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Terapia Psicanalítica e Transtornos

Alimentares

MONOGRAFIA DE CONCLUSÃO DE CURSO

Nome Completo: BÁRBARA CAPITANIO DE SOUZA

E-mail: barbara.capitanio@gmail.com

Conclusão: 1º SEMESTRE / 2022

Curso: Formação em Psicanálise Clínica

Unidade: Campinas (SP)

Professores: André Figueira e Paulo Vieira

Campinas (SP), 12/05/2022


Introdução
Os transtornos alimentares (TA) são considerados transtornos
psiquiátricos graves, caracterizados por alimentação anormal ou um
comportamento transmutado de controle de peso e crescentes em prevalência
na população. Atitudes perturbadas em relação ao peso, forma do corpo e a
alimentação desempenham um papel fundamental na sua origem e manutenção.
A forma dessas preocupações também pode variar de acordo com o gênero; nos
homens, por exemplo, as preocupações com a imagem corporal podem se
concentrar na musculatura, enquanto nas mulheres, essas preocupações podem
se concentrar mais na perda de peso.
Os principais TA relatados e que concentram a grande maioria das
pesquisas e compreensão clínica são a anorexia nervosa, a bulimia nervosa, o
transtorno da compulsão alimentar periódica e, mais recente, o transtorno de
ingestão alimentar evitativa/restritiva. A anorexia nervosa e a bulimia nervosa
são caracterizadas pela internalização do ideal de magreza e comportamentos
extremos de controle de peso. Em ambos, a supervalorização do peso e da
forma – onde tal preocupação com a imagem corporal é de grande ou primordial
importância para a autovisão – é um critério obrigatório. Já a obesidade, por
exemplo, em si, não é enquadrada como um transtorno alimentar.
No ensejo destas condições, as crenças e desejos do indivíduo parecem ser
grosseiramente distorcidos e é necessário tentar desvendar o motivo do
estabelecimento do distúrbio. A terapia psicanalítica trás uma alternativa de
ferramenta para investigação e análise da razão da atitude que está por trás do
comportamento. Os TA parecem ser a manifestação de um protesto; os fatores
causais serão as condições contra as quais o comportamento está protestando,
e as crenças e desejos do indivíduo que faz o protesto. Os sintomas destes
distúrbios são expressos no nível do corpo, o que sugere que as causas básicas
do sintoma podem ser rastreadas de volta aos estágios de desenvolvimento da
primeira infância envolvendo incorporação e expulsão.

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Os tratamentos de cunho psicológicos são a primeira linha para todos os TA
com maior impacto na redução dos sintomas dentre outros resultados. Na teoria
psicanalítica, os distúrbios da alimentação são vistos como uma fixação
oral. Estão associados a estar subalimentado ou superalimentado no início da
vida, levando a conflitos emocionais decorrentes da fase oral. Acredita-se que
isso crie necessidades orais excessivas na idade adulta, que podem ser
satisfeitas comendo em excesso ou expurgando alimentos. Além disso,
indivíduos com TA tem um histórico de distúrbios nos primeiros
relacionamentos, levando à falta de segurança e pronunciadas dificuldades em
confiar nos outros ou em simplesmente ser um indivíduo autêntico na presença
de outros. Como tal, esses indivíduos compartilham muitas características de
pacientes com distúrbios graves de personalidade, como vazio interior,
problemas de identidade, medo de abandono e medo de relacionamentos. Desta
forma, o objetivo do trabalho foi realizar uma revisão da literatura com o intuito
de identificar a relação entre o papel da terapia psicanalítica sobre os TA,
especialmente a anorexia e a bulemia.
Para a realização deste estudo, foram pesquisadas as bases de dados
Pubmed e SciELO, utilizando os termos a seguir em língua inglesa, combinados
pelo operador booleano AND: psychoanalysis AND eating disorders,
psychoanalysis AND anorexia, psychoanalysis AND bulemic, psychoanalysis
AND binge eating. Para uma leitura mais atualizada, foi utilizado um filtro de
seleção para estudos publicados a partir do ano 2000. Os 77 estudos
inicialmente encontrados foram analisados pelos títulos e resumos disponíveis.
Desta análise, foram excluídos os artigos que estavam em duplicata, os que não
apresentavam resumo disponível e os que não se enquadravam no tema
proposto. Da seleção resultante, 8 estudos foram lidos para comporem a revisão
final. Ainda, outros trabalhos e livros, encontrados pela busca manual, foram
consultados para complementar a contextualização da narrativa.
O desenvolvimento deste trabalho está dividido em sessões direcionados
aos aspectos da anorexia e a bulimia, além de abordar pontos característicos da
clínica psicanalítica.

