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1. Delimitação do tema
Nas páginas que se seguem, procuraremos dar a conhecer a nova disciplina que pode vir
a vincular os Estados-membros, para, no final, apreciarmos crítico-reflexivamente os
termos da proposta.
1
O estudo que se apresenta foi elaborado na sequência da solicitação da Senhora Deputada ao Parlamento
Europeu Maria Manuel Leitão Marques, relatora sombra, do seu grupo político, para a Proposta de Diretiva
relativa à responsabilidade decorrente de produtos defeituosos, na Comissão dos Assuntos Jurídicos (JURI),
no sentido de tecermos os comentários que considerássemos pertinentes em relação à nova disciplina
proposta.
2
Univ Coimbra, Instituto Jurídico da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra/University of
Coimbra Institute for Legal Research, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Orcid: 0000-
0003-0578-4249. Professora Associada com Agregação.
3
Artigo 3º: «Os Estados-Membros não podem manter ou introduzir no seu direito nacional disposições
divergentes das previstas na presente diretiva, nomeadamente disposições mais ou menos estritas, que
tenham por objetivo alcançar um nível diferente de proteção dos consumidores, salvo disposição em
contrário na presente diretiva».
4
Repare-se que, já no âmbito do regime atualmente vigente, o produtor das partes componentes era
considerado responsável, sendo que tal responsabilidade não excluiria a responsabilidade do produtor do
produto final. Nesse sentido, cf. J. Calvão da SILVA, Responsabilidade civil do produtor, Almedina,
Coimbra, 1999, 549. Explica o autor que, se a parte componente é defeituosa e causadora de danos sofridos
pela vítima, a sua incorporação no produto final faz deste um produto defeituoso, sendo o produtor final
igualmente responsável, mesmo que tenha cumprido a obrigação de controlo e inspeção da parte
componente incorporada. Há, nesta situação, dois responsáveis: o produtor do produto final e o produtor da
parte componente. Já não serão responsáveis os produtores das demais partes componentes que se afigurem
não defeituosas (perfeitas). Cf., em sentido diverso, M. TRONTI, “Direttiva CEE relativa al ravvicinamento
delle disposizioni legislative regolamentari ed amministrative degli Stati membri in materia di
responsabilità per danno da prodotti difettosi”, Giurisprudenza mérito, 1988, 688 s., também citado por
Calvão da Silva. Veja-se, igualmente, a este propósito, A. Menezes CORDEIRO, Tratado de direito civil
português, II, Direito das obrigações, tomo III, Almedina, Coimbra, 2010, 690 s. e David G. OWEN,
Product liability law, Thompson West, 2008, 7 s.
5
Sublinha Calvão da Silva, já por referência ao anterior quadro legal, que o produtor é responsável pelo
uso erróneo ou incorreto, desde que razoavelmente previsível. Como exemplo, refere-se ao lápis que não
deve conter substâncias tóxicas, porque pode ser levado à boca – cf. J. Calvão da SILVA, Responsabilidade
civil do produtor, 644.
6
Cf. J. Calvão da SILVA, Responsabilidade civil do produtor, 634. Segundo explicita o autor, estamos
diante de dois domínios diversos. Pensemos, por exemplo, na máquina que não trabalha, mas que não
Consoante esclarecia Calvão da Silva por referência ao anterior quadro legal, a existência
de avanços tecnológicos não significa que produtos anteriormente postos em circulação
devam ser considerados inseguros7. No exemplo do autor, é o que sucede a um automóvel
que não tenha sistema de travagem ABS ou airbags, tendo sido colocado em circulação
quando tal tecnologia era inexistente. Note-se, porém, que, atualmente, o produtor passa
a ser responsável até ao momento em que mantém o controlo do produto, o que significa
que os avanços tecnológicos posteriores à colocação em mercado ou em serviço podem
ser relevantes para ajuizar acerca da defeituosidade de que se cura.
Impõe-se, com estes contornos, uma responsabilidade objetiva. Há, no entanto, exceções
a tal responsabilidade, que estão consagradas no artigo 10º da proposta de Diretiva.
apresenta qualquer falta de segurança para quem a utiliza. Cf., ainda, no mesmo sentido K. LARENZ,
Lehrbuch des Schuldrechts, II, Halbband 1, Besonderer Teil, 13. Auflage, Verlag C. H. Beck, München,
1986, 81 s.
