões.
Três horas depois de ter chegado, a sessão finalmente acaba e eu posso ir para casa,
depois de me despedir das meninas que trabalham comigo, já vou saindo, até que
Luciana pede para conversamos.
Sigo a mulher até seu escritório e me sento em uma cadeira, apreensiva com o que
pode ser tão sério para que me chame até ali.
— Vi as fotos de hoje Maya, estavam realmente ótimas.
— Ah, muito obrigada! — Sorrio agradecida.
— Primeiro, quero te dar isso pelo esforço de hoje. — Ela me estende uma sacola
personalizada com meu nome. — A loja que fotografamos deu uma peça para cada
modelo que participou.
— Aí meu Deus! Eu estava doida por uma peça dessa, muito, muito obrigada.
— Somente frutos do seu trabalho menina, não agradeça. — Se recosta na cadeira. —
Mas tenho algo para conversar com você.
— Sim? — Fico tensa novamente.
— Existe uma cliente nova, que quer algo um pouco diferente do que estamos
acostumadas a fazer aqui, ela gostou muito do seu perfil e pediu que você fosse a
modelo escolhida, gostaria de saber se aceitaria?
— O que ela quer de diferente? — questiono, ainda tensa.
— Ela gostaria de fotos de um casal, você e um cara. — A mulher dá de ombros. —
Mas se não se sentir confortável, entendo que pode ter seus motivos, todas aqui temos, é
por isso que minha empresa existe, não me importo de mandar ela pra outro estúdio.
— Eu...— Minha voz esta hesitante, mas não demoro a tomar uma decisão. — Tudo
bem.
— Mesmo? Você quer participar?
— Sim, eu aceito.
— Perfeito. — Sua mão bate contra a mesa animadamente.— As fotos começam na
semana que vem, sei que é nova nisso mas posso te assegurar que o modelo vai ser
completamente respeitoso, e se não for eu chuto a bunda dele pra fora daqui.
— Obrigada Luci.— A mulher prefere ser chamada pelo apelido. — E obrigada pela
oportunidade também
— Imagina querida, você pode ganhar o mundo com essa sua beleza incrível. — Ela
pisca, sorrindo. — Agora vá, seu loiro natural já deve estar te esperando lá fora.
— Loiro natural? — Solto uma risada, achando graça.
— Ah é, o bonitão que vem te buscar, seu namorado né?
— Não! — A palavra sai rápido demais. — Não, somos amigos.
— Sei. — Uma risada sai por seus lábios. — Mas vá lá, não deixe aquele loiro lá fora,
não posso impedir minhas meninas de se apaixonarem nele.
Aquilo realmente me faz sair dali mais rápido, mesmo que inconscientemente.
Dentro do carro, depois de cumprimentar Rafael, finalmente abro a sacola com meu
nome, encontrando um lindo vestido verde água transpassado que eu havia ficado
apaixonada. Estico a peça para que o loiro ao meu lado possa ver mais claramente. Seus
olhos se desviam da pista durante um segundo para olhar a peça, e por um momento, ele
parece...faminto.
— Deus, eu ainda vou morrer do coração — sussurra, parecendo perturbado. — Esse
vestido vai ficar lindo em você amor, o que acha de usar ele mais tarde?
— Mais tarde? — Ele balança a cabeça, sem explicar. — Pra quê?
— Quero te levar para jantar — admite, sorrindo. — Naquele restaurante que fomos a
primeira vez que jantamos juntos.
— Bom, tudo bem, acho que ainda me sobrou um dinheiro da sessão da semana
passada...
— Nem pensar, você quis pagar a conta de luz desse mês, vai sonhando que vai pagar
esse jantar.
— Pelo menos minha parte? — arrisco com meu melhor sorriso.
— Nem pensar, gata. — Ele ri, passando a mão em minha bochecha como um leve
carinho. — Eu pago, estou te chamando para sair comigo.
— Mas como somos amigos você é obrigado a me deixar pagar pelo menos minha
parte. — Tento de novo convencê-lo.
— Se eu falar que não estou te convidando como amigo, vai parar de tentar pagar algo?
— Suspira baixinho. — Porque realmente não estou, eu estou te chamando para sair
comigo.
— Como...?
— Como o que você quiser Maya, menos como amigo.
Depois de sua afirmação, não posso fazer nada a não ser ficar calada. Isso realmente
me surpreendeu, no entanto, não me incomoda como eu achei que incomodaria quando
um homem me dissesse algo assim. Talvez o fato de ser Rafael alivie a situação, então
no breve caminho até em casa decido que aceitarei, não importa se não vamos mais
poder voltar atrás depois disso, eu quero algo mais. E aos poucos os acontecimentos
com meu pai estão se tornando passado, mesmo que ainda falte muito para que eu me
veja livre das lembranças, dos sonhos, me sinto um pouco preparada para seguir em
frente. Preciso partir de algum lugar, tomar decisões que me tirem desse lugar
confortável, preciso me arriscar. Seja saindo para um jantar com Rafael, sem ser como
amigos, ou fazendo uma sessão de fotos com um homem.
No final do dia estou sentada em uma mesa do restaurante junto à Rafael, enquanto
conversamos sobre assuntos variados. Eu realmente coloquei o lindo vestido que
Luciana me deu, e pela primeira vez em muito tempo estou me sentindo linda, corajosa
e pronta para seguir em frente. Em nenhum momento da noite me sinto arrependida.
Capítulo 17.

Aos poucos meu relacionamento com Rafael está mudando, eu sinto isso e sei que ele
também sente. Desde o jantar, nossos abraços se tornaram diferentes e os momentos que
ficamos abraçados vendo filmes parecem tudo, menos amigáveis. No entanto, ele não
aborda o assunto, e eu prefiro deixar quieto enquanto o homem não esclarece nada.
Hoje ele está em casa, e decidimos passar o dia sozinhos, só nós dois, filmes e
provavelmente algumas besteiras.
Enquanto eu cuido da arrumação da sala e banheiro, Rafael prepara o almoço, fazendo
com que o cheiro do macarrão à bolonhesa tome todo o apartamento. Meu estômago faz
um barulho alto, e o loiro ri enquanto começa a me ajudar com a arrumação.
— Deixa isso, você já tá fazendo o almoço. — Arranco a almofada de sua mão,
colocando ela no sofá logo em seguida.
— O que tem? Tenho que esperar o molho reduzir. — Ele dá de ombros. — Não custa
nada ajudar.
— Custa sim, deixa que eu faço minha parte.
— O.k. Chata.
Estreito os olhos em sua direção, arrancando uma risada atrevida dele, que volta para
seu molho na cozinha.
Quando termino de arrumar tudo a comida já está pronta, e Rafael serve nossos pratos
enquanto eu encho nossos copos. Nos sentamos e comemos em um silêncio confortável,
trocando olhares vez ou outra.
Depois de terminarmos de comer, o homem se recosta na cadeira e me encara
enquanto bebo o último gole de refrigerante.
— Estou pensando em investir em algo mais quando acabar a faculdade — confessa,
mordendo os lábios.
— Algo? Tipo outro bar?
— Não. — Sua cabeça balança em negação. — Quero algo mais... calmo. Talvez algo
relacionado a advocacia, não é possível que fiz essa faculdade atoa.
— Parece uma boa — concordo, sorrindo de forma encorajadora. — Mas por que isso
agora?
— Bom, trabalhar no bar exige que eu fique acordado e fora de casa até a madrugada...
— Sim.
— E talvez seja a idade chegando— Uma risada sai por seus lábios —, mas sinto que
ficar todos os dias até tarde fora de casa não está mais funcionando para mim, imagina
como vai sair quando eu ficar velho?
— O que não falta muito. — Solto uma risadinha quando seus lábios se abrem em
descrença. — Mas sério, Rafa, se é isso que quer, então faça. Só não feche o bar, seria
um desperdício imenso se desfazer daquele lugar.
— Não, eu nunca fecharia aquele lugar, aquilo é tudo para mim. — concordo com sua
fala. — Posso deixar o Davi cuidando de tudo, e também não deixaria de aparecer lá
algumas vezes por semana.
Conversamos mais um pouco sobre a ideia de Rafael, e apesar de ainda estar um tanto
abstrata, não deixo de encorajá-lo a fazer o que quer.
Depois de muito tempo sentados ali, decido lavar a louça enquanto o homem vai até o
mercado comprar as besteiras que queremos para a noite. Me distraio ouvindo uma
música em meu celular enquanto lavo a pilha de louça que se encontra na pia. Logo se
torna um tanto cansativo ficar ali de pé, então apoio o quadril na beirada da bancada e
coloco um dos pés apoiado no final da coxa, fazendo com que minhas pernas formem o
formato de um quatro.
Cantarolo enquanto aos poucos vou diminuindo a pilha. Fico tão distraída que só
percebo a presença de Rafael quando ele já está atrás de mim, colocando a sacola do
mercado em cima da bancada, enquanto seu outro braço se apoia também, me
encurralando ali. Está tão perto que posso sentir sua respiração em meu cabelo.
— Não tinha sorvete de flocos com chocolate
Ele afirma, deixando um beijo em meu cabelo e se afastando minimamente, mas
continua perto demais. Rafael não sai de trás de mim durante todo o tempo que demoro
para terminar com a louça, mas aos poucos a tensão vai diminuindo e não me sinto tão
incomodada com sua presença, nem com seus eventuais beijos em meu cabelo.
Quando lavo tudo me viro para ele, quase esbarrando meu corpo no seu, e vejo o
homem formando um sorriso em minha direção.
— Virou meu guarda costas agora? — desdenho com um pequeno sorriso. — Pra ficar
aqui atrás de mim.
— Não, só quero ficar perto de você.
— Tão perto assim? — Solto uma risada, levantando as sobrancelhas.
— Até mais. — Sua voz vem em um sussurro enquanto ele segura uma mecha do meu
cabelo. — Muito mais...
Não consigo controlar meu olhar, que desce para seus lábios grandes e vermelhos, com
várias das marcas de mordidas que eu aprendi a achar lindas, e controlo menos ainda
quando continuo descendo, encarando a mandíbula marcada, onde a barba loira está,
bem cerrada. Volto meu olhar para o seu quando Rafael segura em meu queixo,
levantando teu rosto. E se meus olhos estão agitados, querendo registrar cada parte de
seu rosto, os azuis dele estão calmos, totalmente concentrados nos meus castanhos, de
uma forma que quase me intimida.
Ele fecha os olhos, e os cílios claros tremem um pouco quando ele os aperta enquanto
engole em seco. Lindo. É incrível como Rafael consegue ser completamente lindo, até
seus cílios são perfeitos.
O homem volta a abrir os olhos, que focam nos meus. Estou completamente inebriada
por sua presença, parece ainda mais perto que antes, tão próximo que nossas respirações
se misturam. A quanto tempo estamos assim? Não faço ideia, mas não sinto a mínima
vontade de me afastar, de parar de encarar seus olhos, a grande mancha castanha em
meio ao azul límpido.
Percebo que nunca o perguntei o por que de ter uma mancha dessa no olho, e talvez
esse não seja o momento apropriado, mas decido perguntar mesmo assim.
— Por que — Minha voz sai um tanto rouca. — Por que tem essa mancha no olho?
— Hum? — Ele parece voltar a si no momento seguinte. — Ah, a mancha... é uma
condição chamada heterocromia, alguns desenvolvem depois de algum trauma na íris ou
coisa assim, mas outros já nascem com isso, tipo eu.
— Entendi. — Balanço a cabeça em afirmação, ainda encarando a mancha que pega
quase toda a sua íris. — É lindo.
— Eu achava esquisito quando era mais novo. — Sua mão está em minha bochecha,
fazendo carinho. — Mas passei a gostar com o tempo.
Volto a balançar a cabeça, mas fico em completo silêncio enquanto sinto ele
percorrendo meu rosto com sua mão, fazendo com que meu corpo relaxe ao ponto de
meus olhos fecharem. Rafael se aproxima mais, uma de suas pernas encosta levemente
na minha, o que me faz voltar a encará-lo, me sentindo um pouco tensa agora.
Mesmo com nossa proximidade nos últimos dias, ele não costuma se aproximar tanto
assim do meu corpo, nosso contato não passa de abraços e eventuais beijos na testa ou
no rosto, nada tão íntimo como isso, como sua perna esbarrando levemente na minha,
com sua mão passeando por meu rosto, descendo para a nuca, me fazendo arrepiar.
Rafael parece perceber que todo meu corpo está arrepiado, respondendo ao seu toque,
porque me lança um sorriso bobo.
— O que foi, amor? — questiona, sua unha arranhando levemente minha nuca.
— Nada. — Minha resposta sai baixa e minha voz está completamente rouca,
entregando minha mentira.
— Nada... — Ele repete, ainda com o sorriso nos lábios. — Entendi.
— Rafael? — Suas sobrancelhas se levantam, esperando que eu fale. — O que... o que
estamos fazendo?
— Eu não sei — sussurra, e parece sincero. — Mas eu quero muito... muito mesmo —
Ele enrola, nervoso de um jeito que Rafael não costuma ficar. — Quero te beijar.
Não respondo, mas inconscientemente minha respiração se altera, ficando alta e clara o
suficiente para que ele perceba. Não saio do lugar, e percebo que na verdade quero que
ele me beije, quero muito. Todos os minutos que perdemos nos encarando aqui parecem
idiotas agora, mas talvez eu precisasse disso para perceber o que quero.
Rafael se inclina mais, de forma cuidadosa, parece com medo de que eu o recuse ou
algo assim, mas a única coisa que faço é soltar um suspiro baixo de expectativa quando
percebo o quão próximo os seus lábios estão do meu.
— Maya. — Sua voz sai em um grunhido baixo. — Se não quer que eu a beije, por
favor... fale logo.
— Eu...— Minha voz está hesitante e sinto minhas mãos suarem. — Eu quero. Quero
muito.
Sua resposta não vem em palavras, e mal tenho tempo de registrar o resmungo de
impaciência que ele solta antes que seus lábios estejam colados no meu. O beijo é lento
e hesitante no começo, Rafael parece com medo de que eu mude de ideia, e eu estou me
acostumando a sensação de ter os lábios de alguém no meu, os lábios de alguém que eu
quero que esteja aqui. Mas aos poucos vamos nos entendendo e nossos corpos parecem
ir se encaixando de forma magnífica. No entanto, a mão dele não ultrapassa mais do que
o fim de minha coluna, o que agradeço mentalmente, já que não sei como agiria se ele
passasse desse limite.
Sua boca tem gosto do chiclete que ele vive mastigando para acalmar seus impulsos, e
isso torna o beijo ainda mais gostoso. Quando nos afastamos minha respiração está
completamente descompassada, e Rafael tem os lábios e as bochechas vermelhas,
fazendo com que eu me pergunte se também estou assim.
O encaro em silêncio, mas ele direciona seu olhar para o teto enquanto recua um
pouco, respirando fundo. Isso me desanima um pouco, e me faz acreditar que ele
provavelmente está arrependido.
— Maya, eu...
— Desculpa. — O interrompo, me afastando mais ainda. — Eu não devia ter feito isso,
me deixei levar. Me desculpa, mesmo.
Não espero por sua resposta antes de sair da cozinha quase correndo e me trancar no
quarto, onde fico durante muitas horas, até que a vergonha suma o suficiente para que
eu consiga encarar Rafael.
Ao chegar na sala o encontro deitado do sofá enquanto passa os canais de forma
despreocupada. Dou uma tossida em uma forma ridícula de chamar sua atenção, mas
funciona, e ele me encara com um grande sorriso, como se nada tivesse acontecido.
— Ei, tava te esperando pra gente assistir alguma coisa. — afirma, se sentando. —
Pensei em assistir aquele filme de terror que estreiou essa semana.
— Hã... O.k — Dou de ombros, disposta a fingir que nada aconteceu, assim como ele.
— Vou pegar o sorvete.
— Beleza.

