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A REVISÃO DO REGIME DA RESPONSABILIDADE DO PRODUTOR1

Mafalda Miranda Barbosa2

1. Delimitação do tema

As exigências de sentido colocadas pela crescente digitalização da realidade e pela


introdução de componentes de inteligência artificial em diversos produtos colocados no
mercado evidenciam que o regime da responsabilidade do produtor pode não ser
adequado para fazer face aos novos problemas que vão emergindo.

As instâncias europeias, conscientes disso mesmo, depois de diversos estudos levados a


cabo por grupos de peritos, apresentaram uma proposta de diretiva relativa à
responsabilidade decorrente de produtos defeituosos.

Nas páginas que se seguem, procuraremos dar a conhecer a nova disciplina que pode vir
a vincular os Estados-membros, para, no final, apreciarmos crítico-reflexivamente os
termos da proposta.

1
O estudo que se apresenta foi elaborado na sequência da solicitação da Senhora Deputada ao Parlamento
Europeu Maria Manuel Leitão Marques, relatora sombra, do seu grupo político, para a Proposta de Diretiva
relativa à responsabilidade decorrente de produtos defeituosos, na Comissão dos Assuntos Jurídicos (JURI),
no sentido de tecermos os comentários que considerássemos pertinentes em relação à nova disciplina
proposta.
2
Univ Coimbra, Instituto Jurídico da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra/University of
Coimbra Institute for Legal Research, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Orcid: 0000-
0003-0578-4249. Professora Associada com Agregação.

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2. A proposta de diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa à
responsabilidade decorrente dos produtos defeituosos (COM(2022) 495 final
2022/0302 (COD)

Estabelecendo um grau máximo de harmonização, consoante resulta do artigo 3º3, a


diretiva consagra regras comuns de responsabilidade dos operadores económicos pelos
danos sofridos por pessoas singulares causados por produtos defeituosos. Assim, os
operadores económicos que introduzam produtos defeituosos no mercado devem ser
responsabilizados pelos danos que eles venham a causar.

Entre os diversos operadores económicos contam-se o fabricante, entendido como a


pessoa singular ou coletiva que desenvolve, fabrica ou produz um produto ou manda
projetar ou fabricar um produto, que comercializa esse produto com o seu nome ou a sua
marca ou que desenvolve, fabrica ou produz um produto para uso próprio. Incluem-se,
ainda, no âmbito de relevância subjetiva do diploma os fabricantes dos componentes
defeituosos que tenham determinado o defeito do produto final4. São, ainda, responsáveis,
sempre que o fabricante do produto defeituoso esteja estabelecido fora da União, o
importador do produto defeituoso e o mandatário do fabricante. O primeiro é a pessoa
singular ou coletiva estabelecida na União que coloca um produto proveniente de um país
terceiro no mercado comunitário; o segundo é a pessoa singular ou coletiva estabelecida
na União, mandatada por escrito por um fabricante para praticar determinados atos em
seu nome. Na hipótese em que quer o importador, quer o mandatário estão estabelecidos
fora do espaço comunitário, o prestador de serviços de execução pode ser

3
Artigo 3º: «Os Estados-Membros não podem manter ou introduzir no seu direito nacional disposições
divergentes das previstas na presente diretiva, nomeadamente disposições mais ou menos estritas, que
tenham por objetivo alcançar um nível diferente de proteção dos consumidores, salvo disposição em
contrário na presente diretiva».
4
Repare-se que, já no âmbito do regime atualmente vigente, o produtor das partes componentes era
considerado responsável, sendo que tal responsabilidade não excluiria a responsabilidade do produtor do
produto final. Nesse sentido, cf. J. Calvão da SILVA, Responsabilidade civil do produtor, Almedina,
Coimbra, 1999, 549. Explica o autor que, se a parte componente é defeituosa e causadora de danos sofridos
pela vítima, a sua incorporação no produto final faz deste um produto defeituoso, sendo o produtor final
igualmente responsável, mesmo que tenha cumprido a obrigação de controlo e inspeção da parte
componente incorporada. Há, nesta situação, dois responsáveis: o produtor do produto final e o produtor da
parte componente. Já não serão responsáveis os produtores das demais partes componentes que se afigurem
não defeituosas (perfeitas). Cf., em sentido diverso, M. TRONTI, “Direttiva CEE relativa al ravvicinamento
delle disposizioni legislative regolamentari ed amministrative degli Stati membri in materia di
responsabilità per danno da prodotti difettosi”, Giurisprudenza mérito, 1988, 688 s., também citado por
Calvão da Silva. Veja-se, igualmente, a este propósito, A. Menezes CORDEIRO, Tratado de direito civil
português, II, Direito das obrigações, tomo III, Almedina, Coimbra, 2010, 690 s. e David G. OWEN,
Product liability law, Thompson West, 2008, 7 s.

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responsabilizado pelo dano causado pelo produto defeituoso. O prestador de serviços de
execução surge definido como aquele que propõe, no âmbito de uma atividade comercial,
pelo menos dois dos seguintes serviços: armazenagem, embalagem, endereçamento e
expedição, sem ter a propriedade do produto, excluindo os serviços postais, os serviços
de entrega de encomendas e quaisquer outros serviços postais ou serviços de transporte
de mercadorias.

Podem, também, ser responsabilizadas as pessoas singulares ou coletivas que modifiquem


o produto que já tenha sido colocado no mercado ou colocado em serviço, desde que a
modificação seja considerada substancial de acordo com as regras aplicáveis em matéria
de segurança dos produtos e caso seja efetuada em circunstâncias que escapam ao
controlo do fabricante inicial, bem como os distribuidores, naquelas hipóteses em que não
é possível identificar um fabricante ou em que o fabricante está estabelecido fora da União
Europeia, desde que o lesado solicite àquele distribuidor que identifique o operador
económico ou a pessoa que lhe forneceu o produto e aquele não os identifique, e os
prestadores de plataformas de mercados em linha, nas mesmas circunstâncias referidas
quanto aos distribuidores.

Cada um dos operadores económicos é responsável, independentemente de culpa, pelos


danos causados por defeitos dos seus produtos, sendo o momento relevante para a
determinação dessa responsabilidade o da colocação ou da disponibilização no mercado
ou em serviço ou, caso o fabricante mantenha o controlo sobre o produto após esse
momento, aquele em que o produto deixou de estar sob o controlo do fabricante, o qual
se verifica sempre que o fabricante de um produtor autorizar a integração, a interligação
ou o fornecimento por terceiros de um componente, incluindo atualizações ou evoluções
de software ou autorização a modificação do produto.

Entende-se por colocação no mercado a primeira disponibilização de um produto no


mercado comunitário, e por disponibilização no mercado o fornecimento de um produtor
para a distribuição, consumo ou utilização no mercado da União, no âmbito de uma
atividade comercial, a título oneroso ou gratuito. Por seu turno, a colocação em serviço
traduz-se na utilização de um produto no espaço comunitário no âmbito de uma atividade
comercial, também a título oneroso ou gratuito, quando o produto não tenha sido colocado
no mercado antes da sua primeira utilização.

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O produto é entendido como qualquer bem móvel, mesmo que integrado noutro bem
móvel ou imóvel, incluindo-se a eletricidade, os ficheiros de fabrico digital e o software.
Já o componente é visto como qualquer elemento tangível ou intangível ou qualquer
serviço conexo que seja incorporado num produto ou interligado com o mesmo pelo
fabricante desse produto ou sob o controlo do fabricante; e o serviço conexo vem definido
como um serviço digital incorporado num produto ou interligado com o mesmo de tal
modo que a sua ausência impediria que o produto desempenhasse uma ou mais das suas
funções.