7
J. Calvão da SILVA, Responsabilidade civil do produtor, 645, nota 2. O autor esclarecia, ainda, que este
aspeto não se confunde com os chamados riscos de desenvolvimento: nestes, o produto era defeituoso no
momento da colocação no mercado, embora o estado da ciência e da arte não permitisse detetá-lo.
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Nesse sentido, tendo por referência o quadro legal anterior (ainda em vigor), cf. J. Calvão da SILVA,
Responsabilidade civil do produtor, 735.
Note-se, porém, que, apesar de o operador económico não ser responsável se for provável
que a qualidade defeituosa que causou o dano não existia quando o produto foi colocado
no mercado, colocado em serviço ou, no que diz respeito a um distribuidor,
disponibilizado no mercado, ou que essa qualidade defeituosa surgiu após tal momento,
ele será responsável quando o produto esteja sob o seu controlo e a qualidade defeituosa
se deva a uma das seguintes causas: a um serviço conexo; ao software, incluindo as
atualizações que dele sejam feitas; ou à ausência de atualizações de software necessárias
para manter a segurança do produto.
Haverá, além disso, uma restrição à indemnização no tocante aos danos indemnizáveis.
Na verdade, em linha com o que preceituava a Diretiva 85/374/CEE do Conselho, de 25
de julho de 1985, relativa à aproximação das disposições legislativas, regulamentares e
administrativas dos Estados-Membros em matéria de responsabilidade decorrente dos
produtos defeituosos, a nova proposta de diretiva vem qualificar o dano como as perdas
significativas resultantes de morte ou lesões corporais, incluindo danos à saúde
psicológica clinicamente reconhecidos; estragos causados a quaisquer bens ou a sua
destruição, exceto quando estiver em causa o próprio produto defeituoso, um produto
danificado por um seu componente defeituoso ou os bens exclusivamente utilizados para
fins profissionais. São ainda considerados danos relevantes a perda ou corrupção de dados
que não sejam utilizados exclusivamente para fins profissionais.
Acresce que o nº4 do citado artigo 9º admite que, “caso um tribunal nacional considere
que o demandante enfrenta dificuldades excessivas, por motivos de complexidade técnica
ou científica, para provar a qualidade defeituosa do produto ou o nexo de causalidade
entre a sua qualidade defeituosa e o dano, presume-se a qualidade defeituosa do produto
ou o nexo de causalidade entre a sua qualidade defeituosa e o dano, ou ambos, se o
demandante tiver demonstrado, com base em elementos de prova suficientemente
pertinentes, que: a) o produto contribuiu para o dano; e b) é provável que o produto fosse
defeituoso ou que a sua qualidade defeituosa seja uma causa provável do dano, ou
ambos”.
Qualquer uma destas presunções – cuja natureza e intencionalidade, como veremos, são
diversas – é ilidível.
Em face do exposto – tendo em conta que o mecanismo das diretivas impõe a sua
transposição para os ordenamentos jurídicos dos Estados-membros e tendo em conta a
harmonização máxima que resulta da proposta –, torna-se claro a necessidade de adaptar
o direito português da responsabilidade do produtor.
Vários são os pontos que merecem, num futuro próximo, uma vez aprovada a proposta
de Diretiva, a atenção do legislador pátrio.
9
Cf. J. Calvão da SILVA, Responsabilidade civil do produtor, 550 s.
A solução de ampliação está em linha com a proposta do European Law Institute, na sua
Response to Public Consultation on Civil Liability11, de acordo com a qual se deveria
integrar no conceito de produtor aquele que recondiciona o produto (que não se pode
confundir com quem presta serviços de reparação, nem com os vendedores em segunda
mão que não alteram o produto)12, bem como os fornecedores de atualizações de
elementos digitais, que continuamente definem os recursos de segurança e fornecem
suporte e os online marketplaces13. Note-se, porém, que os termos não são absolutamente
coincidentes.