Depois do fatídico dia do beijo, eu e Rafael voltamos ao nosso normal, sem toques que
não sejam beijos inofensivos na testa e bochecha e abraços, e não tocamos mais no
assunto, o que só prova o quanto ele não quer pensar ou falar nisso, claramente se
arrependeu.
No entanto, o sentimento que achei que sumiria com os dias não sumiu, pelo contrário,
parece crescer cada vez mais, e termino todas as noites lembrando do toque dos seus
lábios no meu, o que sei que não é nada saudável para mim, que devia esquecer
completamente qualquer sentimento por ele.
Mas como isso não acontece, decido que não posso mais guardar só para mim, e como
conversar com Rafael está fora de cogitação, decido ir até Elisa, esperando que de
alguma forma ela encontre uma solução.
Por isso, aproveitando que é sábado e os meninos estão no bar, vou até seu
apartamento.
Bato na porta da casa de meus amigos e vejo que está aberta, por isso empurro
lentamente.
Demoro um tempo para finalmente perceber o que está acontecendo, mas no momento
já é tarde demais para sair e fingir que não tinha estado ali. Eu realmente não devia ter
entrado sem ser atendida. Deus, que constrangedor As duas garotas finalmente me
percebem ali e me encaram ainda mais surpresas do que eu estou.
Elisa veste sua blusa rapidamente por cima do sutiã e se levanta, pela primeira vez ela
parece envergonhada.
— Maya... Olha, eu... — Ela pragueja. — Tá legal, não tenho o que dizer.
— Você não... — Balanço a mão, minha boca aberta em dúvida do que dizer. — Não
tem o que explicar, tá tudo bem.
— Maya.— A ruiva finalmente me encara, parece nervosa. — Nós duas...será que você
pode sentar?
— Claro. — Caminho até o sofá e me sento, jogando a blusa dela rindo um pouco. —
Veste isso, ruiva.
Então, elas começam a contar tudo que tinha começado a pouco menos que um mês,
que não querem contar para ninguém por ser algo recente e por Amanda ainda estar... se
assumindo, ou algo assim. Aos poucos, a surpresa por encontrá-las juntas vai
diminuindo e eu acho realmente fofo que minhas duas amigas estejam juntas. Não tenho
como não apoiar, se elas fazem bem uma para outra, então eu sempre serei a favor.
Quando terminam de contar, parecem envergonhadas e tensas com meu silêncio, mas
não soltam suas mãos em nenhum momento, o que mostra que isso tudo é bem mais
sério do que elas fazem parecer.
— Então, vocês namoram?
— Bem, é isso, sim. — Elisa concorda, sorrindo.
— Tudo bem, estou feliz por vocês — admito, apoiando minha mão sobre a delas. — Se
estão se dando bem, isso que importa para mim.
— Mesmo? — A ruiva suspira, aliviada.— Obrigada
— Não tem porque agradecer, mas preciso perguntar... — Aponto na direção das
garotas. — Como começou o relacionamento?
— Eu chamei ela e começamos a conversar.— A morena dá de ombros, encarando
minha amiga. — Então... rolou, não sei.
— Estou realmente feliz pelas duas. — Sorrio novamente para elas. — E tenho certeza
que os meninos também vão ficar, se decidirem contar para eles.
— Já conversamos sobre isso e preferimos deixar mais para frente. Se puder guardar
segredo, por favor.
— É claro que posso — concordo, mordendo os lábios. — Mas então, ainda bem que
está aqui Amanda, quero a opinião de vocês sobre algo.
— Se é sobre o Rafael, sim, ele gosta de você — diz Elisa, nós a encaramos incrédulas.
— O quê? Tá na cara.
— Na verdade, não é sobre o que o Rafael sente por mim — confesso em voz baixa. —
Não exatamente. Na verdade é sobre o que eu sinto por ele.
— Ah meu Deus! Você tá afim dele? — Amanda exclama, pulando no sofá. — Cara,
você realmente está gostando de alguém? Isso é simplesmente perfeito.
—Shhhh. — Minhas sobrancelhas franzem em aviso. — Ele vai chegar mais cedo hoje.
— Desculpa. — Sua voz baixa consideravelmente. — Mas então, você já falou com
ele?
— Não! Claro que não — disparo, um pouco nervosa — Nós dois meio que... nos
beijamos, a uns dias atrás.
— Se beijaram e não contaram pra gente? — Elisa abre a boca em total descrença. —
Traidores.
— Olha, foi uma coisa muito... — Bufo, passando a mão no rosto. — Foi do nada, e não
tocamos mais no assunto depois que aconteceu.
— Por quê? — A ruiva questiona.
Começo a contar tudo que aconteceu, e elas me escutam em silêncio, tirando as
puxadas de ar e os sussurros de “meu Deus” vez ou outra. Quando termino de falar,
estou um pouco envergonhada por contar tanto assim de algo tão íntimo, mas elas são
minhas amigas, então tento relaxar com isso.
— Você tá completamente enganada se acha que ele se arrependeu. — A negra afirma,
e a garota ao seu lado confirma com a cabeça.
— Não sei, não.
— Maya, eu conheço o Rafael, e fica claro em cada ação dele os sentimentos por você.
— Sua fala me faz torcer o lábio. — É sério! Ele falta chorar e se ajoelhar quando você
sequer cogita a ideia de realmente ir morar sozinha, o homem não consegue ficar longe
de você.
— Realmente. — Amanda concorda, rindo. — Ele fica todo tristinho quando você fala
em alugar um apartamento pra você.
— Acho que ele só se preocupa comigo, assim como vocês. — Dou de ombros,
tentando não demonstrar meu nervosismo.
— A diferença é que nós não ficamos beijando sua boca ou tentando te agradar com
chocolates todos os dias. — Minha amiga sussurra, segurando a risada.
— Olha, eu não devia te contar isso, mas acho que precisa saber. — Elisa encara a porta
e baixa a voz, provavelmente preocupada de que eles chegassem. — Um dia desses,
Davi chegou junto com Rafael quando você tava no estúdio, e o Rafael tava super
emburrado. Eu perguntei o por que, e depois de insistir muito, ele contou que era porque
nosso irmão aparentemente estava dizendo que se ele não tomasse uma atitude contigo,
então perderia você.
“Davi tava quase se mijando de rir quando contou que disse pro Rafael que ele mesmo
iria conquistar você se o Rafa não fizesse isso, era brincadeira, óbvio, mas mesmo
sabendo disso esse homem teimoso não deixou de ficar com ciúmes. Isso prova que ele
é doido por você.”
— Ele ficou mesmo emburrado um dia inteiro com Davi por causa de uma brincadeira?
— questiono, os lábios apertados para não rir.
— Ah, é claro que não. — Minha amiga ri, balançando as mãos. — Dez minutos depois
ele tava rindo e mandado Davi a merda.
Solto uma risada junto das outras duas, mas continuo em silêncio durante uns bons
minutos. As garotas respeitam meu tempo até que eu finalmente volte a falar.
— Eu não sei nem como falar isso pra ele, as coisas têm mudado entre a gente e tenho
medo de que tudo simplesmente... dê errado.
— Olha Maya, se eu fosse você, falaria com ele. — Elisa incentiva com um bico. —
Está claro que se gostam, então vai em frente, conta como se sente.
— Eu não sei... — Suspiro, jogando a cabeça no encosto do sofá. — Não sei se estou
pronta.
— Ele vai te tratar como uma rainha, isso eu posso te dar certeza. — A garota afirma,
sorrindo. — Rafael sempre vai te respeitar, e nunca te encostaria um dedo sequer.
— Eu sei disso.
— Então... — Ela aperta os lábios. — Eu entendo se quiser esperar, se você precisar de
alguma ajuda de um profissional pra poder lidar com isso...
— Sim, eu tenho alguns amigos nessa área. — Amanda concorda, apertando minha
mão. — Posso te indicar algum.
— Acho que não estou preparada para encarar um profissional — recuso, com um
sorriso de agradecimento. — Mas acho que vou tentar conversar com Rafael.
Depois de concordar em tentar falar com Rafael, ouço mil conselhos sobre o que fazer
e como lidar com toda a situação. Ainda me sinto com um pouco de medo de como tudo
pode acabar, mas sinceramente estou disposta a correr esse risco com Rafael, mesmo
que não eu não saiba por onde começar, que não tenha certeza do sentimento dele por
mim, mesmo essa sendo literalmente minha primeira vez me envolvendo com alguém.
Capítulo 18.

Nos dias que se seguem, minha situação com Rafael volta a evoluir consideravelmente
e aos poucos tomo coragem para me aproximar mais, não passamos de abraços e de
assistir filmes juntos no sofá, mas eu sinto em cada carinho dele no meu rosto, em cada
abraço demorado, quando me deixa um beijo na bochecha antes de dormir, eu sinto. É
impossível negar que a tensão entre nós aumenta a cada segundo e de uma forma
improvável eu me sinto pronta, confortável e segura para tentar algo mais, eu quero,
não, eu necessito de ter Rafael, ter ele me tocando, me beijando, ou só por perto.
Quando chego ao ponto de não aguentar mais ficar perto do loiro sem poder falar dos
meus sentimentos, sem poder tocá-lo, voltar a beijá-lo e acabar com a sensação que eu
tenho por dentro de todo meu corpo, eu decido que é hora de me abrir com ele, mesmo
com a vergonha e com o medo. Por isso, no final do sábado eu estou preparando o prato
preferido dele enquanto danço pela cozinha, uma música pop qualquer vem do meu
celular no último volume.
Pedi que Rafael chegasse mais cedo hoje e sei que ele deve estar preocupado, mesmo
que eu tenha dito algumas muitas vezes que nada demais tinha acontecido.
As sete, a mesa já está pronta e eu estou de banho tomado enquanto espero a lasanha
ficar pronta.
Quando o homem chega eu já me encontro colocando a grande travessa fumegante em
cima da mesa. Ele faz o mesmo de sempre e tira os sapatos antes de finalmente pisar no
tapete felpudo da sala, logo entrando na cozinha. Ele levanta as mangas da camisa e
abre todos os botões, deixando ela completamente aberta, todo seu tronco a mostra, a
pequena linha de pelos logo abaixo do umbigo fazendo com que meu corpo se esquente.
Um beijo é deixado em minha testa e ele finalmente se senta a minha frente, os olhos
presos na grande travessa de lasanha parecem brilhar, sei que está ansioso para
finalmente comer, por isso pego um refrigerante na geladeira enquanto observo ele
servindo a massa em nossos pratos. Comemos em silêncio, mas nossos olhares se
encontram com frequência e alguns pequenos sorrisos são trocados. Isso faz com que a
coragem dentro de mim cresça, e a cada segundo tento me lembrar dos conselhos de
Elisa e Amanda.
Terminamos o jantar ainda em silêncio e continuamos assim enquanto arrumamos
tudo.
Depois de finalmente terminarmos, decidimos ir para sala assistir um filme, e Rafael
puxa um dos chocolates que eu gosto de sua mochila, entregando-o para mim. Não
demora para que estejamos enrolados em uma coberta enquanto assistimos um filme de
terror e comemos todo o chocolate. Todo meu tronco está apoiado em seu peito,
sobrando só as pernas estiradas sobre o sofá, seus braços ao meu redor, me segurando
com força a ele. É reconfortante e parece certo, como se esse fosse o único lugar no qual
eu deveria estar para sempre.
No meio do filme eu já não presto a mínima atenção, estou encarando Rafael,
reparando em cada detalhe de seu rosto.
Não posso enrolar mais, já passou da hora de encarar isso e conversar com ele, não
importa qual será a sua resposta, não importa que ele não sinta o mesmo.
— Rafael?
— Sim, amor? — O homem me encara de cima.
— Eu preciso...— Respiro fundo, tomando coragem. — Eu preciso te dizer uma coisa.
— Pode dizer, Maya.
— Rafael... — sussurro, seu rosto está sério e bem próximo do meu. —Eu quero algo
mais.
— Algo mais? — questiona, os olhos focados no meu.
— Algo — Mexo as mãos de forma descoordenada. — Com...Você.
— Algo, comigo — repete, parece um pouco confuso.— Você...
— Eu gosto de você Rafael, e tenho tentado te falar já tem um tempo, mas nunca
parecia a hora certa — confesso, baixando os olhos — Depois daquele beijo, eu vi que
você se arrependeu e eu tinha medo de que você não sentisse o mesmo e...
Eu não termino de falar antes que sua boca tome a minha, me calando no mesmo
segundo. Seus lábios carregam o gosto doce do chocolate, tornando o beijo ainda mais
gostoso. Nossas línguas colidem umas com a outra em nosso beijo apressado,
desesperado e necessitado, bem mais voraz do que o primeiro de dias atrás.
Não demora muito para que nós dois fiquemos sem ar e precisamos nos afastar
enquanto meus olhos ainda estão fechados, querendo me demorar um pouco mais no
momento, nas sensações. Quando finalmente os abro, Rafael está me encarando de
perto, os lábios vermelhos e inchados devido ao beijo, e sei que os meus também estão
assim. Ele continua lindo, como sempre.
— Você tem certeza?
— Hum? — resmungo enquanto estou distraída.
— Você tem certeza que me quer, Maya? — questiona, as mãos em minhas bochechas.
—Sim — sussurro, encarando seus olhos tão diferentes. —Sim, eu tenho.
— Ah, amor.— Sua voz parece perturbada. — Você não tem noção do quanto tenho me
segurado durante esse tempo para não dizer o que sinto.
— O que sente?
— Sim, o que eu sinto por você. — Ele esfrega seu nariz no meu. — O quanto eu te
quero, o quanto preciso de você. Como eu queria te beijar todas as vezes que te via pela
manhã, pela tarde, droga, eu sempre quero te beijar.
— Eu achei que...
— Que eu não quisesse você? Que tivesse me arrependido?— Balanço a cabeça em
concordância, mordendo os lábios. — Amor, eu não consigo mais ficar sem você,
quando achei que ia te perder... eu quase enlouqueci. Só a ideia de não ter você na
minha vida faz meu coração doer, eu preciso de você sempre, quero você todos os dias,
entende isso? Eu nunca me arrependeria de ter te beijado, isso é tudo que mais quero
durante todos esses meses.
Eu apenas balanço a cabeça de forma atônita antes que ele pegue meus lábios entre os
seus novamente, percebo sua hesitação em me tocar em outro local que não seja meu
rosto e cintura e agradeço por isso novamente, ainda não sei se consigo lidar com esse
tipo de toque, mesmo que venha de Rafael.
A partir dessa noite tudo muda, ainda somos amigos, ainda assistimos filmes,
comemos chocolate e corremos atrás do outro pela casa fazendo cócegas, mas é
diferente. Os jantares, os momentos enrolados nas cobertas, os almoços depois que eu
saio do trabalho e Rafael percebe que eu preciso de um descanso, cada toque, tudo está
diferente, em cada detalhe é possível ver nossa aproximação, os sentimentos. E é bom, é
como se toda a parte ruim da minha vida estivesse guardada em um pote no fundo da
minha mente, que está sendo ocupada só com o que sinto por Rafael. E eu sei que não
devia fazer isso, não posso ficar toda minha energia nele, mas é tão bom...
Simplesmente só sentir as coisas boas.

