Você está na página 1de 44

Caderno de Formação

Jornada Nacional de Formação


para o

COMBATE AO RACISMO

caderno6.indd 1 11/23/12 3:49 PM


caderno6.indd 2 11/23/12 3:50 PM
“para continuar resistindo, os africanos submetidos ao cativeiro e seus
descendentes tiveram que refazer tudo, refazer linguagens, refazer parentescos,
refazer religiões, refazer encontros e celebrações, refazer solidariedades, refazer
cultura. Esta foi a verdadeira Grande Refazenda”.
3

Gilberto Gil, Pós CIAD – II Conferência dos Intelectuais Africanos e da Diáspora.


Brasília, Fundação Cultural Palmares - 2007

caderno6.indd 3 11/23/12 3:50 PM


Jornada Nacional de Formação para o
Combate ao Racismo

Partido dos Trabalhadores Fundação Perseu Abramo


Comissão Executiva Nacional Diretoria
Rui Falcão – Presidente Nilmário Miranda – Presidente
José Nobre Guimarães Vice-Presidente Elói Pietá – Vice-presidente
Humberto Costa Vice-Presidente Flávio Jorge Rodrigues da Silva – Diretor
Maria de Fátima Bezerra Vice-Presidente Iole Ilíada Lopes – Diretora
Elói Pietá Secretário-Geral Nacional Paulo Fiorilo – Diretor
João Vaccari Neto Secretário Nacional de Finanças e Planejamento Selma Rocha – Diretora
André Vargas Secretário Nacional de Comunicação
Paulo Frateschi Secretário Nacional de Organização
Iole Ilíada Secretária Nacional de Relações Internacionais
Vilson Oliveira Secretário Nacional de Assuntos Institucionais
Carlos Henrique Árabe Secretário Nacional de Formação Política
Renato Simões Secretário Nacional de Movimentos Populares
Jorge Coelho Secretário Nacional de Mobilização
Angelo D’Agostini Junior Secretário Nacional Sindical
Jefferson Lima Secretário Nacional de Juventude Escola Nacional de Formação do PT
4 Edmilson Souza Santos Secretário Nacional de Cultura
Julio Aquino Secretário Nacional de Meio Ambiente e Desenvolvimento Diretoria
Laisy Morière Secretária Nacional de Mulheres
Cida Abreu Secretária Nacional de Combate ao Racismo Carlos Henrique Árabe Secretário Nacional de Formação Política do PT
Elvino Bohn Gass Secretário Nacional Agrário Jorge Coelho Secretário Nacional de Mobilização do PT
Arlete Sampaio Vogal Selma Rocha Diretora da Fundação Perseu Abramo
Benedita da Silva Vogal
Fátima Cleide Vogal
Maria Aparecida de Jesus Vogal
Maria do Carmo Lara Vogal
Mariene Pantoja Vogal
Jilmar Agustinho Tatto Líder do PT na Câmara dos Deputados
Walter de Freitas Pinheiro Líder do PT no senado Federal

caderno6.indd 4 11/23/12 3:51 PM


Apresentação
O caderno da Jornada Nacional de esteira, denunciou a desigualdade entre refletir sobre as práticas discriminató-
Formação para o Combate ao Racismo traz negros e brancos como uma faceta dos rias submersas no cotidiano da classe
uma visão panorâmica da luta democráti- problemas sociais brasileiros. trabalhadora e a construir consenso
ca travada pelo setor petista do movimento e compromisso governamental para a
negro brasileiro para a ampliação da A denúncia da discriminação racial, expansão nacional da política pública de
cidadania de negras e negros na sociedade do preconceito ou do racismo ao longo ação afirmativa em toda a sua expressão e
brasileira. É, principalmente, um balanço dos anos 1980 fortaleceu a construção manifestação.
da trajetória da luta antirracista forjada de novas estratégias de luta, e o PT foi o
na convivência entre petistas para subsi- partido pioneiro com a criação da Secre- Essa Jornada de Formação traz ao
diar a primeira Jornada de Formação sobre taria Nacional de Combate ao Racismo conjunto dos petistas um momento singu-
a Questão Racial, que visa fortalecer o em 1995, ano do tricentenário da morte lar para expandir, conhecer, compartilhar
conjunto dos militantes petistas na luta de Zumbi dos Palmares. A cada Encontro experiências da história de negros e negras
pela igualdade racial no combate ao racis- Nacional do Partido dos Trabalhadores no PT, reconhecer novas visões historio-
mo e a qualquer forma de discriminação essa luta ganhou maior visibilidade e, no gráficas, subsidiar ativistas e gestores
a partir dos valores e da perspectiva do VII Encontro Nacional (1990), realizado em petistas na construção de uma política
socialismo democrático que queremos. São Paulo, a luta de combate ao racismo nacional de combate ao racismo com três
entrou nas resoluções nacionais não como dimensões importantes:
No século XXI , a crise do capitalismo um problema dos negros, mas como uma
continua degradando a qualidade de vida questão nacional a ser enfrentada por to-
dos trabalhadores nos vários continentes. dos os petistas e segmentos sociais. Esse Como uma tarefa política de todos
Sabemos que se instalou fortemente no
Brasil, América Latina-Caribe e África.
é um desafio para todo brasileiro. 1 os setores progressistas da socie-
dade brasileira;
Não é por acaso que em toda essa região O Partido dos Trabalhadores tem en- Com capilaridade potencial para 5
grande parte da população é não branca
e historicamente atingida pela explora-
frentado as mazelas do capitalismo e do
racismo fortalecendo a organização das
2 desenraizar o modelo estruturante
do racismo à brasileira; e
ção econômica e opressão das ondas de Com a abordagem histórica do nosso
3
lutas de todos os trabalhadores a partir da
ideário baseado na perspectiva do
racismo, sexismo, xenofobia, homofobia e perspectiva do socialismo democrático.
socialismo democrático.
diversas facetas de intolerância religiosa.
A Escola Nacional de Formação Política
O Partido dos Trabalhadores, nos últi- e a Secretaria Nacional de Combate ao
mos trinta anos, enfrentou a luta contra Racismo convidam todos ao debate teórico
todas as formas de desigualdade e, nessa sobre o racismo e a questão nacional, a

caderno6.indd 5 11/23/12 3:51 PM


Caderno de Formação

Publicação da Escola Nacional de Formação do PT e da Secretaria Nacional de Combate ao Racismo

Organizadores
Escola Nacional de Formação
Secretaria Nacional de Combate ao Racismo

Coordenação Editorial
Cida Abreu, Flávio Jorge Rodrigues da Silva, Selma Rocha

Produção de textos
Marcos Antônio Cardoso
Gevanilda Santos
Selma Rocha

Contribuição ao texto
Carlos Aluízio Gomes Falcão Pereira
Cida Abreu
Martvs das Chagas

Revisão: Marcia Melo

Projeto gráfico e diagramação:


Mandingas Comunicação

Ilustração:
Salamanda
www.mandingascomunicacao.com.br

Tiragem:
30 mil exemplares

Impressão:
Bangraf

São Paulo, outubro de 2012

caderno6.indd 6 11/23/12 3:52 PM


Sumário
1. Capitalismo e Escravidão
08
2. Uma perspectiva de Esquerda
na Luta Antirracista 18
3. O PT e a Questão Racial 25
4. A Luta Contra o Racismo e a Construção
do Socialismo Democrático
39
7

caderno6.indd 7 11/23/12 3:52 PM


Jornada Nacional de Formação para o
Combate ao Racismo

Capitalismo e Escravidão

caderno6.indd 8 11/23/12 3:53 PM


A acumulação primitiva foi um sistema colonial: baseado na su- bem o definiu Jacob Gorender, a
processo internacional gerado na bordinação da colônia à metrópole consolidação posterior do “escravis-
transição do feudalismo para o como condição do fortalecimento da mo colonial” não foi fruto da malda-
capitalismo que concentrou riqueza economia metropolitana. de humana, assim como a expansão
nas mãos da burguesia comercial ultramarina também não foi fruto
dos países metropolitanos. O pro- A relação entre a metrópole da vontade dos nobres europeus.
cesso de renascimento do comércio portuguesa e o Brasil teve como Ambas foram fruto do processo de
e a maneira pela qual a estrutura atividade inicial a produção agrí- constituição do capitalismo.
feudal reagiu ao desenvolvimento cola em larga escala, visando ao
comercial estiveram no centro da comércio europeu, e se apoiou no Assim, nas raízes históricas do
crise do feudalismo, a partir do trabalho compulsório – como no capitalismo encontram-se o tráfico
século XVI. conjunto da América. de seres humanos, a espoliação das
riquezas do continente africano
Nesse quadro se formam os Inicialmente, o cultivo e a fabrica- e a escravização nas Américas.
Estados Nacionais. Particularmen- ção do açúcar contaram com o tra- O que nos faz lembrar a frase de
te Portugal e Espanha se lançam balho indígena, que foi sendo subs- Malcolm X “não há capitalismo
à corrida marítima e comercial e à tituído pelo trabalho escravo. Tal sem racismo”, ambos estão in-
colonização como desdobramento substituição se deveu à diminuição separavelmente ligados e são os
da expansão comercial. Províncias dos indígenas, às dificuldades de fatores geradores das desigualda-
Unidas, Inglaterra e França, à me- aprisionamento e transporte, mas, des étnicas e econômicas.
dida que se formam como Estados fundamentalmente, ao papel do
centralizados, perseguem o mesmo tráfico negreiro no incremento do
caminho, inspirados todos pela comércio colonial e no processo de
A escravidão na África
Política Mercantilista. A doutrina acumulação da metrópole, uma vez 9
A escravidão na África não foi
mercantilista, de forte conteúdo que esta controlava o comércio de
socialmente dominante nem de-
normativo, amparava-se no prin- escravos.
mograficamente preponderante
cípio metalista, que identificava o
até que os europeus dessem início
nível de riqueza segundo a quanti- O tráfico passou a ser o principal
à grande empresa comercial do
dade de metal nobre existente em empreendimento do negócio co-
tráfico de escravos africanos pelo
cada nação. lonial nessa etapa de acumulação
Oceano Atlântico.
de capital. Essa avidez comercial
Tal orientação alimentou a com- desumanizou a população africana
petição entre os Estados absolu- escravizada e transformou seres

