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2.

O Processo criativo

2.1 Referencial teórico

O planejamento da peça Madrigais de Vidro1advém da reflexão sobre os


múltiplos processos criativos desenvolvidos e trabalhados durante o curso de
composição na UECE no período de 2019 a 2022. As tomadas de decisões
prévias e a própria consciência sobre a técnica entre outros elementos, são
partes comuns ao decorrer desse processo.
Desse modo, faz-se necessário uma contextualização do processo criativo.
O psicólogo social e educador inglês Graham Wallas propõe o processo criativo
a partir dos seus pensamentos na obra The art of thought (1926). Nela, o autor
descreve tal processo em quatro etapas, a saber: preparação, incubação,
iluminação e verificação. A respeito destas, Santos (2017) discorre:

(...) a preparação é um estágio preparatório em que o indivíduo criador


acumula as ferramentas técnicas e conceituais as quais disporá para a
apreensão da causa futura. [...] na segunda fase – a incubação o
subconsciente busca ligações inesperadas para a resolução e
fechamento da ideia e novas conexões são formadas [...] A iluminação
é o momento em que o agente criador percebe a solução de seu
problema; o insight ou flash. Aqui se dá o encontro efetivo de todas as
conexões proporcionadas pelo trabalho conjunto do consciente com o
subconsciente realizado na [...] A última etapa proposta por Wallas é a
da verificação, na qual, ao contrário da segunda e da terceira, o agente
criador retoma o esforço mental consciente a fim de deliberadamente
testar a validade da ideia gerada, e quem sabe sintetizá-la e reduzi-la,
preparando-a para uma aplicação prática e efetiva. (IBID, p.06)

Já Marta Tavares (1998) 2, acrescenta duas etapas ao processo criativo


proposto por Wallas (1926), enfatizando assim uma dimensão subjetiva deste
fenômeno. Ela cita ainda as colaborações de Moles (1971) e Keneller (1965):

A esta classificação (preparação, incubação, iluminação e verificação)


serão acrescidas as contribuições de Keneller e Moles. Keneller
modifica a sequência convencional, admitindo, como primeiro estágio,
a fase da apreensão; enquanto Moles admite que, somente no estágio
da comunicação, o trabalho está acabado. Pode-se, assim, distinguir
seis etapas, não estanques, no desenvolvimento do processo criativo:
apreensão, preparação, incubação, iluminação, verificação e
comunicação (1998, p.32).


1 Peça autoral explorada nos capítulos seguintes.
2 Em sua tese

Figura 1 Fonte: TAVARES (1998, p.28)


Segundo Gontijo (2007, p.156) APUD Nakamura & Csikszentmihalyi
(2003, p. 186-216) “[...] a criatividade depende mais do contexto social e cultural
do que das características individuais [...]”, expande-se, assim, o processo
mostrado na figura (1), para uma perspectiva de interrelações em quaisquer
âmbitos do processo criativo, pois, as referências as respostas para cada fase.
não carecem de uma cronologia.
Igor Stravinsky (1942), em sua obra literária Poética Musical em 6 lições,
retifica a problemática de sistematizar um processo criativo ao afirmar que:

O estudo do processo criativo é algo extremamente complicado [...]:


Na verdade, é impossível observar de fora os movimentos internos
desse processo. É uma tentativa vã, assim como seguir suas
sucessivas fases na obra de outra pessoa (1942, p.53)

A fim de abordar o processo em música não só como um conjunto de


insights particulares, mas também como um produto interrelacional, faz-se
necessário uma releitura das afirmações de Stravinsky (1942), a partir da
seguinte indagação levantada por Nogueira (2019)3: “Cada instante é singular e
distinto de qualquer outro. Nestas condições, como podemos entender nossas
experiências, categorizá-las, conceituá-las, nomeá-las e comunicá-las aos
outros?”
Unem-se a esse questionamento, em prol da investigação do processo
criativo, duas afirmações na acepção da palavra “sentido”, primeiramente do
próprio Nogueira: “Se uma coisa tem forma, tem sentido. Podemos admitir que
o mundo à nossa volta não tem, necessariamente, sentido. Somos munidos de


3 Compositor e pesquisador na área de cognição em seu texto: Dimensões da produção imaginativa

musical: Movimentos, Formas e Intenções.


um impulso congênito para produzir sentido das coisas.” (IBID 2019), e de
Bertissolo (2021):
Creio que os nossos mecanismos de construção de sentido,
descritos pela cognição incorporada no âmbito da categorização, dos
esquemas de imagem pré-conceituais, que permitem nossa
percepção/atuação no mundo e, por conseguinte, na música,
influenciam nos atos e processos criativos em música