O dia de fotografar com o modelo que Luciana arrumou para sessão especial que faria
finalmente chega. Eu estou nervosa e com medo de como reagirei com o toque de um
homem que eu não conheço, mas continuo disposta a tentar fazer isso. Quando chego ao
estúdio, minha chefe me espera e me leva para uma sala privada onde me entrega a peça
que eu usarei nas primeiras fotos, eu a visto rapidamente e vejo a aprovação no olhar da
mulher. Temos uma rápida conversa antes de sairmos, e ela afirma que eu posso dizer
na hora se algo não for confortável para mim, que não se importa em parar a sessão.
Antes de finalmente começarmos as fotos me apresentam ao modelo, que é realmente
bonito, cada mínimo detalhe nele grita celebridade, mas o homem é educado e cordial a
todo momento, o que faz com que eu me sinta um pouco mais confortável. As primeiras
fotos são fáceis e confortáveis, já que não precisamos nos encostar e mau ficamos perto.
Mas quando a quinta foto chega, preciso respirar fundo algumas vezes antes de
finalmente colocar um sorriso no rosto e fixar meus olhos na câmera.
É demais para mim quando a fotógrafa pede que o modelo encoste mais seu peito
contra minhas costas e ele faz isso. Meu coração se acelera e tento não enrijecer meu
corpo, mas é inevitável. Respiro fundo algumas vezes até perceber que não consigo
fazer isso, parece que meu coração vai explodir no minuto seguinte e não posso fazer
nada a não ser me afastar e pedir desculpas antes de sair correndo dali.
Me tranco no primeiro banheiro que encontro e molho meu rosto, me sentando sobre o
sanitário, tentando me acalmar a todo custo. Quando meu coração se acalma e
finalmente consigo respirar com um pouco mais de facilidade, decido ligar para Rafael.
Ele atende no terceiro toque.
— Oi, amor. — Sua voz estava contente. — Como foi a sessão de fotos da minha linda?
— Péssima — sussurro.
— O que aconteceu meu amor? Ele encostou em você como não devia? — Sua voz se
enfurece. — Eu juro que se esse modelo safado tiver feito algo...
— Não. — Solto uma risadinha. — Ele não fez nada Rafa, eu só... não consegui.
— Posso ir te buscar?
— Por favor — lamurio com vergonha de sair dali. — Não sei como vou encarar todo
mundo agora.
— Você não tem porque se envergonhar gata, tem seu direito.
Depois de me acalmar um pouco mais, Rafael desliga. Espero mais alguns minutos
antes de finalmente sair do banheiro, onde encontro Luciana e mais uma modelo que
costuma conversar comigo do outro lado, apoiadas na parede parecendo me esperar.
Elas se aproximam quando saio, cada uma segurando em uma das minhas mãos, e isso
faz com que eu me sinta um pouco menos nervosa e envergonhada. Mas mesmo assim
não controlo as lágrimas que vêm logo em seguida, ultimamente tudo me leva a
lágrimas, até os mínimos acontecimentos. As duas mulheres me abraçam com força até
que meu choro passe, e não questionam meus motivos uma vez sequer.
— Me desculpa Luci — peço enquanto seguro suas mãos. — Eu prometo que podemos
tentar de novo outro dia, eu só não podia mais...
— Maya, você não precisa se explicar, tenho certeza que tem seus motivos — confirma,
sorrindo em minha direção. — Eu posso pedir que outra menina faça a sessão, não tem
problema nenhum.
— Mas a sua cliente...
— Que se foda a cliente, Maya. — Alice, a modelo minha amiga exclama. — Tem
várias outras meninas aqui que não ligariam de fazer, não precisa ser você.
Luci, ao lado dela, apenas confirma com a cabeça, e aquilo faz com que meu corpo
relaxe, pelo menos eu não serei odiada pela minha chefe e demitida. Depois de afirmar
umas três vezes para as duas mulheres que ficarei bem, e de pedir algumas muitas
desculpas, eu finalmente vou para entrada do estúdio, de uma forma que mais ninguém
possa me ver.
Não tenho que esperar muito por Rafael, e quando ele chega sai do carro para poder
me abraçar, esperando que eu me sente para fechar a porta. Quando o veículo entra em
movimento, eu apenas recosto minha cabeça contra o banco e fecho os olhos, tudo isso
parece um grande pesadelo.
Acho que eu sempre pensei que tudo acabaria quando eu me livrasse do meu pai, mas
isso não é a verdade. Junto com a liberdade veio tantos traumas, tanta dor, eu ainda me
sinto tão perdida em alguns momentos. Uma lágrima escorre por meu rosto, e o loiro ao
meu lado deve estar me observando, porque a seca rapidamente, me lançando um
sorrisinho triste.
— O que acha de chocolate, aquele vinho que você gosta e uma janta na casa do Davi?
— Humm — murmuro com satisfação, fungando. — Sim, eu preciso de algo assim.
— Que bom, por que eu acabei de comprar cinco caixas de chocolate e duas garrafas do
vinho no caminho para cá. — Ele confessa, apontando para o banco de trás, onde estão
algumas sacolas. — E Elisa já foi comprar as coisas para Davi fazer a janta.
— Vocês são incríveis — admiro, sorrindo um pouco. — Fico feliz de ter vocês como
amigos.
— Família, amor. — Corrige, dando uma piscadela. — Somos uma família.
— Sim, somos uma família — concordo balançando a cabeça.
No resto do dia Rafael e meus amigos, ou melhor, minha família, fazem de tudo para
me deixar confortável e feliz, e eu não posso ficar mais agradecida por isso. É bom e ao
mesmo tempo estranho ter não uma, mas quatro pessoas cuidando de mim depois de
tantos anos sem ter uma presença familiar, pelo menos não uma que prestasse. Minha
amizade com Amanda tem se fortificado de uma forma que acredito que seria
impossível se tudo aquilo não tivesse acontecido, Davi e Elisa são como os irmãos que
nunca tive, principalmente Davi, com toda a proteção e a forma como tem prazer em me
irritar. E Rafael? Rafael é tudo que eu poderia pedir, um amigo, alguém com quem eu
posso contar em todos os segundos, o meu salvador, o cara que eu gosto. Mas mesmo
com todo o amor e proteção, eu ainda me sinto um pouco sozinha, quebrada e um tanto
deprimida. É claro que isso me enche de culpa, mas se torna cada vez mais impossível
lidar com tudo que meu passado deixou em mim, ou melhor, o nada que meu passado
deixou em mim. Eu me sinto sufocando em alguns momentos. Como quando estamos
nos afogando e parece que cada vez mais somos puxados para baixo, é como eu me
sinto em alguns dias, mesmo que tente evitar, mesmo que me repreenda por ter tantas
pessoas me amando e continuar pensando em tudo que tinha passado, eu não consigo
deixar isso para trás.
Capítulo 19.