Não basta que o produto seja colocado em mercado, disponibilizado em mercado ou


colocado em serviço. Exige-se, para que o operador económico possa ser responsável,
que ele seja defeituoso. O defeito de que se cura tem uma abrangência muito mais ampla
do que aquela com que nos confrontamos ao nível da linguagem corrente ou no quadro
de outros regimes privatísticos. Na verdade, o produto tem-se por defeituoso quando não
oferece a segurança com que legitimamente se pode contar, tendo em atenção todas as
circunstâncias, designadamente a apresentação, incluindo as instruções de instalação,
utilização e manutenção; a utilização ou má utilização razoavelmente previsíveis do
produto5; o efeito no produto de qualquer capacidade de continuar a aprender depois de
ser posto em funcionamento; o efeito no produto de outros produtos que se possa
razoavelmente esperar que sejam utilizados em conjunto com o produto; o momento em
que o produto foi colocado no mercado ou em serviço ou, caso o fabricante mantenha o
controlo sobre o produto após esse momento, o momento em que o produto deixou de
estar sob o controlo do fabricante; requisitos de segurança dos produtos, incluindo
requisitos de cibersegurança relevantes para a segurança; quaisquer intervenções de uma
entidade reguladora ou de um operador económico relacionadas com a segurança dos
produtos; as expectativas específicas dos utilizadores finais aos quais o produto se
destina.

A defeituosidade liga-se, assim, a uma ideia de segurança do produto e não à aptidão do


mesmo para a realização do fim a que se destina6, questionando-se qual o grau de

5
Sublinha Calvão da Silva, já por referência ao anterior quadro legal, que o produtor é responsável pelo
uso erróneo ou incorreto, desde que razoavelmente previsível. Como exemplo, refere-se ao lápis que não
deve conter substâncias tóxicas, porque pode ser levado à boca – cf. J. Calvão da SILVA, Responsabilidade
civil do produtor, 644.
6
Cf. J. Calvão da SILVA, Responsabilidade civil do produtor, 634. Segundo explicita o autor, estamos
diante de dois domínios diversos. Pensemos, por exemplo, na máquina que não trabalha, mas que não

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segurança a ter em conta, para se responder que não se procura uma segurança absoluta,
mas tão-só a segurança com que se possa contar, não de acordo com as expectativas
subjetivas do lesado, mas com as expectativas objetivas do público em geral. De notar a
este propósito que, apesar da relevância do momento da colocação do produto no mercado
ou em serviço, este não pode ser considerado defeituoso apenas por um produto melhor
já ter sido colocado ou posteriormente vir a ser colocado no mercado ou em serviço,
incluindo atualizações ou evoluções de um produto.

Consoante esclarecia Calvão da Silva por referência ao anterior quadro legal, a existência
de avanços tecnológicos não significa que produtos anteriormente postos em circulação
devam ser considerados inseguros7. No exemplo do autor, é o que sucede a um automóvel
que não tenha sistema de travagem ABS ou airbags, tendo sido colocado em circulação
quando tal tecnologia era inexistente. Note-se, porém, que, atualmente, o produtor passa
a ser responsável até ao momento em que mantém o controlo do produto, o que significa
que os avanços tecnológicos posteriores à colocação em mercado ou em serviço podem
ser relevantes para ajuizar acerca da defeituosidade de que se cura.

Impõe-se, com estes contornos, uma responsabilidade objetiva. Há, no entanto, exceções
a tal responsabilidade, que estão consagradas no artigo 10º da proposta de Diretiva.

O operador económico não é responsável se provar que a) não colocou o produto em


mercado ou em serviço ou, no caso de ser distribuidor, que não disponibilizou o produto;
b) que é provável que a qualidade defeituosa que causou o dano não existisse quando o
produto foi colocado no mercado, colocado em serviço ou, no que diz respeito a um
distribuidor, disponibilizado no mercado, ou que essa qualidade defeituosa tenha surgido
após esse momento (ou seja, não se exige a prova positiva da inexistência do defeito, mas
apenas a prova negativa da probabilidade ou razoabilidade da sua não existência8); c) que
a qualidade defeituosa se deve à conformidade do produto com normas imperativas
estabelecidas por autoridades públicas; d) que o estado objetivo dos conhecimentos

apresenta qualquer falta de segurança para quem a utiliza. Cf., ainda, no mesmo sentido K. LARENZ,
Lehrbuch des Schuldrechts, II, Halbband 1, Besonderer Teil, 13. Auflage, Verlag C. H. Beck, München,
1986, 81 s.
7
J. Calvão da SILVA, Responsabilidade civil do produtor, 645, nota 2. O autor esclarecia, ainda, que este
aspeto não se confunde com os chamados riscos de desenvolvimento: nestes, o produto era defeituoso no
momento da colocação no mercado, embora o estado da ciência e da arte não permitisse detetá-lo.
8
Nesse sentido, tendo por referência o quadro legal anterior (ainda em vigor), cf. J. Calvão da SILVA,
Responsabilidade civil do produtor, 735.

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científicos e técnicos, no momento em que o produto foi colocado no mercado ou em
serviço ou no período em que o produto esteve sob o controlo do fabricante, não permitia
a deteção da qualidade defeituosa, evidenciando-se que o fabricante não responde pelos
riscos de desenvolvimento; e) que, no caso de componente defeituoso, a qualidade
defeituosa é imputável à conceção do produto no qual foi incorporado ou às instruções
dadas pelo fabricante do referido produto ao fabricante do componente; f) que, o caso de
uma pessoa que modifica um produto, a qualidade defeituosa que causou o dano está
relacionada com uma parte do produto que não é afetada pela modificação.

Note-se, porém, que, apesar de o operador económico não ser responsável se for provável
que a qualidade defeituosa que causou o dano não existia quando o produto foi colocado
no mercado, colocado em serviço ou, no que diz respeito a um distribuidor,
disponibilizado no mercado, ou que essa qualidade defeituosa surgiu após tal momento,
ele será responsável quando o produto esteja sob o seu controlo e a qualidade defeituosa
se deva a uma das seguintes causas: a um serviço conexo; ao software, incluindo as
atualizações que dele sejam feitas; ou à ausência de atualizações de software necessárias
para manter a segurança do produto.

Haverá, além disso, uma restrição à indemnização no tocante aos danos indemnizáveis.
Na verdade, em linha com o que preceituava a Diretiva 85/374/CEE do Conselho, de 25
de julho de 1985, relativa à aproximação das disposições legislativas, regulamentares e
administrativas dos Estados-Membros em matéria de responsabilidade decorrente dos
produtos defeituosos, a nova proposta de diretiva vem qualificar o dano como as perdas
significativas resultantes de morte ou lesões corporais, incluindo danos à saúde
psicológica clinicamente reconhecidos; estragos causados a quaisquer bens ou a sua
destruição, exceto quando estiver em causa o próprio produto defeituoso, um produto
danificado por um seu componente defeituoso ou os bens exclusivamente utilizados para
fins profissionais. São ainda considerados danos relevantes a perda ou corrupção de dados
que não sejam utilizados exclusivamente para fins profissionais.

