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COMBATE AO RACISMO
Organizadores
Escola Nacional de Formação
Secretaria Nacional de Combate ao Racismo
Coordenação Editorial
Cida Abreu, Flávio Jorge Rodrigues da Silva, Selma Rocha
Produção de textos
Marcos Antônio Cardoso
Gevanilda Santos
Selma Rocha
Contribuição ao texto
Carlos Aluízio Gomes Falcão Pereira
Cida Abreu
Martvs das Chagas
Ilustração:
Salamanda
www.mandingascomunicacao.com.br
Tiragem:
30 mil exemplares
Impressão:
Bangraf
Capitalismo e Escravidão
Na antiguidade o estrangeiro era uma forma de uma linhagem se De qualquer modo, um escravo
era passível de ser submetido à fortalecer diante de outra. A prática estava submetido a uma situação
escravidão. O fato ocorreu nas so- da escravidão dava preferência ao em que não podia transitar livre-
ciedades africanas, na Grécia e no aprisionamento das mulheres por mente. Devia fazer o que determi-
Império Romano. Nas sociedades procriarem e por sua habilidade em nava seu senhor, não tinha vontade
africanas estruturadas em torno cultivar a terra e preparar os alimen- própria e seu tempo era de seu
dos chefes de linhagens de paren- tos. Os filhos das escravas com ho- senhor ou de seu proprietário. Nes-
tesco em aldeias ou federações de mens livres da família do seu senhor sa situação, o escravo não era visto
aldeias, podiam viver estrangeiros, geralmente não eram considerados como membro da sociedade em que
capturados em guerras, e eram escravos. A princípio não tinham vivia, mas como um ser inferior e
subordinados a um senhor e deno- os mesmos direitos dos filhos das sem nenhum direito.
minados escravos. mulheres livres, trazendo a marca da
escravidão, mas a cada geração esta No seu percurso histórico, a Áfri-
As guerras foram a maior fonte ia diminuindo, até desaparecer. ca conheceu e estruturou diferentes
de obtenção do trabalho escravo. formas de relações sociais, entre as
No entanto, um homem podia per- Os escravos nas sociedades africa- quais diversos modelos de relações
der seus direitos como membro da nas podiam constituir castas, como de trabalho e de produção basea-
sociedade por outros motivos, como a dos Tuaregues no norte da África, dos no trabalho servil e escravo. As
condenação por transgressões e cri- que mineravam o sal, e os povos formas de escravidão foram tão va-
mes, impossibilidade de pagar dívi- Akãs no território de Gana, que riadas quanto complexas, tais como
das ou de sobreviver pela simples mineravam o ouro. Outros podiam doméstico-serviçal, burocrático-
falta de recursos. Nessas condições, se destacar como condutores de -militar ou econômico-produtora.
10 as pessoas se entregavam como es- caravana ou chefes militares, podiam
cravas a quem pudesse salvar a si se tornar poderosos, conquistar Conforme Carlos Moore (2005),
e a sua família da fome provocada privilégios, acumular riquezas e as formas autóctones de escravi-
pela falta de alimentos, seca, praga, mesmo possuir outros escravos. dão que existiram no continente
o intenso processo de savanização Não deixavam, no entanto, de ser africano até o advento do Islã, no
e desertificação que arruinava as considerados escravos pelo sim- século IX, foram do tipo doméstico-
colheitas das sociedades agriculto- ples fato de ser estrangeiros e não -serviçal, com pouca extensão para
ras africanas. possuir laços de parentesco ou de a esfera da produção econômica.
