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Organização
Vera Maria Candau
Autores
Ana Paula Batalha Ramos
Ana Paula da Silva Santos
Caroline da Matta Cunha Pérez
Cléa Maria da S. Ferreira
Daise dos Santos Pereira
Daniela Frida Valentim
Ediléia Carvalho
Erica Pereira dos Santos Nascimento
Felipe Guaraciaba Formoso
Helena Maria Marques Araújo
Isadora Souza
Ivanilde Apoluceno de Oliveira
João Victor Ferreira
Luiz Fernandes de Oliveira
Monica Regina Ferreira Lins
Natália Pinto Rebouças
Rita de Cassia de Oliveira e Silva
Susana Sacavino
Vera Maria Candau
Wilson Cardoso Junior
20-36300 CDD-370.115
Índices para catálogo sistemático:
1. Decolonialidade : Educação intercultural : Educação 370.115
Maria Alice Ferreira - Bibliotecária - CRB-8/7964
SUMÁRIO
Resistências decoloniais:
o ser e o viver em Enrique Dussel e Paulo Freire • pág, 23
Ivanilde Apoluceno de Oliveira
Introdução
Existem certas reflexões acadêmicas que insistem em afirmar que a teoria educa-
cional e a política posicionada ideologicamente não devem ser misturadas. Esta
afirmação é referenciada na concepção de que existe uma neutralidade axiológi-
ca, ou seja, a postura cientifica exige a isenção de valores numa investigação, ne-
nhum procedimento científico pode conter uma resposta sobre a desejabilidade
de uma coisa. A natureza da ciência é testar, experimentar sem um julgamento
de valor de quem está investigando. Por outro lado, o posicionamento político,
expresso na prática militante, é visto dentro dos meios intelectuais universitários
como uma ação que se limita a ordem do discurso denunciativo ou da reprodu-
ção argumentativa de palavras que servem somente para marcar uma posição
ideológica e para reivindicar algo de forma repetitiva.
Os desafios para qualquer docente não são poucos, principalmente a partir desse
novo período em que ele será cobrado a ter uma postura profissional antirracista,
onde há poucas referências e tradições pedagógicas sistematizadas.
Essa perspectiva traz implicações muito além daquilo que se pensa em didáti-
ca como mera operacionalização de procedimentos objetivos para o desenvol-
vimento de aprendizagens significativas para educandos de todos os níveis de
ensino. O que está posto é a perspectiva de que não é possível pensar uma educa-
ção para as relações étnico-raciais se não levarmos em consideração uma didática
militante, ou seja, uma didática antirracista.
E o que significa uma didática militante ou antirracista? Para responder esta ques-
tão precisamos levantar algumas reflexões teóricas e pedagógicas como a pro-
posta de combate ao racismo, o antirracismo como elemento integrante das ci-
ências da educação e o antirracismo como conhecimento escolar produzido nos
espaços educacionais e nos espaços acadêmicos.
É neste sentido que nossa afirmação se insere, pois uma práxis antirracista é sinô-
nimo de militância posicionada, e esta, se expressa na didatização das temáticas
raciais em educação.
Os desafios de uma escola cada vez mais massiva, com públicos diferenciados, rit-
mos de aprendizagens diversos, que trazem para o interior da escola problemas
sociais cada vez mais acentuados, ou ainda, contradições e conflitos raciais que
estão cada vez mais expostos na sociedade brasileira, revelam dramaticamente
que as lógicas das atividades pedagógicas e docentes nem sempre coincidem
com as dinâmicas da formação inicial. Assim, a diversidade e as diferenças identi-
tárias e étnico-raciais se apresentam com força, colocando em cheque um deter-
minado modelo de prática pedagógica, aprendido na formação docente.
Por fim, para tentar uma definição sobre o significado da didática militante e an-
tirracista, faz-se necessário pensar esta como mais uma das dimensões daquilo
que é denominado de conhecimento escolar.
Neste sentido, embora não exista uma longa tradição pedagógica antirracista e
militante nos espaços escolares, faz-se necessário a formulação e consolidação de
uma pedagogia e didática antirracista que se constitua e possa ser expressa num
conhecimento escolar antirracista.