tistas e contribuiu para desenhar o humanos em mercadoria. Como

caderno6.indd 9 11/23/12 3:53 PM


Jornada Nacional de Formação para o
Combate ao Racismo

Na antiguidade o estrangeiro era uma forma de uma linhagem se De qualquer modo, um escravo
era passível de ser submetido à fortalecer diante de outra. A prática estava submetido a uma situação
escravidão. O fato ocorreu nas so- da escravidão dava preferência ao em que não podia transitar livre-
ciedades africanas, na Grécia e no aprisionamento das mulheres por mente. Devia fazer o que determi-
Império Romano. Nas sociedades procriarem e por sua habilidade em nava seu senhor, não tinha vontade
africanas estruturadas em torno cultivar a terra e preparar os alimen- própria e seu tempo era de seu
dos chefes de linhagens de paren- tos. Os filhos das escravas com ho- senhor ou de seu proprietário. Nes-
tesco em aldeias ou federações de mens livres da família do seu senhor sa situação, o escravo não era visto
aldeias, podiam viver estrangeiros, geralmente não eram considerados como membro da sociedade em que
capturados em guerras, e eram escravos. A princípio não tinham vivia, mas como um ser inferior e
subordinados a um senhor e deno- os mesmos direitos dos filhos das sem nenhum direito.
minados escravos. mulheres livres, trazendo a marca da
escravidão, mas a cada geração esta No seu percurso histórico, a Áfri-
As guerras foram a maior fonte ia diminuindo, até desaparecer. ca conheceu e estruturou diferentes
de obtenção do trabalho escravo. formas de relações sociais, entre as
No entanto, um homem podia per- Os escravos nas sociedades africa- quais diversos modelos de relações
der seus direitos como membro da nas podiam constituir castas, como de trabalho e de produção basea-
sociedade por outros motivos, como a dos Tuaregues no norte da África, dos no trabalho servil e escravo. As
condenação por transgressões e cri- que mineravam o sal, e os povos formas de escravidão foram tão va-
mes, impossibilidade de pagar dívi- Akãs no território de Gana, que riadas quanto complexas, tais como
das ou de sobreviver pela simples mineravam o ouro. Outros podiam doméstico-serviçal, burocrático-
falta de recursos. Nessas condições, se destacar como condutores de -militar ou econômico-produtora.
10 as pessoas se entregavam como es- caravana ou chefes militares, podiam
cravas a quem pudesse salvar a si se tornar poderosos, conquistar Conforme Carlos Moore (2005),
e a sua família da fome provocada privilégios, acumular riquezas e as formas autóctones de escravi-
pela falta de alimentos, seca, praga, mesmo possuir outros escravos. dão que existiram no continente
o intenso processo de savanização Não deixavam, no entanto, de ser africano até o advento do Islã, no
e desertificação que arruinava as considerados escravos pelo sim- século IX, foram do tipo doméstico-
colheitas das sociedades agriculto- ples fato de ser estrangeiros e não -serviçal, com pouca extensão para
ras africanas. possuir laços de parentesco ou de a esfera da produção econômica.
solidariedade na sociedade em que Isso quer dizer que o trabalho es-
Nessas sociedades, ter escravo viviam, na qual só eram reconhe- cravo serviçal nunca chegou a uma
para aumentar a capacidade de cidos como membros na qualidade situação de escravidão econômica
trabalho e de reprodução da família de subordinados a um senhor. generalizada e, muito menos, de

caderno6.indd 10 11/23/12 3:53 PM


escravidão racial, como aquela que
predominou nos sistemas de plan-
tations do Oriente Médio e, mais
tarde, das Américas.

O importante é destacar que,


desde as primeiras sociedades
estatais africanas construídas pelos
povos do vale do Rio Nilo até a
chegada dos árabes no século VII
e dos europeus no século XV, a
condição de escravo correspondeu
a uma categoria social entre várias
outras, e não foi de nenhum modo
nem socialmente dominante, nem
demograficamente preponderante.
Isso quer dizer que não houve no
continente africano um modo de
produção dominante – baseado no
trabalho escravo – sobre o qual se
estruturasse o conjunto da socie-
dade, como foi o caso na Europa
greco-romana, no Oriente Médio e
nas Américas. 11
Quando os europeus chegaram à A escravidão, portanto, já existia O projeto colonial português na
costa atlântica do continente afri- em muitas sociedades africanas África teve início na primeira meta-
cano e lá encontraram a prática da bem antes de os europeus inau- de do século XV, com as expedições
escravidão, se interessaram pelo gurarem a grande empresa co- de exploração na costa atlântica a
comércio de escravos e abriram mercial do tráfico de escravos pelo partir da ocupação de Ceuta, em
uma frente internacional de comér- Atlântico. E a dominação colonial 1415. Seu principal objetivo era
cio de seres humanos, transforman- portuguesa na África intensificou a chegar às minas do ouro comer-
do-os em mercadoria. escravidão nas Américas. cializado pelos povos tuaregues e
berberes do norte do continente

caderno6.indd 11 11/23/12 3:54 PM


Jornada Nacional de Formação para o
Combate ao Racismo

africano. Além disso, buscavam um com os quais passaram a comercia-


caminho para as Índias que per- lizar por volta de 1470. A costa de
mitisse quebrar o controle dos Angola equivale à região do antigo
comerciantes italianos sobre o reino do Congo, ao norte do atual
Mar Mediterrâneo. território de Angola, e os portugueses
conseguiram estabelecer relações
Os portugueses foram os pionei- amistosas, belicosas e alianças com
ros na exploração da costa atlântica os povos africanos para desenvolver
africana em busca de especiarias, os primeiros focos de colonização e
ouro, prata, comércio de escravos entrepostos de tráficos de escravos.
e na montagem de um sistema Foram seguidos, posteriormente, por
de produção e comercialização de ingleses, franceses e holandeses, que
açúcar baseado na colonização e no se espalharam por toda a América.
trabalho escravo.
O tráfico de escravos converteu-se
O maior fluxo do comércio de num empreendimento tão lucrativo
homens e mulheres africanos para que se prolongou até 1850 e, se-
o Brasil veio, sobretudo, de duas gundo as estimativas mais aceitas,
regiões do continente africano: a teriam sido traficados 12,7 milhões
costa da Mina e a costa de Angola. de escravos da África para as Amé-
Foram as que mais se envolveram ricas, dos quais 10 milhões teriam
no tráfico transatlântico de escra- chegado vivos.
12 vos, ambas comercializando seres
humanos capturados inicialmente A escravização dos africanos ocor-
na costa litorânea e, posteriormen- reu em toda a América do Sul, além
te, no interior do continente. do Brasil. Houve presença significati-
va de africanos nas Guianas Inglesa,
A costa da Mina equivale hoje Francesa e Holandesa e na costa da
aos atuais territórios de Gana, Colômbia, do Equador e do Peru.
Togo, Benin e Nigéria. O ouro que Segundo Margarida Maria Toddoni
os europeus portugueses tanto Petter, só para o Brasil estima-se um
buscavam foi encontrado quando tráfico de aproximadamente 4,85
chegaram à costa da atual Gana, na milhões de escravos africanos.
terra onde viviam os povos Akãs,

caderno6.indd 12 11/23/12 3:54 PM


O escravismo colonial e a formação Como já apontado, o sistema
colonial nas Américas intensificou
da classe trabalhadora a exploração do trabalho escravo
empregado nas grandes lavouras
de exportação de cana-de-açúcar,
algodão, fumo e especiarias. Essas
lavouras se concentravam na costa
atlântica tropical, do sul dos Esta-
dos Unidos até o nordeste do Brasil,
passando pela costa atlântica da
América Central e pelo Caribe. Esse
modelo de exploração econômica
que se denomina regime escravista
ou escravismo, além de ter papel
estrutural no processo de acumula-
ção tal qual já indicado, promoveu
em termos sociais a “coisificação”
e a separação entre os grupos so-
ciais nativos ou escravizados e as
elites metropolitanas ou nascidas
nas Américas.

A sociedade colonial baseada no


trabalho escravo esteve apoiada na 13
violência e no forte aparato repres-
sivo, que provocou choque entre as
culturas europeia, africana e indíge-
na; o genocídio étnico dos grupos
considerados inferiores; o estupro
e a hierarquização das relações
de gênero e raça; e o desprezo da
visão de mundo local. São essas as
marcas do desenvolvimento históri-
co e social do Brasil.

caderno6.indd 13 11/23/12 3:55 PM


Jornada Nacional de Formação para o
Combate ao Racismo

Aqui a base da exploração colo- adaptação dos negros brasileiros ao propriado da posse da terra desde a
nial e escravocrata se estendeu por trabalhado livre. O Brasil foi o últi- abolição, enfrentou grandes barrei-
cerca de 350 anos. O Brasil imperial mo país a abolir o trabalho escravo. ras, pois o escravismo deixou como
do século XIX continuou as relações Com seu fim, Joaquim Nabuco e herança uma sociedade marcada
econômicas e sociais fundadas no Rui Barbosa, entre outros, intensifi- pela hierarquia das relações de raça
trabalho escravo. A independên- cam o debate sobre a modernização e gênero. Os séculos do regime de
cia política do Brasil, em 1822, não capitalista no Brasil. escravidão, organizado sob a vio-
pressupôs a abolição do trabalho lência do trabalho forçado, desu-
escravo e não provocou mudanças Após a abolição, o início do pro- manizaram o negro, alienando-o
significativas na sociedade brasi- cesso de mecanização da lavoura enquanto detentor de saber e pro-
leira de então, nem nas formas de cafeeira e a incipiente industrializa- dutor de conhecimento e riqueza,
produção, nem nas relações sociais ção, somados à crescente concen- conferindo-lhe existência apenas
que culturalmente arraigaram o tração e posse de terras nas mãos como mercadoria.
preconceito e a discriminação con- das elites, nos primeiros anos do
tra a matriz étnica e cultural africa- século XX, consolidaram a situação Essa relação social perdura na
na – o patriarcalismo como sistema de dominação e exclusão dos tra- transição do trabalho escravo para
de dominação de gênero e raça. balhadores negros, que, entregues o livre e assalariado e, associada a
à própria sorte, permaneceram na uma mentalidade patronal conser-
Mais tarde, com a evolução do ca- camada inferior da pirâmide social. vadora, impede e adia a inserção
pitalismo industrial e a expansão e No processo da imigração europeia, dos negros na classe trabalhadora
constituição da classe trabalhadora os grandes fazendeiros e indústrias enquanto tal e, como decorrência,
fabril, muitos intelectuais, teólogos, abriram as melhores prerrogativas do impõe a desvalorização da força de
14 juristas conservadores debatiam trabalho livre e assalariado e a posse trabalho dos negros e negras no
e justificavam a legitimidade da da terra ao trabalhador europeu. Aos mercado capitalista. O que se quer
escravidão. A humanidade assistia escravos recém-libertos e seus filhos dizer aqui é que o escravismo colo-
à gênese da ideologia racista na reservaram a atividade braçal com a nial está na gênese do trabalho no
esteira do capitalismo. pior remuneração ou a vadiagem. Brasil e o processo de constituição
da classe trabalhadora tem como
A abolição do trabalho escravo no No Brasil, as relações de traba- traço constitutivo relações de desi-
Brasil (1888) significou para as eli- lho capitalistas se conformaram gualdade baseadas na hierarquia
tes uma transição lenta, gradual e tardiamente se comparadas às das de raça e gênero.
segura às relações trabalhistas ca- sociedades europeias. No contexto
pitalistas, e nesse período se travou da formação da classe trabalhadora A diáspora africana no Brasil, es-
uma longa discussão sobre a não brasileira, o trabalhador negro, ex- tabelecida socialmente no contexto

caderno6.indd 14 11/23/12 3:55 PM


da escravidão, associada ao discur-
so ideológico de negação do racis-
mo, jogou os negros a sua própria
sorte no pós-abolição, o que não
lhes deixou outra saída a não ser
reagir e resistir. A cada momento
os negros lançaram mão do que es-
tava a seu alcance: sua cosmovisão
africana recordada, memorizada,
inventada e apropriada ao contexto
de luta, revolta, guerrilha, resistên-
cia, greve e protesto nas ruas, entre
outras formas de resistência.