solidariedade na sociedade em que Isso quer dizer que o trabalho es-
Nessas sociedades, ter escravo viviam, na qual só eram reconhe- cravo serviçal nunca chegou a uma
para aumentar a capacidade de cidos como membros na qualidade situação de escravidão econômica
trabalho e de reprodução da família de subordinados a um senhor. generalizada e, muito menos, de
Aqui a base da exploração colo- adaptação dos negros brasileiros ao propriado da posse da terra desde a
nial e escravocrata se estendeu por trabalhado livre. O Brasil foi o últi- abolição, enfrentou grandes barrei-
cerca de 350 anos. O Brasil imperial mo país a abolir o trabalho escravo. ras, pois o escravismo deixou como
do século XIX continuou as relações Com seu fim, Joaquim Nabuco e herança uma sociedade marcada
econômicas e sociais fundadas no Rui Barbosa, entre outros, intensifi- pela hierarquia das relações de raça
trabalho escravo. A independên- cam o debate sobre a modernização e gênero. Os séculos do regime de
cia política do Brasil, em 1822, não capitalista no Brasil. escravidão, organizado sob a vio-
pressupôs a abolição do trabalho lência do trabalho forçado, desu-
escravo e não provocou mudanças Após a abolição, o início do pro- manizaram o negro, alienando-o
significativas na sociedade brasi- cesso de mecanização da lavoura enquanto detentor de saber e pro-
leira de então, nem nas formas de cafeeira e a incipiente industrializa- dutor de conhecimento e riqueza,
produção, nem nas relações sociais ção, somados à crescente concen- conferindo-lhe existência apenas
que culturalmente arraigaram o tração e posse de terras nas mãos como mercadoria.
preconceito e a discriminação con- das elites, nos primeiros anos do
tra a matriz étnica e cultural africa- século XX, consolidaram a situação Essa relação social perdura na
na – o patriarcalismo como sistema de dominação e exclusão dos tra- transição do trabalho escravo para
de dominação de gênero e raça. balhadores negros, que, entregues o livre e assalariado e, associada a
à própria sorte, permaneceram na uma mentalidade patronal conser-
Mais tarde, com a evolução do ca- camada inferior da pirâmide social. vadora, impede e adia a inserção
pitalismo industrial e a expansão e No processo da imigração europeia, dos negros na classe trabalhadora
constituição da classe trabalhadora os grandes fazendeiros e indústrias enquanto tal e, como decorrência,
fabril, muitos intelectuais, teólogos, abriram as melhores prerrogativas do impõe a desvalorização da força de
14 juristas conservadores debatiam trabalho livre e assalariado e a posse trabalho dos negros e negras no
e justificavam a legitimidade da da terra ao trabalhador europeu. Aos mercado capitalista. O que se quer
escravidão. A humanidade assistia escravos recém-libertos e seus filhos dizer aqui é que o escravismo colo-
à gênese da ideologia racista na reservaram a atividade braçal com a nial está na gênese do trabalho no
esteira do capitalismo. pior remuneração ou a vadiagem. Brasil e o processo de constituição
da classe trabalhadora tem como
A abolição do trabalho escravo no No Brasil, as relações de traba- traço constitutivo relações de desi-
Brasil (1888) significou para as eli- lho capitalistas se conformaram gualdade baseadas na hierarquia
tes uma transição lenta, gradual e tardiamente se comparadas às das de raça e gênero.
segura às relações trabalhistas ca- sociedades europeias. No contexto
pitalistas, e nesse período se travou da formação da classe trabalhadora A diáspora africana no Brasil, es-
uma longa discussão sobre a não brasileira, o trabalhador negro, ex- tabelecida socialmente no contexto
Quando do nascimento do PT
as críticas se concentravam na
interpretação etnocêntrica da
formação social brasileira porque
esta minimizava a importância
do debate das desigualdades
raciais no interior da classe tra-
balhadora.
libertar das crenças teórico-ideoló- Cardoso, ativista político da época, o que explica a denominação ini-
gicas remanescentes de estruturas o Núcleo Negro Socialista idealizou cial Movimento Unificado contra a
intelectuais deterministas e etno- o MUCDR. Esse projeto político foi Discriminação Racial (MUCDR). O
centristas. criado estrategicamente pelas ten- objetivo fundamental era legitimar
dências trotskistas Liga Operária e a luta contra o racismo no plano
Após a década de 1980 se es- Fração Bolchevique, que acabaram sociopolítico, fortalecer a consciên-
treitam os laços entre movimentos fundindo-se na Convergência Socia- cia negra na sociedade brasileira e
sociais e a esquerda brasileira. Com lista (1974) . oferecer formação política para as
o Movimento Negro Brasileiro não lideranças negras.