Fundamental passa a ser, como se compreenderá, o estabelecimento de um nexo de


ligação entre o defeito do produto e os danos que sobrevenham. Tal pressuposto resulta
com naturalidade quer da finalidade da responsabilidade civil do operador económico
(ressarcitória), quer do fundamento último que para ela encontremos: aquele não deve ser

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onerado com uma hiper-responsabilidade, mas tão só deve ser chamado a responder pelos
danos que tenham sido gerados pelo seu produto defeituoso.

A proposta de Diretiva, em sintonia com o que dispunha a Diretiva 85/374/CEE, dispõe


que cabe ao lesado a prova do dano, do defeito e do nexo causal entre o defeito e o dano.
Contudo, nos termos do nº2 do artigo 9º, presume-se a qualidade defeituosa nas seguintes
hipóteses: a) o demandado não cumpriu a obrigação de divulgar os elementos de prova
pertinentes de que dispõe, de acordo com o artigo 8º/1; b) o demandante estabelece que o
produto não cumpre os requisitos de segurança obrigatórios estabelecidos no direito da
União ou no direito nacional destinados a proteger contra o risco do dano ocorrido; c) o
demandante estabelece que o dano foi causado por uma falha manifesta do produto no
decurso da sua utilização normal ou em circunstâncias normais.

Do mesmo modo, presume-se que há um nexo de causalidade entre a qualidade defeituosa


do produto e o dano, sempre que se verifique que o produto é defeituoso e que o dano
causado é de uma natureza normalmente compatível com o defeito em questão, nos
termos do artigo 8º/3 da proposta de Diretiva.

Acresce que o nº4 do citado artigo 9º admite que, “caso um tribunal nacional considere
que o demandante enfrenta dificuldades excessivas, por motivos de complexidade técnica
ou científica, para provar a qualidade defeituosa do produto ou o nexo de causalidade
entre a sua qualidade defeituosa e o dano, presume-se a qualidade defeituosa do produto
ou o nexo de causalidade entre a sua qualidade defeituosa e o dano, ou ambos, se o
demandante tiver demonstrado, com base em elementos de prova suficientemente
pertinentes, que: a) o produto contribuiu para o dano; e b) é provável que o produto fosse
defeituoso ou que a sua qualidade defeituosa seja uma causa provável do dano, ou
ambos”.

Qualquer uma destas presunções – cuja natureza e intencionalidade, como veremos, são
diversas – é ilidível.

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3. A necessária alteração do regime da responsabilidade civil do produtor em
Portugal

Em face do exposto – tendo em conta que o mecanismo das diretivas impõe a sua
transposição para os ordenamentos jurídicos dos Estados-membros e tendo em conta a
harmonização máxima que resulta da proposta –, torna-se claro a necessidade de adaptar
o direito português da responsabilidade do produtor.

Vários são os pontos que merecem, num futuro próximo, uma vez aprovada a proposta
de Diretiva, a atenção do legislador pátrio.

O artigo 1º DL nº383/89, de 6 de novembro, alterado pelo DL nº131/2001, de 24 de abril,


estabelece que o produtor é responsável, independentemente de culpa, pelos danos
causados por defeitos dos produtos que põe em circulação, entendendo-se por produtor o
fabricante do produto acabado, de uma parte componente ou de matéria-prima, e ainda
quem se apresente como tal pela aposição no produto do seu nome, marca ou outro sinal
distintivo (artigo 2º, nº1). De acordo com o nº2 do artigo 2º, é também considerado
produtor aquele que, na Comunidade Económica Europeia e no exercício da sua atividade
comercial, importe do exterior produto para venda, aluguer, locação financeira, ou
qualquer outra forma de distribuição, bem como qualquer fornecedor do produto cujo
produtor comunitário ou importador não esteja identificado, salvo se, uma vez notificado
por escrito, comunicar ao lesado no prazo de três meses a identidade de um ou outro ou a
de algum fornecedor precedente. Inclui-se, portanto, no âmbito desta responsabilidade
quer o produtor real, quer o produtor aparente9, quer o produtor presumido e ainda o
fornecedor do produto anónimo.

Consoante a doutrina, integram-se no conceito de produtor aparente os grandes


distribuidores, os grossistas, as cadeias comerciais, as empresas de venda por
correspondência. A responsabilidade deste produtor aparente, segundo a explicitação de
Calvão da Silva, ocorre mesmo que as circunstâncias permitam presumir que o produto
foi realmente fabricado por outra pessoa, se o produtor real não vier identificado de modo
preciso e inequívoco no próprio produto. Pelo contrário, se o comerciante apuser a sua

9
Cf. J. Calvão da SILVA, Responsabilidade civil do produtor, 550 s.

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marca ou outro sinal distintivo naquele, sem ocultar a identidade do real produtor, a
responsabilidade recai apenas sobre o produtor real10.

Denota-se, portanto, a necessidade de alargar o conceito. Para além do fabricante real do


produto final ou de um componente, do importador, do produtor aparente, do mandatário,
incluem-se, agora, no âmbito de relevância subjetiva os prestadores de serviços de
execução e bem assim aqueles que modifiquem o produto, quando a modificação seja
substancial e não haja controlo do fabricante inicial, e os prestadores de mercado em
linha.

A solução de ampliação está em linha com a proposta do European Law Institute, na sua
Response to Public Consultation on Civil Liability11, de acordo com a qual se deveria
integrar no conceito de produtor aquele que recondiciona o produto (que não se pode
confundir com quem presta serviços de reparação, nem com os vendedores em segunda
mão que não alteram o produto)12, bem como os fornecedores de atualizações de
elementos digitais, que continuamente definem os recursos de segurança e fornecem
suporte e os online marketplaces13. Note-se, porém, que os termos não são absolutamente
coincidentes.

Enquanto a proposta de Diretiva fala dos que operam uma modificação substancial do
produto, sem o controlo do fabricante inicial, no estudo citado a referência era feita aos
sujeitos que recondicionam o produto e aos fornecedores de atualizações de elementos
digitais. O certo é que quer o recondicionamento do produto, quer a introdução de uma
atualização no sistema pode determinar uma modificação substancial do mesmo, tudo
dependendo dos termos da alteração que se opere. O legislador comunitário, mais do que
identificar cada um dos possíveis operadores económicos, optou por, nesta matéria
específica, introduzir um critério substancial que permitirá integrar ou não (consoante as
especificidades de cada caso) diversas categorias de sujeitos na categoria em apreço.

A noção de operador económico – mais ampla do que a de produtor – liga-se, por outro
lado, necessariamente ao momento relevante para a determinação da responsabilidade. O
European Law Institute tem vindo a defender, a este propósito, que, estando em causa

10
. J. Calvão da SILVA, Responsabilidade civil do produtor, 550 s.
11
ELI, Response to Public Consultation on Civil Liability, 9 s.
12
ELI, Response to Public Consultation on Civil Liability, 14.
13
ELI, Response to Public Consultation on Civil Liability, 14.

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updates de conteúdos digitais pré-instalados realizados depois de o produto ser colocado
em circulação, sendo a atualização feita regularmente, não há qualquer dificuldade de
ligar o update ao bem tangível onde ele é instalado14. Nessa medida, o European Law
Institute propõe que o produto seja entendido como o bem com elementos digitais como
qualquer bem móvel tangível que incorpore ou esteja interconectado com um conteúdo
digital ou um serviço digital, de tal modo que a ausência de tal conteúdo impeça o bem
de desempenhar a sua função15. No caso de updates de conteúdo digital instalado antes
de o produto ser posto em circulação, se o fabricante da coisa impuser a instalação de
software dos seus afiliados, a solução deve ser a mesma. A ponderação só se tornará
diversa se o conteúdo digital for fornecido por uma pessoa diferente do produtor do bem,
devendo, contudo, afirmar-se a responsabilidade do produtor se a instalação do software
for essencial para o funcionamento do bem.