As linhas historiográficas e/ou


sociológicas impregnadas daque-
la mentalidade conservadora, sob confrontar a dominação e a opres- ras greves, o sindicalismo operário
o véu da neutralidade científica, são do sistema escravocrata e incorporava a doutrina anarquista
ressaltavam quase exclusivamente posteriormente capitalista: o banzo, e os pressupostos libertários do
categorias, conceitos, fontes histó- o assassinato dos senhores de terras, socialismo, o trabalhador negro,
ricas, interpretação das relações de a fuga isolada, o aborto praticado pioneiro nacional do ideário de
produção de trabalho e explicativas pela mulher escravizada, o suicídio, liberdade, despontava no cenário
do sistema capitalista apenas com- o sincretismo religioso, as guerri- da luta de classes com a Revolta
prometidas com o ponto de vista do lhas, revoltas e insurreições urbanas da Chibata (1910), participação em 15
opressor. Pouco falavam da reação (Alfaiates, Balaiada, Cabanagem, greves e movimentos sociais de
à subalternização, ou seja, sobre Revolta dos Búzios, Farroupilhas, todo tipo.
a resistência dos negros e negras Revolta dos Malês, entre outras), os
desde a época do sistema escravo- quilombos, atos de protesto contra as No período republicano, sua
crata que ancorou o tipo de capita- péssimas condições de vida, a violên- resistência se expressa sobretudo
lismo nacional. cia policial e o racismo. na diversidade linguística africa-
na transmitida na oralidade e nos
No entanto, homens e mulhe- Enquanto nas primeiras décadas espaços de religiosidade de matriz
res negras encontraram inúmeras do século XX a classe trabalhadora africana, as Irmandades e Reinados
formas de resistência destinadas a brasileira empreendia as primei- do Rosário dos Homens Pretos, que

caderno6.indd 15 11/23/12 3:56 PM


Jornada Nacional de Formação para o
Combate ao Racismo

guardam fundamentos religiosos


afro-católicos, o teatro Experimen-
tal do Negro e o Teatro Solano Trin-
dade, a poesia e a prosa de Cruz e
Souza ao Quilombo hoje, a musica-
lidade do samba, a capoeira, o soul,
o jazz, o blues, o reggae, o ijexá,
o afoxé, o bloco-afro, o carnaval, o
funk, o swing, o merengue, a rum-
ba, a escola de samba, o pagode,
o jongo, o lundu, as cantigas de
roda e as de ninar, o maracatu, o
caxambu e o movimento crítico
e poético do rap, do hip-hop, a
riqueza da cultura afro-brasileira,
que produz cultura de resistência
em âmbito nacional.

Os territórios negros foram


espaços de organização social e
resistência a uma realidade marca-
damente discriminatória e exclu-
16 dente. Esses lugares, demarcados
especificamente por relações étni-
cas eivadas pela segregação racial
e espacial, têm uma história para
contar e muita tradição preservada.
Segundo o geógrafo Milton Santos,
“o conceito de território não é ape-
nas forma, mas produto histórico do
trabalho humano, da construção de
um domínio territorial, assumindo
múltiplas formas e determinações”.

Santos, Milton. O retorno do território. In SANTOS, Milton; SOUZA, Maria


Adélia A.; SILVEIRA, Maria Laura. (orgs). Território: globalização e fragmentação. São Paulo. HUCITEC, 1996, 3ª ed., p.15-20.

caderno6.indd 16 11/23/12 3:56 PM


De outro lado, os clubes sociais sociedade brasileira a chave da compreensão da realidade da população ne-
preservados, a imprensa e a Frente gra, os mecanismos de sua exploração e opressão, e apontar como ocorreu
Negra Brasileira, as organizações sua integração na nação brasileira, principalmente nos períodos de desen-
específicas de mulheres negras e volvimento qualitativo de sua formação social.
os grupos e organizações associati-
vas antirracistas dos anos 1970 de No cenário da ditadura militar, de absoluta ausência dos direitos de cida-
caráter cultural, social, recreativo, dania, de canais de participação democrática, sob um modelo de desenvolvi-
intelectual-acadêmico ou político mento excludente e concentrador de renda e riqueza e uma forte repressão
são exemplos de resistência e luta. à liberdade de expressão e organização, o movimento negro contemporâneo
O movimento pela busca da ressurgiu com forte dimensão política, influenciado por aquele contexto na-
memória histórica e da identidade cional e pelas lutas internacionais do movimento afro-americano por direitos
africana, cotidianamente negadas civis e de libertação dos povos africanos e pela difusão do pan-africanismo.
desde o processo da resistência à
escravidão colonial até a luta con-
temporânea contra o racismo que
emergiu na cena política nacional
dos anos de 1970, denomina-se
consciência negra.

A consciência negra é a busca


da memória histórica capaz de
projetar ação política destinada à
desconstrução do racismo como
opressão específica e edificação 17
de novas condições sociais de
existência diante dos mecanismos
de exclusão sistemática e intrínseca
às relações econômicas e sociais do
capitalismo.

Essa experiência única forjou a


existência do Movimento Negro
Brasileiro de longa duração e seu
papel histórico central: oferecer à

caderno6.indd 17 11/23/12 3:57 PM


Jornada Nacional de Formação para o
Combate ao Racismo

Uma perspectiva de Esquerda dade. O intelectual de esquerda


colocou seu prestígio e autoridade

na Luta Antirracista a favor da desmitificação da ideo-


logia racial de acomodação das re-
lações raciais brasileiras e cunhou
a expressão “mito da democracia
Nos anos de 1970, com o apa- racial”, denunciando seu papel
recimento dos novos movimentos fundamental: alienar o/a negro/a
sociais, em especial o movimento enquanto sujeito da sua história
negro, retomou-se fortemente o de resistência e na sua condição
debate sobre as relações entre de trabalhador.
capitalismo, racismo e pressuposto
teóricos para sua superação, entre A ideia da subordinação social e
os quais os de abordagem marxista. econômica dos negros e negras no
capitalismo abre o debate sobre a
No campo das relações raciais na relação capitalismo e racismo, cuja
sociedade brasileira, a investiga- razão de ser não é mais explicada
ção avança à medida que as novas por um atraso cultural da socieda-
leituras relacionam capitalismo e de brasileira, mas principalmente
racismo, a fim de compreender a como um aspecto ideológico que
natureza do empobrecimento gri- encobre os mecanismos da desigual-
tante da população negra, principal- dade racial e, como tal, constitui mais
18 mente para verificar se a condição uma contradição da sociedade capi-
de pobreza da população seria um talista.
fator decorrente da exploração eco-
nômica mediada por mecanismo de Aspectos da modernização capi-
discriminação racial. talista brasileira elucidam aquela
contradição: A abolição da escrava-
Em seu estudo A integração tura (1888) foi proclamada há mais
do negro na sociedade de classes de cem anos e não ocorreu nenhuma
(1964) e na obra A revolução bur- indenização ou reparação social para
guesa brasileira, Florestan Fernan- os chamados ex-escravos. O governo
des afirma que ela incorporou de imperial financiou a política de im-
modo subalterno o negro na socie- portação de mão de obra imigrante

caderno6.indd 18 11/23/12 3:57 PM


europeia e assalariada e preteriu e O Estado republicano, no con- Esses aspectos históricos eviden-
relegou a mão de obra nacional ao fronto com as lutas sociais, revelou ciam a dinâmica das desigualdades
desemprego e à economia informal. seu caráter elitista, repressor e raciais nas relações capitalistas e
O estudo do historiador Rama- genocida. Em diversos momentos seu papel de alicerce da pobreza da
tis Jacino, em especial o capítulo da história as reivindicações popu- população negra mediada por vá-
“Trabalhadores negros”, revela o lares contra o autoritarismo e a ex- rios mecanismos de discriminação
processo de embranquecimento clusão social foram tratadas como racial. Por isso concordamos com
da classe trabalhadora no século “um caso de polícia”. A Revolta Malcolm X e afirmamos “não há
XIX, na medida em que as elites da Chibata foi uma sublevação capitalismo sem racismo”. Conse-
cafeeiras, imbuídas das ideologias dos marinheiros, a maioria negra, quentemente, esse posicionamento
racistas, no processo de imigração que eclodiu no Rio de Janeiro em teórico nos instiga a aprofundar o
desprezavam o trabalhador nacio- 1910, 22 anos após a Abolição da debate. Como superar o racismo
nal não branco e supervalorizavam Escravatura. Liderada pelo mari- no capitalismo? Quais os aportes
os europeus. nheiro negro João Cândido, exigia no campo teórico e as experiências
melhores condições de trabalho e exitosas da luta antirracista no
salários e, principalmente, o fim dos campo da esquerda?
castigos corporais impingidos aos
marinheiros com a chibata – prática Até os anos 1970, havia pouco
remanescente da escravidão até ou quase nenhum debate sobre a
aquela época vigente na Marinha bra- discriminação no mercado de tra-
sileira –, razão pela qual a sublevação balho capitalista ou a desigualdade
popular ficou conhecida como Revolta salarial entre brancos e negros. A
da Chibata. A luta de João Cândido e a relação entre o capital e o trabalho
revolta foram imortalizadas no samba O como a principal contradição expli- 19
mestre-sala dos mares, de João Bosco cativa da exploração e da opressão
e Aldir Blanc, cuja letra e música foram de todos os trabalhadores era orien-
censuradas pela ditadura militar. É tação geral.
possível inferir que a Revolta da Chiba-
ta foi a primeira manifestação sindical Nova leitura crítica denunciou
brasileira após a abolição formal do tal enfoque, pois não dava resposta
trabalho escravo, já no início da Repú- à realidade do trabalhador negro
blica, e esse episódio é pouco referen- brasileiro na medida em que não
ciado na história da classe trabalhadora compreendia como o racismo se
brasileira. estruturava no plano ideológico e

caderno6.indd 19 11/23/12 3:57 PM


Jornada Nacional de Formação para o
Combate ao Racismo

material das relações e produção [...] a diversidade da realidade O processo de dominação de


capitalistas. Portanto, não compre- brasileira, assim como os aspec- raça e classe pode ser examinado
endia que na exploração do traba- tos culturais, de modo geral, não na leitura dos estudos de Florestan
lhador negro ocorria um processo são considerados pela esquerda Fernandes e Octavio Ianni e na
de depreciação do valor da sua for- brasileira. Esse desconhecimento experiência do setorial de negras e
ça de trabalho. Esse é um aspecto cria obstáculos para a unificação negros do PT. (FERNANDES, 1988;
de exclusão no mercado de traba- das forças, na medida em que o IANNI, OCTAVIO, Jacino, Rama-
lho que aparece ora como fator de discurso da vanguarda revolu- tis, MOURA, CLOVIS , SANTOS, J.
demissão, ora como fator de desem- cionária não sensibiliza outros RUFINO, GUIMARÃES, Juarez de
prego, ora como fator que impede a grupos subalternos, que, com Paula (2005) E OUTROS).
mobilidade no plano de carreira. É isso, não criam uma base social
dessa forma que ocorre a opressão hegemônica [...]. As concepções que consideram
específica sobre os trabalhadores e apenas a centralidade da contra-
trabalhadoras negras. A tradução prática das orienta- dição entre o capital e o trabalho
ções da esquerda no Brasil, con- na luta contra a desigualdade e a
O pressuposto marxista geral sideradas aqui diferentes orien- opressão impedem a percepção de
de que o processo de produção e tações, deixou de levar em conta que a lógica capitalista de exclusão
reprodução capitalista não gera a diversidade cultural como parte utiliza a diversidade étnica e cul-
apenas mercadorias, mas principal- das contradições da classe traba- tural existente como fator de domi-
mente relações sociais de domina- lhadora brasileira. Sem dúvida, ao nação, apoiada na discriminação
ção e opressão, nos permite investi- defender a perspectiva de eliminar de gênero, raça, idade e religião. A
gar, em cada formação social, como as desigualdades econômicas, a centralidade a que nos referimos
20 ocorrem a dominação e a opressão esquerda brasileira contribuirá para para explicar as desigualdades
dos trabalhadores no geral e a a superação do racismo, na medi- sociais brasileiras é insuficiente
dominação e a opressão específicas da em que o estabelecimento de porque interpreta de forma etno-
de alguns segmentos sociais, como melhores condições de vida elimina cêntrica nossa formação social.
negros e negras, mulheres e ho- o aspecto material de manifestação Por isso encontra dificuldades em
mossexuais. do racismo, isto é, a pobreza. Toda- legitimar-se, por exemplo, perante
via, isso por si só não acabará com a população negra, por não cons-
Nomes importantes da academia a discriminação racial e a desvalo- truir, culturalmente, uma identi-
brasileira, como Caio Prado Jr., já rização social diante dos traços e dade de raça e classe na luta pelo
haviam apontado a ortodoxia da referências culturais e civilizatórias socialismo. O que por sua vez é um
esquerda nacional, ressaltando que de matriz africana. entrave à democratização da socie-
dade brasileira.

caderno6.indd 20 11/23/12 3:58 PM


A fim de construir a identida-
de de raça e classe na luta pelo
socialismo, os ativistas negros
e negras apostaram no projeto
político-partidário que nascia
naquele momento: o PT. Essa
perspectiva buscava uma alter-
nativa política mais à esquerda
para a luta antirracista. Outros
aprofundavam, à época, a crítica
ao etnocentrismo da esquerda.