No final da semana seguinte é aniversário de Davi, e por decisão do garoto, nós vamos
para uma boate. Rafael diz que eles têm uma tradição que já dura cinco anos, desde que
Davi completou seus dezoito. Vão para a mesma boate na noite que antecede ao
aniversário do garoto e quando vira à meia-noite, todos precisam virar um copo inteiro
de cerveja. No dia seguinte, comem bolo de chocolate com refrigerante no café da
manhã e passam o dia vendo filmes de terror. O último item da tradição é o que mais me
interessa, e me vejo super animada em assistir uma quantidade exorbitante de filmes de
terror.
Uma hora antes de sairmos para tal boate, eu, Elisa e Amanda estamos nos arrumando
na casa da morena enquanto minhas duas amigas vez ou outra trocam um beijo, o que
eu acho bem fofo. Elas finalmente assumiram o relacionamento para Davi e Rafael, e
assim como eu tinha dito, eles aceitaram e super incentivaram as duas, o que me deixa
muito feliz.
No entanto, Amanda ainda está sofrendo com o fato de precisar contar para os pais, eu
acredito que eles vão aceitar seu relacionamento e sua escolha, mas diante de tantas
pessoas com relacionamentos homoafetivos que não são aceitos pelos pais eu consigo
entender a hesitação de minha amiga, mesmo que me mate vê-la triste vez ou outra.
Hoje, seu sorriso está imenso enquanto finalmente ficamos prontas. Apesar de nossas
diferenças de estilo, estamos todas muito bonitas, e de certa forma parecemos em
sintonia. Amanda usa um vestido curto de veludo em um tom verde escuro que parece
evidenciar os cabelos ruivos. Elisa está dentro de um vestido preto transpassado
grudando em suas curvas e brilhando a luz do quarto, e eu me sinto deslumbrante em
um vestido branco no estilo ombro a ombro, a parte de baixo não passa do meio das
minhas coxas, mas incrivelmente isso não me incomoda. Estou me sentindo
verdadeiramente bonita.
Quando encontramos os garotos na sala não sei quem está mais surpreso, eles ou nós.
Davi veste calças jeans escuras que se apertam em sua coxa e uma camisa branca que
parece evidenciar sua linda pele escura, Rafael está de camisa de botões preta, como
sempre, mas dessa vez muitos botões estão abertos, deixando toda parte de cima do
peito amostra, onde uma correntinha fina de ouro pense. Isso é... Lindo, completamente
perfeito. Ao lado dele, João, um amigo de longa data deles, está igualmente bonito com
uma camisa azul escura tampando o tronco do corpo moreno e calças jeans tão escuras
quanto a de Davi. Eles formam um trio um tanto distinto, e mesmo assim uma coisa
incrivelmente boa de se ver. Um louro, a pele clara e seus olhos azuis manchado de
castanho, um de pele escura e um lindo sorriso de dentes brancos, e outro com cabelos
escuros como a noite, constrastando com a pele morena e os olhos verde piscina.
Realmente bonitos.
— Uau. — É Davi quem se pronuncia. — Minhas maninhas são incrivelmente lindas, e
minha cunhadinha também.
— Somos, não é? — Elisa dá uma voltinha, completando. — Vocês não estão nada mal
também.
— Ah, vamos lá Elisinha, é meu aniversário — resmunga o garoto. — Eu mereço um
elogio decente.
— Espere sentado, querido.
— Você está lindo, coisinha carente. — A ruiva afirma, apertando as bochechas dele.
—Estou mesmo? — Um biquinho fofo se forma em seus lábios enquanto ele se vira
para mim. — Só acredito se minha loirinha também achar, estou lindo?
— Você sabe que sim. — Reviro os olhos, rindo, mas logo depois encaro o trio a minha
frente. — Os três estão.
João agradece e Rafael apenas sorri, balançando a cabeça levemente.
Não perdemos tempo e logo saímos para boate, divididos em dois carros. Eu vou junto
de Rafael e João, e conversamos sobre o último jogo do time que temos em comum e
um pouco sobre livros, já que João trabalha na área editorial e eu sempre fui apaixonada
pela literatura.
Chegamos rapidamente na boate luxuosa e entramos depois de encarar uma leve fila.
O lugar está cheio, dezenas de pessoas dançam com seus corpos suados se esbarrando e
copos de bebidas cheios em suas mãos. A música está alta e faz todo meu corpo vibrar,
o que causa um leve desespero em meu corpo, não estou acostumada com lugares tão
cheios e barulhentos, com pessoas esbarrando em meus ombros.
Parecendo ouvir minhas preces mentais, eles se encaminham para uma área mais
calma, onde sentamos em uma longa mesa cheia de cadeiras, o suficiente para acomodar
nosso grande grupo.
Cada um escolhe uma bebida e os garotos vão buscar enquanto esperamos sentadas,
Elisa e Amanda deixam beijos e carinhos no rosto uma da outra, e eu encaro de forma
admirada o amor entre as duas. Mesmo que não admitam está claro o sentimento entre
elas, o quanto gostam uma da outra, é algo de se admirar, realmente.
Aos poucos vou me soltando e me acostumando com o local e começo a me divertir,
dançamos, bebemos e conversamos por cima da música alta, o que sinceramente é
engraçado, já que precisamos gritar. Quando se aproxima da meia-noite, Davi serve um
copo de cerveja para cada um de nós e coloca seu celular sobre a mesa, enquanto
observamos cada minuto que passa. A meia-noite finalmente chega, e todos viramos
nossas bebidas em perfeita sincronia. Logo depois abraços e felicitações são dados para
Davi. Eu espero calmamente que todos falem com ele e fico por último, lhe dando um
pequeno sorriso, seguido de um longo abraço quando nos aproximamos.
— Feliz aniversário, meu barman preferido — sussurro em seu ouvido. — Você merece
o mundo, obrigada por tudo.
— Obrigada, princesa. — Seus braços me apertam mais ainda. — Vamos todos ganhar
o mundo juntos.
— Vamos, sim. — Finalmente nos soltamos e um sorriso toma meu rosto.
Depois disso, voltamos para pista de dança e dançamos juntos até que nossos pés
fiquem doloridos. Eu decido pegar uma água para mim, evitando ingerir mais bebida,
minha cabeça já está rodando. Caminho sozinha até o bar, meus pés estão me matando
enquanto eu me aproximo do balcão. Depois de pedir minha água e esperar durante
longos minutos, eu finalmente me desencosto do balcão e me viro para voltar para mesa
e meus amigos, quando um cara aproxima seu corpo do meu, praticamente me
enjaulando contra o balcão. Peço licença, mas ele não sai do lugar, está sorrindo. Isso
me assusta um pouco, mas tento ser simpática e dou um sorriso, pedindo licença
novamente, falando que ele está me prendendo ali.
— Desculpa, não quis te assustar. — Mais um sorriso, e ele finalmente se afasta um
pouco. — Sou Caio.
— Maya, é um prazer. — Sorrio para ele de volta, me sentindo mais confortável.— Eu
preciso voltar para meus amigos agora, então...
— Ah, claro, desculpa por atrapalhar. — Suas mãos bagunçam o cabelo e ele baixa a
cabeça de um jeito fofo. — Ei, será que... não sei, eu te achei muito linda e gostaria de
conhecer você.
— Humm, bem. — Dou de ombros, um pouco nervosa. — Eu meio que... tenho alguém.
— Claro, desculpa de novo. — Seus lábios se apertam. — Com certeza, linda como...
— Não chama a minha namorada de linda. — resmungo derrotada quando ouço a voz
atrás de mim. — Quem, porra, é você?
— Foi mal, mano. — Ele levanta as mãos em rendimento. — Eu já tava indo, não sabia
que ela namorava.
— Ela acabou de dizer que namora e você chamou ela de linda! — Seu grito é claro
mesmo com a música alta, o que me faz estremecer.
— Rafael — chamo, mas ele não escuta.
— Olha só, eu pedi desculpa. — O cara afirma, se irritando. — Maluco do caralho.
— MALUCO? — O loiro fica a minha frente, se aproximando do cara. — VOCÊ DEU
EM CIMA DA MINHA NAMORADA!
— E o que tem, porra? — O outro se aproxima ainda mais, o desafiando. — Eu não
tinha como saber que a garota tinha alguém.
— Mas ela tem, e eu acho muito bom que você não olhe na direção dela. — Rafael
rosna e o garoto lhe dá as costas, o ignorando.— Filho da puta!
— Rafael!
— O que você falou? — Na mesma hora seu corpo se vira, e eu sei que tudo vai
explodir.
— Exatamente o que você ouviu! — O homem ao meu lado debocha, abrindo os braços.
— Rafael! — Puxo ele pelos ombros, mas seu corpo nem ao menos balança. — Rafael!
— Fica quieta, Maya! — Sua ordem faz com que meu coração acelere e o sangue suba
para meu rosto, deixando ele quente.
— Não acredito que uma garota tão boa está com um merda como você. — O
desconhecido debocha, balançando a cabeça.
E no momento seguinte, tudo que eu posso ver é Rafael o levando para o chão, e os
dois brigando ferozmente enquanto as pessoas se afastam e observam. Durante algum
tempo, tento impedir e me aproximar, mas a irritação toma conta de mim e
simplesmente saio dali. Ele que se mate e seja expulso daqui por um segurança, eu
sinceramente não estou ligando mais. A cada passo que dou em direção á meus amigos
e para longe de Rafael mais irritada eu fico, e quando chego a mesa sinto que posso
explodir de tanta raiva. Apenas viro a bebida presente no copo de Davi e bato em seu
ombro, chamando sua atenção.
— O idiota do seu amigo está se matando com um cara perto do bar. — Não preciso
dizer mais nada e ele já esta de pé. — Me dê as chaves do seu carro, estou indo com os
outros para casa.
— Ei, vocês dois. — Elisa chama do outro lado da mesa. — O que está acontecendo?
Davi não responde, apenas larga a chave em minha mão e sai dali, levando João
consigo. A irmã do garoto continua me encarando enquanto eu esfrego a mão no rosto
em completa agonia. Por que Rafael precisa ser um completo babaca?
Elas se aproximam e exigem explicações, então não posso evitar e conto tudo que
tinha acontecido, enquanto as obrigo a ir para a saída do local. Não demora até estarmos
dentro do carro de Davi, onde solto alguns gritos enquanto bato com a mão no volante,
estou simplesmente irada. Depois de poucos minutos, meu coração está menos
acelerado e eu me sinto calma o suficiente para dirigir enquanto ouço Elisa xingar
Rafael de todos os nomes possíveis. Eu concordo com todos.
Quando chegamos ao prédio não me incomodo em passar no apartamento de Rafael, e
vou direto para o dos meus amigos, onde cada uma toma seu banho e veste uma roupa
confortável, emprestada por Elisa. Quando estamos de banho tomado e sentadas na sala
comendo chocolates, a única coisa capaz de me acalmar, os três homens finalmente
adentram a casa. João parece indiferente ao comportamento de Rafael, o que me diz que
ele já deve ter visto isso acontecendo muitas vezes. Davi traz uma expressão irritada,
mas parece preocupado enquanto encara o rosto do amigo. E Rafael está com a
expressão mais lavada do mundo enquanto esfrega a mão machucada no rosto, tentando
limpar o sangue que escorre de um corte próximo a sobrancelha, aquilo me irrita mais
ainda e só consigo xingá-lo mentalmente em todos os idiomas possíveis. Todos devem
ter percebido a raiva que emana de mim, porque a sala fica quieta imediatamente. A
ruiva ao meu lado se levanta, saindo do cômodo, e voltando segundos depois com um
pequeno kit de emergência, o mesmo que eu tinha usado tempos antes em Rafael. Ela
larga o kit na mesa de centro, bem em frente a onde o loiro está sentado, murmurando
um “babaca” bem próximo ao seu rosto, isso faz com que eu ame minha amiga mais
ainda.
Quando vários minutos se passam e todos continuam encarando o kit sem nem se
mexer, percebo que provavelmente ninguém ali sabe fazer um curativo decente, além de
mim. No entanto, não me incomodo em levantar enquanto vejo o sangue escorrendo
pouco a pouco no rosto de Rafael. Provavelmente não vai precisar de pontos, e a
quantidade de sangue não é tanta, por isso não me preocupo muito com isso, eu já tinha
sangrado muito mais em várias ocasiões, e cuidei de mim mesma, ele pode fazer isso
também.
Um longo tempo a mais se passa até que Davi se aproxime, as mãos apoiadas no
encosto no sofá atrás de mim faz com que seu rosto fique próximo ao meu. Ele sussurra
em meu ouvido.
— Eu sei que ele é um idiota e que devíamos deixar ele sangrando até que levantasse a
bunda e fosse se cuidar. — O moreno encara o amigo rapidamente. — Mas está
escorrendo uma quantidade considerável de sangue, e eu sei que ele não vai se importar
de sangrar até desmaiar. Na verdade, acho que essa é a intenção, ele está se odiando no
momento.
— Que bom, porque eu também estou o odiando nesse momento. — Minha voz é clara
para todos os presentes na sala, inclusive para o loiro, que me encara com dor nos olhos.
— Por favor, princesa. — O moreno sussurra mais uma vez, me encarando de forma
séria.— Faça por mim.
Nos encaramos durante poucos segundos até que eu ceda ao seu olhar pidão. Rafael
realmente precisa de um curativo, ou esse sangue todo pode fazê-lo mesmo desmaiar
em algum momento.
Eu me levanto quando Davi sai da minha frente com um pequeno agradecimento. Não
tenho pressa enquanto vou até o kit e tiro com cuidado cada coisa que vou precisar. Sei
dar suturas caso seja necessário, minha criação doentia tinha, no mínimo, servido para
isso. Muitas vezes meu pai passava mesmo do limite e eu aprendi aos poucos a
aperfeiçoar curativos, chegando a pequenas suturas e limpezas para não infeccionar o
machucado. Quando tudo que posso precisar está distribuído pela mesa eu volto a me
levantar, encarando cada um dos rostos presentes, eu realmente não conseguirei fazer
isso com todos aqui, não sei porquê, talvez seja porque sei que estarão pensando a todo
momento como eu tinha aprendido tudo que sei. É melhor fazer isso sozinha.
— Desculpa. — Minha voz sai baixa, envergonhada. — Mas será que eu posso fazer
isso... sozinha? Talvez precise de sutura.
— É claro. — A resposta vem rápido de Elisa, que começa a se movimentar,
empurrando os outros. — Nos chame se precisar, estaremos no meu quarto.
— Obrigada.— Meu olhar de gratidão é recebido por pequenos sorrisos compreensivos.
Quando eles finalmente estão fora do cômodo, posso virar e encarar Rafael, que está
no mesmo lugar de antes, ainda na mesma posição, encarando o lugar no sofá onde
antes eu estava sentada.
Me aproximo dele e sem nem uma palavra começo meu trabalho, me questionando
quantas vezes mais terei que cuidar de seus machucados, machucados que ele mesmo
causa. Limpo a área onde um grande corte está bem próximo a sobrancelha, depois
disso faço a pequena sutura que realmente é necessária, limpando de novo logo depois,
com anti-séptico que faz o homem resmungar, o que talvez tenha feito eu apertar o
algodão com o remédio com um pouco mais de força contra o corte. Quando termino
com o rosto, passo para a mão, limpando e enfaixando assim como tinha feito dias e
dias antes. Não me preocupo em ser cuidadosa e carinhosa como das primeiras duas
vezes, ele tinha motivo antes, dessa vez foi apenas por pura babaquice. Seus gemidos
baixos de dor não fazem a raiva em mim sumir, o que me surpreende, eu nunca fui
alguém raivosa.
Capítulo 20.

Quando termino não perco tempo em largar sua mão e me levantar, mas sou impedida
por seus dedos, os que não estão enfaixados, em volta de meu pulso, me segurando no
lugar. Levanto o olhar e vejo Rafael me encarando com a expressão mais arrependida
possível. Não, isso não vai me convencer, não hoje, não depois de como ele agiu. Lanço
um olhar duro para o homem e puxo meu pulso com agressividade, fazendo com que ele
solte, surpreso.
— Vá para o seu apartamento. — Aponto para porta, meus dentes estão apertados em
irritação. — Tenho muita coisa para te falar, mas não vai ser aqui.
— Tudo bem.— Sua voz sai baixa e conformada enquanto ele se levanta. — Eu só
realmente sinto muito.
Ignoro completamente suas desculpas e espero que ele saia para poder ir até o quarto
de Elisa e avisar que vou conversar com ele.
Quando chego ao apartamento, encontro o homem sentado em seu sofá, com um copo
de bebida. Não demoro em me aproximar e arrancar o copo de suas mãos, deixando
sobre a pequena mesinha ao lado do sofá. Nos encaramos durante algum tempo em
silêncio, a expressão de derrota e arrependimento em seu rosto faz meu coração apertar,
mas não deixo que ele veja isso, não, ele terá que se desculpar muito antes de merecer
perdão. Me sento ao seu lado, desistindo da tarefa de encará-lo até ele abrir a boca, o
que incrivelmente faz com que comece a falar em voz baixa e arrependida.
— Eu sei que você deve estar me detestando agora. — Fecha os olhos com força,
parecendo com dor. — Agi como um idiota hoje, acabei com a noite de todo mundo.
— É, acabou mesmo. — Meu tom é cortante, e ele se cala imediatamente. — Que
merda foi aquela Rafael?
— Eu não sei... — Suspira, bagunçando os cabelos.— Só vi aquele cara ali, tão perto de
você, te chamando de linda mesmo você dizendo que estava com alguém e eu só...
Surtei.
— Claro! Porque um cara me chamando de linda é motivo o suficiente pra você decidir
socar a cara dele — ironizo. — Você no mínimo tá tomando seus remédios?
— Hã...É...— Levanto as sobrancelhas, deixando claro que não vou aceitar mentiras. —
Tá legal, eu tomei por um tempo mas depois parei.
Não tenho reação a não ser encará-lo em silêncio, a decepção evidente em meu rosto.
Como ele pode continuar mentindo assim pra mim? Não importa se é só sobre seus
remédios, não posso acreditar nele se continua sempre mentindo e escondendo coisas.
Rafael parece saber exatamente o que eu penso, porque seu rosto toma uma expressão
desesperada enquanto me encara. Ele se aproxima, suas mãos apertando as minhas em
completo desalento.
— Maya, aqueles remédios me deixam horrível— confessa. — Eu fico tão parado, tão
lerdo... por favor, amor, entenda.
— Rafael, isso não justifica! Eu entendo suas explosões — afirmo, balançando a
cabeça. — Entendo que você não possa evitar, mas ficar sem os remédios também não
ajuda, você precisa tomar.
— É horrível, não consigo tomar aquelas coisas, Maya.
— Se não tomar, não quero mais nem olhar para você. — Sua expressão vacila, e ele se
encosta contra o sofá. — Estou falando sério Rafael, ou você toma isso ou eu não falo
mais com você, nunca mais.
— Eu tomo. — O desespero é evidente em sua voz. — Eu juro, eu vou tomar amor.
— Vai tomar na minha frente? — questiono, e vejo sua cabeça balançando
afirmativamente. — Mesmo?
— Mesmo, gata. — A convicção em sua voz me convence um pouco. — Estamos bem?
— O quê? — Me levanto, um sorriso irônico no rosto. — Você quase se mata com um
cara numa boate cheia só por que ele me chamou de linda e acha que vamos “estar bem”
tão rápido assim?
— Mas... você disse...
— Eu disse que você vai tomar o remédio na minha frente, e eu não vou te ignorar para
sempre — resmungo, irritada. — Mas isso não quer dizer que estamos bem.
— Amor. — Ele geme em claro desespero.
— Não! Agora não. — Minha mão se estica, pedindo que ele se cale. — Você me
assustou, Rafael.
Aquilo parece chocá-lo, e o homem se afasta, a boca um tanto aberta em choque. Até
esse momento ele provavelmente não tinha pensado no tanto que isso tinha me
assustado. Na verdade, nem eu tinha percebido, só estava focando em minha raiva. Em
nenhum momento pensei em como aquilo me deixa ao ponto de me desesperar, em
como quis chorar e meu coração acelerou quando vi ele indo para cima daquele
desconhecido na boate. Demora um pouco para que Rafael finalmente possa se
recompor, e quando isso acontece ele se levanta e se aproxima de mim com
determinação, cada uma de suas mãos em meus ombros.
— Eu errei, porra, eu errei muito. — Suas mãos vão para meu rosto. — E eu sei que
você merece muito mais do que eu, do que um cara que não consegue se controlar, um
cara tão fodido.
— Rafael...
— Me deixe falar gata, por favor. — Eu balanço a cabeça, concordando. — Eu sei de
tudo isso. Você é tão incrível, passou por tanta coisa, merece o mundo... Mas eu preciso
de você comigo, e sou egoísta o suficiente para pedir que fique comigo, que não me
deixe, eu prometo que vou tomar os remédios, faço tudo que quiser.
Não tenho respostas para isso, então apenas o encaro, não estou acostumada a ouvir
esses tipos de coisa, isso me surpreende. Nossos rostos estão tão próximos que as
respirações se misturam no ar, e nossos narizes praticamente se encostam. A verdade é
que eu já nem estou mais irritada com ele, não depois de suas palavras, de seu
desespero.
— Preciso de você — repete, sua voz sai sussurrada. — Fique comigo, amor. Fique aqui
em casa, não vá embora, quero chegar em casa no final do dia e ver esse sorriso lindo
enquanto jantamos juntos, quero te trazer seus chocolates e observar sua felicidade
enquanto come cada bombom. Todos os dias, quero te buscar no seu trabalho e almoçar
junto com você, terminar nossas noites com filmes, fique, por favor.
— Você está... — Engulo em seco, gesticulando com as mãos nervosamente. — Está...
me chamando...
— Eu estou pedindo que fique aqui, só isso. — Um sorriso pequeno toma seus lábios.
— Que fique, mesmo que eu seja um babaca. Não precisamos rotular isso, pode me
considerar seu colega de quarto se quiser, mas fica.
— Sim. — Balanço a cabeça, com um pequeno sorriso, esquecendo a chateação de
antes. — Sim, é claro que fico.
— Graças a Deus! — O alívio em sua voz é claro. — Me desculpe, por favor.
— Mas estou falando sério.— Aponto o dedo contra seu peito. — Se você continuar
agindo assim, sem tomar seus remédios, eu vou embora!
— Prometo que vou me comportar, mandona. — Revira os olhos como uma criança,
mas sorri logo em seguida. — Será que podemos voltar para casa de Davi? Quero me
desculpar com eles e talvez pudéssemos beber mais um pouco.
— Não, chega de bebida por hoje — advirto, já me encaminhando para porta. — Vamos
logo.
— É claro, gata.
— Sou uma idiota por te desculpar tão rápido — resmungo enquanto caminhamos pelo
corredor.
— Não. — Ele abraça minha cintura por trás, deixando um beijo em meu cabelo. —
Você é boa demais, e tem um coração imenso, só isso.
Segundos depois já estamos no apartamento de nossos amigos, e como eu sabia que
seria, todos desculpam Rafael rapidamente, não antes de alguns xingamentos vindos de
Elisa e Amanda, que parecem satisfeitas em poder fazer isso.
Mesmo que seja tarde, já passando das duas, não nos preocupamos em dormir.
Jogamos jogos de tabuleiros, conversamos e rimos, deixando o acontecimento de horas
antes para trás. Em certo momento, Rafael, Davi e João começam a conversar sobre
negócios, Elisa diz que naquele momento não está nem um pouco interessada em falar
sobre trabalho, e eu, que estudei durante todo tempo a faculdade de administração,
também não estou muito interessada. Por isso saímos dali em direção a pequena mesa
na cozinha. Minha amiga nos acompanha, segurando a mão da namorada. Na cozinha,
elas querem saber sobre minha conversa com Rafael, e eu não me importo em contar.
Minutos depois, eu acabo de narrar toda a conversa que tive com o loiro, e suas
expressões estão divididas entre choque e contentamento.
— Pera aí. — A morena se pronuncia, batendo a mão animadamente contra a mesa. —
Então ele te chamou de namorada?
— E depois ainda te chamou pra morar com ele? — completa Amanda, as sobrancelhas
juntas.— Tipo... casamento?
— Ele falou que eu podia chamar como quisesse, até de colega de quarto. — Dou de
ombros, como se fosse pouca coisa. Não é. — E sim, ele me chamou de namorada.
— Ah isso é tão fofo! — Minha amiga faz biquinho. — Vocês juntos são uma graça.
— Eu apoio vocês dois, de verdade. — A ruiva diz, logo completando.— Mas você não
acha que é muito cedo?
— Eu realmente não sei, acho que sim. — Minha cabeça despenca entre as mãos. —
Mas nós meio que já estávamos nisso, né? Morando no mesmo lugar e tudo mais.
— Mas até agora era diferente— rebate, me encarando com a sobrancelha levantada.
— Eu sei, eu sei — resmungo em derrota.
— Não to dizendo que você não deve aceitar, até porque já está lá mesmo. — Ela dá de
ombros. — Mas pense bem, o.k?
— Tudo bem.