foi diferente, e no contexto da luta A Liga Operária desenvolvia
contra a ditadura militar formaram- uma política de atrair negros para a Quanto à sua estrutura, o MU-
-se alianças entre as forças demo- tendência trotskista. Esse processo CDR constituía centros de luta
cráticas, o que resultou numa rica foi impulsionado no final da década formados por negros e núcleos
experiência de combate ao racismo de 1970 com o crescimento dessa de apoio dos outros movimentos
no campo da esquerda. Essa his- tendência na África do Sul e na sociais de composição multirracial.
tória foi marcada pela trajetória do Guiné-Bissau e a relativa expressão O caráter nacional dessa proposta
Núcleo Negro Socialista. que teve nos Estados Unidos nas foi efetivado a partir da estratégia
décadas de 1950 e 1960. da Liga Operária de buscar lide-
Nesse contexto, como uma ver- ranças negras nos vários estados
tente da luta antirracista, surgiu em Em São Paulo, alguns militantes brasileiros, o que possibilitou a
1978 o Movimento Unificado contra negros da Liga Operária que atua- formação de núcleos negros socia-
a Discriminação Racial (MUCDR), vam no meio universitário do eixo listas em São Paulo, Rio de Janeiro,
22 posteriormente denominado Movi- São Paulo-Campinas-São Carlos e Bahia, Rio Grande do Sul e Minas
mento Negro Unificado (MNU). alguns jornalistas do Jornal Versus, Gerais. A articulação nacional foi
com o propósito de intervir na luta realizada por intermédio das comis-
Entre l975 e 1978, várias lide- contra o racismo, formaram o Nú- sões estaduais e de um boletim de
ranças negras se aproximaram das cleo Negro Socialista. divulgação interno que informava
organizações de esquerda, cuja ex- a conjuntura política e o processo
periência no interior da Convergên- O projeto idealizado pelo Núcleo organizativo dos demais movimen-
cia Socialista levou ao surgimento Negro Socialista apontava para um tos sociais.
do Núcleo Negro Socialista. movimento que aglutinasse não
só o negro, mas todos aqueles que Com a movimentação de negros
sofrem discriminações: negros, de São Paulo e do Rio de Janeiro,
Segundo Hamilton Bernardes mulheres, indígenas, entre outros, foi fundada no dia l8 de junho uma
[…]a discriminação racial, o do MUCDR apontando os seguintes discriminação racial”. Desse modo,
desemprego e a violência policial fatos: a denominação passou a ser Mo-
fundamentavam seu surgimento vimento Negro Unificado contra a
e legitimavam sua organização, “[...] foi realizado em São Paulo, Discriminação Racial e, no I Con-
buscando conscientizar a comu- no dia 27 de julho, uma Assem- gresso Nacional do MUCDR, reali-
nidade negra e chamar a atenção bleia Nacional do MUCDR, com zado no Rio de Janeiro em dezem-
da sociedade brasileira para a a participação de diversas enti- bro de 1978, que reuniu delegados
questão do racismo [...] (MNU, dades do interior paulista, dos do Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia,
1988). estados de Minas Gerais e Rio de Minas Gerais, Rio Grande do Sul e
Janeiro, com quase 350 pessoas. Espírito Santo, o nome foi simplifi-
A proposta do ato público foi Nessa assembleia, definiu-se um cado para MNU.
apoiada por outros estados. Or- programa mínimo para o movi-
ganizações negras como Escola mento unificado, que abarcava Mais do que uma mudança de si-
de Samba Quilombo, Renascença desde a luta por melhores con- gla, essa alteração anunciou novos
Clube, Centro de Estudos Brasil- dições de vida até a libertação rumos no encaminhamento da luta
-África, Instituto de Pesquisa da nacional. O único grupo a se antirracismo no campo da esquerda
Cultura Negra, Núcleo Negro Socia- posicionar como socialista foi o e cada vez mais se aproximam do
lista do Rio de Janeiro, Grupo Nego Núcleo Negro de São Paulo e do projeto político-partidário.
da Bahia e militantes de Minas Rio de Janeiro. Houve muita re-
Gerais estiveram presentes ao ato sistência a esse posicionamento De todo modo, a experiência do
ou enviaram moções de apoio. Em [...] (NÚCLEO NEGRO SOCIALIS- Núcleo Negro Socialista foi relevan-
7 de julho de 1978 essas entidades TA, s/d). te na história da organização da
24 negras explicitaram à sociedade luta do movimento negro pós-1978.