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Desenvolvimento
Os TA são frequentes em adolescentes e em adultos jovens, podendo
repercutir em situações de saúde graves. Estas condições podem levar a
múltiplas complicações psiquiátricas e somáticas e podem ter impacto na
qualidade de vida, sendo responsáveis inclusive pela mortalidade. De fato,
indivíduos com TA têm taxas de mortalidade significativamente elevadas, em
particular os que apresentam anorexia nervosa. Estudos epidemiológicos
indicam uma prevalência média de TA ao longo da vida de 8,4% para mulheres
e 2,2% para homens. A anorexia e a bulimia são quadros epidêmicos
contemporâneos, e podem estar associados com o funcionamento psíquico.
Ambas as situações podem ser desenvolvidas por gatilhos emocionais,
contextualizados ao longo da vida do indivíduo e que podem ser despercebidos
por muito tempo, até o aparecimento do TA.
Para Donald Woods Winnicott (1896-1971), a saúde psíquica é dita
como assentada no primeiro ano de vida de um bebê; por isso, a alimentação é
tão fundamental. Winnicott olha a amamentação e a alimentação do bebê de
modo um tanto diferente das proposições de Freud, por considerar que o ato da
alimentação deve ser interpolado como uma relação humana, profunda, real e
verdadeira, que deixará impressões que serão conservadas por toda a vida e
servirão de matriz para as relações futuras. A amamentação, novamente, não
seria apenas um ato de alimentação, mas a construção de um relacionamento.
Reforça, ainda, que esta primeira relação entre mãe e bebê será revivida
posteriormente, pois é um ato básico e primitivo. Neste contexto, a relação com
o alimento não seria apenas considerando o mesmo como comida, mas como
uma forma de comunicação. Esta relação não deve ser de obrigatoriedade, mas
de necessidade e afeto. O alimento deve ser dado ao bebê, conforme sua
necessidade e busca, em livre demanda, para não haver a associação com a
recusa, por obrigação. É neste ponto que Winnicott estreita a relação de sua
teoria com as características da anorexia e da bulimia, onde o indivíduo

