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Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais 327

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Síndromes psicóticas
(quadros do espectro da
esquizofrenia e outras psicoses)

Mudos atalhos afora, na soturnidade de alta noite, eu e ela caminhávamos.


Eu, no calabouço sinistro de uma dor absurda, como de
feras devorando entranhas, sentindo uma sensibilidade
atroz morder-me, dilacerar-me.
Ela, transfigurada por tremenda alienação, louca, rezando
e soluçando baixinho rezas bárbaras.
Eu e ela, ela e eu! – ambos alucinados, loucos, na
sensação inédita de uma dor jamais experimentada.
Cruz e Sousa, (Balada de Loucos1)

As síndromes psicó- desorganização profunda da vida mental


Os sintomas para- ticas caracterizam- e do comportamento, de qualidade diver-
nóides são muito co-
muns, como idéias
se por sintomas típi- sa à que ocorre nos quadros demenciais,
delirantes e alucina- cos como alucina- no delirium ou nos quadros de retardo men-
ções auditivas de ções e delírios, pen- tal grave (Schimid, 1991). Os autores de
conteúdo persecu- samento desorga- orientação psicodinâmica tendem a dar ên-
tório. nizado e comporta- fase à perda de contato com a realidade
mento claramente como dimensão central da psicose. O paci-
bizarro, como fala e risos imotivados ente psicótico, nessa perspectiva, passaria
(Janzarik, 2003). Os sintomas paranóides a viver fora da realidade, sem ser regido
são muito comuns, como idéias delirantes pelo princípio de realidade, e viveria pre-
e alucinações auditivas de conteúdo per- dominantemente sob a égide do princípio
secutório. Em alguns casos, observa-se uma do prazer e do narcisismo. Pacientes psi-

1
Cruz e Sousa, poeta simbolista, experimentou em sua vida o sofrimento de forma especialmente
atroz. Intelectual negro, rejeitado pelo meio social de então, faleceu cedo, aos 35 anos, pobre e
tuberculoso. Refere-se nessa balada a um episódio real que lhe aconteceu; ao voltar para casa de
um passeio com sua esposa, notou que ela subitamente estava enlouquecendo.
328 Paulo Dalgalarrondo

cóticos tipicamente 5. Roubo do pensamento. Experiên-


Pacientes psicóticos têm insight prejudi- cia na qual o indivíduo tem a sen-
tipicamente têm in-
sight prejudicado
cado (precária cons- sação de que seu pensamento é
(precária consciên- ciência da doença) inexplicavelmente extraído de sua
cia da doença). em relação aos seus mente, como se fosse roubado.
sintomas e à sua 6. Vivências de influência na esfe-
condição clínica geral (Dantas; Banzato, ra corporal ou ideativa. Aqui,
2007). dois tipos de vivências de influên-
cia são mais significativos:
• Vivências de influência cor-
ESQUIZOFRENIA poral. São experiências nas
quais o paciente sente que uma
A principal forma de psicose, por sua fre- força ou um ser externo age so-
qüência e sua importância clínica, é cer- bre seu corpo, sobre seus ór-
tamente a esquizofrenia (Tsuang; Stone; gãos, emitindo raios, influen-
Faraone, 2000). Considera-se que alguns ciando as funções corporais,
sintomas são muito significativos para o etc.
diagnóstico da esquizofrenia (Tandon; • Vivências de influência sobre
Greden, 1987), particularmente aqueles o pensamento. Referem-se à
que Kurt Schneider (1887-1967) denomi- experiência de que algo influ-
nou “sintomas de primeira ordem”. encia seus pensamentos, o pa-
ciente recebe pensamentos im-
postos de fora, pensamentos
Sintomas de primeira feitos, postos em seu cérebro,
ordem de Kurt Schneider etc. Também as vivências cor-
porais ou ideativas têm a qua-
1. Percepção delirante. Uma per- lidade de serem experimenta-
cepção absolutamente normal re- das como feitas, como impos-
cebe uma significação delirante, tas de fora.
que ocorre de modo simultâneo ao
ato perceptivo, em geral de forma Os sintomas de
abrupta, como uma espécie de primeira ordem in- Os sintomas de pri-
“revelação”. meira ordem indicam
dicam a profunda
a profunda alteração
2. Alucinações auditivas caracte- alteração da relação da relação Eu-mun-
rísticas. São as vozes que comen- Eu-mundo, o dano do, o dano radical das
tam e/ou comandam a ação do radical das “mem- “membranas” que
paciente. branas” que delimi- delimitam o Eu em
3. Eco do pensamento ou sono- tam o Eu em relação relação ao mundo,
rização do pensamento (Gedan- ao mundo, uma per- uma perda marcante
kenlautwerden). O paciente escu- da dimensão da inti-
da marcante da di-
midade.
ta seus pensamentos ao pensá-los. mensão da intimi-
4. Difusão do pensamento. Neste dade. Ao sentir que
caso, o doente tem a sensação de algo é imposto de fora, feito à sua revelia,
que seus pensamentos são ouvidos o doente vivencia a perda do controle so-
ou percebidos claramente pelos bre si mesmo, a invasão do mundo sobre
outros, no momento em que os seu ser íntimo. Esse tipo de experiência
pensa. psicótica, dos pensamentos mais íntimos
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serem imediatamente percebidos por ou- antipsicóticos de