Em sintonia com estas ideias, decorre da diretiva que cada um dos operadores económicos
é responsável, independentemente de culpa, pelos danos causados por defeitos dos seus
produtos, sendo o momento relevante para a determinação dessa responsabilidade o da
colocação ou da disponibilização no mercado ou em serviço ou, caso o fabricante
mantenha o controlo sobre o produto após esse momento, aquele em que o produto deixou
de estar sob o controlo do fabricante, o qual se verifica sempre que o fabricante de um
produtor autorizar a integração, a interligação ou o fornecimento por terceiros de um
componente, incluindo atualizações ou evoluções de software ou autorizar a modificação
do produto.

Do mesmo modo que se exigirá, no futuro, uma alteração do conceito de produtor,


requerer-se-á uma modificação do conceito de produto.

Nos termos do DL nº383/89, entende-se por produto qualquer coisa móvel, ainda que
incorporada noutra coisa móvel ou imóvel, nos termos do artigo 3º/1. Excluem-se, então,
os bens imóveis, mas não os materiais neles integrados16. Mas já não se excluem, depois
das alterações introduzidas em 2001, os produtos do solo, da pecuária, da pesca e da caça,
quando não tenham sofrido qualquer transformação. A exclusão suscitava algumas
dúvidas na doutrina. Problemas tão simples como saber se a simples embalagem de um

14
ELI, Response to Public Consultation on Civil Liability, 10.
15
ELI, Response to Public Consultation on Civil Liability, 10.
16
J. Calvão da SILVA, Responsabilidade civil do produtor, 604 e nota 3.

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destes bens era suscetível de configurar uma transformação para estes efeitos dividia a
doutrina17. No mais, perante uma agricultura e pecuária cada vez mais industrializadas,
os autores mostravam-se céticos em relação à bondade da exclusão18.

Se as transformações no setor primário determinaram uma alteração legislativa há vinte


anos atrás, a digitalização do mundo não poderia deixar incólume a própria conceção de
produto. Como referido anteriormente, continuando a definir-se o produto como qualquer
bem móvel, integrado noutro bem móvel ou imóvel, excluem-se dúvidas no tocante à
possibilidade de qualificação da eletricidade, dos ficheiros digitais e do software como
produto para estes efeitos. Além disso, o operador económico pode ainda vir a ser
responsabilizado por um dano causado por um componente (defeituoso), visto como
qualquer elemento tangível ou intangível ou qualquer serviço conexo que seja
incorporado num produto ou interligado com o mesmo pelo fabricante desse produto ou
sob o controlo do fabricante; e pode ser responsabilizado o prestador de serviço conexo,
definido como o serviço digital incorporado num produto ou interligado com o mesmo
de tal modo que a sua ausência impediria que o produto desempenhasse uma ou mais das
suas funções.

Uma vez mais, parecem refletir-se, ao nível da proposta de diretiva, algumas as


conclusões do European Law Institute. Segundo os peritos que o integram, o produto
deveria passar a integrar a combinação de bens com componentes digitais e os conteúdos
digitais e certos serviços digitais fornecidos como produtos, embora devam ser excluídos
os serviços em si mesmo (só devendo ser contemplados aqueles que estiverem ligados ao
bem e forem essenciais para o seu funcionamento). Advertem, porém, que, porque a
noção de conteúdos digitais se afigura demasiado ampla, poderá ser necessário limitar o
âmbito de relevância da diretiva a certos tipos de conteúdos, como os functional digital
content. Ao admitir-se este alargamento, está-se a viabilizar que o produtor do software
integrado num bem tangível possa ser diretamente demandado como produtor de uma
parte componente. Já não devem ser considerados produtos para estes efeitos os dados
digitais, ainda que essenciais para o funcionamento do algoritmo inteligente19.

17
J. Calvão da SILVA, Responsabilidade civil do produtor, 626.
18
Calvão da Silva propunha mesmo uma redução teleológica da norma do artigo 3º/2, que previa a exclusão
– cf. J. Calvão da SILVA, Responsabilidade civil do produtor, 626 s.
19
ELI, Response to Public Consultation on Civil Liability, 10-11

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Haverá, por outro lado, que ser reponderado o conceito de dano relevante para efeitos
indemnizatórios, no sentido de abarcar o ressarcimento de outros danos que não os
causados à vida, à integridade da pessoa ou a coisas diversas do produto defeituoso que
o adquirente destine a um uso não profissional.

Na verdade, o artigo 8º DL nº383/89 estabelece um limite aos danos ressarcíveis,


considerando que só o são os que resultem de morte ou lesão pessoal e os que ocorram
em coisa diversa do produto defeituoso, desde que seja normalmente destinado ao uso ou
consumo privado e o lesado lhe tenha dado principalmente este destino. E o artigo 9º
consagra que os danos causados em coisas só são indemnizáveis na medida em que
excedam o valor de 500 euros. Significa isto, de acordo com o posicionamento da doutrina
e da jurisprudência, que, se o dano ocorrido passar pela morte ou lesão pessoal (mais
ampla que a lesão da integridade física), são indemnizados todos os danos patrimoniais e
não patrimoniais subsequentes. Estando em causa a danificação de coisas, exige-se que
seja afetada uma coisa diversa do produto defeituoso, que se destine ao uso ou consumo
privado e que o lesado lhe tenha dado principalmente esse destino. Adverte a doutrina, a
este propósito, que, estando em causa danos em coisas, a indemnização não abrange
ulteriores danos, como lucros cessantes, danos de privação do uso, danos puramente
patrimoniais20.

A nova proposta de diretiva vem, como referido, qualificar o dano como as perdas
significativas resultantes de morte ou lesões corporais, incluindo danos à saúde
psicológica clinicamente reconhecidos; estragos causados a quaisquer bens ou a sua
destruição, exceto quando estiver em causa o próprio produto defeituoso, um produto
danificado por um seu componente defeituoso ou os bens exclusivamente utilizados para
fins profissionais. São ainda considerados danos relevantes a perda ou corrupção de dados
que não sejam utilizados exclusivamente para fins profissionais.

Com o alargamento proposto pelas instâncias europeias solucionam-se algumas das


insuficiências que se denotam ao nível da responsabilidade do produtor, no contexto de
digitalização do mundo a que hoje assistimos.