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expressa a sua recusa e repulsa do alimento, e que, de certa forma, é uma
maneira de comunicação com o mundo exterior, expressando o seu verdadeiro
eu.
Pela compreensão de Winnicott, a experiência de amamentação
possibilita o estabelecimento de um relacionamento, uma vez que o bebê, ao
estar se alimentando, não permanece com seu olhar disperso; ele busca o olhar
da mãe. O alimento, neste sentido, não se restringe ao leite, mas incorpora toda
cena da relação entre mãe-bebê, seu afeto e satisfação. Quando tentamento
entender, os estados de anorexia e bulimia, pelo olhar da psicanálise,
precisamos nos remeter a longa história do indivíduo com o seu próprio corpo,
com as suas próprias sensações, com a sua fome, que não é um mero
fenômeno biológico no ser humano, pois vem enriquecido de tantos afetos e
impressões. “Comi, pois estava muito feliz” (...) “Deixei de comer, pois estava
triste” (...). Toda a nossa vida emocional interfere em nossas funções fisiológicas
básicas. É preciso compreender como o indivíduo se comunica com o mundo e
com a vida. Winnicott, ainda dizia que, em todos os tipos de adoecimento
emocional, seja ele depressão, fobia ou esquizofrenia, o comer, de alguma
forma, fica afetado. As nossas relações com o corpo, com a fome e com a
comida depende destas experiências, que amadurecem juntamente com o ser,
em sua longa história de vida e com o mundo que o cercou.
Contemporaneamente, temos uma obsessão com o que é “saudável”,
com o que é bom para o nosso corpo. Entretanto, esquecemos de observar
como está sendo a nossa relação com a comida, com o corpo, com a fome e
com a vida. Desta forma, é mais fácil entender a existência da diversidade de TA
na sociedade, não limitada às condições sociais e econômicas. O alimento, em
si, é utilizado em diferentes situações dentro das relações humanas. Como
exemplo, a recusa de um filho em comer a comida preparada pela mãe, pois
estaria chateado com ela ou, ainda, um pai que deixa seu filho sem sobremesa,
como forma de castigo. Todas estas situações são formas de expressão e
comunicação, que conduzirão o comportamento futuro do indivíduo. Outro
exemplo interessante é como nos comportamos diante de uma situação social,
ao recebermos alguém. Uma forma de hospitalidade é recepcionar um

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convidado com uma refeição farta. Ofertar alimentos é uma forma de expressão
de afeto e consideração, em diferentes idades e contextos sociais, refletindo o
grande significado do que representa o comer na esfera psíquica.
Winnicott fundamenta-se no fato de que a psique humana não seria uma
disposição pré-existente, mas algo que se constrói decorrente da elaboração
imaginativa do corpo e de suas funções, dando origem ao que consideramos
como binômio psique-soma, sendo que todo este processo ocorre a partir da
figura materna. O desenvolvimento do corpo e da mente prossegue ao longo do
tempo, contanto que não ocorram interferências que possam perturbar a sua
construção e, para que este desenvolvimento seja contínuo é importante e
necessário que haja um ambiente adequado e bom, onde todas as necessidades
do indivíduo (bebê) sejam satisfeitas. Um episódio de adoecimento, durante este
processo, ocorre devido a perturbações na relação entre mãe e bebê,
ocasionando falhas no desenvolvimento do indivíduo. Estas perturbações podem
criar uma sensação de falta das fronteiras no corpo, ameaças de
despersonalização (bem observadas na anorexia e na bulimia), angústias
impensáveis, ameaças de desintegração e despedaçamento e falta de coesão
psicossomática.
Assim, não podemos deixar de considerar que o corpo do bebê nesse
primeiríssimo tempo fica à mercê do inconsciente materno e que poderá fixar,
por consequência, marcas, no que virá a ser representado como ego corporal.
Nos casos de pacientes com anorexia, por exemplo, podemos levantar a
hipótese de que essas marcas resultam de aspectos fusionados ao narcisismo
materno, muito provavelmente também produto das representações do seu
próprio ego corporal. Não é raro nos depararmos com mães que apresentam
insatisfações importantes com sua aparência e que se preocupam
excessivamente com seu corpo e sua alimentação. Apresentam ideais e
exigências que muitas vezes recaem não somente sobre si, mas sobre toda
família. Também não é incomum o caráter transgeracional nessas famílias. Além
disso, é possível observar que a maioria das pacientes do sexo feminino que
possuem anorexia são filhas únicas ou primogênitas, o que sugere a importância
da subjetivação da feminilidade na dupla mãe-filha.