brasileira novo modelo de luta para Na II Assembleia Nacional do Estreitou os laços entre marxismo e
o combate ao racismo. MUCDR, em setembro de 1978, racismo, na medida em que aproxi-
na cidade de Duque de Caxias, no mou a perspectiva de combate ao
Entre a formação do MUCDR e Rio de Janeiro, o projeto do Núcleo racismo da teoria de classe, desper-
a consolidação do MNU, primeira Negro Socialista começou a sofrer tou a consciência negra dos ativis-
entidade de caráter nacional do alterações em função daquelas di- tas das organizações de esquerda,
Movimento Negro Contemporâneo, vergências. Segundo a avaliação do fortaleceu o setor do movimento
ocorreu um período de grande polê- próprio Núcleo Socialista, o resulta- negro brasileiro que ficou mais à
mica e reação ao projeto do Núcleo do final da assembleia foi à inclusão esquerda e aproximou esse setor da
Negro Socialista, o qual avaliou a da palavra “negro” na sigla e a experiência político-partidária do
realização da primeira assembleia supressão da referência “contra a Partido dos Trabalhadores.
era muito forte a ideia de que o PT programas eleitorais, instâncias conceito é real e os negros não têm
carecia de uma visão antirracista e espaços partidários, ajudando a os mesmos direitos que os brancos
mais contundente e a mobilização fortalecer, dessa maneira, a demo- – e, antes de tudo, são tidos como
de negras e negros não poderia ser cracia interna do partido Nessa fase suspeitos e marginais”.
apenas uma correia de transmissão inaugural, Lélia Gonzalez, do Mo-
dos interesses presentes do jogo vimento Negro Unificado e ativista O I Encontro Nacional “O PT e a
eleitoral, concepção que era marca do movimento de mulheres negras questão racial”, entre 20 e 22 de mar-
generalizada dos partidos populis- e do PT- RJ, foi a primeira mulher ço de 1987, no Distrito Federal, abriu
tas e conservadores. O PT, por ser negra eleita no Diretório Nacional um canal de interlocução para que
um partido de massas, democrático do PT (1981 a 1984). o partido conhecesse as primeiras
e socialista, investiu na definição propostas de políticas especiais para
de uma política de ação capaz de Esses companheiros e compa- a questão racial e outras referentes à
garantir a ampliação da cidadania nheiras foram sujeitos da história questão internacional, precisamente
de negras e negros. da fundação do PT e zeladores de aquelas em defesa da libertação da
uma trajetória com forte traço de África do Sul e Namíbia.
A relação entre movimentos afro-brasilidade ou afrodescendên-
sociais e partido político ainda cia. Realizaram uma grande tare- Nos encontros, convenções e
engatinhava, assim como as alian- fa – destacar a questão racial do congressos do PT – os espaços de
ças políticas. O movimento negro, conjunto das lutas sociais – e todos decisão partidária –, havia disputa
por sua natureza suprapartidária, contribuíram, a seu modo, para a e consensos para garantir o diálogo
questionava qual deveria ser o história da organização dos negros e a unidade na frente de luta de
papel do PT no combate ao racismo. e negras no PT. todos os trabalhadores. Com idas e
28 De qualquer modo, o partido apoiou vindas, a participação popular e a
a primeira mobilização nacional dos No II Encontro Nacional do PT unidade petista cresciam entre as
negros através do órgão denomina- (1982), no Instituto Sede Sapientiae, lutas por liberdades democráticas,
do Subsecretaria Nacional do Negro em São Paulo, encontramos na Pla- eleições livres, nas greves por me-
do PT vinculada à Secretaria Nacio- taforma Nacional do PT, cujo lema lhoria salarial, nas reivindicações
nal de Movimentos Populares. era Terra, Trabalho e Liberdade, contra a carestia, por creche, edu-
a defesa da situação dos trabalha- cação, saúde e transporte público
O comprometimento do PT com dores brasileiros. Na dinâmica das de qualidade, livre opção sexual,
a questão racial foi uma conquista plataformas eleitorais, o partido igualdade de gênero e raça.