Enquanto a proposta de Diretiva fala dos que operam uma modificação substancial do
produto, sem o controlo do fabricante inicial, no estudo citado a referência era feita aos
sujeitos que recondicionam o produto e aos fornecedores de atualizações de elementos
digitais. O certo é que quer o recondicionamento do produto, quer a introdução de uma
atualização no sistema pode determinar uma modificação substancial do mesmo, tudo
dependendo dos termos da alteração que se opere. O legislador comunitário, mais do que
identificar cada um dos possíveis operadores económicos, optou por, nesta matéria
específica, introduzir um critério substancial que permitirá integrar ou não (consoante as
especificidades de cada caso) diversas categorias de sujeitos na categoria em apreço.
A noção de operador económico – mais ampla do que a de produtor – liga-se, por outro
lado, necessariamente ao momento relevante para a determinação da responsabilidade. O
European Law Institute tem vindo a defender, a este propósito, que, estando em causa
10
. J. Calvão da SILVA, Responsabilidade civil do produtor, 550 s.
11
ELI, Response to Public Consultation on Civil Liability, 9 s.
12
ELI, Response to Public Consultation on Civil Liability, 14.
13
ELI, Response to Public Consultation on Civil Liability, 14.
Em sintonia com estas ideias, decorre da diretiva que cada um dos operadores económicos
é responsável, independentemente de culpa, pelos danos causados por defeitos dos seus
produtos, sendo o momento relevante para a determinação dessa responsabilidade o da
colocação ou da disponibilização no mercado ou em serviço ou, caso o fabricante
mantenha o controlo sobre o produto após esse momento, aquele em que o produto deixou
de estar sob o controlo do fabricante, o qual se verifica sempre que o fabricante de um
produtor autorizar a integração, a interligação ou o fornecimento por terceiros de um
componente, incluindo atualizações ou evoluções de software ou autorizar a modificação
do produto.
Nos termos do DL nº383/89, entende-se por produto qualquer coisa móvel, ainda que
incorporada noutra coisa móvel ou imóvel, nos termos do artigo 3º/1. Excluem-se, então,
os bens imóveis, mas não os materiais neles integrados16. Mas já não se excluem, depois
das alterações introduzidas em 2001, os produtos do solo, da pecuária, da pesca e da caça,
quando não tenham sofrido qualquer transformação. A exclusão suscitava algumas
dúvidas na doutrina. Problemas tão simples como saber se a simples embalagem de um
14
ELI, Response to Public Consultation on Civil Liability, 10.
15
ELI, Response to Public Consultation on Civil Liability, 10.
16
J. Calvão da SILVA, Responsabilidade civil do produtor, 604 e nota 3.
17
J. Calvão da SILVA, Responsabilidade civil do produtor, 626.
18
Calvão da Silva propunha mesmo uma redução teleológica da norma do artigo 3º/2, que previa a exclusão
– cf. J. Calvão da SILVA, Responsabilidade civil do produtor, 626 s.
19
ELI, Response to Public Consultation on Civil Liability, 10-11
A nova proposta de diretiva vem, como referido, qualificar o dano como as perdas
significativas resultantes de morte ou lesões corporais, incluindo danos à saúde
psicológica clinicamente reconhecidos; estragos causados a quaisquer bens ou a sua
destruição, exceto quando estiver em causa o próprio produto defeituoso, um produto
danificado por um seu componente defeituoso ou os bens exclusivamente utilizados para
fins profissionais. São ainda considerados danos relevantes a perda ou corrupção de dados
que não sejam utilizados exclusivamente para fins profissionais.
20
Cf. J. Calvão da SILVA, Responsabilidade civil do produtor, 733. Cremos que esta perspetiva é duvidosa,
tendo em conta a ideia de preenchimento da responsabilidade. Para outros desenvolvimentos sobre o ponto,
cf. Mafalda Miranda BARBOSA, “Responsabilidade civil do produtor. 30 anos depois da aprovação do
Decreto-Lei nº383/89, 6 novembro”, Revista do Instituto dos Advogados de Pernambuco. Em homenagem
ao Professor João Pinheiro Lins, vol. 1, nº2, 2019, 179-217
Por outro lado, a proposta de Diretiva não prevê qualquer limite abaixo do qual os danos
não devem ser ressarcidos. A previsão do artigo 9º DL nº 383/89, ao consagrar que os
danos causados em coisas só são indemnizáveis na medida em que excedam o valor de
500 euros, pode, porém, não ser incompatível com os termos da proposta de Diretiva,
uma vez que se definem os danos como as perdas significativas, devendo o legislador de
cada ordenamento jurídico encontrar formas de densificação do conceito indeterminado.