A definição precisa
tras pessoas, expressa a vivência de uma primeira e segunda
da esquizofrenia,
considerável “fusão” com o mundo, um gerações, a clínica seus sintomas mais
avançar terrível do mundo público sobre o das psicoses em ge- fundamentais e ca-
privado, assim como um extravasamento ral e da esquizofre- racterísticos, aquilo
involuntário da experiência pessoal e inte- nia em particular que lhe é mais pecu-
rior sobre o mundo circundante. permanece, com al- liar e central, é tema
Os sintomas de segunda ordem de gumas mudanças de intensas discus-
Schneider são menos importantes para o superficiais, com a sões em psicopato-
logia.
diagnóstico de esquizofrenia. Apenas em mesma estrutura bá-
certos contextos (nos quais outros aspec- sica (Leme Lopes,
tos do quadro clínico e o todo da história 1979). Dentre as mais importantes defini-
clínica indicam esquizofrenia) eles devem ções de sintomas essenciais na esquizo-
ser considerados contributivos para tal frenia, estão as apresentadas por autores
diagnóstico. São eles: perplexidade, alte- clássicos, citadas no Quadro 30.1.
rações da sensopercepção (excluindo aque- Nas últimas décadas, tem-se dado
les de primeira ordem), vivências de in- mais importância à diferenciação da es-
fluência no campo dos sentimentos, impul- quizofrenia em três subtipos (Andreasen,
sos ou vontade, vivência de empobrecimen- 1995):
to afetivo, intuição delirante e alterações
do ânimo de colorido depressivo ou mania- 1. Síndrome negativa ou deficitária
tiforme. 2. Síndrome positiva ou produtiva
Os psicopatólogos do final do século 3. Síndrome desorganizada
XIX e início do XX distinguiram quatro
subtipos de esquizofrenia. A forma pa- Esses subtipos são apresentados a
ranóide, caracterizada por alucinações e seguir.
idéias delirantes, principalmente de con-
teúdo persecutório. A forma catatônica,
marcada por alterações motoras, hiperto- Síndrome negativa ou deficitária (sinto-
nia, flexibilidade cerácea e alterações da mas negativos)
vontade, como negativismo, mutismo e
impulsividade. A forma hebefrênica, ca- Os sintomas negativos das psicoses esquizo-
racterizada por pensamento desorganiza- frênicas caracterizam-se pela perda de cer-
do, comportamento bizarro e afeto pueril. tas funções psíquicas (na esfera da vonta-
E, finalmente, definiu-se um subtipo sim- de, do pensamento, da linguagem, etc.) e
ples, no qual, apesar de faltarem sintomas pelo empobrecimento global da vida afeti-
característicos, observa-se um lento e pro- va, cognitiva e social do indivíduo. Os prin-
gressivo empobrecimento psíquico e com- cipais sintomas ditos negativos ou defici-
portamental, com negligência quanto aos tários nas síndromes esquizofrênicas são:
cuidados de si (higiene, roupas, saúde),
embotamento afetivo e distanciamento 1. Distanciamento afetivo, em
social. graus variáveis até o completo em-
A definição precisa da esquizofrenia, botamento afetivo; perda da ca-
seus sintomas mais fundamentais e carac- pacidade de sintonizar afetiva-
terísticos, aquilo que lhe é mais peculiar e mente com as pessoas, de demons-
central, é tema de intensas discussões em trar ressonância afetiva no conta-
psicopatologia. Apesar do surgimento dos to interpessoal.
330 Paulo Dalgalarrondo