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Os TA são estudados como tendo influências diversas. São patologias
que recebem influências biológicas, neuroquímicas, ambientais e culturais,
familiares e relacionais, estruturais e constitutivas, sendo um diagnóstico
multifatorial e, não obstante, o paciente deverá ser acompanhado por uma
clínica multiprofissional. Possuem duas características principais, senda a
primeira caracterizada por uma alteração radical na forma de se alimentar e de
comportamentos específicos direcionados aos alimentos e, a segunda,
associada à forma de lidar com o corpo físico, à concepção da própria imagem,
havendo uma dificuldade de se perceber e vivenciar o próprio corpo.
No desenvolvimento da clínica psicanalítica, é comum aparecerem
problemáticas alimentares vividas por nossos pacientes no passado,
frequentemente na adolescência, às vezes também na infância. Muitos relatos
revelam sintomas de anorexia ou de bulimia propriamente ditas, ou mesmo de
outras manifestações sintomáticas ligadas à inibição ou aos excessos durante a
alimentação. Tais eventos nos trazem informações de uma época em que corpo,
comportamento e relação com o outro faziam parte de uma mesma unidade.
Embora superada ao longo da vida, essa sintomática deixa suas marcas em
uma história de traumatismos precoces. A presença desses traumatismos e seus
efeitos sobre o psiquismo pode ser reconhecida na vida do sujeito muitos anos
depois, manifestando-se clinicamente de diferentes formas. A clínica, tal como
se apresenta na atualidade, tem nos ensinado e desafiado a seguir investigando
na direção de uma maior compreensão desses processos que remetem à
dimensão do passado, daquilo que se encontra aquém do universo da
representação, bem como o caminho desses processos psíquicos ao longo da
análise. No trabalho de análise, é fundamental a compreensão de como a
reedição de elementos passados da constituição psíquica em suas
reorganizações no momento da puberdade e adolescência influi na formação
posterior dos sintomas.

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Anorexia

A anorexia é o TA mais pesquisado e estudado, além de se o transtorno


mais antigo a ser reconhecido como uma patologia. É descrito como uma
alteração do comportamento alimentar no sentido da recusa alimentar, com a
motivação no emagrecimento. A patologia acompanha um medo intenso e
mórbido de engordar, mesmo o indivíduo já estando em um quadro clínico
aparente de magreza. Paciente com quadros anorexia apresentam uma
característica física de cadaverização; entretanto, estes sujeitos continuam
apresentando um medo de engordar, como uma perturbação, uma vez que
possuem dificuldade de perceber a própria imagem corporal. O indivíduo se
percebe sempre como sendo grande demais, pesado demais, gordo demais.
Seu aparecimento é mais frequente durante o início da adolescência.
Pode ser subdividida em dois tipos, um associado a restrição alimentar
puramente e outro que incorpora também o ato de purgação do que foi ingerido,
além da restrição alimentar. Também pode haver outros métodos
compensatórios ligados à anorexia, como o uso de laxantes, uso de diuréticos e
sessões de exercícios intensos. Eventualmente, estas situações podem
confundir o diagnóstico de bulimia. Também, está contemplado a fixação pela
imagem de si, uma exigência interna (narcisismo, percepção de si), pois a
percepção do outro não impõe significância. Existe uma satisfação ou prazer
com a fome, que acaba se expandindo para uma luta “moral” contra o que é
imposto e o indivíduo não se deixa levar pelo prazer da alimentação.
Existem muitas questões culturais que trazem a abdicação do alimento
como algo bom e que estaria intrínseco no comportamento humano, como o
jejuar cristão, que purifica a alma, livra os homens do pecado; a associação do
magro com o bom, o magro com o belo...Se a regra é abdicar dos prazeres,
então é abdicado radicalmente dos prazeres alimentares... É importante
ressaltar que dentro da clínica psicanalítica, uma recusa alimentar severa pode
assumir formas diferentes em uma neurose ou uma psicose, por nem sempre
traçar aspecto evidentes. Por outro lado, a anorexia apresenta com frequência
uma certa ruptura com a realizada, devido a visão distorcida da imagem ou do