Um exemplo disto nos informa Dubet (2001) quando discute as contradições entre
a igualdade anunciada pela escola e suas práticas de desprezo a estudantes de pe-
riferia. Dialogando com Dubet, no Brasil, em muitos contextos escolares, no mesmo
instante em que se faz um apelo à igualdade, a escola e uma parcela dos docentes
ainda manifestam um gosto eurocêntrico pelas culturas e referenciais brancos e um
desprezo, igualmente pronunciado, pelas massas e preferências negras. Do número
considerável de exemplos, vamos ilustrar somente dois, o primeiro é esclarecedor
(Meyer, 2002): numa escola do Rio de Janeiro, que se utiliza do “método construti-
vista”, uma menina negra, de três anos, passou a frequentar a pré-escola. Após algu-
mas semanas de “aula”, começou a chorar e a se recusar a ir para a instituição sem,
no entanto, verbalizar os motivos que pudessem justificar tal atitude. A mãe foi pro-
curar a professora, que também não conseguia explicar o fato, e ambas procuraram
conversar e observar mais detidamente a criança para poder entender o que vinha
acontecendo. Depois de repetidas e variadas abordagens, a menina explicou à mãe
que não queria mais ir para a escola porque ali ela tinha descoberto que “não podia
ser anjo” O que, exatamente, ela queria dizer com isso?
O segundo exemplo, também ocorrido no espaço escolar e relatado por uma pro-
fessora, refere-se a uma discussão em sala de aula, entre alunos e professora. A
questão era a organização de uma apresentação teatral em comemoração à Pás-
coa. A professora pergunta: quem vai fazer o papel de Jesus? Um menino negro, de
10 anos de idade se oferece. Em seguida se instala um profundo silêncio (inclusive
Partindo desses exemplos não poderíamos deixar de citar uma passagem elo-
quente de Dubet:
Como está, inevitavelmente, ligado ao princípio de autorresponsabilidade, o dese-
jo de igualdade traz consigo uma exigência contínua de reconhecimento. Assim,
a prova da dominação e das desigualdades injustas é primeiramente vivida como
uma manifestação de desprezo, de redução da pessoa ao seu papel e ao olhar do
outro. Os que afirmam que o triunfo do individualismo democrático esvazia o tra-
balho de todo estado de conflito enfraquecendo as comunidades se enganam pro-
fundamente (2001, p. 16).
O que se quer inferir aqui é que alunos negros e negras veem as hierarquias ra-
ciais como cadeias de desprezo. E, sobre os jovens, mais uma vez o autor parece
estar dialogando com a realidade brasileira:
Basta observarmos a obsessão do semblante e do desafio que comanda a sociabi-
lidade dos jovens da periferia, para vermos até que ponto o desprezo é tido como
o sentimento social elementar daqueles que esbarram na contradição aguda entre
igualdade fundamental e desigualdades sociais (2001, p. 17).
Essas cadeias de desprezo racial são um dos elementos estruturantes dos espaços
escolares brasileiros.
1 As referências a estas afirmações dizem respeito a mais de uma década de intervenções dos
movimentos sociais negros que interferiram em algumas políticas de estado, anteriores ao atual
retrocesso conservador iniciado com o golpe parlamentar de 2016.
Essa postura militante antirracista, que se expressa numa didática própria, é uma
escolha, um projeto de vida. Requer a disponibilidade de engajamento em vá-
rias dimensões deste debate e desta luta. Como bem fundamentou Paulo Freire
(1987), é um ato político, de intencionalidade em direção a uma práxis transfor-
madora de ação e reflexão.
Bell Hocks (2013) comenta sobre o fato de que os processos de ensino engajados
devem reconhecer que “ser professor é estar com as pessoas” (p. 222). Esse estar
com as pessoas não se restringe a um mero ato técnico-pedagógico, mas repre-
senta uma opção de compartilhar objetivos para um crescimento intelectual e
humano, para a criação de uma comunidade de aprendizagem. Este é o sentido
profundo da militância antirracista, da didática militante e a antirracista e da pe-
dagogia decolonial.
Quijano (2005) afirma que o conceito de raça é uma invenção europeia que en-
gendrou formas de dominação onde a apropriação dos produtos do trabalho era
acompanhada pela classificação de povos e culturas. As terminologias “negro” e
Referências bibliográficas
2 Grosfoguel (2007) nos diz que o racismo epistêmico significa o processo histórico de como a “(...)
epistemologia eurocêntrica ocidental dominante não admite nenhuma outra epistemologia como
espaço de produção de pensamento crítico nem científico” (p. 35).