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Copyrigt@2020 Apoena/Novamerica

Organização
Vera Maria Candau

Autores
Ana Paula Batalha Ramos
Ana Paula da Silva Santos
Caroline da Matta Cunha Pérez
Cléa Maria da S. Ferreira
Daise dos Santos Pereira
Daniela Frida Valentim
Ediléia Carvalho
Erica Pereira dos Santos Nascimento
Felipe Guaraciaba Formoso
Helena Maria Marques Araújo
Isadora Souza
Ivanilde Apoluceno de Oliveira
João Victor Ferreira
Luiz Fernandes de Oliveira
Monica Regina Ferreira Lins
Natália Pinto Rebouças
Rita de Cassia de Oliveira e Silva
Susana Sacavino
Vera Maria Candau
Wilson Cardoso Junior

Coordenação editorial e revisão


Adélia Maria Nehme Simão e Koff

Projeto gráfico e capa


Rodolpho Oliva

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Pedagogias decoloniais e interculturalidade : insurgências /


organização Vera Maria Candau ; coordenação Adélia Maria Nehme
Simão e Koff ; Rodolpho Oliva. -- 1. ed. -- Rio de Janeiro : APOENA, 2020.
Vários autores.
Bibliografia
ISBN 978-65-87275-00-0
1. Educação 2. Educação intercultural 3. Decolonialidade
4. Pedagogia decolonial I. Candau, Vera Maria. II. Koff, Adélia
Maria Nehme Simão e. III. Oliva, Rodolpho.

20-36300 CDD-370.115
Índices para catálogo sistemático:
1. Decolonialidade : Educação intercultural : Educação 370.115
Maria Alice Ferreira - Bibliotecária - CRB-8/7964
SUMÁRIO

1 PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E INTERCULTURALIDADE:


ENFOQUES • pág, 11

Perspectiva decolonial e educação intercultural:


articulações • pág, 12
Susana Sacavino e Vera Maria Candau

Resistências decoloniais:
o ser e o viver em Enrique Dussel e Paulo Freire • pág, 23
Ivanilde Apoluceno de Oliveira

Interculturalidade e práticas pedagógicas:


construindo caminhos • pág, 35
Susana Sacavino

Pedagogia decolonial e didática antirracista • pág, 49


Luiz Fernandes de Oliveira e Monica Regina Ferreira Lins

2 PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E INTERCULTURALIDADE:


PESQUISAS • pág, 65

O quilombo vai à universidade: trajetórias insurgentes, estratégias


subversivas e mediadores políticos • pág, 66
Ediléia Carvalho
A universidade e o giro decolonial na perspectiva estudantil:
entre o dito e o vivido • pág, 85
Cléa Maria da S. Ferreira

Formação de professores/as de educação física:


dialogando com os estudos decoloniais • pág, 98
Rita de Cassia de Oliveira e Silva

Educação de crianças de terreiro: descolonizar a educação • pág, 111


Isadora Souza e João Victor Ferreira

3 PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E INTERCULTURALIDADE:


FAZERES-SABERES • pág, 123

O ensino da educação física na escola em uma perspectiva


intercultural: um diálogo com as diferenças culturais • pág, 124
Ana Paula da Silva Santos

Oficina mulheres negras e literatura:


a prática (transgressora) do amor • pág, 134
Caroline da Matta Cunha Pérez

Estudo de campo na escola: possibilidades para práticas


pedagógicas de inspiração decolonial • pág, 147
Daniela Frida Valentim e Ana Paula Batalha Ramos
Campeonatos de futebol na escola e pedagogia decolonial • pág, 162
Felipe Guaraciaba Formoso

“Esse samba deu aula”: práticas pedagógicas decoloniais motivadas


pelo enredo da Escola de Samba Mangueira - 2019 • pág, 172
Erica Pereira dos Santos Nascimento

Refletir, produzir e divulgar conhecimentos “outros”: a experiência


insurgente da Mangueira no carnaval de 2019 • pág, 181
Daniela Frida Valentim e Ana Paula Batalha Ramos

Narrativas e memórias outras no ensino de História • pág, 193


Helena Maria Marques Araújo

Por uma didática intercultural:


trabalhando com brechas decoloniais • pág, 204
Rita de Cassia de Oliveira e Silva