21
Henrique Sousa ANTUNES, “Responsabilidade civil do produtor: os danos ressarcíveis na era digital”
O Expert Group on Liability and New Technologies acaba por ir mais longe. Tendo em
mente as dificuldades que avultam por força da autoaprendizagem dos entes dotados de
inteligência artificial, por via da chamada machine learning, designadamente o facto de
um defeito num produto digital poder resultar do impacto que o ambiente envolvente tem
no algoritmo criado, bem como tendo em mente a necessidade de repartir riscos e
benefícios de uma forma justa, sustenta que a exceção do risco de desenvolvimento não
se deve aplicar nas hipóteses em que era previsível que desenvolvimentos imprevisíveis
pudessem ocorrer23. A solução, que não pode deixar de granjear simpatia, não implica,
contudo, uma alteração legislativa, mas, apenas, a adequada mobilização do que é o risco
de desenvolvimento, pois que, ao produzir e programar um software com uma capacidade
de aprendizagem não supervisionada e ao colocá-lo, subsequentemente, no mercado não
se pode dizer que não era, de acordo com o estado da ciência e da técnica, possível prever
que uma lesão viesse a ocorrer, exatamente porque a aprendizagem pela interação do meio
do algoritmo seria imprevisível.
22
Expert Group on Liability and New Technologies, Liability for Artificial Intelligence and other emerging
digital technologies, 43
23
Expert Group on Liability and New Technologies, Liability for Artificial Intelligence and other emerging
digital technologies, 43
Numa análise preliminar, a proposta de diretiva parece ajustada aos novos desafios que a
inteligência artificial e a digitalização colocam no tocante à responsabilidade do produtor.
Aliás, de um modo geral, ela acaba por acolher muitas das propostas que vinham sendo
defendidas ao nível doutrinal, quer individualmente, quer no seio de grupos de peritos
que se constituíram para o efeito.
Por outro lado, no que respeita à exceção do risco de desenvolvimento, atende-se não só
ao momento em que o produto foi colocado no mercado ou em serviço, mas também ao
período em que o produto esteve sob o controlo do fabricante, o que quer dizer que,
havendo lugar a atualizações posteriores àquele primeiro momento e sendo possível, de
acordo com o estado dos conhecimentos científicos e técnicos, nessa altura, a
identificação do defeito, não se excluirá a responsabilidade. É também um aspeto
particularmente relevante, que deve ser aplaudido.
Numa análise de pormenor, há, porém, alguns aspetos que poderiam ser modificados para
dar resposta a muitos problemas que se verificam na prática (e que tenderão a agravar-se
Por um lado, a proposta de diretiva continua presa a uma lógica de probabilidade que
pode não ser demonstrável em face da interconexão de todos os elementos que permitem
o funcionamento dos sistemas autónomos.
Por outro lado, ciente das dificuldades, o legislador europeu vem admitir que “caso um
tribunal nacional considere que o demandante enfrenta dificuldades excessivas, por
motivos de complexidade técnica ou científica, para provar a qualidade defeituosa do
produto ou o nexo de causalidade entre a sua qualidade defeituosa e o dano, presume-se
a qualidade defeituosa do produto ou o nexo de causalidade entre a sua qualidade
defeituosa e o dano, ou ambos, se o demandante tiver demonstrado, com base em
elementos de prova suficientemente pertinentes, que: (a) O produto contribuiu para o
dano; e (b) É provável que o produto fosse defeituoso ou que a sua qualidade defeituosa
seja uma causa provável do dano, ou ambos” (artigo 9º/4).
Mas, para além disso, haverá que, em primeiro lugar, perceber qual a probabilidade
relevante para este efeito. Tal não será, contudo, bastante: de facto, orientando-se a
jurisprudência pelo critério da causalidade adequada, o centro nevrálgico da indagação é
exatamente a probabilidade de que se fala. Simplesmente, a proposta de diretiva parece
apontar para a ideia de que, ao invés de se recorrer ao juízo probabilístico próprio da
adequação, se está a alijar o ónus probatório ao nível fáctico. Nessa medida, questiona-se
se, afinal, não entra em cena um primeiro patamar de indagação causal, a identificar-se
com uma noção de condicionalidade.