dos ativistas negros e negras, que fincou compromisso com a luta por
reivindicaram a inclusão da temá- igualdade e o fim da discriminação, Na efervescência das greves dos
tica nos manifestos, encontros, por entender que no Brasil “o pre- trabalhadores e do novo sindica-
de classe a partir da atuação con- frente às comemorações oficiais, e da morte de Zumbi dos Palmares
junta do deputado federal Flores- sim fazer a celebração proletária e denúncia do recrudescimento do
tan Fernandes (SP) e dos ativistas da abolição. Convidou os petistas racismo pelo neoliberalismo.
negros e negras do PT. a encarar a questão e refletir sobre
as relações entre raça e classe na A cada Encontro Nacional do PT
No V Encontro Nacional do PT sociedade brasileira e o papel revo- o debate sobre a questão racial
(1987), o Partido, representado lucionário do movimento negro. ganhava maior visibilidade. Em
por seus delegados, denunciou a São Paulo, o VII Encontro Nacional
farsa da abolição e, consequen- No mesmo ano, a Subsecreta- (1990) afirmou que o racismo não
temente, reconheceu a condição ria Nacional de Negros entrou na era apenas um problema dos ne-
de desvantagem social dos traba- disputa interna do PT e apresentou gros, e sim uma questão nacional.
lhadores negros no mercado de uma candidatura própria ao cargo Foi dado o ponta-pé inicial para
trabalho, na educação e a violência de vice na chapa Lula Presidente, que todos os petistas, desde os
policial contra a juventude. O PT nas eleições de 1989. militantes dos núcleos de base até
criou a Comissão Nacional Petista a direção do partido, assumissem
do Centenário. Integravam-na os a luta de combate ao racismo como
parlamentares Benedita da Silva,
Segunda fase: a ins- uma tarefa de todos os setores e
eleita membro do Diretório Nacio- titucionalização da luta secretarias do PT. A responsabi-
nal no V Encontro Nacional do PT, o de combate ao racismo lidade política de transformar a
deputado federal Florestan Fernan- sociedade brasileira e derrubar
des e os ativistas da Subsecretaria (1990-1995) as barreiras econômicas, sociais e
Nacional de Negros. O Partido se culturais que impedem a mobilida-
posicionou publicamente contra os Nessa fase Partido dos Traba- de da população negra agora era de
30
preparativos festivos do Centenário lhadores realizou dois encontros todos, brancos e negros, homens e
da Abolição do governo Sarney e nacionais de negros e negras e ga- mulheres, base e direção partidária,
denunciou como uma farsa a tese rantiu que a mobilização em torno movimentos sociais e governo, em
da democracia racial no Brasil. da “questão racial” mudasse de toda esfera de influência do PT. No
Orientou seus militantes a lutarem qualidade e ampliasse seu patamar ano do tricentenário da imortalida-
contra o racismo para chegarmos a de intervenção para o combate ao de de Zumbi dos Palmares o herói
uma sociedade mais justa.” racismo. O PT institucionalizou o da consciência negra é elevado
setorial de combate ao racismo e à categoria de herói nacional. No
Para Florestan Fernandes, no ano apoiou a participação popular na I confronto com a mentalidade escra-
do Centenário da Abolição o PT não Marcha Zumbi contra o Racismo e vocrata das forças conservadoras
poderia adotar uma postura festiva pela Vida e Cidadania, em come- das elites brasileiras aprendemos
moração ao ano do tricentenário
vamente no Seminário Negro Uni- das representações no PT. Hoje as pensamento “pós-moderno”, que
versitário (Senun) e no 1º Encontro Secretarias Estaduais de Combate relativiza a centralidade da luta de
Nacional das Comunidades Negras ao Racismo estão espalhadas em classes nas mudanças sociais e
Rurais, a 1ª Marcha Nacional Zumbi dezesseis Unidades da Federação desestimula a participação popular
contra o Racismo e pela Cidadania (AC, AP, BA, CE, ES, GO, MA, MG, organizada nos partidos políticos.
e a Vida. MS, PA, PR, PI, RJ, RS, SP e DF). Em seu lugar, repõe sistematica-
mente a falsa ideia de que entre a
No plenário do X Encontro Na- Outra deliberação relativa ao direita e a esquerda o que importa
cional do PT os petistas Luiz Inácio quadro eleitoral no âmbito muni- são os interesses da população
Lula da Silva, Benedita da Silva e cipal foi a campanha publicitária negra.