20
Cf. J. Calvão da SILVA, Responsabilidade civil do produtor, 733. Cremos que esta perspetiva é duvidosa,
tendo em conta a ideia de preenchimento da responsabilidade. Para outros desenvolvimentos sobre o ponto,
cf. Mafalda Miranda BARBOSA, “Responsabilidade civil do produtor. 30 anos depois da aprovação do
Decreto-Lei nº383/89, 6 novembro”, Revista do Instituto dos Advogados de Pernambuco. Em homenagem
ao Professor João Pinheiro Lins, vol. 1, nº2, 2019, 179-217

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A exclusão dos danos que se repercutem no próprio produto defeituoso suscita-nos
dúvidas. Pensamos, a título de exemplo, nos danos causados pelo software que se
repercutem em partes componentes do produto defeituoso. A este propósito, Henrique
Sousa Antunes aduz que “os conteúdos digitais adquiridos interferem, fundamentalmente,
com outros conteúdos digitais (ficheiros armazenados num computador, programas aí
instalados)” e pergunta se “a referência da Diretiva nº 85/374/CEE (artigo 9º) e do
Decreto-Lei nº 383/89 a danos em coisa excluirá o ressarcimento dos prejuízos associados
à destruição ou corrupção de conteúdos digitais de um utilizador?”, para responder que
“seria despropositado que o alargamento da responsabilidade civil do produtor pela
extensão do conceito de produto convivesse com a restrição do conceito de dano material
a coisa corpórea. Na verdade, se, numa abordagem conservadora, o universo de bens
protegidos pela indemnização é mais extenso do que o âmbito dos produtos que geram
responsabilidade, desconsiderar a desmaterialização dos bens jurídicos atendíveis a
respeito dos danos ressarcíveis geraria um desequilíbrio que o legislador rejeitou”21.
Parece assim ser pensável, neste sentido, o ressarcimento pela destruição ou deterioração
de dados em virtude de um defeito no software que os permitiu gerar. A isso, aliás, não
se parece opor a formulação da proposta da diretiva.

Por outro lado, a proposta de Diretiva não prevê qualquer limite abaixo do qual os danos
não devem ser ressarcidos. A previsão do artigo 9º DL nº 383/89, ao consagrar que os
danos causados em coisas só são indemnizáveis na medida em que excedam o valor de
500 euros, pode, porém, não ser incompatível com os termos da proposta de Diretiva,
uma vez que se definem os danos como as perdas significativas, devendo o legislador de
cada ordenamento jurídico encontrar formas de densificação do conceito indeterminado.

Além disso, a intervenção ao nível da responsabilidade do produtor deve estender-se à


questão da exclusão da obrigação de indemnizar por via da invocação do risco de
desenvolvimento. Se, no quadro normativo atual se afasta a responsabilidade do produtor
pela prova de que, no momento da colocação do produto em circulação, não era possível,
de acordo com o estado da ciência, detetar o defeito, haveremos de considerar que,
naquelas hipóteses em que o fornecedor do software tem a obrigação de continuar a
prover pelas atualizações daquele, sejam elas ou não atualizações de segurança, a
relevância do momento da entrada em circulação do produto perde sentido. Na prática,

21
Henrique Sousa ANTUNES, “Responsabilidade civil do produtor: os danos ressarcíveis na era digital”

REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 5 - 2023 111


tudo se passa como se continuamente o produtor estivesse a promover a entrada no
mercado de produtos intangíveis, desmaterializados. No mesmo sentido depõe o Expert
Group on Liability and New Technologies, ao considerar que produtor não afasta a
responsabilidade provando que, no momento em que colocou o ente dotado de
inteligência artificial no mercado, ele não era defeituoso ou que os conhecimentos
técnicos não permitiam a descoberta do defeito, quando o produtor continue responsável
pelos updates22. Consoante se esclarece no estudo citado, esta proposta está em linha com
o que, no domínio contratual, se consagrou já ao nível da Diretiva (UE) 2019/771 e da
Diretiva (UE) 2019/770.

Em linha com estas considerações, a proposta de diretiva consagra a exclusão da


responsabilidade mediante a prova de que o estado objetivo dos conhecimentos
científicos e técnicos, no momento em que o produto foi colocado no mercado ou em
serviço ou no período em que o produto esteve sob o controlo do fabricante, não permitia
a deteção da qualidade defeituosa.

O Expert Group on Liability and New Technologies acaba por ir mais longe. Tendo em
mente as dificuldades que avultam por força da autoaprendizagem dos entes dotados de
inteligência artificial, por via da chamada machine learning, designadamente o facto de
um defeito num produto digital poder resultar do impacto que o ambiente envolvente tem
no algoritmo criado, bem como tendo em mente a necessidade de repartir riscos e
benefícios de uma forma justa, sustenta que a exceção do risco de desenvolvimento não
se deve aplicar nas hipóteses em que era previsível que desenvolvimentos imprevisíveis
pudessem ocorrer23. A solução, que não pode deixar de granjear simpatia, não implica,
contudo, uma alteração legislativa, mas, apenas, a adequada mobilização do que é o risco
de desenvolvimento, pois que, ao produzir e programar um software com uma capacidade
de aprendizagem não supervisionada e ao colocá-lo, subsequentemente, no mercado não
se pode dizer que não era, de acordo com o estado da ciência e da técnica, possível prever
que uma lesão viesse a ocorrer, exatamente porque a aprendizagem pela interação do meio
do algoritmo seria imprevisível.

22
Expert Group on Liability and New Technologies, Liability for Artificial Intelligence and other emerging
digital technologies, 43
23
Expert Group on Liability and New Technologies, Liability for Artificial Intelligence and other emerging
digital technologies, 43

REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 5 - 2023 112


Esta ideia mostra-se em conformidade com a própria noção de defeituosidade, ou melhor,
com os índices de defeituosidade que devemos ter em conta. Entre as diversas
circunstâncias que devem ser ponderadas encontra-se a capacidade de o produtor
continuar a aprender depois de ser posto em funcionamento e bem assim o efeito no
produto de outros produtos que se possa razoavelmente esperar que sejam utilizados em
conjunto com o produto, significando isto que também a este nível o legislador interno
deve intervir.

Fundamental passa a ser, ainda, a necessária previsão de presunções de defeituosidade,


de dano e de nexo de causalidade, nos termos anteriormente explicitados.

4. Primeira apreciação crítica

Numa análise preliminar, a proposta de diretiva parece ajustada aos novos desafios que a
inteligência artificial e a digitalização colocam no tocante à responsabilidade do produtor.
Aliás, de um modo geral, ela acaba por acolher muitas das propostas que vinham sendo
defendidas ao nível doutrinal, quer individualmente, quer no seio de grupos de peritos
que se constituíram para o efeito.

Saúda-se, com particular ênfase, não só o alargamento do conceito de produtor, de


produto, e de dano relevante, como também a consciência de que a defeituosidade pode
resultar independentemente da programação algorítmica. Na verdade, entre as
circunstâncias atendíveis para aquela ser determinada conta-se o efeito no produto de
qualquer capacidade de continuar a aprender depois de ser posto em funcionamento.

Por outro lado, no que respeita à exceção do risco de desenvolvimento, atende-se não só
ao momento em que o produto foi colocado no mercado ou em serviço, mas também ao
período em que o produto esteve sob o controlo do fabricante, o que quer dizer que,
havendo lugar a atualizações posteriores àquele primeiro momento e sendo possível, de
acordo com o estado dos conhecimentos científicos e técnicos, nessa altura, a
identificação do defeito, não se excluirá a responsabilidade. É também um aspeto
particularmente relevante, que deve ser aplaudido.

Numa análise de pormenor, há, porém, alguns aspetos que poderiam ser modificados para
dar resposta a muitos problemas que se verificam na prática (e que tenderão a agravar-se

REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 5 - 2023 113


fruto da digitalização do mercado e da conexão entre diversos operadores que permitem
o funcionamento dos sistemas autónomos, entendidos como verdadeiros ecossistemas).

Pense-se, especificamente, no tópico da causalidade.