Quando do nascimento do PT
as críticas se concentravam na
interpretação etnocêntrica da
formação social brasileira porque
esta minimizava a importância
do debate das desigualdades
raciais no interior da classe tra-
balhadora.

Questões atuais elaboradas


pelo etnólogo e cientista político
Carlos Moore em O marxismo 21
e a questão racial ressaltam os
aspectos do etnocentrismo e uni-
versalismo presentes na obra de
Marx. O autor questiona a capa-
cidade do materialismo histórico
para explicar o desenvolvimento
das sociedades fora da Europa
e nos alerta que é necessário
enfrentar o debate sobre essas
questões, pois temos de nos

caderno6.indd 21 11/23/12 3:58 PM


Jornada Nacional de Formação para o
Combate ao Racismo

libertar das crenças teórico-ideoló- Cardoso, ativista político da época, o que explica a denominação ini-
gicas remanescentes de estruturas o Núcleo Negro Socialista idealizou cial Movimento Unificado contra a
intelectuais deterministas e etno- o MUCDR. Esse projeto político foi Discriminação Racial (MUCDR). O
centristas. criado estrategicamente pelas ten- objetivo fundamental era legitimar
dências trotskistas Liga Operária e a luta contra o racismo no plano
Após a década de 1980 se es- Fração Bolchevique, que acabaram sociopolítico, fortalecer a consciên-
treitam os laços entre movimentos fundindo-se na Convergência Socia- cia negra na sociedade brasileira e
sociais e a esquerda brasileira. Com lista (1974) . oferecer formação política para as
o Movimento Negro Brasileiro não lideranças negras.
foi diferente, e no contexto da luta A Liga Operária desenvolvia
contra a ditadura militar formaram- uma política de atrair negros para a Quanto à sua estrutura, o MU-
-se alianças entre as forças demo- tendência trotskista. Esse processo CDR constituía centros de luta
cráticas, o que resultou numa rica foi impulsionado no final da década formados por negros e núcleos
experiência de combate ao racismo de 1970 com o crescimento dessa de apoio dos outros movimentos
no campo da esquerda. Essa his- tendência na África do Sul e na sociais de composição multirracial.
tória foi marcada pela trajetória do Guiné-Bissau e a relativa expressão O caráter nacional dessa proposta
Núcleo Negro Socialista. que teve nos Estados Unidos nas foi efetivado a partir da estratégia
décadas de 1950 e 1960. da Liga Operária de buscar lide-
Nesse contexto, como uma ver- ranças negras nos vários estados
tente da luta antirracista, surgiu em Em São Paulo, alguns militantes brasileiros, o que possibilitou a
1978 o Movimento Unificado contra negros da Liga Operária que atua- formação de núcleos negros socia-
a Discriminação Racial (MUCDR), vam no meio universitário do eixo listas em São Paulo, Rio de Janeiro,
22 posteriormente denominado Movi- São Paulo-Campinas-São Carlos e Bahia, Rio Grande do Sul e Minas
mento Negro Unificado (MNU). alguns jornalistas do Jornal Versus, Gerais. A articulação nacional foi
com o propósito de intervir na luta realizada por intermédio das comis-
Entre l975 e 1978, várias lide- contra o racismo, formaram o Nú- sões estaduais e de um boletim de
ranças negras se aproximaram das cleo Negro Socialista. divulgação interno que informava
organizações de esquerda, cuja ex- a conjuntura política e o processo
periência no interior da Convergên- O projeto idealizado pelo Núcleo organizativo dos demais movimen-
cia Socialista levou ao surgimento Negro Socialista apontava para um tos sociais.
do Núcleo Negro Socialista. movimento que aglutinasse não
só o negro, mas todos aqueles que Com a movimentação de negros
sofrem discriminações: negros, de São Paulo e do Rio de Janeiro,
Segundo Hamilton Bernardes mulheres, indígenas, entre outros, foi fundada no dia l8 de junho uma

caderno6.indd 22 11/23/12 3:59 PM


organização de combate à realidade para quebrar o papel benevolente da de São Paulo e a violência policial
de discriminação racial, o MUCDR. princesa Isabel que sustentava o mito que levou à morte o operário Robson
A assembleia de fundação, reali- da democracia racial. Silveira da Luz. Essas circunstâncias
zada em São Paulo, deliberou pelo motivaram protesto, mobilização e
lançamento público do movimento A proposta do Núcleo Negro So- repúdio público contra o racismo na
unificado. A ideia era sair às ruas cialista foi vitoriosa, e o 13 de Maio sociedade brasileira.
com um ato de protesto ao quadro entrou no calendário do Movimento
das desigualdades sociorraciais. Negro Brasileiro como Dia Nacional
de Luta contra o Racismo. Cabe
Essa deliberação foi polêmica. A salientar que, como contraponto,
proposta do Núcleo Negro Socia- foi escolhido o dia 20 de novembro
lista paulista não foi consensual, como elemento mítico para fortale-
recebeu a oposição de militantes cer a luta da população negra, que
de uma entidade cultural do Movi- ficou conhecido como Dia Nacional
mento Negro, o Centro de Cultura da Consciência Negra. Essa propo-
e Arte Negra (Cecan), fundado em sição, também do Núcleo Negro So-
1970. O Núcleo Negro e o Cecan cialista, tinha um objetivo: ampliar
avaliavam a conjuntura política no Brasil a consciência social contra
com pontos de vista diferentes. A o racismo, de forma que, cada vez
divergência básica consistia em ser mais, os não negros pudessem as-
ou não aquele o momento propício sumir e defender a melhoria da con-
para explicitar a luta contra o racis- dição social dos negros brasileiros.
mo e, principalmente, seu caráter Na verdade, era uma política volta-
socialista, na medida em que a da para uma sociedade plurirracial, 23
época era ditatorial e de suspensão buscando resgatar e valorizar a No dia 7 de julho de 1978, o
das garantias individuais. memória de Zumbi dos Palmares. MUCDR e várias entidades negras
organizaram um ato público em
O Cecan propôs não sair às ruas Em junho de 1978 aconteceram frente às escadarias do Teatro
como forma de repudiar o 13 de dois episódios que anteciparam Municipal de São Paulo, com a
Maio e a falsa abolição. O Núcleo o ato público de lançamento do presença de 3 mil pessoas, em re-
Negro Socialista, ao contrário, MUCDR A imprensa paulista divul- púdio à discriminação racial. Nas
propunha sair às ruas e apresentar gou tratamento discriminatório a palavras do MNU,
uma visão crítica sobre o que fora a quatro atletas negros impedidos de
abolição da escravatura, exatamente frequentar o Clube de Regatas Tietê

caderno6.indd 23 11/23/12 3:59 PM


Jornada Nacional de Formação para o
Combate ao Racismo

[…]a discriminação racial, o do MUCDR apontando os seguintes discriminação racial”. Desse modo,
desemprego e a violência policial fatos: a denominação passou a ser Mo-
fundamentavam seu surgimento vimento Negro Unificado contra a
e legitimavam sua organização, “[...] foi realizado em São Paulo, Discriminação Racial e, no I Con-
buscando conscientizar a comu- no dia 27 de julho, uma Assem- gresso Nacional do MUCDR, reali-
nidade negra e chamar a atenção bleia Nacional do MUCDR, com zado no Rio de Janeiro em dezem-
da sociedade brasileira para a a participação de diversas enti- bro de 1978, que reuniu delegados
questão do racismo [...] (MNU, dades do interior paulista, dos do Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia,
1988). estados de Minas Gerais e Rio de Minas Gerais, Rio Grande do Sul e
Janeiro, com quase 350 pessoas. Espírito Santo, o nome foi simplifi-
A proposta do ato público foi Nessa assembleia, definiu-se um cado para MNU.
apoiada por outros estados. Or- programa mínimo para o movi-
ganizações negras como Escola mento unificado, que abarcava Mais do que uma mudança de si-
de Samba Quilombo, Renascença desde a luta por melhores con- gla, essa alteração anunciou novos
Clube, Centro de Estudos Brasil- dições de vida até a libertação rumos no encaminhamento da luta
-África, Instituto de Pesquisa da nacional. O único grupo a se antirracismo no campo da esquerda
Cultura Negra, Núcleo Negro Socia- posicionar como socialista foi o e cada vez mais se aproximam do
lista do Rio de Janeiro, Grupo Nego Núcleo Negro de São Paulo e do projeto político-partidário.
da Bahia e militantes de Minas Rio de Janeiro. Houve muita re-
Gerais estiveram presentes ao ato sistência a esse posicionamento De todo modo, a experiência do
ou enviaram moções de apoio. Em [...] (NÚCLEO NEGRO SOCIALIS- Núcleo Negro Socialista foi relevan-
7 de julho de 1978 essas entidades TA, s/d). te na história da organização da
24 negras explicitaram à sociedade luta do movimento negro pós-1978.
brasileira novo modelo de luta para Na II Assembleia Nacional do Estreitou os laços entre marxismo e
o combate ao racismo. MUCDR, em setembro de 1978, racismo, na medida em que aproxi-
na cidade de Duque de Caxias, no mou a perspectiva de combate ao
Entre a formação do MUCDR e Rio de Janeiro, o projeto do Núcleo racismo da teoria de classe, desper-
a consolidação do MNU, primeira Negro Socialista começou a sofrer tou a consciência negra dos ativis-
entidade de caráter nacional do alterações em função daquelas di- tas das organizações de esquerda,
Movimento Negro Contemporâneo, vergências. Segundo a avaliação do fortaleceu o setor do movimento
ocorreu um período de grande polê- próprio Núcleo Socialista, o resulta- negro brasileiro que ficou mais à
mica e reação ao projeto do Núcleo do final da assembleia foi à inclusão esquerda e aproximou esse setor da
Negro Socialista, o qual avaliou a da palavra “negro” na sigla e a experiência político-partidária do
realização da primeira assembleia supressão da referência “contra a Partido dos Trabalhadores.

caderno6.indd 24 11/23/12 3:59 PM


O PT e a Questão Racial
O Movimento Negro e o Partido
dos Trabalhadores são contempo-
râneos dos anos 1980. Partido de
massas, o PT nasceu do desejo de
representação política de milhares
de trabalhadores que lutaram, nos
movimentos sindical e popular,
por direitos e liberdade no Brasil.
Comprometido com a emancipação
dos trabalhadores, com as liberda-
des democráticas, com a superação
da discriminação contra negros
e mulheres, com a superação do
capitalismo e com a construção de
um socialismo democrático, o PT
buscou construir-se à imagem e
semelhança da sociedade pela qual
lutava. Assim, suas portas estavam
abertas à participação dos ativis-
tas negros do movimento sindical,
estudantil, eclesial de base católica, 25
movimento negro, lideranças de ex-
pressão nacional e representativas
dos vários estados brasileiros, que
deram o ponta-pé inicial na orga-
nização dos negros e negras e na
abordagem da questão racial. Ele
abriu as portas para o setor mais
à esquerda do Movimento Negro
Brasileiro.