Quadro 30.1
Definições de esquizofrenia segundo Kraepelin, Bleuler, Jaspers, Schneider, CID-10 e DSM-IV

Emil Kraepelin (1856-1926) Eugen Bleuler (1857-1939)

Alterações da vontade (perda do elã vital, Alterações formais do pensamento, no


negativismo, impulsividade, etc.) sentido de afrouxamento até dissociação
Embotamento afetivo das associações
Alterações da atenção e da compreensão Ambivalência afetiva; afetos contraditórios
Transtorno do pensamento, no sentido de vivenciados intensamente ao mesmo tempo
associações frouxas Autismo, como tendência a um isolamento psíquico
Alucinações, especialmente auditivas global em relação ao mundo, um “ensimesma-
Sonorização do pensamento mento” radical
Vivências de influência sobre o pensamento Dissociação ideoafetiva, desarmonia profunda
Evolução deteriorante (83% dos casos) no sentido entre as idéias e os afetos
de embotamento geral da Evolução muito heterogênea, podendo muitos
personalidade casos apresentarem evolução benigna

Karl Jaspers (1883-1969) Kurt Schneider (1887-1967)

Idéias delirantes primárias, não-deriváveis ou Percepção delirante


compreensíveis psicologicamente Vozes que comentam a ação
Humor delirante precedendo o delírio Vozes que comandam a ação
Alucinações verdadeiras, primárias Eco ou sonorização do pensamento
Vivências de influência, vivências do “feito” Difusão do pensamento
Ocorrência ou intuição delirante Roubo do pensamento
Analisando a vida total do paciente, nota-se que Vivências de influência no plano corporal
ocorreu quebra na curva existencial; os surtos e do pensamento
fazem parte de um processo insidioso que
transforma radicalmente a personalidade e a
existência do doente

CID-10 DSM-IV

Alteração das funções mais básicas que dão à Dois ou mais dos seguintes sintomas (de 1 a 5)
pessoa senso de individualidade, unicidade e de devem estar presentes com duração significativa,
direção de si mesmo por período de, pelo menos, um mês:
Eco, inserção, irradiação ou roubo do pensamento
Delírios de influência, controle ou passividade 1. Delírios
Vozes que comentam a ação 2. Alucinações
Delírios persistentes culturalmente inapropriados 3. Discurso desorganizado
Alucinações persistentes de qualquer modalidade, 4. Comportamento amplamente desorgani-
sem claro conteúdo afetivo (não-catatímicas) zado ou catatônico
Interceptações ou bloqueios do pensamento 5. Sintomas negativos (embotamento afetivo,
Comportamento catatônico, com flexibilidade alogia, avolição)
cerácea, negativismo, mutismo, etc. 6. Disfunções sociais, no trabalho e/ou no
Sintomas negativos (empobrecimento afetivo, estudo, denotando perdas nas habilidades
autonegligência, diminuição da fluência verbal, etc.) interpessoais e produtivas
Alteração significativa na qualidade global do Duração dos sintomas principais (de 1 a 5) de, pelo
comportamento pessoal, perda de interesse, menos, um mês, e do quadro deficitário (sintomas
retração social; os sintomas devem estar presentes negativos, déficit funcional, etc.) por, pelo menos,
por, pelo menos, um mês seis meses

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