Jose Oliveira (PE) defenderam a antirracista denominada “Faça a
proposta de criação da Secretaria coisa certa”, com cartazes, botons Cabe chamar a atenção dos ati-
Nacional de Combate ao Racismo e e adesivos. Em São Paulo, a campa- vistas antirracistas para o fato de
foram vitoriosos. Esse fato marcou nha despertou a atenção do eleito- que o fragmento ideológico sempre
a intervenção setorial na constru- rado para o “voto racial” e para o procura ocultar o ascenso da cons-
ção partidária e um plano de ação oportunismo político da candida- ciência negra no campo da esquer-
para o combate ao racismo. tura de Celso Pitta – economista, da. Em uma conjuntura adversa
negro, paulistano – à Prefeitura de para a população negra, a tendên-
A Secretaria Nacional de Com- São Paulo, lançada pela liderança cia daquele pensamento é colocar
bate ao Racismo realizou o IV conservadora de Paulo Maluf. Ao um véu sobre as diferenças ideo-
Encontro de Negros do PT (1996) utilizar o título do filme do cineasta lógicas entre os projetos de socie-
na cidade Cajamar (SP), de 26 a 28 afro-americano Spike Lee Faça a dade em disputa a fim de vender a
32 de janeiro. Elegeu Flavio Jorge R. Coisa Certa, a campanha alertava a ideia de que em toda gestão públi-
Silva ao cargo de secretário nacio- comunidade negra sobre os riscos ca, seja conservadora, seja progres-
nal de Combate ao Racismo e seu de vincular o voto racial ao proje- siva, haverá ineficácia na condução
respectivo coletivo. A partir dessa to de Paulo Maluf. Celso Pitta foi da cidadania da população negra.
data, o secretário eleito passou a eleito. O que legitimaria uma participação
integrar a Direção Nacional do PT, em qualquer uma, desde que ofere-
com direito a voz. A eleição de um A experiência política do prefeito ça espaço político.
dirigente em fórum específico foi Celso Pitta, sustentada por uma
uma grande novidade partidária, aliança neoliberal e conservadora O XI Encontro Nacional do PT
na medida em que deixou o setorial e com o apoio de setores do mo- (1997), no Rio de Janeiro, aprovou
fora das disputas entre tendências vimento negro contemporâneo, resoluções políticas relativas aos
que até então animavam a escolha contribuiu para configurar a era do direitos humanos e à segurança
políticas de ação afirmativa. ria da qualidade de vida da popula- demandas do VI Encontro de Negros
ção negra. e Negras, principalmente os temas
Nos 20 anos do partido, o Encon- referentes à exclusão de negros e
tro Nacional Extraordinário do PT Passados vinte anos do PT, negras decorrente do neoliberalismo
(1998), em São Paulo, anunciou o chegou o momento de a juventu- e uma política especial para a juven-
fim de um ciclo histórico e definiu de negra demonstrar sua força e tude negra. Após a participação na
novas perspectivas para as elei- engajamento. O VI Encontro Na- Marcha Zumbi + 10 (2005), a juventu-
ções presidenciais de 1998. Apro- cional de Negros e Negras do PT de negra conquistou mais um espaço
vou uma política de alianças mais (1999), entre 30 e 31 de outubro, em de articulação nacional ao realizar na
ampla no campo democrático e Cajamar (SP), ficou marcado pela Bahia o Encontro Nacional de Juven-
popular, reunindo todos os setores forte atuação da juventude negra e tude Negra (Enjune), em 2007. Duran-
da sociedade que sofrem formas aprovou o documento “O Combate te o encontro, o processo de mobiliza-
específicas de discriminação, em ao Racismo no PT é outra História”. ção de jovens negros petistas iniciado
torno da oposição ao presidente Carlos Porto, secretário estadual em 1998 culminou na fundação da
Fernando Henrique Cardoso, ao de Combate ao Racismo de Mato Juventude Negra 13 (JN13). Um
neoliberalismo e aos partidos de Grosso do Sul, foi eleito secretário espaço próprio para seu protagonis-
direita. nacional de Combate ao Racismo mo e a defesa da política pública de
para o mandato 1999-2001. combate ao racismo em suas diversas
O programa do governo Lula 98 manifestações. Se junta a esse qua-
avançou na área dos direitos huma- A Secretaria Nacional de Com- dro a mobilização das jovens negras
nos. Na da segurança, apresentou bate ao Racismo (SNCR) estimulou no Seminário Nacional de Mulheres
proposta de unificação e desmi- a organização da juventude negra Jovens do PT (2008).