Os próximos dias são calmos e tudo parece perfeito. Durante a semana, vou a uma
livraria depois do trabalho e Rafael me encontra logo depois para que possamos almoçar
em um restaurante que adoramos. Quando chegamos em casa, arrumamos tudo
enquanto uma música alta sai da TV. É engraçado ver o loiro balançando o quadril pela
casa, seguindo o ritmo da música. Incrivelmente, ele dança bem, e é até prazeroso vê-lo
dançando. Acabamos com tudo muito tarde, e jantamos jogados no chão da sala
enquanto eu conto sobre os livros que comprei. Ele me encara com um sorriso grande,
em silêncio, como se estivesse só admirando o que eu digo. E isso é fofo.

Uns dias depois, Rafael pede que eu passe o dia no apartamento de nossos amigos, e
mesmo tentando não me sentir magoada e curiosa por ele esconder algo de mim, tento
ficar calma e acreditar que ele tem um bom motivo para me pedir isso. No final do dia,
o homem vai até o apartamento e me puxa animadamente em direção ao elevador, se
negando a contar o que está acontecendo, afirmando que verei quando chegarmos ao
nosso apartamento. O nosso não me passa despercebido, e secretamente eu adoro isso.
Quando chegamos ao lugar, ele me leva até o último quarto do corredor, um que eu
nunca me preocupo em entrar já que não usamos para nada, então não precisamos
limpar com frequência. Antes de finalmente abrir a porta, Rafael se vira para mim e
sorri de forma travessa, como um menino que tinha acabado de aprontar.
— Eu tinha arrumado esse quarto para ser meu escritório, mas nunca uso. — Dá de
ombros, o lábio inferior projetado para frente. — Então, depois de ouvir você falando
tanto sobre livros nos últimos meses, decidi que seria legal você ter um espaço só para
você.
— Rafael. — Minha voz sai alarmada. — Você não fez o que eu tô pensando que fez
não é?
— Tá pensando que eu dei uma pequena adaptada no meu escritório pra que você possa
ler em paz? — questiona, sorrindo. — Porque é exatamente o que eu fiz.
— Ah não. — Gemo, desacreditada. — Você não fez isso.
— Ah eu fiz, sim.
Depois disso, ele não demora em abrir a porta e me puxar para dentro do cômodo,
que está lindo. No outro extremo do quarto, bem de frente para a porta, se encontra uma
imensa mesa de carvalho, cheias de papéis organizados e um notebook, atrás dela é
possível ver uma cadeira giratória alta e extremamente acolchoada, deve ser tão
confortável. No canto direito, uma estante que vai do chão até quase o teto está
abarrotada de livros, e consigo reconhecer alguns que eu já li. Logo ao lado, um divã
preto está posicionado, e por um momento posso me enxergar ali, lendo durante horas.
No lado oposto do lugar fica uma pequena mesa, e apoiada sobre ela estão utensílios
para um café, xícaras, uma cafeteira e suas cápsulas e outros potinhos a mais. É
simplesmente incrível, não posso acreditar que Rafael realmente fez isso por mim, só
para me ver feliz.
Não me controlo quando me viro para ele e o abraço com força, completamente
agradecida.
— Obrigada. — agradeço próximo ao seu ouvido. — Muito obrigada mesmo, Rafael.
— Não precisa agradecer, amor. — Um beijo é deixado em meus lábios. — Algumas
coisas já estavam aqui, só tive que adicionar o divã, e confesso... os livros também.
— Você comprou todos esses livros mesmo? — admiro, sorrindo largo. — Pra mim?
— Claro, gata. — Suas mãos vão para minha cintura. — Eu não sabia o que você
gostava no geral, então comprei um pouco de tudo, podemos ir adicionando mais aos
poucos.
— Você é louco — afirmo, lhe dando outro beijo. — Louco e incrível.
Ele não diz nada, mas da forma que seu sorriso toma todo seu rosto, sinto como se
tivesse amado o elogio, mesmo que seja um dos mais simples que eu posso lhe dar.

O quarto, nos próximos dias, se torna meu santuário, meu refúgio, principalmente nos
dias em que me sinto para baixo, um tanto perdida, ou quando me questiono se aceitar
morar com Rafael daquela forma é uma boa ideia. Todas as vezes em que faço essa
pergunta acabo sem respostas, o que parece me enlouquecer cada dia mais. Porém, dois
meses depois do inesperado pedido de Rafael para que fôssemos algo a mais, eu
finalmente tenho uma decisão. Por isso, começo a colocar meu novo plano em ação.
Demora até que eu tenha tudo que preciso em mãos, principalmente coragem, mas no
final do mês tudo está pronto. Agora, é a hora de conversar com todos, primeiro com
Rafael.
Aproveito seu dia em casa para que possamos conversar, enrolo demais com o café, e
encontro sujeira onde não tem na casa. No meio do dia, percebo que não posso mais
enrolar, então finalmente chamo pelo homem, pedindo que se sente na sala junto
comigo. Quando estamos cara a cara, tão próximos que eu posso ver perfeitamente a
mancha castanha em seus olhos azuis, tenho que respirar muitas vezes, minhas mãos
tremem e meu coração parece querer sair do corpo de tanto que bate forte. Fecho os
olhos com força, finalmente tomando coragem.
— Eu tomei uma decisão, sobre o que quero fazer com o resto da minha vida.
— Me conte, amor. — Meu coração aperta quando ouço o apelido. — O que você quer
fazer com toda sua incrível vida?
— Nas últimas semanas, eu percebi que preciso me conhecer, descobrir quem eu
realmente sou. — Mordo o interior da bochecha nervosamente. — Eu passei toda minha
adolescência e o começo da minha vida adulta sem poder escolher nada, eu não sei se
gosto de roupas mais ousadas, porque nunca pude usá-las, não sei em que quero
trabalhar, não sei qual é meu lugar preferido ou se realmente gosto de beber, ou se só
faço isso porque me ajuda a esquecer tudo que passei.
— Eu entendo — Sua voz sai baixa, o semblante um pouco preocupado. — E já decidiu
que caminho precisa traçar para encontrar a si mesma?
— Mais ou menos. — Dou de ombros, enrolando para contar. — Mas eu sei que não
importa o caminho que eu siga, tem algo essencial nisso tudo...
— E o que é?
— Estar sozinha.— Meus olhos se enchem de lágrimas quando vejo o choque nos seus.
— Eu preciso seguir minha vida, sendo só eu.
O pequeno sorriso some do seu rosto e ele parece um tanto atordoado, como se não
estivesse entendendo o que eu digo. Cada segundo que se passa faz com que meu
coração quebre um pouco mais. Nesse momento, preferia receber mil machucados na
costela a ter que fazer isso, mas infelizmente é necessário. Como eu posso me encontrar
se não souber quem sou eu sem ninguém por perto?
— Como... — Ele solta o ar, tenso. — Como assim?
— Eu sei quem eu sou quando estou sendo abusada pelo meu pai. — A palavra sai com
dificuldade, como se machucasse. — Sei quem sou quando estou destruída por tudo que
ele fez, sei quem sou quando estou apaixonada por você. Mas quem sou eu quando
estou apenas sendo eu? Sem amor, sem ser controlada e machucada? Só sendo uma
garota normal, vivendo sua vida por aí. Eu realmente não sei, e nos últimos dias pensei
muito sobre isso, e cheguei a minha decisão.
— Sua decisão... — O homem parece ainda não acreditar no que está ouvindo. — Que
é?
— Eu vou viajar — sussurro, as lágrimas quase transbordando. — Vou pegar o dinheiro
que tenho guardado, fiz uma boa quantia trabalhando como modelo...Então eu vou sair
por aí, visitando países, estados novos, lugares que nunca pensei que poderia ir.
— Maya, eu posso ir com você. — Sua voz está eufórica, e isso me dói ainda mais. —
Eu deixo o bar com o Davi, tenho um dinheiro guardado, nós podemos viajar juntos!
— Rafael. — Seguro sua mão, fazendo com que se cale. — Eu preciso fazer isso...
Sozinha, tá bom? Você precisa ficar aqui, viver sua vida, e eu vou estar por aí,
descobrindo sobre a minha.
— Mas... mas você disse que queria ficar aqui, comigo. — Ele parece implorar em cada
palavra. — Por favor, Maya.
— Eu preciso ir, entenda isso. — Algumas lágrimas escorrem por meu rosto. — Preciso
ficar um tempo longe, sozinha. Sendo livre.
Ele fica quieto, encarando meu rosto de forma fixa, como se estivesse tentando
guardar cada detalhe, nesse momento eu também estou fazendo isso, querendo gravar a
cor dos seus olhos, a linda curva de sua boca grande e vermelha, só para o caso dele não
me querer mais aqui.
Inesperadamente, Rafael se levanta e caminha até a mesinha na entrada, pegando suas
chaves e carteiras. Isso faz com que eu me levante e questione o que ele pretende fazer,
mas o homem só se limita a sacudir a cabeça e murmurar algo sobre precisar de um
tempo. No final, acabo deixando ele ir.
Capítulo 21.