Bertissolo menciona ainda, que esses mecanismos tendem a ocorrer de


forma inconsciente e que “(...) é no domínio das memórias, expectativas e
respostas de orientação na experiência musical que o compositor, em diversos
contextos e âmbitos do processo criativo, infere, intui, busca integridade e
coerência. (...)
Em confluência ao pensamento de Bertissolo, ISHISAKI (2017)4, afirma que
“qualquer processo criativo que faça uso de um método ou ferramenta
composicional terá as lacunas desse método ou ferramenta completados pela
memória “Ele completa:

O ser passa a cumprir um outro papel no processo criativo: ele não é


somente aquele que estabelece os juízos, que decide um ou outro
material. Sob a instância da memória, o ser é também uma parte do
material composicional. (IASHAKI 2017)

GRAS (2010) 5 aponta que em seu processo composicional, referências


sonoras obtidas por análises e audição, além de referências de técnicas
composicionais são elementos interligados, e finaliza: “considerá-los em
separados talvez me levasse a uma dissecação, que não me permitiria construir
uma descrição que desse conta de uma visão mais orgânica do processo
compositivo, desde o seu início à conclusão”.
O estudo do processo criativo se justifica não só por ser comum ao ato
composicional, mas também por ser uma problemática em aberto. O compositor
Marcos Nogueira, enfatiza:
No contexto musical, em geral, como na caracterização do
conhecimento acadêmico de Música, processo criativo é um termo
central. Com surpresa, no entanto, verificamos que talvez o principal
desafio contemporâneo da pesquisa musical seja a produção de
conhecimento não apenas sobre música, mas a partir de sua prática e
experiência. (NOGUEIRA,2019)


4
5 O compositor frente a sua peça (2010)
. Silva (2018), afirma que: “A investigação de processos criativos requer
lidar com elementos da sua natureza os quais não são suscetíveis a
previsibilidades ou controles.” E ao tratar dessa natureza subjetiva do processo
criativo, em prol da inteligibilidade das ideias geradas, torna-se relevante o
entendimento dos componentes implícitos na morfologia de tal processo.
Pereira (2018) lembra: “Ao compositor é imposta a reflexão acerca da
técnica composicional. Mesmo que esta não se formalize, impõe-se no exercício
cotidiano da atividade criativa, materializando-se na própria obra.” Essa atividade
composicional exige do compositor contemporâneo não apenas a confecção de
esquemas e modelos, tomadas de decisões restritas e técnicas compositivas,
mas também a sua participação em todo o processo criativo.
Para isso, buscamos entender o compositor como um sujeito que também
executa as decisões dentro do processo criativo, algo parecido com o conceito
de compositor-programador, Costa (2016) discorre sobre:

[...] o compositor-programador deve não somente saber muito bem o


que quer como resultado sonoro, mas também elaborar estratégias
eficazes de comunicação com a máquina, de modo que o que se
espera dela seja alcançado a contento. (Ibid, p.164)

O uso da tecnologia vem sendo uma ferramenta importante para o


compositor, auxiliando em tratamento de materiais, organização das formas
musicais, notação e editoração de partituras entre outros, porém, em
determinados âmbitos essa relação entre músico e tecnologia não deve ser mais
onipresente do que a do músico com a sua prática artesanal.
Costa (2019), aponta para uma problemática em relação as obras musicais,
oriundas desde o século XVIII onde segundo ele, iniciou-se um processo de
distanciamento entre o compositor e a performance: “(...) o sujeito que cria já não
participaria necessariamente da ação performática, que extrapolaria seu âmbito
de atuação direta. (...)”. Há de se ressaltar, portanto, a importância da inter-
relação compositor-intérprete, no que se diz respeito a negociação de tomadas
de decisões dentro do fazer composicional, assim como do compositor com a
própria peça.
Chaves (2016) aborda esse processo de decisões e elenca sete pontos de
desafio como inquietações que são voltadas para a pedagogia da composição e
servem de reflexão, segundo ele existe o ponto de desafio ao tratar: estrutura e
forma, tempo, das escolhas das alturas , dos processos e matérias assim como
a percepção, do gerenciamento de fontes, da análise e repertório.
Lima (2012), faz alusão a uma ficha técnica retirada de uma aula de
Lindemberg Cardoso para apontar algumas questões do processo criativo de um
compositor: “Colocar o aluno de composição diante das opções: Compor o quê,
com o quê, para quê, e por quê? (em outras palavras: Meter a mão na massa).”
(2012, p.40). A partir dessas abordagens do fazer a composicional orientado de
forma pragmática em prol da investigação do processo criativo, tornou-se
possível o fazer antecedente e consequente da peça Madrigais de Vidro.