caderno6.indd 25 11/23/12 4:00 PM


Jornada Nacional de Formação para o
Combate ao Racismo

A história do PT é pontuada pela e do socialismo. Essa interlocução


ampliação da cidadania de negras e seguiu um ritmo às vezes modera-
negros. Tem sua a marca a criação do, outras vezes bastante truncado,
da primeira Secretaria Nacional geralmente reivindicativo e crítico,
de Combate ao Racismo (1995). O o que por vezes gerou tensão e con-
partido teve e tem grandes expres- flitos ideológicos na condução des-
sões parlamentares, como Benedi- sa luta. Mas é assim que se constrói
ta da Silva (RJ) e Paulo Paim (RS). a democracia no PT e na sociedade.
Quando chegou ao governo fede-
ral (2002) – com a vitória de Luiz Desde sua fundação, encontra-
Inácio Lula da Silva –, instituiu mos nos discursos, documentos e
no primeiro escalão ministerial a programas do PT o compromisso
Secretaria Especial de Políticas partidário com a superação das
de Promoção da Igualdade Racial desigualdades das relações raciais
(2003). Os três importantes aspec- expressas em palavras como “de-
tos indicados mostram que o PT, fesa da questão racial”, “questão
no âmbito da construção partidá- do negro”, “defesa da auto-orga-
ria, da via parlamentar e da gestão nização de negros e negras”, “luta
de política pública, criou espaços contra o preconceito” “combate ao
de reflexão, elaboração e atuação, racismo”, “políticas públicas com
o que lhe conferiu papel estraté- recorte específico”, “promoção da
gico no combate ao racismo e no igualdade racial” ou “o negro e o
26 avanço efetivo da luta por igual- socialismo”. , Essas palavras repre-
dade racial e democratização da sentam o desenvolvimento da luta
sociedade brasileira. de combate ao racismo no interior
do PT, o aprendizado conceitual
Ao longo dos últimos trin- de cada uma delas, a despeito dos
ta anos, negros e negras têm se erros e acertos de cada petista, e a
organizado setorialmente no PT e expansão nacional dos organismos
aprimoraram a interlocução com institucionais e de uma agenda
o partido, intensificando o debate mínima da defesa da cidadania de
teórico entre as categoria de raça, negras e negros, nem sempre no
classe e gênero, sobretudo radica- mesmo ritmo do crescimento nacio-
lizando os conceitos da democracia nal do Partido dos Trabalhadores.

caderno6.indd 26 11/23/12 4:00 PM


O desenvolvimento ou a evolu- que os negros são um dos “setores A mobilização setorial de negros
ção da luta de combate ao ra- explorados” e participantes das e negras no PT se inicia em 1982.
cismo no PT pode ser mais bem “lutas populares”. Essa atitude de- As comissões estaduais de negros,
compreendido a partir de três monstrou que o partido circunscre- com o apoio político da Secretaria
fases distintas. via a luta antirracista no bojo das Nacional de Movimentos Popula-
lutas por liberdades democráticas. res, realizou encontros específicos
sobre a questão racial para definir
Primeira fase: mobi- Na 1ª Convenção Nacional (1981), plataforma mínima de ação e a
lização específica da realizada em Brasília, o presidente unidade partidária em torno do
questão racial (1979- do PT, Luiz Inácio Lula da Silva, re- programa de combate ao racismo
conheceu a existência da organiza- com a cara do PT.
1989) ção popular de interesse específico
dos negros e mulheres, mas o dis- Em cada estado as comissões de
É a fase intensa de mobilização e curso não ecoou por toda a conven- negros evoluíram de acordo com a
filiação de negros e negras ao Parti- ção. O programa ali aprovado deu expressão política regional do PT
do dos Trabalhadores. Inicia-se com um passo atrás ao incluir o tema e a história do movimento negro
as articulações para a organização sob o guarda-chuva conceitual de comprometido com a construção de
setorial dos negros. Nessa período, minoria, apesar da forte pressão um projeto partidário. Esses fatores
o PT realizou dois encontros nacio- política da militância antirracista. contribuíram para a maior ou menor
nais intitulados “O PT e a questão Na época do surgimento do PT, com adesão à luta setorial dos negros.
racial”, um no Distrito Federal e ampla base sindical e popular, os Nos anos 1980, as Comissões de
outro em Vitória, no Espírito San- movimentos sociais que tratavam Negros do PT se expandiram para
to, e a organização dos negros se de questões sociais específicas São Paulo, Minas Gerais, Bahia e
expandiu para além do estado de eram identificadas como setores mi- Distrito Federal. 27
São Paulo, berço do nascimento do noritários. Prevalecia o conceito de
partido, o que permitiu que fosse minoria, que na prática significava Nessa trajetória, nem tudo são
assumido compromisso eleitoral a incorporação dos temas relativos flores, e para ilustrar esse aspecto
com a comunidade negra. aos negros, mulheres e homossexu- destacamos duas questões polêmi-
ais ainda de forma genérica. cas e importantes travadas nos en-
O PT reconheceu a importância contros para definir os vínculos en-
luta antirracista – “Declaração Polí- As particularidades históricas e tre partido e movimentos sociais: a
tica” (1979) e na “Carta Manifesto organizativas de cada uma dessas autonomia e o suprapartidarismo. A
do PT” (1980) –, com a leitura clas- lutas e movimentos não eram ainda autonomia do movimento negro foi
sista da participação dos negros assumidas. tema polêmico, na medida em que
na sociedade brasileira, ao afirmar

caderno6.indd 27 11/23/12 4:00 PM


Jornada Nacional de Formação para o
Combate ao Racismo

era muito forte a ideia de que o PT programas eleitorais, instâncias conceito é real e os negros não têm
carecia de uma visão antirracista e espaços partidários, ajudando a os mesmos direitos que os brancos
mais contundente e a mobilização fortalecer, dessa maneira, a demo- – e, antes de tudo, são tidos como
de negras e negros não poderia ser cracia interna do partido Nessa fase suspeitos e marginais”.
apenas uma correia de transmissão inaugural, Lélia Gonzalez, do Mo-
dos interesses presentes do jogo vimento Negro Unificado e ativista O I Encontro Nacional “O PT e a
eleitoral, concepção que era marca do movimento de mulheres negras questão racial”, entre 20 e 22 de mar-
generalizada dos partidos populis- e do PT- RJ, foi a primeira mulher ço de 1987, no Distrito Federal, abriu
tas e conservadores. O PT, por ser negra eleita no Diretório Nacional um canal de interlocução para que
um partido de massas, democrático do PT (1981 a 1984). o partido conhecesse as primeiras
e socialista, investiu na definição propostas de políticas especiais para
de uma política de ação capaz de Esses companheiros e compa- a questão racial e outras referentes à
garantir a ampliação da cidadania nheiras foram sujeitos da história questão internacional, precisamente
de negras e negros. da fundação do PT e zeladores de aquelas em defesa da libertação da
uma trajetória com forte traço de África do Sul e Namíbia.
A relação entre movimentos afro-brasilidade ou afrodescendên-
sociais e partido político ainda cia. Realizaram uma grande tare- Nos encontros, convenções e
engatinhava, assim como as alian- fa – destacar a questão racial do congressos do PT – os espaços de
ças políticas. O movimento negro, conjunto das lutas sociais – e todos decisão partidária –, havia disputa
por sua natureza suprapartidária, contribuíram, a seu modo, para a e consensos para garantir o diálogo
questionava qual deveria ser o história da organização dos negros e a unidade na frente de luta de
papel do PT no combate ao racismo. e negras no PT. todos os trabalhadores. Com idas e
28 De qualquer modo, o partido apoiou vindas, a participação popular e a
a primeira mobilização nacional dos No II Encontro Nacional do PT unidade petista cresciam entre as
negros através do órgão denomina- (1982), no Instituto Sede Sapientiae, lutas por liberdades democráticas,
do Subsecretaria Nacional do Negro em São Paulo, encontramos na Pla- eleições livres, nas greves por me-
do PT vinculada à Secretaria Nacio- taforma Nacional do PT, cujo lema lhoria salarial, nas reivindicações
nal de Movimentos Populares. era Terra, Trabalho e Liberdade, contra a carestia, por creche, edu-
a defesa da situação dos trabalha- cação, saúde e transporte público
O comprometimento do PT com dores brasileiros. Na dinâmica das de qualidade, livre opção sexual,
a questão racial foi uma conquista plataformas eleitorais, o partido igualdade de gênero e raça.
dos ativistas negros e negras, que fincou compromisso com a luta por
reivindicaram a inclusão da temá- igualdade e o fim da discriminação, Na efervescência das greves dos
tica nos manifestos, encontros, por entender que no Brasil “o pre- trabalhadores e do novo sindica-

caderno6.indd 28 11/23/12 4:01 PM


lismo que denunciava o arrocho dedicou-se à Subcomissão dos Ne- tiva ao modelo de desenvolvimento
salarial e o crescente desemprego, gros, das Populações Indígenas e do capitalismo brasileiro, bem como
herança da década perdida, o PT Minorias e à Comissão dos Direitos à constituição das classes sociais
saiu em defesa dos trabalhadores. e Garantias do Homem e da Mu- no Brasil, ainda não considerava o
Sobre a reação dos ativistas negros lher; e Paulo Paim à Subcomissão escravismo e o processo de abolição
nessa conjuntura contra o racismo dos Direitos dos Trabalhadores e como situações históricas respon-
no mercado de trabalho ainda pou- Servidores Públicos. Ambos ga- sáveis por desigualdades e exclu-
co se falou. rantiram a intervenção do PT nas são de negros e negras da força de
comissões temáticas. trabalho nacional. O que não dimi-
O II Encontro Nacional “O PT e nuiu a expectativa e a esperança no
a questão racial”, entre 26 e 28 de Diga-se de passagem, a Platafor- aprofundamento do debate e a com-
agosto de 1988, em Vitória (ES), ma Nacional do PT intitulada Terra, preensão dos vários mecanismos de
respirou a atmosfera do Centenário Trabalho e Liberdade, que em 1982 exclusão intrínsecos ao capitalismo,
da Abolição da Escravatura e a mo- se posicionou contra a concentra- sobretudo as desigualdades basea-
bilização popular por uma Consti- ção de riqueza e saiu em defesa do das na hierarquia de raça e gênero.
tuinte Democrática. Também acom- direito a terra para os trabalhadores Esta, arraigada no interior da classe
panhou as deliberações IV Encontro rurais, não havia ainda se referi- trabalhadora, impedia que PT se
Nacional do PT (1986) favorável à do às terras dos quilombos. Já em transformasse na expressão política
convocação da Assembleia Nacio- 1988, com a participação dos parla- daqueles segmentos.
nal Constituinte e recomendou aos mentares petistas, esse fato ganha
parlamentares negros participar e notoriedade e um marco legal, com Posteriormente, ao longo dos
assegurar as conquistas dos traba- o artigo 68 da Constituição, em anos 1990 as centrais sindicais bra-
lhadores. As conquistas relativas à defesa da titulação das terras de re- sileiras foram incorporando a luta
ampliação da cidadania dos traba- manescentes de quilombos. Outra contra a discriminação dos negros 29
lhadores negros teve a marca da participação constitucional impor- no mercado de trabalho. Entre as
intervenção do PT. tante resultou na frente parlamen- moções aprovadas no IV Encontro
tar que criminalizou o racismo por Nacional do PT, há uma em repúdio
Na Constituinte de 1988, Benedi- meio da Lei Caó. ao “apartheid” na África do Sul.
ta da Silva (RJ) e Paulo Paim (RS),
à época expressões parlamenta- O IV Encontro Nacional (1986) Na conjuntura de forte oposição
res entre os dezesseis deputados apresentou uma concepção sindical ao governo Sarney e no ano do Cen-
constituintes do PT no Congresso no documento “Plano de Ação Polí- tenário da Abolição (1888-1988), o
Nacional, atuaram na Comissão de tica e Organizativa do PT para o pe- PT debateu as condicionantes da
Ordem Social. Benedita da Silva ríodo 1986-1988”. A concepção rela- integração do negro na sociedade