Fico esperando por ele durante horas, talvez tenha bebido alguns copos de uma
bebida qualquer que fica na cozinha, mas nem mesmo isso me faz relaxar. Só consigo
pensar nele, irritado, na rua, sem tomar seus remédios da noite.
Quando as uma da manhã chegam, eu estou quase entrando em colapso. E respiro
aliviada quando o homem passa pela porta. Meu alívio, no entanto, não dura muito, só
até que eu o encare com cuidado e veja seu estado. Os cabelos claros extremamente
bagunçados, a camisa um tanto amarrotada e as bochechas coradas me indicam que ele
bebeu muito mais do que está acostumado, o que com certeza é uma quantidade
significativa. Corro até a porta e seguro seu braço, levando ele até o sofá, onde se joga
de qualquer jeito.
No momento em que me sento em sua frente, Rafael entra no modo de bêbado sem
sentido, nada do que ele fala tem algum significado, mas mesmo assim continuo ali,
ouvindo.
— O bar estava muito cheio — afirma, balançando a cabeça. — As vendas foram
ótimas, Davi devia saber disso.
— Você foi beber no seu bar?
— Uhum — murmura, os olhos fechados. — Gata, ainda tem aquele sorvete de
morango?
— Tem sim. — respondo, me levantando. — Quer que eu pegue pra você?
Ele balança a cabeça, concordando em silêncio e eu vou em direção a cozinha,
pegando o sorvete para que ele possa comer. Quando volto, ele apenas murmura um
obrigada e se põem a comer o sorvete como se isso fosse a coisa mais gostosa do
universo.
Aos poucos, a bebida parece se esvair do corpo dele, e Rafael começa a melhorar um
pouco. Nesse ponto, ele passa de bêbado sem sentido para bêbado irritado, e mal olha
em meus olhos. Eu sinceramente não sei o que é pior, ele sem sentido ou irritado.
— Eu odeio você! — vociferou, passando as mãos pelo rosto.— Eu odeio que você
queira ir embora, que eu não seja o suficiente para fazer você ficar...
— Rafael, não é você — discordo, passando a mão em seu ombro. — Você é mais do
que suficiente, eu que preciso disso sabe?
— Por que você tá fazendo isso comigo? — O desespero em sua voz faz meu coração
doer, ele parece um menino desesperado. — Por que não pode me amar tanto quanto eu
te amo?
Não consigo responder sua pergunta, as palavras parecem engasgadas em minha
garganta, junto com todas as lágrimas que eu seguro. Depois disso, apenas nos
encaramos, durante vários minutos que parecem uma eternidade, talvez uma hora tenha
se passado, eu não tenho certeza. Mas durante esse tempo, tento realmente memorizar
cada detalhe do lindo rosto do homem a minha frente, e me questiono se o que eu quero,
o que eu preciso, realmente é ir embora, ficar sem ele por tanto tempo, sem meus
amigos, completamente sozinha em um mundo que eu não conheço. Pensar nisso me
causa medo, mas junto vem uma pequena euforia que aos poucos vai ultrapassando o
desespero em ficar sozinha. E nesse momento, mesmo com toda dor em precisar deixá-
lo, eu tenho certeza que preciso ir embora, é o certo a se fazer.
Quando já está quase amanhecendo, Rafael finalmente chega ao estágio de bêbado
triste e desata a chorar.
— Rafa, o que foi? — Meus braços rodeiam seu corpo grande. — Não chora, por favor.
— Eu... Eu... Não sei ficar... — Os soluços fazem com que suas palavras saiam com
dificuldade. — ... Sem você.
— Eu também não sei ficar sem você — sussurro em seu ouvido. — Mas acho que
vamos precisar aprender, Rafinha.
— Não vai, por... Favor.
Depois disso, todas as suas palavras se tornam incompreensíveis devido ao choro alto
e os soluços. Ver Rafael, esse homem tão forte e seguro de si, chorando como um
menininho que acabou de perder o que mais gosta na vida faz com que eu não possa
mais controlar meus sentimentos, e várias lágrimas escorrem em sequência por meu
rosto, molhando seus ombros da mesma forma que as suas molham os meus.
Quando nossas lágrimas diminuem, ele aceita minha mão esticada e me acompanha
para o quarto, onde deita e me chama para seu lado. Nesse momento, mesmo com o
desconforto de nunca ter dormido com alguém, de ter a proximidade de um homem, eu
decido me deitar, tenho vontade de me deitar ao lado dele e passar a noite ali, e é o que
faço, deixando de lado minhas inseguranças. Rafael me abraça com força, como se
tivesse medo de que, se me soltar, eu vá embora. Essa noite é uma das mais difíceis que
tenho na vida, dividida entre a felicidade de conseguir dormir abraçada com ele e a
tristeza em saber que provavelmente essa será a primeira e única vez.
Na manhã seguinte desperto sozinha na cama, o lado de Rafael está frio, o que me diz
que ele já está de pé a horas, e Deus sabe onde está nesse momento.
Me levanto sem pressa, querendo enrolar um pouco nas coisas mais simples da vida,
evitando o caos que será essa semana. Quando finalmente saio do quarto e caminho até
a sala, encontro uma cena que não esperava. O homem está de costas para mim, a
cabeça baixa enquanto ele mexe em algo no fogo, parece concentrado e não ouve minha
chegada.
Me aproximo lentamente, fazendo um pouco de barulho, o que faz com que ele
finalmente me note. O sorriso no rosto de Rafael me surpreende de muitas formas,
estava esperando um homem irritado e de ressaca, e o que encontro é apenas o mesmo
homem carinhoso de sempre.
Ele se aproxima de mim, deixando um beijo leve em meus lábios, e
involuntariamente eu sorrio, me aproximando, querendo mais.
— Ia levar o café na cama pra você — sussurra contra meus lábios, deixando mais um
beijo. — Achei que dormiria um pouco mais.
— Café na cama? — murmuro, sorrindo. — Parece ótimo, acho que vou voltar pra lá
então.
— Faz isso, gata.
Não perco tempo e vou correndo para o quarto, me deitando por baixo da coberta.
Nesse momento não quero tentar entender a mudança de humor repentina de Rafael, e
se ele quer fingir, pelo menos por algumas horas, eu não ligo de entrar nessa junto com
ele.
Alguns minutos depois, o loiro adentra o quarto com uma bandeja repleta de frutas,
pães, geleia e café. O cheiro faz meu estômago roncar, e ele solta uma risadinha.
Comemos tudo em silêncio, sentados um de frente para o outro enquanto trocamos
sorrisos e olhares. Se tudo fosse tão fácil, se eu não fosse quem sou, gostaria de ter isso
todos os dias, o carinho, os olhares, as risadas. Tudo parece tão... Perfeito.
Depois de nosso café silencioso e cheio de carinho, Rafael pede que eu continue ali
enquanto ele deixa tudo na cozinha. Quando volta, ainda traz um sorriso no rosto, mas
parece um tanto desanimado. Ele se senta à minha frente e puxa meu pé para uma
massagem que faz com que eu relaxe imediatamente. Apenas fecho os olhos e aproveito
o aperto dos seus dedos e o carinho subindo por minha perna.
— Eu passei a manhã todo pensando. — Ele finalmente se pronuncia. — E apesar de
isso tudo me doer muito, percebi que estava sendo injusto com você.
— Injusto? — Meus olhos estão abertos, encarando os dele.
— Sim.— Balança a cabeça em afirmativa. — Eu não quero que você vá embora, claro
que não. Mas o que posso fazer? Você tem razão, precisa se descobrir, ter sua vida. E eu
não sou a melhor pessoa do mundo pra te ajudar nesse caminho, mesmo que você diga o
contrário. Eu tenho muitos problemas com meu TEI que mal sei lidar, como poderia
ajudar você?
— Acredite, você ajuda.
— Fico feliz que pensa assim, mas sei que eu também preciso me cuidar, resolver meus
problemas. — Ele dá de ombros, ainda massageando meus pés. — E se você quer ir,
não vou ser o namorado chato que impede a garota de ter uma vida. Vou te apoiar, e
pode apostar, vou sentir toda a dor do mundo em deixar você ir, mas ainda assim vou
estar lá pra me despedir de você.
Ouvir isso faz com que eu fique mais calma, e me sinto cada vez mais preparada para
seguir meu caminho. Eu sei, no entanto, que voltarei em algum momento. Só preciso de
tempo, talvez meses, ou anos, não sei ao certo. Mas em algum momento voltarei.
Uma pequena parte egoísta minha quer que Rafael me espere, que ainda me ame tanto
quanto nesse momento, mas não posso pedir isso, não posso pedir que ele sacrifique
qualquer chance de seguir em frente, de ser feliz, por uma pessoa que nem sabe quando
voltará para ele.

A partir desse dia, me sobram apenas uma semana para terminar os preparativos para
minha viagem. As passagens já estão compradas e as poucas roupas que tinha comprado
nos últimos meses com meu trabalho estão separadas. Não quero levar as roupas que
Rafael comprou para mim, acho errado levar algo que ele comprou enquanto eu estou
de certa forma o deixando, e quando ele insiste, é isso que digo a ele, e também que não
posso viajar o mundo com várias malas. No final de tudo, as coisas que levarei cabem
em uma mala de mão, apenas algumas roupas, um par de sapatos e de chinelos além dos
que vão em meus pés, alguns livros e objetos de higiene pessoal, é tudo que eu preciso.
Quando finalmente anoitece, Rafael me incentiva a ir até o apartamento de nossos
amigos e contar para os irmãos, e para Amanda, meus planos. Isso me aterroriza um
pouco, mas enrolar só trará problemas, e o que eu menos preciso nesse momento é isso.
Por isso, ligo para Amanda e peço que me encontre no apartamento de nossos amigos,
logo depois de perguntar a eles se podemos ir até lá.
Alguns minutos depois eu e Rafael já estamos sentados no sofá de nossos amigos, com
eles a nossa frente, enquanto esperamos por Amanda, que não demora a chegar.
Depois de todos os cumprimentos, cada um se joga em um canto, me olhando e
esperando que eu fale. Tenho que respirar fundo várias vezes, minhas mãos tremem e eu
me sinto um pouco tonta, Rafael sussurra em meu ouvido que isso é uma crise de
ansiedade, que eu devo ficar calma e me concentrar em sua voz, que nenhum de nossos
amigos me julgará por minha decisão. Aos poucos, minha falta de ar e tontura vão
diminuindo, mas a forma que minhas mãos tremem é preocupante. Dou um pequeno
sorriso para Rafael, e sua mão se enlaça a minha. E isso é tudo que eu preciso, como
uma dose de coragem, então finalmente começo a falar.
— Vocês sabem que ainda estou tentando lidar com tudo que meu pai fez comigo. —
Engulo em seco. — Durante esses quatro meses, tudo que fiz foi tentar encontrar uma
direção em meio ao caos que ele deixou. E sei que vocês enxergam o quanto é difícil
para mim.
— Sim. — Elisa concorda, balançando a cabeça minimamente.
— Então, nas últimas semanas, eu... — Solto o ar com força, e sinto o aperto da mão de
Rafael na minha. —... Eu comecei a me questionar sobre quem eu sou, o que eu quero
pra mim, e percebi que não sei, não sei nada sobre mim mesma. — Meus olhos baixam
para minhas mãos. — E eu percebi que se quero me encontrar de verdade, preciso estar
sozinha.
— Sozinha? — O moreno parece confuso enquanto questiona. — Sozinha como?
— Eu decidi que quero viajar, vou para alguns lugares do mundo, não sei muito bem
ainda. — Meus lábios se apertam. — Mas preciso ir sozinha, e não sei quando vou
voltar.
Os três parecem petrificados, em silêncio enquanto me encara com uma expressão
que diz que isso é o que menos esperavam.
Não aguento continuar os encarando, então direciono meu olhar para Rafael, e não
posso ter cometido um erro maior do que esse. Porque, enquanto a expressão de meus
amigos são de puro choque, a dele é terrivelmente dolorosa, como se estivesse
torturado, com dor. Isso parte mais um pedacinho do meu coração, o que eu não acho
que ainda é possível. Depois de muito tempo, alguém finalmente fala.
— Se é isso que você quer, eu te apoio. — A voz de minha melhor amiga é o maior
alívio que posso ter.— Dói muito pensar em você longe, sozinha. Mas se você sente que
precisa disso, então vai ter todo o meu apoio.
— Obrigada. — O meu sorriso é real em sua direção. — Significa muito pra mim.
— Só me promete que vai voltar um dia.
— Eu volto, prometo.
— Quando? — Davi questiona, o que faz com que eu o encare. — Quando você vai?
— Em uma semana — sussurro, um tanto nervosa.
— Uma semana. — Ele parece falar consigo mesmo, a cabeça baixa. — Só uma
semana...
— Davi. — A irmã do garoto finalmente se pronuncia, segurando a mão dele. —
Família sempre apoia a família. Se Maya precisa disso, então iremos apoiar e amá-la.
Suas palavras fazem com que meus olhos se encham de lágrimas e não posso
controlar quando algumas delas escorrem, logo sendo limpas pelo homem ao meu lado.
Agora, Davi e Elisa se encaram de uma forma que me diz que estão se comunicando
apenas pelo olhar, uma coisa possível só quando se convive com alguém por tanto
tempo, assim como eles. Não demora muito para que finalmente me encarem, Elisa traz
um sorriso triste no rosto, já Davi não se preocupa em sorrir, apenas me encarando de
forma séria, mas com carinho.
E nesse momento, eu sei, não importa onde eu for, quem eu for, eles me apoiarão,
esses quatro serão minha verdadeira família, a família mais incrível e disfuncional que
alguém pode ter, mas ainda assim uma família. Estamos ligados de uma forma que
supera qualquer laço sanguíneo, e isso é tudo que eu posso pedir. Como família, nos
apoiamos, nos amamos, cuidamos um dos outros.
Nos abraçamos várias vezes no dia, muitas vezes sem querer soltar. Explico diversas
vezes sobre meus planos de viagem, mas me recuso a contar sobre o lugar que vou. É
uma noite feliz e triste, eu vejo no olhar e nos movimentos de cada um, inclusive nos
meus, o quanto é difícil a separação, mas ainda assim rimos, vemos TV e tomamos uma
ótima bebida.
Capítulo 22.

A semana se passa rápido como nunca, e cada momento é precioso. Não trabalho nessa
semana, aviso a Luciana que vou sair do país por um tempo, ela me deseja toda sorte do
mundo e ainda ganho um lindo vestido da coleção de uma cliente sua. Meus amigos se
recusam a ficar longe de mim, por isso Rafael deixa o bar sobre os cuidados de um de
seus funcionários, além de dar folga para Davi. Amanda e Elisa não podem faltar suas
faculdades, mas ficam todo o resto do tempo comigo, até mesmo a ruiva, que convence
os pais de deixarem ela ficar durante toda a semana por aqui. Assistimos muitos filmes
de terror, fazemos receitas especiais para nossas jantas e bebemos mais vinho do que
deve ser considerado saudável. Rafael me compra mais caixas de chocolate do que eu
consigo comer, o que não pode me deixar mais feliz.
Dois dias antes de minha viagem, tenho mais uma mochila cheia de coisas, um vestido
que Luciana me deu, uma camisa que Elisa fez na faculdade e decide me presentear,
uma garrafa do uísque que eu costumo beber no bar — Cortesia do Davi, que afirma
com muita convicção que eu devo levar uma bebida para os primeiros dias.
No próximo dia, eles farão uma pequena festa de despedida para mim, mesmo que eu
tenha relutado no começo. No final de tudo, acabo aceitando pelo fato de não ser
realmente uma festa, será só nós cinco, um pouco de bebida, comidas e músicas, tudo
dentro do apartamento dos nossos amigos.
Passo o dia com minhas duas amigas, compramos tudo que é necessário, tirando as
bebidas, já que esse trabalho é designado para Rafael e Davi. No final do dia, ficamos
todos juntos novamente, um pote de sorvete passa de mão em mão enquanto assistimos
o filme de romance preferido de Amanda, que ela já tinha feito com que eu assistisse
mil vezes durante toda nossa adolescência. Na hora de dormir, eu e Rafael caminhamos
sozinhos para seu apartamento. Dentro do elevador, minha cabeça fica encostada em seu
ombro enquanto seu braço rodeia minha cintura, me passando todo conforto que eu
preciso. No final da noite, não vou para meu quarto, assim como todos os dias da
semana, deitamos juntos em sua cama, nossas pernas enroladas uma nas outras enquanto
nos beijamos até pegarmos no sono.
O dia seguinte se inicia com muita animação, o que de certa forma é surpreendente,
acho que nesse momento ainda não estamos sentindo toda dor da separação, não
percebemos que na manhã seguinte eu estarei seguindo outro caminho, um caminho
solitário, que não envolve nenhum deles. Tomamos café juntos, fazemos as unhas,
inclusive Rafael e Davi, que parecem estranhamente animados com o dia de beleza. No
meio do dia, começamos nosso almoço, enquanto Davi faz a maior parte da comida, eu
ajudo a cortar os legumes, Rafael mexe em um molho para ele e Amanda e Elisa ajeitam
a sala para que possamos comer lá. Tudo fica pronto rápido, como tudo parece estar
sendo hoje, rápido demais, como se o tempo estivesse contra nós.
Almoçamos enquanto conversamos, e minha viagem se torna um assunto recorrente na
conversa.
— Você não vai mesmo contar pra onde vai? —Davi questiona, me fazendo balançar a
cabeça em negação. — E se acontecer algo e você precisar da gente? Como vamos saber
onde você tá?
— Eu posso ligar, mandar uma carta. — Dou de ombros, mas por dentro, isso é algo
que eu temo. — Vai ficar tudo bem, não precisa se preocupar.
— Eu aposto que você vai primeiro para um lugar quente — afirma a ruiva ao meu lado.
— Levaria mais roupas de frio se fosse para um lugar gelado.
— Faz sentido. — A namorada da garota concorda, dando um beijo em seu rosto. —
Meu amor, tão esperta.
— Vocês são fofas.
— E você é fofa demais, amiga. — A morena aperta minha bochecha, me fazendo
gemer em descontentamento.
— Mas então, é um lugar quente mesmo? — O loiro ao meu lado questiona.
— Sim.— Reviro os olhos, arrastando a palavra. — É um lugar quente.
— Los Angeles.
— Califórnia!!
— Bangkok?
— Texas!
— Índia?
Todos os quatro começam a listar todos os lugares quentes que conseguem lembrar,
até os que nem são tão quente assim. Eu apenas espero, rindo enquanto eles discutem se
algum estado é realmente quente ou não. Quando desistem de discutir, finalmente me
encaram, esperando uma resposta que sabem que não virá.
— Pode ser qualquer um desses.— Dou de ombros.— Quem sabe, não é?
Suas expressões de indignação me fazem rir, e logo todos estamos em uma crise boba
de risadas.
Depois do almoço, arrumamos tudo que está fora do lugar, e logo começamos a
preparar as coisas para nossa pequena festinha de despedida, enquanto corto o queijo
para nosso molho, vou aos poucos me desanimando, já sentindo a tristeza de precisar ir
embora na manhã seguinte. Quando a noite chega, tudo está pronto. A cozinha está
repleta de travessas e panelas cheias de comidas mexicanas, que Davi insistiu em fazer
quando descobriu que eu gosto da culinária.
Aos poucos, nos servimos de tacos, nachos com molho de queijo e guacamole e várias
outras coisas. Tudo está uma delícia, como sempre fica quando Davi cozinha. Bebemos
vinho e cerveja, o que eu não sei se é uma boa ideia devido a mistura de álcool, de toda
forma, acabo bebendo no final.
No fim da noite, mesmo depois de comermos demais e bebermos uma quantidade
obscena, decidimos jogar um jogo de dança que meus amigos tem em casa, o que acaba
sendo um desastre, talvez estejamos um pouco bêbados, e isso faz com que esbarremos
um nos outros e erramos toda a coreografia. Em certo momento finalmente desistimos
quando percebemos sermos casos perdidos, mas não deixamos de rir por isso.
Tudo parece incrível, estamos felizes, como se tudo não estivesse prestes a acabar,
como se eu não fosse me despedir deles dali a horas.
Quando já é madrugada, tarde demais para ainda estarmos acordados, decidimos
dormir. Jogamos colchões e cobertas no chão da sala, e deitamos ali, todos juntos.
Rafael fica abraçado a mim, ao meu lado estão Elisa e Amanda e logo depois Davi,
agarrado a um travesseiro.
Dormir durante a noite toda é difícil, acordo várias vezes e observo meus amigos
dormindo, pensando quando os verei de novo, quanto tempo eu demorarei para
conseguir ter um vida normal. Por um momento, fico com medo de que eu nunca
melhore, de que o que meu pai tinha me feito tenha me quebrado para o resto da vida.