A densificação da imputação que se começa, assim, a erigir será oferecida pelo cotejo
entre esta esfera de risco com outras esferas de risco que com ela se confrontem.
Tal como no caso da responsabilidade subjetiva, a esfera de risco geral da vida conduz à
exclusão da imputação quando a atividade em questão (a colocação do produto defeituoso
no mercado), identificando embora uma esfera de risco, apenas determina a presença do
bem ou direito ofendido no tempo e lugar da lesão do mesmo.
Maiores problemas podem surgir sempre que ela seja definida a priori e em abstrato, pela
especial função que o agente assume ou porque, e no quadro da responsabilidade objetiva,
o legislador a cristalizou numa norma, não se exigindo, nesta última hipótese, sequer a
existência de um comportamento humano. Nessas situações, importa que o lesado venha
provar o envolvimento do facto na história de surgimento do evento. Porém, para tanto,
não é necessário que o sujeito se embrenhe num juízo de condicionalidade. A discussão
acerca da prova do envolvimento do facto na história de surgimento da lesão tem
conhecido grande aprofundamento na doutrina anglo-saxónica, dividindo-se os autores
entre a adesão ao but-for test, ao NESS-test ou à ideia de substantial factor. Afastamo-
nos, contudo, de qualquer uma das orientações aí oferecidas: o que nos interessa não é
determinar a preponderância ou a relevância do facto na história do surgimento da lesão,
mas perceber em que medida a atividade perigosa esteve ou não envolvida nesse iter, já
que a ponderação judicativa acerca da possível imputação do facto à atividade implicará
o cotejo de esferas de risco a que já fizemos referência. No fundo, em situações como
aquelas em que A tem o seu automóvel estacionado e ao lado dele B parou outro de uma
diferente cor, constatando, quando entra no veículo, que o mesmo foi danificado, não se
poderá sem mais afirmar a responsabilidade de B pelo simples facto de este ter
estacionado no lugar paralelo ao do carro amolgado e deter a direção efetiva dele. Na
verdade, como a esfera de responsabilidade não se edifica pela preterição de quaisquer
deveres de cuidado em relação ao outro, mas pela assunção de uma atividade que o
legislador considerou, ab initio, arriscada, há que se comprovar a ocorrência do acidente
e a participação nele. De outro modo, a imputação objetiva desconheceria limitação. Não
se confunde este problema com aquele que ocorre na situação a seguir relatada: A e B,
Daí que, num caso análogo em que seja discernível a violação de deveres por parte dos
pretensos lesantes, a ponderação seja outra, desde que o fundamento invocado para a
pretensão indemnizatória seja a responsabilidade com base na culpa. Olhemos para o caso
oferecido por Zipursky. Entre as 11:00 e as 11:15 do dia 22 de Julho, A estava a trabalhar
na construção de uma passagem aérea junto da entrada de uma ponte. Os sinais de trânsito
indicavam que deveria haver uma redução da velocidade, mas todos os carros circulavam
a 50-60 km/h. A precisava de atravessar para o outro lado na zona de construção e esperou
que outro trabalhador indicasse a paragem com um sinal stop. Um carro preto quase lhe
embateu. Com isso, ele caiu, feriu-se na cara e partiu inúmeros dentes. Usando as câmaras
de segurança, A conseguiu, através dos seus advogados, identificar quatro carros pretos
que ali passaram no momento do acidente, em excesso de velocidade. Ele pode provar
que cada um destes condutores é responsável pelo tortious risk que pode ter gerado o
dano, mas não pode provar qual deles causou, de facto, a lesão, consoante explicita o
autor24. Embora Zipursky entenda não haver aqui qualquer responsabilidade, a posição
não é unânime, entendendo Geistfield que, num caso como este, os quatro condutores são
24
Benjamin C. ZIPURSKY, “Evidence, Unfairness and market-share liability: a comment on Geistfeld”,
University of Pennsylvania Law Review, vol. 156, 126 s.
Artigo 9.º
Ónus da prova
1. Os Estados-Membros asseguram que é exigido ao demandante que faça prova da qualidade
defeituosa do produto, do dano sofrido, presumindo-se o nexo de causalidade entre a
qualidade defeituosa e o dano, sempre que se verifique que o produto é defeituoso e que o
dano causado é de uma natureza normalmente compatível com o defeito em questão.