Embora o esquema imputacional tenha sido pensado – e bem – a partir da edificação de


uma esfera de risco que se desenha com base na colocação do produto em mercado ou em
serviço (o que se torna patente pela solução consagrada no artigo 12º/1 da proposta – “Os
Estados-Membros asseguram que a responsabilidade de um operador económico não é
reduzida quando o dano for causado simultaneamente pela qualidade defeituosa de um
produto e por uma ação ou omissão de um terceiro”; e o que permite que se consagre uma
presunção de causalidade nos termos do artigo 9º/3 – “Presume-se que há um nexo de
causalidade entre a qualidade defeituosa do produto e o dano, sempre que se verifique
que o produto é defeituoso e que o dano causado é de uma natureza normalmente
compatível com o defeito em questão”), a restante disciplina da proposta acaba por se
mostrar presa a um esquema causalista puro, assente na relação causa efeito que pode não
conseguir estabelecer-se em concreto, atenta a complexidade dos sistemas autónomos
com que se lida.

Por um lado, a proposta de diretiva continua presa a uma lógica de probabilidade que
pode não ser demonstrável em face da interconexão de todos os elementos que permitem
o funcionamento dos sistemas autónomos.

Por outro lado, ciente das dificuldades, o legislador europeu vem admitir que “caso um
tribunal nacional considere que o demandante enfrenta dificuldades excessivas, por
motivos de complexidade técnica ou científica, para provar a qualidade defeituosa do
produto ou o nexo de causalidade entre a sua qualidade defeituosa e o dano, presume-se
a qualidade defeituosa do produto ou o nexo de causalidade entre a sua qualidade
defeituosa e o dano, ou ambos, se o demandante tiver demonstrado, com base em
elementos de prova suficientemente pertinentes, que: (a) O produto contribuiu para o
dano; e (b) É provável que o produto fosse defeituoso ou que a sua qualidade defeituosa
seja uma causa provável do dano, ou ambos” (artigo 9º/4).

Não se entende, em rigor, o que é que se presume – ao nível da causalidade – quando o


lesado faz a prova de que a qualidade defeituosa é uma causa provável do dano, sobretudo

REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 5 - 2023 114


porque maioritariamente (embora não desejavelmente) a jurisprudência ainda se orienta
– ao nível europeu – por um critério de adequação, ele próprio assente na probabilidade.

As duas presunções de causalidade a que aportamos são, então, absolutamente diversas


na sua intencionalidade (na primeira hipótese está em causa a constatação de que a lesão
é a concretização do risco assumido com a colocação de um produto defeituoso no
mercado, assumindo uma vertente imputacional; na segunda hipótese recorre-se a uma
ideia de probabilidade por dificuldades probatórias) e quase inconciliáveis sem
contradição interna no sistema.

Mas, para além disso, haverá que, em primeiro lugar, perceber qual a probabilidade
relevante para este efeito. Tal não será, contudo, bastante: de facto, orientando-se a
jurisprudência pelo critério da causalidade adequada, o centro nevrálgico da indagação é
exatamente a probabilidade de que se fala. Simplesmente, a proposta de diretiva parece
apontar para a ideia de que, ao invés de se recorrer ao juízo probabilístico próprio da
adequação, se está a alijar o ónus probatório ao nível fáctico. Nessa medida, questiona-se
se, afinal, não entra em cena um primeiro patamar de indagação causal, a identificar-se
com uma noção de condicionalidade.

Tradicionalmente, a doutrina maioritária tem deposto no sentido de que a causalidade se


descobre com base na questão “é normal e provável (adequado) que de um
comportamento do tipo do do lesante – no caso, a colocação de um produto com aquele
tipo de defeito em circulação – resulte um dano daquele género?”. Tal indagação surgiria
na sequência de uma prévia inquirição condicional, por meio da qual se procuravam
afastar todos os comportamentos irrelevantes para o surgimento do dano – haveria de
determinar se o dano teria surgido se não tivesse existido aquele defeito.

Porque a realidade não se nos oferece em termos determinísticos e continuamente


lineares, a resposta que se pudesse obter para a questão da condicionalidade acabaria por
ser oferecida, as mais das vezes, em termos probabilísticos. A aproximação entre os dois
critérios de estabelecimento da causalidade passa, portanto, a ser notória, sem que,
contudo, se confunda a sua intencionalidade. Se a condicionalidade surge a depor no
sentido de afastar comportamentos irrelevantes, a adequação pretenderia introduzir uma
solução normativizada para o problema. Simplesmente, dependendo da perspetiva do
observador que se assuma, assim chegaremos ou a uma formulação probabilística-

REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 5 - 2023 115


estatística que não só quadra mal com a intencionalidade predicativa da juridicidade,
como não nos permite avançar em relação ao resultado que se obtém com a conditio; ou
a uma formulação que, porque baseada nos dados do conhecimento do agente concreto,
nos aproxima da culpa, não permitindo dar uma resposta consistente para a indagação
causal.

Em tudo isto, o que se deteta é uma predominância da probabilidade, a cumprir diversos


papéis (por um lado, ela é critério do juízo causal, por outro lado é índice probatório de
determinação do iter conducente ao dano) e a conduzir-nos a sérias dificuldades,
sobretudo quando entre em cena – como acontecerá na generalidade das hipóteses que
lidem com sistemas autónomos – o que vem conhecido por causalidade múltipla, com as
suas nuances próprias, mais ou menos dilemáticas, que se agigantam nas hipóteses de
causalidade alternativa incerta e justificaram, inclusivamente, no seio da responsabilidade
do produtor, a teorização de critérios como o da market share liability.

A solução passaria, portanto, como já tivemos oportunidade de defender, pela mutação


de perspetiva, metodologicamente justificada, abandonando-se uma visão causalista para
se abraçar uma visão imputacional.

Ao colocar no mercado um determinado produto (defeituoso), o produtor assume uma


esfera de risco, pelo que responderá, em regra, por todos os danos que possam ligar-se
funcionalmente ao defeito detetado. Não se exige, para que a ligação se estabeleça, um
qualquer grau de probabilidade bastante, contentando-nos antes com a mera
possibilidade. Do que se trata é de saber se a lesão que se verifica pode ser vista como
concretização da defeituosidade que eiva o produto.

A densificação da imputação que se começa, assim, a erigir será oferecida pelo cotejo
entre esta esfera de risco com outras esferas de risco que com ela se confrontem.

Tal como no caso da responsabilidade subjetiva, a esfera de risco geral da vida conduz à
exclusão da imputação quando a atividade em questão (a colocação do produto defeituoso
no mercado), identificando embora uma esfera de risco, apenas determina a presença do
bem ou direito ofendido no tempo e lugar da lesão do mesmo.

A consideração da esfera de risco do lesado, por seu turno, levar-nos-á, igualmente, a


ponderar a este nível o problema das predisposições constitucionais do lesado. Ao
assumir uma atividade arriscada, o agente assume a responsabilidade pelos danos que se

REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 5 - 2023 116


inscrevem na sua esfera de risco, pelo que haverá de suportar o risco de se cruzar com um
lesado dotado de idiossincrasias que agravem a lesão perpetrada. Excluir-se-á, contudo,
a imputação quando o lesado, em face de debilidades tão atípicas e tão profundas, devesse
assumir especiais deveres para consigo mesmo. Fundamental neste juízo – porque de uma
responsabilidade alargada se trata – é considerar a própria intencionalidade da
responsabilidade em questão. Ora, no caso da responsabilidade do produtor, a
defeituosidade de que se parte implica a falta de segurança do produto, tendo em conta
todas as circunstâncias, entre as quais a utilização que razoavelmente dele se faça, donde
as predisposições constitucionais do lesado podem ser de molde a, se determinarem uma
utilização não razoável do bem, excluir a imputação. Já não será esta a ponderação se o
defeito não for afastado, mas o impacto que o produto tiver no lesado determinar uma
lesão agravada. Nessa hipótese, parecem-nos ser mobilizáveis os critérios predispostos
em geral para resolver a questão imputacional, a partir dos quais a responsabilidade pode
ser excluída ou limitada.