caderno6.indd 29 11/23/12 4:01 PM


Jornada Nacional de Formação para o
Combate ao Racismo

de classe a partir da atuação con- frente às comemorações oficiais, e da morte de Zumbi dos Palmares
junta do deputado federal Flores- sim fazer a celebração proletária e denúncia do recrudescimento do
tan Fernandes (SP) e dos ativistas da abolição. Convidou os petistas racismo pelo neoliberalismo.
negros e negras do PT. a encarar a questão e refletir sobre
as relações entre raça e classe na A cada Encontro Nacional do PT
No V Encontro Nacional do PT sociedade brasileira e o papel revo- o debate sobre a questão racial
(1987), o Partido, representado lucionário do movimento negro. ganhava maior visibilidade. Em
por seus delegados, denunciou a São Paulo, o VII Encontro Nacional
farsa da abolição e, consequen- No mesmo ano, a Subsecreta- (1990) afirmou que o racismo não
temente, reconheceu a condição ria Nacional de Negros entrou na era apenas um problema dos ne-
de desvantagem social dos traba- disputa interna do PT e apresentou gros, e sim uma questão nacional.
lhadores negros no mercado de uma candidatura própria ao cargo Foi dado o ponta-pé inicial para
trabalho, na educação e a violência de vice na chapa Lula Presidente, que todos os petistas, desde os
policial contra a juventude. O PT nas eleições de 1989. militantes dos núcleos de base até
criou a Comissão Nacional Petista a direção do partido, assumissem
do Centenário. Integravam-na os a luta de combate ao racismo como
parlamentares Benedita da Silva,
Segunda fase: a ins- uma tarefa de todos os setores e
eleita membro do Diretório Nacio- titucionalização da luta secretarias do PT. A responsabi-
nal no V Encontro Nacional do PT, o de combate ao racismo lidade política de transformar a
deputado federal Florestan Fernan- sociedade brasileira e derrubar
des e os ativistas da Subsecretaria (1990-1995) as barreiras econômicas, sociais e
Nacional de Negros. O Partido se culturais que impedem a mobilida-
posicionou publicamente contra os Nessa fase Partido dos Traba- de da população negra agora era de
30
preparativos festivos do Centenário lhadores realizou dois encontros todos, brancos e negros, homens e
da Abolição do governo Sarney e nacionais de negros e negras e ga- mulheres, base e direção partidária,
denunciou como uma farsa a tese rantiu que a mobilização em torno movimentos sociais e governo, em
da democracia racial no Brasil. da “questão racial” mudasse de toda esfera de influência do PT. No
Orientou seus militantes a lutarem qualidade e ampliasse seu patamar ano do tricentenário da imortalida-
contra o racismo para chegarmos a de intervenção para o combate ao de de Zumbi dos Palmares o herói
uma sociedade mais justa.” racismo. O PT institucionalizou o da consciência negra é elevado
setorial de combate ao racismo e à categoria de herói nacional. No
Para Florestan Fernandes, no ano apoiou a participação popular na I confronto com a mentalidade escra-
do Centenário da Abolição o PT não Marcha Zumbi contra o Racismo e vocrata das forças conservadoras
poderia adotar uma postura festiva pela Vida e Cidadania, em come- das elites brasileiras aprendemos
moração ao ano do tricentenário

caderno6.indd 30 11/23/12 4:01 PM


a lição: eliminar o racismo em sua
dimensão nacional era um grande
desafio e era necessário mudar o
Brasil para construir o caminho da
igualdade para todos.

Nos anos 1990, os ventos do


neoliberalismo sopraram forte-
mente e impulsionaram a luta dos
movimentos sociais e dos partidos
de esquerda nas ruas para mani-
festar a oposição popular. O ano de
1995 terminou com mais de 30 mil
negros e negras na Esplanada dos
Ministérios, em Brasília, exigindo
políticas públicas efetivas contra a (ES), homenageou o tricentenário de Zumbi, sob forte intervenção do
exclusão social e contra o genocídio da morte de Zumbi dos Palmares e movimento negro brasileiro o parti-
da população negra. Eram essas as reconheceu a vitalidade dos seto- do realizou o III Encontro Nacional
reivindicações da I Marcha Zumbi riais, entre os quais o setorial dos de Negros do PT (1995), entre 21 e
contra o Racismo pela Cidadania e negros. Seguindo a nova regula- 23 de julho, em Belo Horizonte/MG.
a Vida. Em resposta a essa mobili- mentação estatutária, o encontro As propostas abrangiam desde a
zação nacional, o governo federal setorial dos negros ganhou novo reparação para o povo negro, por-
de FHC, em diálogo com grupos de nome e novo formato. Seria deno- que a escravidão era tida como um
negros e negras apoiadores de sua minado por seus protagonistas, as crime contra a humanidade, até a 31
gestão, hoje denominado Tuca- negras e negros, e não mais como criação e estruturação da Secretaria
nafro, implantou no Ministério da antes, Encontro “O PT e a questão Nacional de Combate ao Racismo,
Justiça o Grupo de Trabalho Inter- racial”, e a instância partidária má- além de temas como a ampliação do
ministerial para Valorização da Po- xima de deliberação passou a ser a debate de gênero e raça no cená-
pulação Negra, sob a coordenação Secretaria Nacional de Combate ao rio internacional da 4ª Conferência
do professor Hélio Santos. Racismo. Estava aberta a participa- Mundial de Mulheres, em Pequim;
ção de negros e brancos comprome- o Brasil como sede do 1º Congresso
tidos com o combate ao racismo. Continental dos Povos Negros das
O X Encontro Nacional do PT Na conjuntura das comemora- Américas; apoio à mobilização dos
(1995), realizado em Guarapari ções tricentenário da imortalidade estudantes e quilombolas, respecti-

caderno6.indd 31 11/23/12 4:02 PM


Jornada Nacional de Formação para o
Combate ao Racismo

vamente no Seminário Negro Uni- das representações no PT. Hoje as pensamento “pós-moderno”, que
versitário (Senun) e no 1º Encontro Secretarias Estaduais de Combate relativiza a centralidade da luta de
Nacional das Comunidades Negras ao Racismo estão espalhadas em classes nas mudanças sociais e
Rurais, a 1ª Marcha Nacional Zumbi dezesseis Unidades da Federação desestimula a participação popular
contra o Racismo e pela Cidadania (AC, AP, BA, CE, ES, GO, MA, MG, organizada nos partidos políticos.
e a Vida. MS, PA, PR, PI, RJ, RS, SP e DF). Em seu lugar, repõe sistematica-
mente a falsa ideia de que entre a
No plenário do X Encontro Na- Outra deliberação relativa ao direita e a esquerda o que importa
cional do PT os petistas Luiz Inácio quadro eleitoral no âmbito muni- são os interesses da população
Lula da Silva, Benedita da Silva e cipal foi a campanha publicitária negra.
Jose Oliveira (PE) defenderam a antirracista denominada “Faça a
proposta de criação da Secretaria coisa certa”, com cartazes, botons Cabe chamar a atenção dos ati-
Nacional de Combate ao Racismo e e adesivos. Em São Paulo, a campa- vistas antirracistas para o fato de
foram vitoriosos. Esse fato marcou nha despertou a atenção do eleito- que o fragmento ideológico sempre
a intervenção setorial na constru- rado para o “voto racial” e para o procura ocultar o ascenso da cons-
ção partidária e um plano de ação oportunismo político da candida- ciência negra no campo da esquer-
para o combate ao racismo. tura de Celso Pitta – economista, da. Em uma conjuntura adversa
negro, paulistano – à Prefeitura de para a população negra, a tendên-
A Secretaria Nacional de Com- São Paulo, lançada pela liderança cia daquele pensamento é colocar
bate ao Racismo realizou o IV conservadora de Paulo Maluf. Ao um véu sobre as diferenças ideo-
Encontro de Negros do PT (1996) utilizar o título do filme do cineasta lógicas entre os projetos de socie-
na cidade Cajamar (SP), de 26 a 28 afro-americano Spike Lee Faça a dade em disputa a fim de vender a
32 de janeiro. Elegeu Flavio Jorge R. Coisa Certa, a campanha alertava a ideia de que em toda gestão públi-
Silva ao cargo de secretário nacio- comunidade negra sobre os riscos ca, seja conservadora, seja progres-
nal de Combate ao Racismo e seu de vincular o voto racial ao proje- siva, haverá ineficácia na condução
respectivo coletivo. A partir dessa to de Paulo Maluf. Celso Pitta foi da cidadania da população negra.
data, o secretário eleito passou a eleito. O que legitimaria uma participação
integrar a Direção Nacional do PT, em qualquer uma, desde que ofere-
com direito a voz. A eleição de um A experiência política do prefeito ça espaço político.
dirigente em fórum específico foi Celso Pitta, sustentada por uma
uma grande novidade partidária, aliança neoliberal e conservadora O XI Encontro Nacional do PT
na medida em que deixou o setorial e com o apoio de setores do mo- (1997), no Rio de Janeiro, aprovou
fora das disputas entre tendências vimento negro contemporâneo, resoluções políticas relativas aos
que até então animavam a escolha contribuiu para configurar a era do direitos humanos e à segurança

caderno6.indd 32 11/23/12 4:02 PM


pública, visando responder a um Terceira fase: nacio- contra o Racismo, Discriminação
problema histórico e ultrajante: a Racial, Xenofobia e Intolerâncias
violência policial contra negros no nalização da política Correlatas, realizada na África do
país. Grande desafio ainda para de combate ao racismo Sul (2001), incorporou o debate, na
os governos do Partido dos Traba- medida em que o Brasil foi signa-
lhadores. Na década de 1990, os
(1995-2000) tário do Plano de ação de Durban.
negros e negras enfrentaram ao A delegação brasileira, uma das
Nessa fase o PT realizou três
lado do PT, dos movimentos sociais maiores, foi chefiada por Benedita
encontros nacionais de negros e ne-
e demais partidos de esquerda a da Silva. O Ipea, órgão de pesquisa
gras, integrou a delegação brasilei-
conjuntura neoliberal. econômica e estatística nacional,
ra da 3ª Conferência Mundial contra
intensificou diagnósticos sobre as
o racismo, em Durban, fortaleceu a
relações raciais para fundamentar a
organização da juventude negra na
participação brasileira em Durban.
luta contra o genocídio e, nas elei-
Após a conferência, acirrou-se o
ções, reafirmou em seu programa
debate sobre a eficácia das políti-
eleitoral políticas públicas específi-
cas universais na gestão pública
cas para o combate ao racismo.
como instrumento de democratiza-
ção do acesso da juventude negra,
O V Encontro Nacional de Negros
por exemplo, às universidades
e Negras do PT (1997), de 8 a 10 de
públicas. A chamada política de
agosto, em Cajamar/SP, trouxe para
ação afirmativa popularizada como
o interior do partido o tema das po-
“política de cotas” se transformou
líticas públicas específicas, também
no projeto de Lei nº 6.264/2005 do
denominadas de políticas de ação
Senado Federal. Originariamente, 33
afirmativa. Nesse mesmo ano foi re-
o projeto foi apresentado à Câ-
alizado o seminário nacional “Parti-
mara Federal por Paulo Paim. De
dos dos Trabalhadores e a Questão
lá para cá, recebe modificações e
Racial: Relações Raciais e Políticas
tramita no Congresso Nacional. Já
Públicas”, em Campo Grande (MS),
foi aprovado na Câmara Federal
para definir o posicionamento sobre
e atualmente aguarda votação no
a política de ação afirmativa do
Senado. Setores conservadores da
governo FHC.
sociedade brasileira, na mídia, em
universidade com representação no
A sociedade brasileira, sobretu-
Parlamento fazem forte oposição as
do após a 3ª Conferência Mundial