34 litarização da polícia e o fim da através dos grupos de trabalho e Outra importante medida apro-
Justiça Militar como condição para seminários nacionais. Segundo ava- vada no II Congresso Nacional foi a
combater a violência policial. Na liação do IV Seminário Nacional de reforma estatutária que introduziu
área da cidadania, comprometeu-se Juventude (2008), realizado em São o processo de eleição direta (PED)
a garantir a todos os brasileiros a Paulo, o GT da Juventude Negra das direções partidária, modifican-
igualdade e o respeito à diferença surgiu no interior da SNCR porque do o processo da democracia inter-
de gênero, etnia, raça, idade, opção não encontrou canal de expressão na do PT. Até então, os Encontros
sexual, condição física e mental. na Secretaria de Juventude do PT. Nacionais setoriais eram instâncias
As diretrizes para o programa de máximas deliberativas do partido.
governo Lula 98, definidas no En- O II Congresso Nacional do
contro Extraordinário, reafirmou o Partido dos Trabalhadores (1999), Sob a regulamentação do PED, o
compromisso em defesa da melho- em Belo Horizonte, incorporou VII Encontro Nacional de Negros e
No período de transição de gover- ção negra. espaço de poder para fazer avançar
no, a Secretaria Nacional de Com- as políticas públicas contra todas as
bate ao Racismo (SNCR) garantiu a Matilde Ribeiro, ativista do movi- formas de discriminação.
efetivação do compromisso eleitoral mento negro, movimento de mu-
com a comunidade negra: criar no lheres negras e do PT, foi nomeada O segundo governo Lula, após a
âmbito ministerial um organismo para a Seppir depois de um período vitória nas eleições presidenciais
de poder específico para as de- de especulações e negociações. de 2006, manteve os compromissos
mandas da população negra. Essa Entrou para a história do PT como a com as políticas setoriais do PT. A
proposição eleitoral foi resultado primeira mulher negra a ocupar um SNCR, ressalte-se, acompanhou de
do acúmulo de força e pressão dos cargo de primeiro escalão na histó- perto o Programa de Governo Lula
sete encontros nacionais de negros ria da República brasileira. Deixou Presidente (2007-2010), referenda-
e negras realizados desde a funda- sua marca administrativa na políti- do no III Congresso do PT (2007).
ção do PT. Todas as negociações e ca da transversalidade da promoção
interlocuções passaram pela arti- da igualdade como alternativa ao Na história da República brasi-
culação da SNCR com o PT, em que enfoque exclusivista da política leira, o governo Lula ficou marcado
pesem o protagonismo e a força pública universalista, que tradicio- como o de maior credibilidade e
social do movimento negro contem- nalmente não tem a cara população sucesso eleitoral dos últimos tem-
porâneo nessa construção histórica. negra. Ocupou esse cargo no gover- pos. Cumpriu boa parte dos com-
no Lula entre 2003 e 2008. promissos eleitorais anteriormente
Definitivamente, para marcar as assumidos. Efetivou o projeto de
comemorações do 21 de Março – No corpo ministerial do gover- governo democrático-popular ao
Dia Internacional pela Eliminação no Lula havia o maior número de promover reformas no modelo
36 das Desigualdades Raciais, a Lei nº negros e negras na história do neoliberal. Por meio dos progra-
10.678/2003 instituiu a Secretaria Brasil. Benedita da Silva na pasta mas sociais, conseguiu aumentar
Especial de Políticas de Promoção da Secretaria Especial da Assistên- os índices de distribuição de renda
da Igualdade Racial, da Presidên- cia e Promoção Social, com status e incluir segmentos secularmente
cia da República (Seppir-PR), pela ministerial, durante o ano de 2003. desfavorecidos, como os pobres,
primeira vez na história do Poder Marina Silva, ministra do Meio Am- negros, nordestinos, mulheres,
Executivo federal foi criado um biente até 2008. O cantor e compo- indígenas, entre outros. Na área da
órgão com atribuições específicas sitor Gilberto Gil, no Ministério da educação, ampliou enormemente o
de promover a igualdade e proteger Cultura. Orlando Silva Jr., no Minis- acesso da juventude ao ensino supe-
os grupos raciais e étnicos afetados tério do Esporte. Joaquim Barbo- rior através do ProUni, chegando ao
por discriminação e demais formas sa, ministro do Supremo Tribunal índice de atendimento de 1 milhão
de intolerância, sobretudo a popula- Federal. A estratégia era garantir de jovens das camadas populares.