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próprio corpo, a dificuldade de se reconhecer. Por este motivo, podem se
apresentar como quadros de difícil diagnóstico, podendo levar, eventualmente, o
psicanalista a pensar em um quadro de neurose ou psicose.
Outro ponto a ser considerado diz respeito sobre o que seria uma
preocupação exagerada ou patológica com o peso, dentro de nossa sociedade
atual. O diagnóstico de anorexia pode trazer desafios ao psicanalista, pois
depende de diferentes condicionantes associados, como a adequação do peso
corporal, os hábitos comportamentais característicos, a forma de pensar sobre
os alimentos, a percepção da necessidade fisiológica e a percepção do próprio
corpo. Estes condicionantes podem estar presentes, isoladamente ou não, sem
estarem associados à anorexia, repercutindo em um diagnóstico que exige
atenção e estudo.
Epidemiologicamente, os dados sobre anorexia são escassos e
divergentes. Sabe-se que a prevalência da patologia está mais associada a
mulheres, contudo não há uma estatística confiável para embasar a sua
prevalência real. É possível que este motivo esteja associado a dificuldade de
abordagem do tema e a dificuldade de se assumir a doença. Este fato se
estende para todos os tipos de TA e dificulta o estudo mais aprofundado da
epidemiologia da doença, o que é preocupante, pois se trata de um transtorno
psiquiátrico que pode levar à morte pelo próprio sintoma e pelas características
do quadro clínico. Além de uma maior prevalência observada para a população
feminina, também tem um número muito maior de pacientes com anorexia em
países industrializados e países ricos, sugerindo um potencial cultural e
econômico sobre a condição.
Normalmente, o paciente anorexo não busca tratamento ou atendimento
médico, pois entende que o seu emagrecimento faz parte do sucesso de sua
recusa e, desta forma, não consegue observar o problema. Este indivíduo não
quer entender o que acontece com ele e se posicionam de forma contrária aos
pacientes que chegam sofrendo muito e estão dispostos a fazer algum
acompanhamento. O tratamento da anorexia remete a ideia de que o paciente
irá parar de perder peso e isso causa medo e aflição ao doente, que se afasta

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das consultas nutricionais e psiquiátricas, sendo a adesão ao tratamento outro
desafio para o psicanalista.
O ganho de peso é visto como um fracasso para estes pacientes ao
passo que cada quilo perdido aumenta a sensação de autocontrole e a sensação
de bem-estar, deixando o indivíduo em uma posição de domínio da situação. Da
mesma forma que a recusa alimentar causa esses sentimentos, a possibilidade
de começar a tratar disso e começar a ganhar peso é um ponto que causa muito
sofrimento e insegurança. Desta forma, é comum observar pacientes que são
levados ao atendimento por familiares ou pessoas próximas, que se preocupam
com a perda de peso aparente.
A anorexia, em si, como alteração do comportamento alimentar, não
costuma ser observada inicialmente, com tanta facilidade, pois o paciente
costuma ser bastante ardiloso em suas condutas e apresentar um repertório de
desculpas e justificativas para recusar uma refeição, alegando que já comeu
mais cedo, lanchou na casa de alguém ou semelhantes. Desta forma, é difícil
perceber a possibilidade de que tem alguma coisa errada, até que a própria
aparência devido a perda de peso, indique ou chame a atenção.
Outra característica interessante é que o paciente anorexo possui uma
variedade de técnicas para mensurar o corpo o tempo todo. Às vezes, pode ser
pela própria balança, mas também podem ser observadas outras condutas como
a medição compulsiva de uma parte específica do corpo ou a prova frequente de
uma peça de roupa menor do que o seu número habitual. É através destas
condutas que o doente controla a sua perda de peso. Além disso, um importante
aspecto da clínica é a presença de sintomas depressivos, associados ao
rebaixamento do humor. Este ponto pode gerar dúvidas se o sintoma depressivo
é decorrente da anorexia ou ocorre em função da desnutrição, pois
eventualmente este quadro pode desaparecer com o ajuste do peso.
O perfil do paciente anorexo pode apresentar traços depressivos e
obsessivos com relação à comida, havendo rituais para comer, rituais para não
comer, rituais para cozinhar com a família, enquanto resiste ao se alimentar. Se
manter firme em sua decisão de negar o alimento é um ato de superação e
alívio. É importante ficar claro que o anorexo sente fome e sente a necessidade