2.2 Metodologia

O presente estudo utilizará como métodos e técnicas um modelo de


acompanhamento em prol de relatar os demais procedimentos, captação e
tratamento dos materiais e o emprego de técnicas composicionais como controle
do fluxo da peça além de uma análise.

2.2.1 Modelo Composicional

O surgimento de novas sonoridades implica o surgimento de novos tipos


de organização e escuta dos materiais. Faz-se necessário, então, atribuirmos
componentes ao processo criativo, tendo como ponto de partida o conceito de
modelo, que na música, corresponde às decisões que precedem a
materialização de uma ideia. MEINE (2018) explica: “Tipicamente, um modelo é
entendido como referência ou exemplo, na forma de um objeto cujas
propriedades são entendidas como ideais para o contexto ao qual é empregado”.

2.2.1.1 Modelo de acompanhamento de Silva (2010)

Para relatar os procedimentos aplicados na peça Madrigais de Vidro, foi


utilizado o modelo de acompanhamento de Silva (2010). Sobre sua
funcionalidade Castro (2019) explica: “O modelo permite organizar passos
adotados durante a composição de uma obra, registrando informações em suas
instâncias: Ideias, Princípios, Metas, Materiais, Técnicas e Resultados”.

Figura 2 Fonte: Castro (2019, p.19)


O modelo consiste ainda em duas abordagens: Top-Down (quando se
alcança um resultado através do diálogo entre ideias, princípios e metas) e
Bottom Up. (que consiste no alcance desse resultado através dos diálogos entre
técnicas e materiais). Os dois princípios respectivamente:

Figura 3 e 4 Fonte: Castro (2019, p.28)

A seguir, a exemplificação de cada tópico:


Tabela 1 Fonte: CASTRO (2019, p.20)


O modelo serviu exclusivamente para relatar os acontecimentos da peça
(essa entendida como um subproduto do processo criativo) os tópicos nele
contidos são em prol dos resultados obtidos que serão destrinchados melhor
no capítulo 3 deste trabalho.

2.2.2 Captação, Geração e tratamento dos materiais

As tomadas de decisões para a captação dos materiais, não apenas


consistiram em uma série de gravações e interpretações particulares oriundas
de observações e escuta, mas também de inter-relação com musicistas e na
geração computadorizada da matéria prima em questão. Boa parte dos materiais
foram pré gravados, e cada faixa necessitou de um cuidado especial. O conceito
de uma Obra-Aberta6 serviu, em parte, como um norte para a obtenção desses


6 Conceito retirado após a leitura do livro Morfologia da Obra aberta de Valério Fiel da Costa (2016),

onde ele explana a ideia de que uma música de caráter indeterminado.


materiais, no que se diz respeito às possibilidades de interferências
performáticas. Nesse caso Costa (2016) afirma que:

O caráter mutável da obra musical é inalienável. Independentemente


das prescrições da partitura, ou da expressão do desejo por invariância
do autor, cabe ao intérprete ocasional, mediado pelas circunstâncias,
definir como se configurará seu resultado musical. (Ibid, p.155)

Propusemos um redirecionamento no foco da obra como um todo para


os materiais que estão contidos nela, dessa forma foi possível estabelecer o
conceito tanto para o compositor-performer quanto para o intérprete-compositor.
Outra forma de se obter os materiais que compõe a peça foi por geração ( do ato
de gerar) sonora. Nesse caso fragmentos de materiais foram revisados e
aproveitados em um processo de edição que consistiu em sua total modificação,
Solomos(2013) tratará do recentramento do som : […] pensa-lo como algo
suscetível de ser composto, como uma entidade construída.[…].
Para essas mudanças na composição do som, foram utilizados os
recursos do software: Reaper.

Fonte: Do autor.

No que se diz respeito ao tratamento dos sons pré gravados, foi excluído
primeiro os ruídos que não eram interessantes (em algumas tracks o ruído foi
deixado pois interessava ao contexto), e depois do som envelopado, foi feito o
uso da ferramenta pam para optar em quais canais determinada faixa atuaria,
visto que essa ferramenta tende adar ao ouvinte a possibilidade de uma escuta
mais dinâmica .

2.2.3 Aspectos técnicos

Além da técnica de edição de áudio, algumas técnicas tradicionais foram


empregadas incorporadas á faixa. Dividiremos então, as escolhas das técnicas
em uma tabela :

Nome da track Técnica Efeito Pretendido


Defasagem
Justaposição
Teoria dos conjuntos
Multiplicidade
Tabela 2 : Do autor (2022)

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