Há mais duas menções à questão No I Congresso foi apresentado dão e o capitalismo, cujo antago-
racial no capítulo que trata sobre o documento “A questão racial nismo acentuou o racismo, requer
“O PT e o Movimento Popular”. negra nos onze anos do PT”, com o compromisso permanente com:
A primeira admite a questão ra- o pensamento do setorial de ne-
cial como uma bandeira, entre gros sobre o caráter socialista da - a emancipação de negras e
outras, que só avançará dentro do luta antirracismo e crítica à preca- negros onde eles possam se trans-
socialismo na medida em que o riedade do projeto político do PT formar em sujeitos históricos das
desenvolvimento da luta popular para a população negra. No capí- mudanças impostas pela explora-
aprofundar o processo de formação tulo “O PT e os Movimentos So- ção e opressão que se realizam toda
da consciência de classe trabalha- ciais”, as críticas se aprofundam: vez que é negada sua identidade e
dora. A segunda está no capítulo “Para a reorganização partidária, sua condição de produtor de rique-
sobre a unificação dos movimen- o PT precisa unificar a ação dos za material e simbólica;
tos populares, que reconhece a petistas que atuam nos movimen-
importância da “articulação [da tos sociais [...] sindical, mulher, - uma emancipação em bases
luta] de negros, mulheres, ecolo- juventude e movimento negro distributivas, que se realize dia a
gia e transporte”. [...] deverá pensar, com urgência, dia dentro da realidade concreta
formulações para a superação do das conquistas dos trabalhadores
A queda do Muro de Berlim racismo no Brasil. A relação do brasileiros, a fim de superar as de-
abriu um debate internacional PT com o Movimento Negro não sigualdades de gênero e raça;
sobre o significado das mudan- avança na medida em que o parti-
ças impostas pela Perestroika na do não entende a importância do - uma emancipação igualitária
URSS. Esse cenário internacional negro na luta contra a opressão na perspectiva da discriminação
40 foi amplamente debatido no I neste país”. positiva, a fim de acelerar o caráter
Congresso do Partido dos Traba- compensatório da particularidade
lhadores (1991), em São Bernardo Por trás das críticas há uma da hierarquia racial brasileira;
do Campo (SP). Sua missão de- proposta de aprofundamento do
mocrático-popular impunha soli- diálogo sobre qual socialismo - uma emancipação do tipo pan-
dariedade a outros povos irmãos interessa à emancipação da popu- -africanista, que assimile as refle-
na medida em que o colapso do lação negra brasileira. xões originalmente elaboradas por
socialismo real teve forte impacto filósofos africanos, da diáspora e
no continente africano, principal- O socialismo, para ser verdadei- outros de natureza libertária, como
mente em Angola e Moçambique, ramente democrático em uma so- Frantz Fanon, Leopoldo Senghor,
que entraram em profunda e pro- ciedade profundamente marcada Aimé Césaire, entre outros;
longada crise. pela resistência contra a escravi-
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Nosso socialismo deverá ser inclusivo, plural, respeitando as divergências, as diferenças e implementan-
do com radicalidade o ideal igualitário e libertário. Nosso partido continuará a luta, nos marcos da integração
latino-americana, por sociedades democráticas, ecologicamente sustentáveis e socialmente justas.