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fisiológica de se alimentar, mas nega isso, como um ato de superar a sua
vontade de uma forma muito radical. Há um sofrimento, por exemplo, em
preparar uma refeição para a família e não comer, mas ao mesmo tempo é uma
forma de compromisso em resistir. Consequências físicas e fisiológicas são
comumente encontradas em quadros clínicos mais duradouros. Os pacientes
podem apresentar alterações endócrinas, hematológicas, renais e hormonais,
além de alterações cardíacas e neurológicas. Em outras situações podem
ocorrer o isolamento social, o comprometimento de relacionamentos e prejuízos
no trabalho.
Na anorexia, não é incomum que esses pacientes, predominantemente
mulheres, associem o início da anorexia a uma perda importante: uma decepção
amorosa, uma mudança, uma perda financeira, a perda de um lugar ou status
etc. Essa perda, também, se sobrepõe à entrada na adolescência, que por si
demanda um trabalho de luto. O que ocorre é que se aproxima, ou vai além, de
um processo melancólico: invariavelmente, essa paciente acredita que há algo
que deve ser modificado em si mesma para que não venha a perder novamente.
Suas autorrecriminações recaem sobre a forma de seu corpo: crê, por exemplo,
que se “não fosse gorda e cheia de deformações” não teria lhe acontecido tal
sorte. Trata de maneira acusatória e autodepreciativa o que estiver relacionado à
sua imagem, sobretudo sua aparência, e o que possa derivar
para aspectos idealizados.
Freud, por exemplo, chama a atenção para que “o quadro clínico da
melancolia põe em destaque o desagrado moral com o próprio ego, acima de
outros defeitos. Defeito físico, feiura, fraqueza e inferioridade social, muito mais
raramente são objeto de autoavaliação […]”. Porém, ocorre, repetidamente, e
com muita aflição e dor desses pacientes é uma queixa referida à aparência
física, destituída de realidade, em que pesam a deformação, a feiura e a
gordura. Devemos auxiliar na descoberta de que representação corporal é essa
que se apresenta e com que imagem/objeto essa paciente está identificada.

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Bulimia

A bulimia está relacionada a contrapontos, mas ainda com aspectos que


podem se aproximar das características da anorexia. Existe uma tentativa de
recusa alimentar, que normalmente não é conseguida e que acaba repercutindo
na purgação. A ideia do paciente bulímico é a restrição alimentar, contudo não é
sustentada devido a um ato de compunção alimentar. Normalmente, após estes
eventos, é possível observar novas tentativas de recusa alimentar e períodos de
restrição severa de ingesta de alimentos; entretanto, nesta situação, o paciente
bulímico acaba sucumbindo ao prazer da alimentação e realizando novamente,
um ato de compunção. Estes eventos em série se incorporam na rotina e
caracterizam um quadro de bulimia.
É importante lembrar que as manifestações da bulimia se caracterizam
por acessos de hiperfagia frequentemente seguidos de vômitos, na busca de
compensar esse comportamento e de não ganhar peso, tendo como pano de
fundo um ideal de magreza, já que tanto na bulimia quanto na anorexia há uma
distorção da imagem corporal. Sucedem-se episódios de compulsão alimentar
da ordem da impulsão, de uma tendência sem freios e sem mediação psíquica.
Um dos aspectos que caracteriza a bulimia é a forma como o sujeito se relaciona
com o alimento, como este é ingerido (em grande quantidade, de modo voraz e
às escondidas, em compulsão). Delineia-se um aspecto anárquico nessa
ingestão, pois não há prazer nem fome. Por esse fator e por sua dinâmica, a
bulimia é muitas vezes associada às adições. Os fatores que desencadeiam
estes acessos podem ser diversos, mas frequentemente relacionam-se com
sentimentos de desamparo, fracasso e solidão, ou ao contrário, de excitação e
prazer.
Existe uma ideia de controle, uma tentativa de controle do peso
característica da situação. Ocorrem momentos em que disparam estados
opostos no indivíduo, repercutindo em experiências emocionais e psíquicas de
extremos, como exemplo, estar com o outro e ser abandonado pelo outro, estar
junto e estar separado, estar presente e estar ausente, estar com e estar sem...
a purgação do conteúdo alimentar sugere uma outra forma de dizer não - seria