Navegar é preciso: decolonização de saberes no MAR • pág, 217


Natália Pinto Rebouças

Notas sobre artes visuais, educação e interculturalidade • pág, 230


Wilson Cardoso Junior

Conversas docentes: a construção de um pensar militante na


educação municipal de Magé/RJ • pág, 244
Daise dos Santos Pereira

PERFIL DOS/AS AUTORES/AS • pág, 256


PEDAGOGIA DECOLONIAL
E DIDÁTICA ANTIRRACISTA

Luiz Fernandes de Oliveira • Monica Regina Ferreira Lins

Introdução

Existem certas reflexões acadêmicas que insistem em afirmar que a teoria educa-
cional e a política posicionada ideologicamente não devem ser misturadas. Esta
afirmação é referenciada na concepção de que existe uma neutralidade axiológi-
ca, ou seja, a postura cientifica exige a isenção de valores numa investigação, ne-
nhum procedimento científico pode conter uma resposta sobre a desejabilidade
de uma coisa. A natureza da ciência é testar, experimentar sem um julgamento
de valor de quem está investigando. Por outro lado, o posicionamento político,
expresso na prática militante, é visto dentro dos meios intelectuais universitários
como uma ação que se limita a ordem do discurso denunciativo ou da reprodu-
ção argumentativa de palavras que servem somente para marcar uma posição
ideológica e para reivindicar algo de forma repetitiva.

O que discutiremos neste texto se referencia em alguns anos de experiência polí-


tica, didática e de reflexão teórica no campo da educação, especialmente no que
se refere à didática e as políticas de combate ao racismo na educação. Partimos de
duas ideias: a primeira é que não é possível pensar uma educação para as relações
étnico-raciais se não levarmos em consideração uma didática militante, ou seja,
uma didática antirracista. E a segunda ideia é aquela em que se afirma que o co-
nhecimento escolar para as relações étnico-raciais anuncia uma nova perspectiva
para se pensar a formação docente nesta área de conhecimento e pesquisa.

PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E INTERCUTURALIDADE: INSURGÊNCIAS 49


Desde 2003, quando foi sancionada a Lei 10.639, que estabelece a obrigatorieda-
de da história da África e dos negros no Brasil e, desde 2008, quando a esta lei se
acrescenta a história e cultura dos povos indígenas, incluindo o artigo 26A na Lei
de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDBEN, uma nova conjuntura edu-
cacional vem trazendo uma nova perspectiva e diversos desafios. Em primeiro
lugar, as universidades responsáveis pela formação docente deverão pensar em
propostas teórico-metodológicas para o ensino e a prática pedagógica docente
em relações étnico-raciais. Em segundo lugar, as escolas da Educação Básica de-
verão implementar propostas curriculares, de modo a criar as condições necessá-
rias para que os docentes que já exercem o magistério possam desenvolver uma
prática pedagógica consistente e referenciada teoricamente.

As referências tradicionais no campo da didática

Os desafios para qualquer docente não são poucos, principalmente a partir desse
novo período em que ele será cobrado a ter uma postura profissional antirracista,
onde há poucas referências e tradições pedagógicas sistematizadas.

Quando um profissional entra no magistério, as referências que prevalecem em


termos de didática e prática de ensino são aquelas identificadas com os modelos
técnicos, ou seja, o docente é aquele que coloca em prática os conteúdos adqui-
ridos na formação teórica inicial da ciência de referência. Nesta perspectiva, os
modelos de planejamento de ensino, seleção de conteúdos e avaliação da apren-
dizagem se constituem como operacionalização automática do conhecimento
apreendido na formação bacharelesca.

Em relação ao planejamento de ensino, predominou por longos anos uma di-


mensão técnica, onde a prática do planejamento é formalizada, ritualística,
normalmente cópia de um produto ideal acabado ou se constituía num pla-
nejamento pró-forma, para o simples cumprimento de normas burocráticas.
Este modelo na formação docente exige que o futuro profissional da educação
domine primeiramente os conhecimentos científicos, as regras, os princípios
gerais das ciências básicas, para depois aplicá-los. Sua prática se resumiria ape-
nas em escolher os meios e planejar cada etapa dos procedimentos a serem
aplicados no ensino para a obtenção de metas, tornando-se uma atividade me-
ramente instrumental.