Igualmente ponderado deve ser um qualquer comportamento do lesado. É nesse sentido


que deve ser interpretado o artigo 12º/2 da Proposta de Diretiva, nos termos do qual “a
responsabilidade do operador económico pode ser reduzida ou excluída quando o dano
for causado simultaneamente pela qualidade defeituosa do produto e por culpa da pessoa
lesada ou de uma pessoa pela qual a pessoa lesada seja responsável”.

Finalmente, há que confrontar a esfera de risco do lesante com a esfera de risco


encabeçada por um terceiro. Quanto ao ponto, dispõe o legislador comunitário que
“responsabilidade de um operador económico não é reduzida quando o dano for causado
simultaneamente pela qualidade defeituosa de um produto e por uma ação ou omissão de
um terceiro” (artigo 12º/1). Mas ficam na sombra os casos de incerteza causal, que
conhecem resposta positiva (no sentido da responsabilização solidária de todos os
envolvidos) em diversos ordenamentos jurídicos (v.g. o § 830 BGB; ou a construção
francesa da responsabilidade de um agente indeterminado dentro de um grupo
determinado de lesantes) e que começam a ser acolhidos no nosso ordenamento jurídico
(cf. a este propósito as decisões de maio de 2015 do Tribunal da Relação de Coimbra e
do Supremo Tribunal de Justiça).

Ao compreender-se desta forma o problema da causalidade, vertido em imputação


objetiva, a questão probatória ganha contornos diversos. Em geral, o lesado há de provar

REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 5 - 2023 117


a existência do evento lesivo e a edificação de uma esfera de risco. O juízo acerca da
pertença deste àquela esfera traduzir-se-á numa dimensão normativa da realização
judicativo-decisória do direito. Caberá ao lesante provar os factos impeditivos que
mostrem que, apesar da edificação da esfera de responsabilidade (entendida como
responsabilidade perante o outro e, portanto, compreendida no sentido da liability e já não
da role responsability, que, existindo a montante, nos permite o desenho preliminar
daquela), o dano-lesão sobrevindo não lhe pertence. Tal prova deverá estar de acordo com
os critérios de afastamento da imputação, não bastando a simples invocação de um curso
causal alternativo. A prova da edificação da esfera de responsabilidade será bastante para
garantir o afastamento de comportamentos irrelevantes para o surgimento da lesão.

Maiores problemas podem surgir sempre que ela seja definida a priori e em abstrato, pela
especial função que o agente assume ou porque, e no quadro da responsabilidade objetiva,
o legislador a cristalizou numa norma, não se exigindo, nesta última hipótese, sequer a
existência de um comportamento humano. Nessas situações, importa que o lesado venha
provar o envolvimento do facto na história de surgimento do evento. Porém, para tanto,
não é necessário que o sujeito se embrenhe num juízo de condicionalidade. A discussão
acerca da prova do envolvimento do facto na história de surgimento da lesão tem
conhecido grande aprofundamento na doutrina anglo-saxónica, dividindo-se os autores
entre a adesão ao but-for test, ao NESS-test ou à ideia de substantial factor. Afastamo-
nos, contudo, de qualquer uma das orientações aí oferecidas: o que nos interessa não é
determinar a preponderância ou a relevância do facto na história do surgimento da lesão,
mas perceber em que medida a atividade perigosa esteve ou não envolvida nesse iter, já
que a ponderação judicativa acerca da possível imputação do facto à atividade implicará
o cotejo de esferas de risco a que já fizemos referência. No fundo, em situações como
aquelas em que A tem o seu automóvel estacionado e ao lado dele B parou outro de uma
diferente cor, constatando, quando entra no veículo, que o mesmo foi danificado, não se
poderá sem mais afirmar a responsabilidade de B pelo simples facto de este ter
estacionado no lugar paralelo ao do carro amolgado e deter a direção efetiva dele. Na
verdade, como a esfera de responsabilidade não se edifica pela preterição de quaisquer
deveres de cuidado em relação ao outro, mas pela assunção de uma atividade que o
legislador considerou, ab initio, arriscada, há que se comprovar a ocorrência do acidente
e a participação nele. De outro modo, a imputação objetiva desconheceria limitação. Não
se confunde este problema com aquele que ocorre na situação a seguir relatada: A e B,

REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 5 - 2023 118


dois condutores, atropelaram sucessivamente C, não se conseguindo determinar qual
deles causou a morte da vítima. Apesar de não ser possível provar a relação de
condicionalidade ou sequer que o atropelamento foi um substantial factor da ocorrência
da morte, sempre se haverá de considerar que, porque se atualizaram duas esferas de
risco/responsabilidade, se gera responsabilidade solidária, o que não impede a um dos
lesantes que venha, posteriormente, provar qual a real causa da morte. No fundo, a prova
que se exige não se confunde com a necessidade de provar quer a real causa do dano, quer
que o comportamento do pretenso lesante foi conditio sine qua non do dano.
Apresentados os elementos que forneçam ao julgador o desenho concreto do que ocorreu
– ou seja, o evento lesivo – basta a pertinência funcional do dano à esfera de
responsabilidade delineada para que o juízo seja afirmativo. Só que aqui, por estarmos no
quadro da responsabilidade objetiva, não qualificamos o evento lesivo como a simples
lesão do direito subjetivo absoluto, tendo de se apresentar o próprio acidente como
elemento perturbador que faz atualizar a esfera de responsabilidade previamente
assumida.

Daí que, num caso análogo em que seja discernível a violação de deveres por parte dos
pretensos lesantes, a ponderação seja outra, desde que o fundamento invocado para a
pretensão indemnizatória seja a responsabilidade com base na culpa. Olhemos para o caso
oferecido por Zipursky. Entre as 11:00 e as 11:15 do dia 22 de Julho, A estava a trabalhar
na construção de uma passagem aérea junto da entrada de uma ponte. Os sinais de trânsito
indicavam que deveria haver uma redução da velocidade, mas todos os carros circulavam
a 50-60 km/h. A precisava de atravessar para o outro lado na zona de construção e esperou
que outro trabalhador indicasse a paragem com um sinal stop. Um carro preto quase lhe
embateu. Com isso, ele caiu, feriu-se na cara e partiu inúmeros dentes. Usando as câmaras
de segurança, A conseguiu, através dos seus advogados, identificar quatro carros pretos
que ali passaram no momento do acidente, em excesso de velocidade. Ele pode provar
que cada um destes condutores é responsável pelo tortious risk que pode ter gerado o
dano, mas não pode provar qual deles causou, de facto, a lesão, consoante explicita o
autor24. Embora Zipursky entenda não haver aqui qualquer responsabilidade, a posição
não é unânime, entendendo Geistfield que, num caso como este, os quatro condutores são

24
Benjamin C. ZIPURSKY, “Evidence, Unfairness and market-share liability: a comment on Geistfeld”,
University of Pennsylvania Law Review, vol. 156, 126 s.

REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 5 - 2023 119


solidariamente responsáveis25. Para tanto, o autor recorre ao conceito de evidential
grouping, alicerçando a solução numa posição que situa o problema a meio termo entre a
teoria dos evidential damages e a alternative liability, o que significa que a posição que
defende é fundamentada, sobretudo, com base em considerações atinentes à dificuldade
probatória. É este o ponto de clivagem com a solução por nós sustentada: a
responsabilidade solidária a que chegamos resulta, tão-só, da assunção por mais do que
um sujeito de esferas de responsabilidade. Ao lesado basta provar a edificação de tal
esfera e o evento lesivo (a lesão do direito absoluto). Caberia, pois, ao lesante ou a um
dos lesantes vir provar qual foi a real causa do dano ou, em alternativa, que efetivamente
não o causou. Ora, esta solução não poderia funcionar, automaticamente, no caso da
responsabilidade objetiva – porque a esfera de responsabilidade é assumida a montante,
teria de se provar, igualmente, a sua atualização em concreto, para o que seria
fundamental a prova do envolvimento no acidente.

Estando em causa a responsabilidade do produtor, o lesado terá de provar a natureza


defeituosa do produto e a utilização desse mesmo produto por si ou por terceiro, mais
precisamente, que foi feita uma utilização normal (ou não normal, mas previsível) do bem
e que o dano surgiu posteriormente ou no decurso dessa utilização.

Assim, tendo em conta o articulado da proposta de Diretiva, sugerem-se pontualmente


algumas alterações que espelhem as ideias explanadas anteriormente.

Artigo 9.º
Ónus da prova
1. Os Estados-Membros asseguram que é exigido ao demandante que faça prova da qualidade
defeituosa do produto, do dano sofrido, presumindo-se o nexo de causalidade entre a
qualidade defeituosa e o dano, sempre que se verifique que o produto é defeituoso e que o
dano causado é de uma natureza normalmente compatível com o defeito em questão.
2. O lesado deve ainda provar o evento lesivo, ou seja, que foi feita uma utilização normal do
bem e que o dano surgiu posteriormente ou no decurso dessa utilização.
3. Presume-se a qualidade defeituosa do produto caso uma das seguintes condições esteja
satisfeita:
(a) O demandado não cumpriu a obrigação de divulgar os elementos de prova pertinentes
de que dispõe, nos termos do artigo 8.º, n.º 1;

25
GEISTFELD, “The doctrinal unity of alternative liability and market-share liability”, University of
Pennsylvania Law Review, nº155, 498 s.
Falando de um estado de necessidade de prova (Beweisnotstand), cf. Theo BODEWIG, “Probleme
alternativer Kausalität bei Massenschäden”, Archiv für die civilistische Praxis, 185, Heft 6, 1985, 511 s.

REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 5 - 2023 120


(b) O demandante estabelece que o produto não cumpre os requisitos de segurança
obrigatórios estabelecidos no direito da União ou no direito nacional destinados a
proteger contra o risco do dano ocorrido; ou
(c) O demandante estabelece que o dano foi causado por uma falha manifesta do produto
no decurso da sua utilização normal ou em circunstâncias normais.
4. Caso um tribunal nacional considere que o demandante enfrenta dificuldades
excessivas, por motivos de complexidade técnica ou científica, para provar a qualidade
defeituosa do produto, presume-se a qualidade defeituosa do produto, se o demandante
tiver demonstrado, com base em elementos de prova suficientemente pertinentes, que:
(a) O produto contribuiu para o dano; e
(b) É provável que o produto fosse defeituoso.
O demandado tem o direito de contestar a existência de dificuldades excessivas ou a
probabilidade referida no primeiro parágrafo.
5. O demandado tem o direito de ilidir qualquer uma das presunções referidas nos n o 1, 2,
3 e 4.

Artigo 12.º
Redução da responsabilidade
1. Os Estados-Membros asseguram que a responsabilidade de um operador económico não é
reduzida quando o dano for causado simultaneamente pela qualidade defeituosa de um produto
e por uma ação ou omissão de um terceiro.
2. A responsabilidade do operador económico pode ser reduzida ou excluída quando o dano for
causado simultaneamente pela qualidade defeituosa do produto e por culpa da pessoa lesada ou
de uma pessoa pela qual a pessoa lesada seja responsável.

Do mesmo modo, tendo em conta a possibilidade de desconhecimento do efetivo operador económico que
disponibiliza o componente digital e o modo como, à luz de uma perspetiva imputacional, tal incerteza pode
ser solucionada, propomos o aditamento de um novo artigo à proposta de diretiva. Assim,

Artigo 11º - A
Responsabilidade das unidades tecnológicas
Havendo mais do que um possível responsável, no quadro da interconexão de componentes que permitem
o funcionamento de um sistema autónomo do software, entendido como produto (designadamente nas
hipóteses de interdependência técnica ou combinação exclusiva de componentes), sem que se consiga
determinar quem é efetivamente o causador do dano, a responsabilidade entre todos deve ser afirmada como
solidária.

A solução não dista da intencionalidade da proposta de diretiva. Como referido


anteriormente, nos termos do artigo 10º/2, o operador económico não fica isento de
responsabilidade se a qualidade defeituosa do produto se ficar a dever a uma das seguintes
causas, desde que esteja sob controlo do fabricante: a um serviço conexo, ao software,

REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 5 - 2023 121


incluindo atualizações ou evoluções daquele, ou à ausência de atualizações ou evoluções
do mesmo necessárias para manter a segurança.

Na determinação da responsabilidade, haveremos, por isso, de ter em conta eventuais


relações que se possam estabelecer entre o fabricante que não procede às atualizações de
software e terceiros que se possam apresentar como seus parceiros contratuais.

É que, como também já sublinhámos, para além das hipóteses em que o update de
conteúdos digitais é feito depois de o produto ser colocado em circulação, sob controlo
do fabricante, nas quais não há qualquer dificuldade de ligar a atualização ao bem tangível
onde ele é instalado, importa não esquecer, como resulta dos trabalhos do European Law
Institute, os casos de updates de conteúdo digital instalado antes de o produto ser posto
em circulação, se o fabricante da coisa impuser a instalação de software dos seus afiliados.
A ponderação só deve diversa se o conteúdo digital for fornecido por uma pessoa
diferente do produtor do bem, devendo, contudo, afirmar-se a responsabilidade do
produtor se a instalação do software for essencial para o funcionamento do bem.

Repare-se que, em qualquer destes casos, o fabricante mantém o controlo sobre o produto,
o qual se verifica sempre que o fabricante de um produtor autorizar a integração, a
interligação ou o fornecimento por terceiros de um componente, incluindo atualizações
ou evoluções de software ou autorização a modificação do produto.

Ora, havendo mais do que um responsável, resultaria claro, com base no artigo 11º da
proposta de Diretiva, que a responsabilidade entre ambos se afirma como solidária. O que
se propõe, adicionalmente, é que, naquelas hipóteses em que não seja possível discernir
quem efetivamente pode ter causado, com a colocação em mercado ou em serviço ou com
a disponibilização do componente, o dano-lesão, apesar da incerteza dita causal, se possa
continuar a afirmar a responsabilidade dos vários operadores económicos em termos
solidários.

Na verdade, pese embora se possa chegar a esta solução com base na articulação dos
diversos preceitos da proposta de diretiva – e do que poderá ser a sua futura transposição
– parece-nos que o esclarecimento se justifica, quer para evitar problemas interpretativos
futuros, quer para permitir que, por meio de um regime especial, se possa afirmar
desassombradamente uma solução que a doutrina e a jurisprudência já têm vindo a acolher
no nosso ordenamento jurídico.

REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 5 - 2023 122

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