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aceitar uma coisa mas na verdade não, eu mostro uma coisa mas na verdade eu
sou outra, eu disfarço quem eu sou na sua presença, mas na situação em que
se encontra sozinho revela o seu verdadeiro eu - o que também gera o prazer do
controle e a liberdade de conseguir ser o que quiser, naquele momento, sem o
julgamento do próximo.
Outra questão relevante nos casos de bulimia é, além da
supervalorização da aparência quanto à imagem corporal, a valorização do lado
material da vida, bem como das sensações e dos prazeres imediatos. Esse
aspecto associa-se à dimensão do modo de vida contemporâneo, no qual se faz
cada vez mais presente o individualismo, dissolvendo as experiências de
solidariedade, apoio mútuo e valorização do humano, como contrapartida ao
universo da materialidade e do consumo. Na bulimia, por exemplo, ocorre uma
conduta atuada e repetida que aparece como formação substitutiva na busca
perdida do prazer e do gozo que não pode ser encontrado por outras formas,
tornando-se uma toxicomania sem droga. A hiperatividade é vivida com
entusiasmo, e o sujeito usa várias racionalizações para justificar seu uso; no
entanto, funciona dentro de uma lógica de coação ou de um conjunto de
coações. Algumas vezes, ela surge na passagem da anorexia para a bulimia e
cumpre importante função de regulação do funcionamento psíquico.
Vale ressaltar que se deve ter cautela para realizar o diagnóstico de
bulimia, pois existem características que podem se assemelhar ao quadro de
anorexia purgativa. O principal critério para diagnóstico diferencial destas
situações é o peso do paciente, uma vez que o peso dos pacientes com bulimia
costuma ser normal e, às vezes, até pode ser observado um certo sobrepeso.
Os métodos compensatórios que os bulímicos realizam não causam uma perda
de peso tão radical como na anorexia. Na anorexia prevalece o jejum e a recusa
alimentar, com uma perda de peso aparente; na bulimia, observamos episódios
de compulsão alimentar seguidos de compensação pela purgação, mas sem
uma perda de peso significativa.
Os episódios de compulsão alimentar não são um simples comer muito,
mas uma situação exagerada, em que o indivíduo perde o controle da
saciedade; é uma ingestão de grande quantidade de alimento em um curto

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período de tempo, não estando associada necessariamente à vontade fisiológica
da fome. Existe uma perda de controle do que se está comendo e da quantidade
que se está comendo. É comum os relatados de pessoas dizendo que ingeriram
alimentos que não gostam, que não combinam, alimentos ainda frios ou, ainda,
alimentos com alto teor calórico, que não estão por rotina na dieta alimentar.
Normalmente, as situações de compulsão estão associadas a períodos
em que o indivíduo realizou alguma restrição alimentar mais severa, onde foi
necessário dedicar um grande esforço para evitar a ingestão de alimentos e, ao
final, ocorre essa perda de controle da situação. Como ato compensatório,
ocorre a purgação do que foi ingerido compulsoriamente, em uma tentativa de
retomada do controle da situação; a purgação traz alívio. Entretanto, estes
eventos tornam-se rotina e se sobrepõem a outros determinantes. Tanto a
compulsão como a purgação subsequente podem estar presentes por anos sem
desconfiança de pessoas próximas, pois é bastante comum que estes atos
ocorram em sigilo e longe do julgamento de familiares. Como a bulimia não
causa uma perda de peso aparente e significativa, a doença pode permanecer
silenciosa.
A bulimia representa uma situação de descontrole, velada, secreta e, de
certa forma, planejada. É planejada pois a compulsão não está ligada
simplesmente ao ato de comer, em si, mas inicia na aquisição do alimento. Por
exemplo, no retorno do trabalho, quando o indivíduo passou no mercado e
comprou um monte de guloseimas; ou, quando a noite decidi pedir várias
pizzas... Neste momento, não há uma preocupação inicial, pois a purgação trará
o alívio posterior, então o ato purgativo já está subentendido. Muitas vezes,
também, os pacientes relatam uma situação um tanto dissociativa, trazendo uma
fala de não se reconhecer durante a compulsão alimentar. Falas como “...não
era eu”, “...sentia como se fosse outra pessoa”, “...comi como um animal”, “...não
estava no meu corpo”, podem aparecer durante a análise.