O dia seguinte em fim chega, todos estamos de pé quando ainda é bem cedo, mas
ninguém parece especialmente animado, pelo contrário, quem vê, pode afirmar que
estamos indo para um funeral. Tomamos café em um silêncio que no fundo diz muito.
Cada segundo desse silêncio diz o quanto isso doí em cada um de nós, como machuca
termos que nos afastar.
A primeira a se levantar é Elisa, afirmando que vai se arrumar, afinal, temos pouco
tempo. Rafael e eu saímos logo depois, indo para seu apartamento, onde reviso tudo que
preciso e levo minhas coisas para sala enquanto ele toma banho. No entanto, não
consigo controlar minhas pernas quando elas me levam diretamente ao quarto dele, que
nos últimos dias se tornou nosso quarto. O cheiro do perfume de Rafael está por todo o
lugar, como sempre fica aqui. Tudo está arrumadinho, como ele faz questão que esteja.
Por um momento, fecho os olhos, inspirando o cheiro que eu tanto amo, sabendo que
demorará muito tempo para senti-lo de novo. E imagino. Imagino nós dois ali, tomando
café na cama juntos todos os dias, nos beijando e dormindo lado a lado. Cada
imaginação faz com que meu coração doa um pouco mais, e tenho que respirar fundo
algumas vezes para que as lágrimas não caiam.
Quando Rafael sai do banho, é a minha vez de me arrumar. Faço isso rápido, estou
nervosa, ansiosa demais. Quando finalmente fico pronta, encontro com o loiro na sala,
onde ele está sentado no sofá, a cabeça pende entre as mãos. Parece derrotado, e isso me
faz questionar se estou fazendo a escolha certa. Me aproximo dele e sento ao seu lado,
acariciando seu ombro lentamente com um pequeno sorriso triste no rosto. Ele levanta a
cabeça e sua expressão espelha a minha, o pequeno sorriso em seu rosto não tem nada
de felicidade.
— Está pronta pra ir?
— Não sei — sussurro, todos os meus medos na borda.
— O que falta? Quer que eu pegue?
— Não falta nada, eu só... — Estico as mãos, dando de ombros. — Vai ser difícil.
— Com certeza, amor — afirma, sua mão agora está em meu rosto. — Mas se é isso
que você precisa fazer pra se encontrar, vai valer a pena.
— Espero que eu não esteja cometendo um erro — admito, logo completando. — Tô
morrendo de medo.
— Eu também tô. — Ele admite com um sorrisinho. — Pensar em você longe,
sozinha... Me dá um puta medo. Mas vai dar tudo certo, pode apostar.
— Acho que sim.
Minha fala de longe sai verdadeira, e nós dois sabemos disso enquanto nos encaramos
em silêncio. Tento memorizar cada traço do homem a minha frente, desde o tom de
loiro queimado do cabelo aos olhos tão incomuns e a boca grande e rosada, cheia de
pequenos cortes vermelhos, que eu sei serem cortesias de seu TEI. Ele é perfeito,
totalmente perfeito. E eu... Meu Deus... Eu o amo, não como amigo, não só como
família, eu realmente o amo, como se ama um namorado.
Essa constatação me choca durante os primeiros segundos, mas aos poucos vou
percebendo que já sei disso tem muito tempo, que eu o amo desde muito antes, que só
não tinha admitido para mim mesma antes. Meus olhos se enchem de lágrimas, as
últimas horas finalmente chegaram e eu não estou nem um pouco preparada. Um
pequeno soluço sai por meus lábios, o que faz o loiro se aproximar mais, me abraçando
com força. Isso faz com que todas as lágrimas que eu seguro desçam por meu rosto.
— Shhh, calma amor. — Seus lábios deixam um beijo no topo de minha cabeça. — Vai
ficar tudo bem.
— Eu...Rafael eu... — Os soluços tornam difícil pronunciar as palavras. — Rafael... Eu
te amo.
Na mesma hora, ela me solta, a expressão de choque em seu rosto faz com que eu me
sinta nervosa, arrependida de ter dito isso logo agora, quando estou prestes a ir embora.
E se ele se sentir culpado por não me amar também mas disser o mesmo só por que eu
estou indo?
Não, não, Rafael não faria isso comigo. Ele é sincero, sempre me conta o que sente ou
acha.
Volto a encará-lo, a expressão de choque sumiu, dando espaço para uma mais suave,
como se estivesse apenas um pouco surpreso. Ainda assim, é difícil ler seus
sentimentos, Rafael sempre foi bem claro em tudo que sente, por isso nunca precisei
decifrar suas expressões confusas.
— Eu...Você... — Gesticula com as mãos em minha direção, a boca aberta em dúvida.
— Você me ama.
— Sim.— Minha voz sai tímida.
— Uau. — Ele solta o ar, encarando as pernas. — Eu não esperava por isso.
— Tudo bem, eu não devia ter dito isso mesmo.
— Não! — A urgência em sua voz me surpreende, e vejo seu dedo se erguendo
enquanto pede que eu espere. — Não diga isso. Você me falou o que sente, nunca se
retraia, mesmo que o outro não sinta o mesmo.
— Então você não sente o mesmo. — Balanço a cabeça, sussurrando.
— Sinto, claro que sinto amor. — Suas mãos param em minhas bochechas. — Eu te
amo, te amo tanto que você não tem noção do quanto.
— Mas... Você disse...
— Eu não quis dizer o que você entendeu. — Uma risadinha boba sai de seus lábios —
Eu te amo, já faz muito tempo.
— Rafael.
Minha voz sai baixinha enquanto eu encaro seu rosto, e ele não espera para me beijar.
Nossos lábios se conectam da forma perfeita como sempre é, mas dessa vez a sensação
é ainda mais intensa. Pensar que esse beijo será um dos nossos últimos durante sabe se
lá quanto tempo faz com que as lágrimas escorram fortemente por meu rosto, e não
demora muito para que as do homem se misturem as minhas.
Toda nossa emoção está nesse beijo, entre as palavras não ditas. Tem tanta dor, tantas
formas de despedida, e ao mesmo tempo tanto amor. É especial, tão especial como pode
ser, e mesmo com todas as lágrimas meu coração se acalma um pouco. Eu ficarei bem,
ele também. Mesmo longe, teremos uma vida e um caminho gigante para percorrer,
juntos ou não.
Quando nos separamos nossos rostos estão marcados pelas lágrimas já secas, e um
sorriso triste estampa a expressão dos dois. Damos outro pequeno abraço e ele
finalmente se levanta, a mão se esticando em minha direção. Apoio a minha mão sobre
a sua e cada um de nós pega uma bolsa, ele com minha mala e eu com a mochila nas
costas. Saímos dali enquanto eu encaro o apartamento, que durante poucos meses tinha
sido meu, meu e de Rafael. Um pequeno sorriso se faz em meu rosto enquanto me
lembro de todos os momentos bons que vivemos ali, mas não me permito chorar, não
vou manchar esses momentos com dor e lágrimas.
Encontramos nossos amigos em seu apartamento, Davi, Elisa e Amanda estão jogados
no sofá e parecem desanimados demais até para conversar. Quando paro em frente a
eles, todos levantam seus olhares para mim e a expressão de tristeza em seus rostos é o
suficiente para fazer com que a vontade de chorar volte, toda essa situação está me
deixando muito emotiva. Em silêncio, cada um se levanta e me abraça, e no final de
tudo estamos os cinco agarrados em um abraço de despedida. Quando penso em tudo
que perderei enquanto estiver longe meu coração se aperta mais um pouquinho. Vou
perder a formatura de Rafael, talvez a de Amanda e Elisa. Perderei os aniversários, os
natais, os fins de anos. E todos os dias comuns, aqueles em que só assistíamos filmes,
enrolados em cobertas quando estava frio demais. Os pequenos momentos são os mais
importantes, e eu vou perder muito deles.
Quando nos afastamos, limpo algumas poucas lágrimas e digo a mim mesma que não
chorarei mais, que não posso voltar atrás.
Saímos todos juntos, e vamos no carro de Rafael, com ele e eu na frente e nossos
amigos no banco de trás. Durante o caminho de pouco mais que meia hora até o
aeroporto, que parece pouco demais para podermos nos despedir, nós conversamos e
rimos muito, como se fingindo que nada está prestes a acontecer.
Mas o carro finalmente para no grande estacionamento do aeroporto, e tenho que
respirar fundo muitas vezes antes de virar meu rosto de forma que possa encarar a todos
eles. Mesmo assim, minha voz sai mais embargada do que gostaria.
— Bom... — Meus lábios se apertam. — Parece que é isso, não é?
— Parece que sim. — A fala de minha amiga é cheia de dor. — Vamos te levar até a
porta.
— Isso, vamos. — A morena concorda, apontando com a cabeça para a grande entrada.
Caminhamos lado a lado até a porta que me levará para longe deles, uma de minhas
mãos é segurada por Rafael, e a outra por Davi, minhas duas amigas seguem logo ao
lado do homem. Nossos passos são lentos, todos sabemos que esses são os últimos
minutos e estamos enrolando. Mas não demora tanto quanto eu quero, e logo me vejo
parada ali, na entrada do lugar que me levará em minha aventura, a primeira, a que
mudará toda minha vida.
Solto a mão dos homens ao meu lado e me viro para eles. Essa é a imagem perfeita de
como será os próximos dias, eles estão enfileirados de um lado, meus amigos, minha
família, os quatro juntos. E eu estou do outro, totalmente sozinha, prestes a iniciar a
jornada mais difícil e solitária possível.
A expressão em seus rostos é de derrota, como se só agora conseguissem perceber a
realidade, que estão perdendo uma parte de si, uma parte da família. Porque eu sei, eu
sei que para eles eu sou como uma irmã, não só como a garota que caiu de para-quedas
ali, não só a amiga de infância, ou a garota que tinham salvado, eu sou uma parte deles,
uma parte do grupo que tínhamos formado.
Nesse momento, apesar da dor, não consigo deixar de ficar agradecida, cada um dos
quatro tinha me salvado de alguma forma, cada um deles tinha feito com que eu
continuasse de pé por mais um dia, fizeram com que eu me sentisse menos sozinha,
como se eu pertencesse a algum lugar. Cada um deles me acolheu como família, e isso
era mais do que eu poderia pedir.
Nesse ponto, eu já não controlo mais minhas lágrimas nem meus soluços altos, e
novamente, um a um, eles se aproximam para me abraçar, e ficamos ali, juntos pela
última vez antes de eu finalmente partir. Aos poucos meus amigos vão me soltando, e
vejo que esse é o último momento de despedida. Quando todos se afastam um pouco,
Rafael faz questão de se aproximar mais, seus braços me apertam com força, como se
ele tivesse medo que eu sumisse da sua frente. Um beijo é deixado primeiro no topo de
minha cabeça, depois em minha testa, bochechas, e finalmente em meus lábios. O beijo
tem gosto salgado, nossas lágrimas se misturando em uma das despedidas mais
dolorosas da minha vida.
Demoramos a nos afastar, mas quando fazemos isso, a expressão em seu rosto é
encorajadora, apesar das lágrimas. Eu sei o quanto doí para ele me deixar ir, e mesmo
assim Rafael me apoia. Acho que nesse momento, me apaixono ainda mais por ele. O
sorriso em seu rosto diz que não importa o que eu faça daqui pra frente, ele me apoia,
que não importa se ele vai perder a garota que ama, que vamos perder a oportunidade de
viver um dos amores mais puros que eu já tenha visto, ele seguirá me apoiando para
sempre, mesmo que eu esteja a milhares de quilômetros de distância. Essa é a maior
prova de amor que já recebi.
— Te conhecer foi a melhor coisa que já aconteceu na minha vida, sabia?— Balanço a
cabeça em discordância, achando isso uma besteira, eu não sou tão especial assim.—
Foi mesmo, você é a melhor coisa... Eu sei que você acha que eu que te salvei, mas isso
não é verdade amor, porque foi você que me salvou, você que me deu vida, me deu luz.
— Aah Rafael. — Meu tom está cheio de amor e tristeza.
— Você alegrou todos os meus dias durante esse um ano que nos conhecemos, até
quando não estávamos um com o outro. — O homem balança a cabeça, com um sorriso
nos lábios. — Você é incrível, uma das mulheres mais incríveis que já conheci, e
merece o mundo todo pra você, ragazza. Me dói te deixar ir embora, mas sei que é
necessário, então se em algum dia estiver se sentindo mal e sozinha em algum país do
mundo, lembre-se que eu estou daqui desejando tudo de bom, que você é amada por
alguém, que é apoiada.
— Você me deu tudo que eu poderia pedir Rafael. — Meu lábios tremem com o choro.
— Me deu minha liberdade, me deu a oportunidade de um futuro, me deu uma família
incrível, amigos incríveis. Eu nunca vou poder te agradecer completamente por isso,
mas acredite, vou ser agradecida durante todos os dias da minha vida. Você me
apresentou o amor, algo que eu nem sabia mais se existia, você me fez feliz, você me
faz feliz, e é por isso que eu te amo, porque nos pequenos detalhes, você me deu o
mundo, me deu muito mais do que eu poderia pedir. Você é o melhor homem que eu já
conheci, e merece tudo de melhor. Obrigada por transformar toda a minha vida, por me
dar minha liberdade, por tudo que fez.
— Eu te amo demais, meu amor. — Mais um abraço forte e ele volta a sussurrar em
meu ouvido. — Demais mesmo, eu te amo, eu te amo...
— Eu te amo. — Balanço a cabeça, cheia de lágrimas no rosto.
— Eu realmente não quero me afastar de você. — Um risada rouca, que mostra o
quanto ele segura as lágrimas, sai por seus lábios. — Mas nossos amigos querem se
despedir.
— Eu sei — sussurro, sem soltá-lo. — Eu sei.
É ele quem finalmente se afasta, dando espaço para que nossos amigos se aproximem.
A primeira é Amanda, jogando os braços sobre meus ombros e me puxando para perto
com força, seu choro é alto e claro e machuca. Pela primeira vez em vinte anos vamos
nos afastar, e isso é como uma faca cortando meu coração. Eu sei o quanto dói nela
também, por isso esfrego a mão em seus cabelos, tentando consolá-la de toda forma
possível. Ouvir seus soluços está me matando.
— Você vai voltar, não é? — As palavras saem um tanto confusa devido ao choro.
— Sim. — Balanço a cabeça freneticamente. — É claro que sim.
— Por favor volta, eu não consigo ficar o resto da vida sem minha melhor amiga. —
Sua cabeça balança em desespero. — E eu sei que você disse que vai trocar seu número
assim que chegar em sei lá onde, mas guarda o nosso, liga quando precisar, nós vamos
correndo seja onde for.
— Eu sei disso, não precisa se preocupar, tá bom?
— Impossível.— Seu dedinho se estica em minha direção, e enrosco o meu nele. — Pra
sempre, melhor amiga.
— Pra sempre. — Uma piscadela é lançada em minha direção.
— Eu te amo.
— Eu também te amo.
Ela se afasta, a mão apertando o ombro da namorada enquanto se vira e caminha para
um pouco longe de mim. Elisa se aproxima com um sorriso nos lábios, de todos ali, ela
parece a mais calma e centrada, mas sei que nossa despedida também será difícil, me
despedir de todos aqui vai ser um sacrifício, e eu sei disso. Um abraço rápido é trocado
entre nós duas e as mãos dela seguram a minha enquanto me encara.
— Um caminho longo — Sua cabeça aponta para trás de mim. — Esse que você vai
seguir.
— Pois é. — Dou de ombros. — Vai ser doido, eu acho.
— Ah, com certeza — afirma, sorrindo.— E difícil também, mas você é durona, vai
aguentar.
— Ainda não sei — admito com um biquinho.
— Você é, sim. — Ela se inclina, sussurrando em meu ouvido.— Rafael ia morrer de
ciúme se ouvisse isso, mas conheça uns caras por onde for, beije, saía, se apaixone...
— Acho que não consigo me apaixonar por outra pessoa — confesso baixinho.
— Claro que consegue. — Ela sorri largo, se afastando. — Mostra pra esse mundo
quem você realmente é, loirinha.
— Obrigada. — Balanço a cabeça mais uma vez, em agradecimento.
A garota não responde, mas a mão que põem no coração, junto ao sorriso, me diz mais
do que qualquer palavra. Finalmente, Davi se aproxima, a expressão está neutra, o que
eu já sei que diz que ele está triste ou irritado demais mas não quer demonstrar. Nosso
abraço é longo, e ele me tira um pouco do chão, fazendo com que eu solte uma risada.
Quando nos separamos do abraço nos encaramos durante algum tempo, nossas
expressões vão de sorrisos a olhares estreitados e balançar de cabeça, sem nenhuma
palavra falamos tudo de mais importante.
— Estaremos te esperando, princesa.
— E eu vou voltar pra vocês — afirmo, com convicção.
— Eu sei disso. — O homem já está de costas, me encarando sobre o ombro. — Nos
vemos por aí gatinha, e quando voltar, vou fazer sua bebida com prazer.
— Vou cobrar — falo um pouco alto para que ele ouça, soltando uma risada.
— Pode cobrar. — grita de volta. — Nenhum barman pelo mundo vai fazer um uísque
com coca melhor que o meu.
— Eu sei disso, Davi.
Ele me lança um último olhar e para ao lado de Rafael.
Encaro os quatro uma última vez, e meu coração se enche de amor. Eles têm um ao
outro e ainda serão uma família, saber disso me acalma um pouco. Olho nos olhos de
cada um deles, todo meu coração está ficando aqui, com o barman que me deu minha
primeira bebida, o cara que implicava com minha identidade, minha amiga que me
salvou durante anos, e a garota que me fez dançar pela primeira vez em anos. São minha
vida, realmente todo meu coração.
Minhas mãos estão cruzadas contra o peito quando agradeço e dou o último adeus,
finalmente me virando enquanto puxo minha mala. Me aproximo da porta sem pressa,
mas sem olhar para trás, tenho medo de que, se olhar, acabe voltando e desistindo dessa
viagem.
Quando estou prestes a passar pela porta que me levará para meu futuro incerto, a voz
de Rafael se faz presente, ele me chama com um grito que acredito que todo
estacionamento ouve.
Me viro, parada ali, pouco antes de entrar, e volto a encarar meus amigos, meus olhos
focados principalmente no loiro.
— Não precisa de medo! Esse lugar pra onde você vai... — Seu dedo aponta em direção
ao aeroporto. — ... Esse mundo, nunca viu algo tão incrível como você. Mostra pra eles
toda a bondade que tem aí dentro, meu amor! Nós te amamos, e sua família tá aqui te
esperando.
As lágrimas caem sem que eu possa evitar e apenas consigo balançar a cabeça em
concordância freneticamente. Quando me demoro demais, Davi grita para que eu vá
antes que perca meu vôo, e é isso que faço, enquanto ouço as diversas despedidas
gritadas por eles, é um coro de “seja feliz” “beba muito em sei lá onde” “traga
presentes” “não suma”. Tenho certeza de que todos ali estão achando que eles são
loucos, e talvez até sejam, mas são tudo de mais especial que eu tenho.
Por minha demora em entrar, acabo chegando a fila para embarcar quase atrasada,
mas no final de tudo consigo entrar no avião. E sentada ali, olhando pela janela
enquanto espero que ele decole, me sinto finalmente pronta. Apesar de toda saudade que
eu sei que sentirei, mesmo que saiba que terei muitos momentos sozinha, em lugares
que nem conheço, me sinto corajosa pela primeira vez na vida, pronta para enfrentar
qualquer coisa. Talvez Elisa não esteja completamente errada em dizer que sou durona,
porque a partir desse momento, eu precisarei ser.
Pouco tempo depois, estamos no ar e eu estou acomodada em meu assento. Como não
posso mexer no celular, decido pegar um livro que tinha colocado em minha bagagem
de mão, que na verdade é uma mochila. Quando abro a grande mochila própria para
viagem não encontro logo meu livro, mas sim uma caixa de meu bombom preferido,
junto à uma carta que traz o nome de Rafael. Devoro cada uma das palavras, e a folha
branca fica um tanto manchada com as lágrimas que pingam ali. Tudo que ele escreveu
é lindo, emocionante, e encorajador. E quando acho que não posso amar mais Rafael,
essa carta me mostra que sim, meu amor por ele sempre crescerá.
Guardo ela entre as páginas de meu livro, e como cada um dos bombons enquanto
vejo um filme qualquer, o livro ficando para depois.
Aos poucos, o nervosismo vai diminuindo, dando espaço a uma grande euforia, eu
estou mais do que pronta para essa vida, esse é meu segundo recomeço, e eu irei
aproveitá-lo durante cada segundo.
Meu nome é Maya Rodrigues, o nome e sobrenome dados por uma mulher incrível, e
não terei medo, nunca mais aceitarei alguém me machucando.
Minha caminhada está prestes a começar, e eu não posso estar mais feliz por isso.