caderno6.indd 33 11/23/12 4:02 PM


Jornada Nacional de Formação para o
Combate ao Racismo

políticas de ação afirmativa. ria da qualidade de vida da popula- demandas do VI Encontro de Negros
ção negra. e Negras, principalmente os temas
Nos 20 anos do partido, o Encon- referentes à exclusão de negros e
tro Nacional Extraordinário do PT Passados vinte anos do PT, negras decorrente do neoliberalismo
(1998), em São Paulo, anunciou o chegou o momento de a juventu- e uma política especial para a juven-
fim de um ciclo histórico e definiu de negra demonstrar sua força e tude negra. Após a participação na
novas perspectivas para as elei- engajamento. O VI Encontro Na- Marcha Zumbi + 10 (2005), a juventu-
ções presidenciais de 1998. Apro- cional de Negros e Negras do PT de negra conquistou mais um espaço
vou uma política de alianças mais (1999), entre 30 e 31 de outubro, em de articulação nacional ao realizar na
ampla no campo democrático e Cajamar (SP), ficou marcado pela Bahia o Encontro Nacional de Juven-
popular, reunindo todos os setores forte atuação da juventude negra e tude Negra (Enjune), em 2007. Duran-
da sociedade que sofrem formas aprovou o documento “O Combate te o encontro, o processo de mobiliza-
específicas de discriminação, em ao Racismo no PT é outra História”. ção de jovens negros petistas iniciado
torno da oposição ao presidente Carlos Porto, secretário estadual em 1998 culminou na fundação da
Fernando Henrique Cardoso, ao de Combate ao Racismo de Mato Juventude Negra 13 (JN13). Um
neoliberalismo e aos partidos de Grosso do Sul, foi eleito secretário espaço próprio para seu protagonis-
direita. nacional de Combate ao Racismo mo e a defesa da política pública de
para o mandato 1999-2001. combate ao racismo em suas diversas
O programa do governo Lula 98 manifestações. Se junta a esse qua-
avançou na área dos direitos huma- A Secretaria Nacional de Com- dro a mobilização das jovens negras
nos. Na da segurança, apresentou bate ao Racismo (SNCR) estimulou no Seminário Nacional de Mulheres
proposta de unificação e desmi- a organização da juventude negra Jovens do PT (2008).
34 litarização da polícia e o fim da através dos grupos de trabalho e Outra importante medida apro-
Justiça Militar como condição para seminários nacionais. Segundo ava- vada no II Congresso Nacional foi a
combater a violência policial. Na liação do IV Seminário Nacional de reforma estatutária que introduziu
área da cidadania, comprometeu-se Juventude (2008), realizado em São o processo de eleição direta (PED)
a garantir a todos os brasileiros a Paulo, o GT da Juventude Negra das direções partidária, modifican-
igualdade e o respeito à diferença surgiu no interior da SNCR porque do o processo da democracia inter-
de gênero, etnia, raça, idade, opção não encontrou canal de expressão na do PT. Até então, os Encontros
sexual, condição física e mental. na Secretaria de Juventude do PT. Nacionais setoriais eram instâncias
As diretrizes para o programa de máximas deliberativas do partido.
governo Lula 98, definidas no En- O II Congresso Nacional do
contro Extraordinário, reafirmou o Partido dos Trabalhadores (1999), Sob a regulamentação do PED, o
compromisso em defesa da melho- em Belo Horizonte, incorporou VII Encontro Nacional de Negros e

caderno6.indd 34 11/23/12 4:02 PM


Negras do PT (2001), nos dias 12 e em Recife, aprovou a resolução Lula Presidente (2002), destacou-se
13 de outubro, em Guarulhos (SP), política “Um outro Brasil é possí- por sua identidade com a luta e re-
elegeu Martvs Chagas e o respecti- vel”, na perspectiva de o projeto sistência negra e por sua convicção
vo coletivo nacional para a direção democrático-popular derrotar FHC. de que somente num outro Brasil
da SNCR no período (2002-2007). A plataforma eleitoral de 2002 seria possível construir o cami-
Sua gestão implantou estratégia novamente firmou um compromisso nho da emancipação das negras e
coletiva de inserção pragmática da eleitoral com a população negra. negros. Reconheceu perante toda
luta antirracista dentro e fora da a nação que é indispensável supe-
máquina partidária. A interlocu- rar a dívida social que há mais de
ção com a Direção Nacional do PT,
Quarta fase: gestão quinhentos anos deixa a população
então feita mediante direito a voz, pública para a promoção negra refém da violência e das in-
passou a ter direito a voz e a voto. da igualdade (2002-2010) justiças sociais. Assim, o Programa
de Governo “Brasil sem racismo”
A SNCR realizou, em parceria O PT, que desde a campanha apresentou aos brasileiros diretri-
com o Núcleo de Parlamentares eleitoral de 1989 seguiu em frente zes governamentais importantes:
Negros do PT (Nupan), cinco semi- na disputa para a Presidência, che-
nários regionais com o objetivo de gou ao governo federal trazendo as - o combate às desigualdades
subsidiar o programa de governo propostas de defesa da igualdade econômicas e sociais como con-
Um Brasil para todos – Lula Pre- de raça e gênero. Criou a Secretaria dição necessária para garantir a
sidente. Deu grande visibilidade Especial de Política de Promoção da todos os brasileiros e brasileiras o
publicitária à luta antirracista ao Igualdade Racial (Seppir) e ampliou status de cidadãos;
criar o símbolo que marcou toda a a participação dos negros e negras - programa de políticas específi-
campanha eleitoral do então candi- nos altos escalões. A gestão públi- cas para a igualdade entre homens
dato Lula a Presidência, em 2002. O ca sob a égide da igualdade, entre e mulheres, entre negros e brancos; 35
menino negro abraçado à estrela do outras realizações, instituiu o Plano - política externa ativa com a
PT marcou a peça publicitária “Um Nacional da Igualdade Racial (2007) África, reconhecendo a enorme dí-
voto com raça e com classe”. e liderou a aprovação do Estatuto vida histórica com o continente.
da Igualdade Racial, apesar da opo-
O século XXI nasceu sob o signo sição conservadora do DEM. Com a vitória de Luiz Inácio Lula
da reação à globalização neoliberal. da Silva à Presidência em 2002, os
A cada ano aumentava a esperança Entre os projetos dos partidos compromissos da campanha eleito-
em outro mundo possível, com de- políticos em defesa da população ral foram cobrados e os resultados
senvolvimento social e igualdade. O negra, o Programa de Governo foram satisfatórios.
XII Encontro Nacional do PT (2001), “Brasil sem racismo”, da Coligação

caderno6.indd 35 11/23/12 4:03 PM


Jornada Nacional de Formação para o
Combate ao Racismo

No período de transição de gover- ção negra. espaço de poder para fazer avançar
no, a Secretaria Nacional de Com- as políticas públicas contra todas as
bate ao Racismo (SNCR) garantiu a Matilde Ribeiro, ativista do movi- formas de discriminação.
efetivação do compromisso eleitoral mento negro, movimento de mu-
com a comunidade negra: criar no lheres negras e do PT, foi nomeada O segundo governo Lula, após a
âmbito ministerial um organismo para a Seppir depois de um período vitória nas eleições presidenciais
de poder específico para as de- de especulações e negociações. de 2006, manteve os compromissos
mandas da população negra. Essa Entrou para a história do PT como a com as políticas setoriais do PT. A
proposição eleitoral foi resultado primeira mulher negra a ocupar um SNCR, ressalte-se, acompanhou de
do acúmulo de força e pressão dos cargo de primeiro escalão na histó- perto o Programa de Governo Lula
sete encontros nacionais de negros ria da República brasileira. Deixou Presidente (2007-2010), referenda-
e negras realizados desde a funda- sua marca administrativa na políti- do no III Congresso do PT (2007).
ção do PT. Todas as negociações e ca da transversalidade da promoção
interlocuções passaram pela arti- da igualdade como alternativa ao Na história da República brasi-
culação da SNCR com o PT, em que enfoque exclusivista da política leira, o governo Lula ficou marcado
pesem o protagonismo e a força pública universalista, que tradicio- como o de maior credibilidade e
social do movimento negro contem- nalmente não tem a cara população sucesso eleitoral dos últimos tem-
porâneo nessa construção histórica. negra. Ocupou esse cargo no gover- pos. Cumpriu boa parte dos com-
no Lula entre 2003 e 2008. promissos eleitorais anteriormente
Definitivamente, para marcar as assumidos. Efetivou o projeto de
comemorações do 21 de Março – No corpo ministerial do gover- governo democrático-popular ao
Dia Internacional pela Eliminação no Lula havia o maior número de promover reformas no modelo
36 das Desigualdades Raciais, a Lei nº negros e negras na história do neoliberal. Por meio dos progra-
10.678/2003 instituiu a Secretaria Brasil. Benedita da Silva na pasta mas sociais, conseguiu aumentar
Especial de Políticas de Promoção da Secretaria Especial da Assistên- os índices de distribuição de renda
da Igualdade Racial, da Presidên- cia e Promoção Social, com status e incluir segmentos secularmente
cia da República (Seppir-PR), pela ministerial, durante o ano de 2003. desfavorecidos, como os pobres,
primeira vez na história do Poder Marina Silva, ministra do Meio Am- negros, nordestinos, mulheres,
Executivo federal foi criado um biente até 2008. O cantor e compo- indígenas, entre outros. Na área da
órgão com atribuições específicas sitor Gilberto Gil, no Ministério da educação, ampliou enormemente o
de promover a igualdade e proteger Cultura. Orlando Silva Jr., no Minis- acesso da juventude ao ensino supe-
os grupos raciais e étnicos afetados tério do Esporte. Joaquim Barbo- rior através do ProUni, chegando ao
por discriminação e demais formas sa, ministro do Supremo Tribunal índice de atendimento de 1 milhão
de intolerância, sobretudo a popula- Federal. A estratégia era garantir de jovens das camadas populares.