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Considerações Finais
Na proposta de falar algo sobre os transtornos alimentares, devemos ter
sempre em mente que estamos tocando em patologias complexas que têm
etiologia multifatorial e não são circunscritas a fatores socioeconômicos ou
culturais. Dentro da tal complexidade, se faz necessária uma intervenção
multidisciplinar para o tratamento. Esse consenso compartilhado pelos
profissionais que trabalham com transtornos alimentares e suas síndromes
parciais é baseado em evidências científicas e trabalhos consistentes realizados,
na grande maioria das vezes, em instituições de porte. Esses redutos
institucionais são capazes de oferecer um trabalho simultâneo e integrado da
equipe, tendo como tratamento padrão a participação de médicos clínicos,
endocrinologistas, psiquiatras e psicólogos, psicoterapeutas, nutricionistas e
outros profissionais da saúde. É na riqueza dessas diferentes frentes de atuação
e na interação constante da equipe que os melhores resultados podem ser
atingidos.
Foi apresentado um panorama de algumas questões psíquicas de
complexa densidade e determinantes dos transtornos alimentares, com as quais
os profissionais que se propõem a trabalhar no atendimento desses pacientes se
deparam. É importante abordar a potencialidade da riqueza simbólica a ser
trabalhada, presente nos TA – na terapia – e na transferência – em um processo
terapêutico integrado a uma equipe multidisciplinar, constante e atuante. Os TA
apresentam características que se iniciam em idade muito precoce e por anos
correm o risco de permanecer sem serem notados, ainda mais na sociedade
atual, que, predominantemente, não oferece um olhar de estranhamento para
um corpo muito emagrecido, para restrições alimentares severas e até para a
exclusão de certos grupos de alimentos com a intenção de perder peso.
É na adolescência, quando a progressão da doença captura a atenção de
que algo realmente sério está acontecendo na vida daquela pessoa, que a
maioria dos diagnósticos são feitos. A adolescência é um período de intensas

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transformações, uma fase em que o trânsito da dependência para a
independência está em curso. As mudanças na dinâmica familiar, dentro de
casa, e sociais, no contexto escolar – até então os dois universos mais
conhecidos e seguros – estão em evidência. Nos pacientes com TA, os estudos
apontam para um comprometimento dessa relação, na qual uma vivência de
excesso é tão comprometedora como uma aridez afetiva. As primeiras relações
vividas por eles – ou de mais, ou de menos – acarretarão uma precariedade no
estabelecimento do ego, carregando consigo uma falha na instauração do
aparelho psíquico.
A falha no funcionamento psíquico dos pacientes com TA reside na
precariedade da representação que diferencia sujeito e objeto. Como nos ensina
Freud, estas condições requerem do analista um passo a mais: construir pontes
para que as palavras possam de fato contemplar seu objetivo e dar estatuto
representacional ao corpo. Capturar as mensagens em espera de tradução e aí
sim poderemos falar sobre as insatisfações – as autorreprovações dadas pelos
ideais –, as reais mandatárias desse sofrimento.

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