FIM
Epílogo.

Um ano depois, eu estou de volta à São Paulo. Minhas malas acabaram de ser jogadas
no chão do pequeno quarto de hotel, e eu encaro meu reflexo no espelho, me aprontando
para que possa ir ao meu primeiro destino.
Passo os dedos pelo cabelo, ajeitando ele. Os fios, que antes eram loiros e longos,
agora estão escuros como a noite e seu cumprimento não passa do meio das costas. Eu
estou diferente, mudei muito no último ano, mas não só na aparência. Quando se viaja o
mundo sozinha, ainda mais sendo mulher, precisa se aprender uma ou duas coisas.
Aprendi a me impor e não deixar que se aproximem de mim sem autorização, perdi boa
parte da minha timidez e me tornei uma mulher mais madura. E apesar de no começo de
minha viagem ser muito tímida e recatada, aprendi a lidar com o mundo lá fora.
Conheci caras, muitos que não queriam nada sério, outros que queriam, mas nada foi
para frente, troquei alguns beijos, algumas vezes até parti para outras coisas. Fiz
amizades, algumas que duraram todo o tempo em que fiquei em determinada cidade,
outras que duraram somente uma noite. Encontrei uma carreira, e me sinto
incrivelmente feliz com ela, comecei com a terapia, o que melhorou minha relação
comigo mesma e o mundo. Eu tinha, realmente, me encontrado.
Minha aparência, no entanto, reflete minhas mudanças internas, além do cabelo,
algumas poucas tatuagens foram adicionadas, e apesar de ainda ter um estilo recatado,
tenho mais coragem em alguns momentos.
Em um ano, vivi mais experiências do que em toda minha vida, e isso realmente me
mudou. Eu amo a vida viajando, a sensação de nunca saber o que esperar para o dia
seguinte pode ser agonizante, mas também é prazeroso.
É claro que sentia saudades em muitos momentos, tinha dias em que a única coisa que
eu queria fazer era pegar minhas coisas e voltar para minha cidade, principalmente
quando ligava para meus amigos e recebia diversas notícias, a formatura de Rafael, o
pedido de casamento de Elisa para Amanda, era muito difícil ouvir aquilo tudo sem
querer estar ao lado deles, mas não desisti do meu propósito. E nesse momento, olhando
toda minha trajetória durante o último ano, tenho toda certeza que essa foi a decisão
certa.
Quando finalmente estou pronta, sigo de Uber até meu destino, que não demora a
aparecer diante dos meus olhos. Parece o mesmo, mas está claro que deram um retoque
ou outro na pintura. Agora, como modelo profissional, só consigo pensar em como
ficaria ótimo algumas fotos tiradas aqui. Desço do carro e adentro o local, que está bem
cheio, o que não é tão incomum para uma sexta à noite. Não preciso olhar em volta nem
procurar muito, eu sei que eles estão aqui.
Caminho com confiança até o balcão principal, abrindo espaço entre algumas pessoas
de pé, algo que aprendi a fazer quando precisava me impor com homens que me viam
apenas como uma estrangeira ingênua. Me sento em um banco alto e bato sobre ele,
então um garoto vem me atender, quando recuso e digo que prefiro que um barman
específico me atenda, ele chama pelo homem, que se vira na mesma hora em minha
direção. A única mudança presente nele são os músculos, que cresceram
consideravelmente, de resto, parece o mesmo, o mesmo sorriso, a mesma postura
despreocupada e acolhedora. Eu realmente senti saudades, só ouvir sua voz a cada três
meses não foi o suficiente. A surpresa em seu rosto é um tanto engraçada e ele não
perde tempo em caminhar até mim rapidamente, quase correndo.
— Ei, será que você tem algo forte pra mim? — questiono, a nostalgia me batendo com
tudo.
— Algo forte, princesa? — O sorriso em seu rosto é impagável. — Que tal um uísque
com coca?
— É, acho que serve. — Dou de ombros, fingindo pouco caso. — Vamos ver se
encontro alguém que faça minha bebida bem.
Ele sorri, passando pelo balcão e se aproximando de mim, um longo abraço é trocado
entre nós, enquanto ele diz o quanto tinha sentido saudade e questiona o por que de eu
ter sumido. Logo o homem corre para perto da porta que dá para o depósito, gritando
com a cabeça lá para dentro.
— Ei cara, tem uma pessoa aqui querendo te ver!
Ele parece esperar a resposta de uma pessoa que eu já sei quem é, e logo depois volta
para perto de mim, me abraçando de novo e jogando um abraço sobre meu ombro
enquanto encaramos a porta.
Por um momento, me sinto completamente ansiosa, minhas mãos estão suando um
pouco e limpo elas na calça jeans apertada. Mas isso não dura muito, porque Rafael sai
dali vestido com as costumeiras calças jeans e uma camisa preta de botões, tão lindo
como sempre, a expressão séria, que diz que ele está totalmente no modo patrão. O
último ano me ensinou muitas coisas, e uma delas é que não tem nada demais em
admirar alguns homens, principalmente os muito bonitos assim como Rafael é.
Quando finalmente me vê, o homem paralisa, a boca aberta em completa surpresa, o
peito subindo e descendo me mostra que sua respiração está forte. De certa forma, ver
isso me deixa um pouco feliz, é bom saber que ele ainda se sente da mesma forma,
assim como eu. No fundo, ainda sinto um pouco de medo de voltar e encontrá-lo com
outra mulher, ou simplesmente não querendo nada comigo, já que não nos falamos a
quatro meses. Demora um tempo para que ele balance a cabeça, e finalmente se
aproxime em passos largos até mim. Seu abraço me tira do banco, e eu rodo meus
braços em seu pescoço, inspirando com força o cheiro que tanto senti saudade. O abraço
dele tem sido algo que desejei durante muitas noites, algo em que eu imaginava em
meus dias tristes.
— Senti saudades, Rafa — sussurro em seu ouvido.
— Eu também, gata. — Agora ele me encara, quando completa. — Você não deu
notícias esse tempo todo.
— Eu sei. — Balanço a cabeça. — Mas agora eu to aqui, não é?
— Sim, e isso é tudo — concorda apressadamente.
Um beijo é deixado em meus lábios e eu me envolvo ali, esquecendo de tudo em
volta, somente aproveitando o sabor de seus lábios e do beijo que tanto sonhei durante
todo o ano, aquele beijo que quis em todas as vezes que beijei outro cara. Eu morria de
saudade, pensava nele todos os dias, nos dias bons e nos ruins, Rafael sempre está no
meu pensamento. Quando nos afastamos, um sorriso estampa nossos rostos, e Rafael se
vira para Davi, ainda sem me soltar.
— Vamos fechar o bar, irmão — afirma, batendo contra o balcão.— Temos uma festa
de família para fazer hoje. Nossa garota voltou!
Ouvir isso aquece meu coração de uma forma inexplicável. É isso, eu estou de volta
ao lar, de volta para a minha família, de volta para o cara que amo. E dessa vez é para
sempre.

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