2. O lesado deve ainda provar o evento lesivo, ou seja, que foi feita uma utilização normal do
bem e que o dano surgiu posteriormente ou no decurso dessa utilização.
3. Presume-se a qualidade defeituosa do produto caso uma das seguintes condições esteja
satisfeita:
(a) O demandado não cumpriu a obrigação de divulgar os elementos de prova pertinentes
de que dispõe, nos termos do artigo 8.º, n.º 1;
25
GEISTFELD, “The doctrinal unity of alternative liability and market-share liability”, University of
Pennsylvania Law Review, nº155, 498 s.
Falando de um estado de necessidade de prova (Beweisnotstand), cf. Theo BODEWIG, “Probleme
alternativer Kausalität bei Massenschäden”, Archiv für die civilistische Praxis, 185, Heft 6, 1985, 511 s.
Artigo 12.º
Redução da responsabilidade
1. Os Estados-Membros asseguram que a responsabilidade de um operador económico não é
reduzida quando o dano for causado simultaneamente pela qualidade defeituosa de um produto
e por uma ação ou omissão de um terceiro.
2. A responsabilidade do operador económico pode ser reduzida ou excluída quando o dano for
causado simultaneamente pela qualidade defeituosa do produto e por culpa da pessoa lesada ou
de uma pessoa pela qual a pessoa lesada seja responsável.
Do mesmo modo, tendo em conta a possibilidade de desconhecimento do efetivo operador económico que
disponibiliza o componente digital e o modo como, à luz de uma perspetiva imputacional, tal incerteza pode
ser solucionada, propomos o aditamento de um novo artigo à proposta de diretiva. Assim,
Artigo 11º - A
Responsabilidade das unidades tecnológicas
Havendo mais do que um possível responsável, no quadro da interconexão de componentes que permitem
o funcionamento de um sistema autónomo do software, entendido como produto (designadamente nas
hipóteses de interdependência técnica ou combinação exclusiva de componentes), sem que se consiga
determinar quem é efetivamente o causador do dano, a responsabilidade entre todos deve ser afirmada como
solidária.
É que, como também já sublinhámos, para além das hipóteses em que o update de
conteúdos digitais é feito depois de o produto ser colocado em circulação, sob controlo
do fabricante, nas quais não há qualquer dificuldade de ligar a atualização ao bem tangível
onde ele é instalado, importa não esquecer, como resulta dos trabalhos do European Law
Institute, os casos de updates de conteúdo digital instalado antes de o produto ser posto
em circulação, se o fabricante da coisa impuser a instalação de software dos seus afiliados.
A ponderação só deve diversa se o conteúdo digital for fornecido por uma pessoa
diferente do produtor do bem, devendo, contudo, afirmar-se a responsabilidade do
produtor se a instalação do software for essencial para o funcionamento do bem.
Repare-se que, em qualquer destes casos, o fabricante mantém o controlo sobre o produto,
o qual se verifica sempre que o fabricante de um produtor autorizar a integração, a
interligação ou o fornecimento por terceiros de um componente, incluindo atualizações
ou evoluções de software ou autorização a modificação do produto.
Ora, havendo mais do que um responsável, resultaria claro, com base no artigo 11º da
proposta de Diretiva, que a responsabilidade entre ambos se afirma como solidária. O que
se propõe, adicionalmente, é que, naquelas hipóteses em que não seja possível discernir
quem efetivamente pode ter causado, com a colocação em mercado ou em serviço ou com
a disponibilização do componente, o dano-lesão, apesar da incerteza dita causal, se possa
continuar a afirmar a responsabilidade dos vários operadores económicos em termos
solidários.
Na verdade, pese embora se possa chegar a esta solução com base na articulação dos
diversos preceitos da proposta de diretiva – e do que poderá ser a sua futura transposição
– parece-nos que o esclarecimento se justifica, quer para evitar problemas interpretativos
futuros, quer para permitir que, por meio de um regime especial, se possa afirmar
desassombradamente uma solução que a doutrina e a jurisprudência já têm vindo a acolher
no nosso ordenamento jurídico.