caderno6.indd 36 11/23/12 4:03 PM


Intensificou a participação política Outra novidade é o incentivo fiscal
de cerca de 4 milhões de brasileiros que o governo poderá dar a empre-
através das conferências munici- sas com mais de 20 funcionários que
pais, regionais, estaduais e nacional. decidirem contratar pelo menos 20%
de negros.
A grande tarefa da Seppir no
segundo mandato do governo De volta à democracia interna do
Lula, sob a gestão de Edson Santos PT, em 2007 foi realizado em São
(2008-2009) e de Eloi Ferreira Araújo Paulo o VIII Encontro Nacional de
(2010), resultado da participação da Negros e Negras do PT, que elegeu à
sociedade civil engajada na luta an- direção da SNCR uma mulher jovem,
tirracista das duas Conferências Na- Maria Aparecia Abreu, e um coletivo
cionais de Promoção da Igualdade nacional para o período (2007-2012),
Racial, realizadas em 2005 e 2009. garantindo a participação no Diretório
Nacional, com direito a voz. Ela foi a
Outro desafio foi a aprovação pelo primeira mulher negra eleita à direção
Congresso Nacional do Estatuto da da SNCR depois da gestão interina de
Igualdade Racial, ocorrida em julho Sonia Regina de Paula Leite, integrante
de 2010, depois de várias alterações do coletivo nacional e ativista da organi-
do projeto original apresentado por zação de mulheres negras de São Paulo,
Paulo Paim (PL n° 3.198, de 2000. que ocupou o cargo no ano de 2007 em
substituição a Martvs Chagas.
Com a regulamentação legal os A SNCR foi atuante na campanha
partidos políticos passam a ser obri- eleitoral de sucessão do presidente 37
gados a destinar aos negros 10% de Lula. Promoveu o Encontro Nacional
suas vagas para candidaturas nas Extraordinário (2010), de 14 a 16 de
eleições. Exige que o sistema público maio, em Brasília, e colocou os negros
de saúde se especialize no tratamen- e negras petistas diante da candidata
to e prevenção das doenças de maior à Presidência Dilma Rousseff para a
incidência na população negra. Na renovação dos compromissos eleitorais
educação, passa a ser obrigatória de 2010.
a inclusão no currículo do ensino
fundamental de aulas sobre história Por fim, irmanada na luta por igual-
geral da África e do negro no Brasil. dade no IV Congresso Nacional do PT

caderno6.indd 37 11/23/12 4:03 PM


Jornada Nacional de Formação para o
Combate ao Racismo

(2011), em Brasília, a militância petista racial para toda administração pú-


garantiu a aprovação de mudanças na blica. A ponto de o governo federal
estrutura partidária. A partir de 2014, instituir o Plano Nacional de Promo-
as direções partidárias devem con- ção da Igualdade Racial para toda a
templar uma cota mínima de 20% de sociedade brasileira. O PT tem grande
negros, 20% de jovens e paridade entre responsabilidade nessas mudanças.
homens e mulheres. Um grande avanço Já vimos seu comprometimento na
político, na medida em que essa é uma história traçada até aqui. São mudan-
inovação na história do PT e traduz a ças do processo democrático e social
ampliação do nível de empoderamento que foram vividas e impulsionadas
de negros e negras através da Política pelo PT de forma inédita, mas ne-
de Cotas na direção partidária. Todos cessárias para o partido continuar
somos sujeitos dessa história, e a tarefa cumprindo seu papel histórico: canal
é seguir transformando a sociedade de aprofundamento de uma socie-
até a eliminação de todas as formas de dade justa, igualitária, democrática,
discriminação. voltada à construção do socialismo.
Por isso O PT é estratégico na arte de
A trajetória da chamada questão ra- combater o racismo. Quiçá todas as
cial no PT revelou um novo olhar sobre mudanças prossigam e se estendam
a história do partido. Os trinta anos de por toda a sociedade com o axé de
luta dos negros e negras, com as idas todos os santos e orixás.
e vindas nas negociações internas até
38 a construção de compromissos para a
promoção da igualdade racial, foram
inspirados na igualdade e liberdade
socialista que encontramos tanto na
ancestralidade africana e na diáspo-
ra quanto no ideário do Partido dos
Trabalhadores.

A luta antirracista no PT nasceu


como questão racial, transformou-se
no combate ao racismo e expandiu
a marca da promoção da igualdade

caderno6.indd 38 11/23/12 4:03 PM


A Luta Contra o Racismo e a
Construção do Socialismo Democrático
A experiência do PT é singular as convicções anticapitalistas do PT A questão racial esteve associada
na história e na cultura política do o fizeram também crítico em rela- a esse debate, como já procuramos
Brasil. A luta em defesa dos inte- ção às experiências da social-de- demonstrar. Vale destacar as for-
resses dos trabalhadores brasilei- mocracia e do chamado socialismo mulações do V Encontro Nacional a
ros, da justiça social, da igualdade real. O compromisso com a constru- esse respeito:
na perspectiva da superação do ção de uma sociedade socialista e “O programa democrático-popu-
capitalismo e da construção do democrática orientou o diálogo e a lar” admite que o projeto socialista
socialismo democrático tem se solidariedade, com diversas expe- do PT deva incorporar “as perspec-
construído com as experiências de riências de luta pela emancipação tivas colocadas pelos diferentes
luta de movimentos e organizações e autodeterminação em nível inter- movimentos sociais que combatem
representativas de setores da so- nacional, e está inscrita na Carta de opressões específicas, como os das
ciedade brasileira. As formulações Princípios do Partido dos Trabalha- mulheres, negros, dos jovens e dos
políticas do PT, por essa razão, dores desde 1979. homossexuais, e suas expressões
envolvem muitas áreas e experiên- ideológicas”.
cias sociais, o que trouxe riqueza,
criatividade e profundidade às pro-
postas políticas de superação, por
exemplo, do racismo e do patriar- 39
calismo, que, como já afirmamos,
estão intrinsecamente associados à
constituição do capitalismo brasi-
leiro.

O ideário socialista do Partido


dos Trabalhadores guarda relação
com as tradições libertárias e expe-
riências socialistas em todo o mun-
do. Mas é importante destacar que

caderno6.indd 39 11/23/12 4:04 PM


Jornada Nacional de Formação para o
Combate ao Racismo

Há mais duas menções à questão No I Congresso foi apresentado dão e o capitalismo, cujo antago-
racial no capítulo que trata sobre o documento “A questão racial nismo acentuou o racismo, requer
“O PT e o Movimento Popular”. negra nos onze anos do PT”, com o compromisso permanente com:
A primeira admite a questão ra- o pensamento do setorial de ne-
cial como uma bandeira, entre gros sobre o caráter socialista da - a emancipação de negras e
outras, que só avançará dentro do luta antirracismo e crítica à preca- negros onde eles possam se trans-
socialismo na medida em que o riedade do projeto político do PT formar em sujeitos históricos das
desenvolvimento da luta popular para a população negra. No capí- mudanças impostas pela explora-
aprofundar o processo de formação tulo “O PT e os Movimentos So- ção e opressão que se realizam toda
da consciência de classe trabalha- ciais”, as críticas se aprofundam: vez que é negada sua identidade e
dora. A segunda está no capítulo “Para a reorganização partidária, sua condição de produtor de rique-
sobre a unificação dos movimen- o PT precisa unificar a ação dos za material e simbólica;
tos populares, que reconhece a petistas que atuam nos movimen-
importância da “articulação [da tos sociais [...] sindical, mulher, - uma emancipação em bases
luta] de negros, mulheres, ecolo- juventude e movimento negro distributivas, que se realize dia a
gia e transporte”. [...] deverá pensar, com urgência, dia dentro da realidade concreta
formulações para a superação do das conquistas dos trabalhadores
A queda do Muro de Berlim racismo no Brasil. A relação do brasileiros, a fim de superar as de-
abriu um debate internacional PT com o Movimento Negro não sigualdades de gênero e raça;
sobre o significado das mudan- avança na medida em que o parti-
ças impostas pela Perestroika na do não entende a importância do - uma emancipação igualitária
URSS. Esse cenário internacional negro na luta contra a opressão na perspectiva da discriminação
40 foi amplamente debatido no I neste país”. positiva, a fim de acelerar o caráter
Congresso do Partido dos Traba- compensatório da particularidade
lhadores (1991), em São Bernardo Por trás das críticas há uma da hierarquia racial brasileira;
do Campo (SP). Sua missão de- proposta de aprofundamento do
mocrático-popular impunha soli- diálogo sobre qual socialismo - uma emancipação do tipo pan-
dariedade a outros povos irmãos interessa à emancipação da popu- -africanista, que assimile as refle-
na medida em que o colapso do lação negra brasileira. xões originalmente elaboradas por
socialismo real teve forte impacto filósofos africanos, da diáspora e
no continente africano, principal- O socialismo, para ser verdadei- outros de natureza libertária, como
mente em Angola e Moçambique, ramente democrático em uma so- Frantz Fanon, Leopoldo Senghor,
que entraram em profunda e pro- ciedade profundamente marcada Aimé Césaire, entre outros;
longada crise. pela resistência contra a escravi-

caderno6.indd 40 11/23/12 4:04 PM


- uma emancipação inspirada na Cardoso, que em sua trajetória metas para que as experiências
resistência e no ideal libertário de nos legaram muitas conquistas. de gestão pública e atuação par-
Zumbi, Dandara, Luiz Gama, João lamentar sejam capazes de pro-
Candido, entre muitos outros. Reiteramos aqui toda a cultura mover a igualdade com recorte de
socialista comunalista africana gênero e raça.
Essas são condições objetivas apreendida com a vivencia inter-
para construirmos a identidade -religiosa, manifestações culturais Portanto, a superação do racis-
política de negros e negras na associativas e integrativas de mo, do machismo e da homofobia
luta pelo socialismo. “O socialis- diferentes grupos culturais, pre- e de todas as formas de precon-
mo, para o PT, ou será radical- servação quilombola da proprie- ceito e discriminação requer
mente democrático, ou não será dade coletiva da terra e do meio comprometimento e apoio efetivo
socialismo.” Ao relembrar esse ambiente, preservação da cultura do PT, dos governantes, gestores
princípio do 7º Encontro Nacional imaterial, territorialidade urbana e parlamentares e o engajamento
do PT, queremos ir além, reafir- comunitária, a convivência asso- político dos movimentos sociais
mando que socialismo e democra- ciativa pacífica, liderança familiar para a superação das relações de-
cia não combinam com racismo, feminina, respeito à ancestrali- siguais de raça, gênero e classe.
machismo e homofobia. dade, forte capacidade de esta- Isso exige, além de uma ousada
belecer alianças sociopolíticas, elaboração de um projeto políti-
habilidade na negociação política, co de inclusão social de negros e
O socialismo que espírito desportivo e agregador. negras, o engajamento efetivo dos
queremos petistas, a participação concreta
Um primeiro aspecto do socia- da liderança negra nos processos
O socialismo que queremos se lismo que queremos se constrói decisórios do PT e nos centros de
constrói a partir das experiências com a resistência das lutas popu- poder do Estado brasileiro. 41
históricas dos nossos ancestrais, lares. Tem a ver com a democracia
que lutaram no Quilombo dos social, capaz de oferecer igualdade Para o PT, será necessário de-
Palmares, na Conjuração Baiana de condições e liberdade de parti- senvolver políticas sociais de ação
ou na Revolta dos Búzios. Traba- cipação a todos os grupos sociais, afirmativa e ampliar recursos
lhadores negros e brancos reali- respeitando a diversidade étnica e orçamentários e humanos para a
zaram greves por todo o século cultural de nossa população. promoção da igualdade racial.
XIX e o XX, nas lutas pela posse
da terra e contra todas as formas Para avançarmos nessa direção As políticas de ação afirmativa
de opressão, a exemplo de João com passos firmes, é necessário serão necessárias até que atinja-
Cândido, Carlos Marighela, Santo planejar, definir estratégias e mos uma democracia econômica
Dias, Lélia González e Hamilton

caderno6.indd 41 11/23/12 4:04 PM


Jornada Nacional de Formação para o
Combate ao Racismo

capaz de superar a lógica perver-


sa da produção, circulação e dis-
tribuição capitalista das mercado-
rias e garantirmos a distribuição
coletiva dos bens.

Um terceiro aspecto do socialis-


mo que queremos se constrói com
o aprofundamento da democracia
política para os segmentos específi-
cos e a socialização do poder. Uma
democracia política que seja capaz
de ampliar o espaço de poder para
os movimentos sociais.

42
Nosso socialismo deverá ser inclusivo, plural, respeitando as divergências, as diferenças e implementan-
do com radicalidade o ideal igualitário e libertário. Nosso partido continuará a luta, nos marcos da integração
latino-americana, por sociedades democráticas, ecologicamente sustentáveis e socialmente justas.

caderno6.indd 42 11/23/12 4:04 PM


43

caderno6.indd 43 11/23/12 4:05 PM


caderno6.indd 44 11/23/12 4:05 PM

Você também pode gostar