Em relação a seleção de conteúdos, há uma concepção dominante de muitos do-


centes em associar os conteúdos de ensino aos conhecimentos de cada disciplina
que devem ser transmitidos aos alunos. Embora isso não seja totalmente falso, tal
associação aponta para uma concepção estática do processo de ensino e aprendi-
zagem, na medida em que não concebe a seleção e a transmissão desses conteú-
dos como um processo de intenso intercâmbio de saberes entre professor e aluno.

50 PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E INTERCUTURALIDADE: INSURGÊNCIAS


Em relação a avaliação das aprendizagens, o que predomina como referência
para os docentes é a “pedagogia do exame” (Luckesi, 2002). Ou seja, uma pers-
pectiva em que todas as atividades docentes e discentes estão voltadas para um
treinamento de “resolver problemas” ou no ensino de resolução de provas em di-
reção ao vestibular. Com esse tipo de avaliação, mede-se apenas a competência
do aluno em memorizar e repetir informações que lhe foram transmitidas duran-
te as aulas. Ou ainda, a avaliação assume o papel de controle, visando adequar o
planejado e o aprendido. É também a avaliação em sua concepção de julgamento
de resultados finais e irrevogáveis.

Essas perspectivas sobre planejamento, seleção de conteúdos e avaliação têm


como decorrência, nos processos de ensino-aprendizagem, a articulação de
uma visão tradicionalista do fenômeno educativo. O educando é uma tábula-
-rasa, constituindo-se apenas em depósito de conhecimentos e saberes que são
transmitidos por um mestre. Em outras palavras, o sujeito que passa a conhecer
o mundo é aquele que foi capaz de assimilar os saberes transmitidos por outros,
não havendo possibilidades de trocas e transformações entre sujeitos. As conse-
quências dessas concepções foram bem formuladas por Paulo Freire (1987), na
sua crítica à educação bancária.

A partir de uma perspectiva diversa e situando algumas considerações sobre o


desenvolvimento dessas discussões para a educação para as relações étnico-ra-
ciais, faz-se necessário, em primeiro lugar, pensar o planejamento de ensino ten-
do em vista o contexto das relações raciais na escola e na sociedade brasileira
e os conhecimentos prévios dos sujeitos envolvidos no processo de ensino; em
segundo lugar, pensar a seleção de conteúdos não como um processo estático
e apenas associado ao conhecimento que o docente tem da questão étnico-ra-
cial, mas uma prática coletiva integrante da prática pedagógica do professor e do
contexto social escolar, e no qual este profissional mobiliza uma série de conheci-
mentos específicos; e por fim, a necessidade de pensar a avaliação da aprendiza-
gem numa perspectiva diagnóstica, ou seja, para afrontar situações da vida, para
construir instrumentos de identificação de novos rumos da aprendizagem, para o
reconhecimento dos caminhos percorridos e identificação dos caminhos a serem
perseguidos, na perspectiva de que cada sujeito se capacite para compreender,
refletir, aprender com autonomia, de analisar, de criar, de estabelecer relações sig-
nificativas, deixando de lado o velho esquema do treinamento e da memorização.

Possibilidades de uma didática antirracista

Os fundamentos pedagógicos do artigo 26A da LDBEN de 1996, incluído em 2003


e modificado em 2008, é explicito quando afirma que a lei:
Trata, (...) de política curricular, fundada em dimensões históricas, sociais, antropoló-
gicas oriundas da realidade brasileira, e busca combater o racismo e as discrimina-

PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E INTERCUTURALIDADE: INSURGÊNCIAS 51


ções que atingem particularmente os negros. Nesta perspectiva, propõe à divulga-
ção e produção de conhecimentos, a formação de atitudes, posturas e valores que
eduquem cidadãos orgulhosos de seu pertencimento étnico-racial - descendentes
de africanos, povos indígenas, descendentes de europeus, de asiáticos - para inte-
ragirem na construção de uma nação democrática, em que todos, igualmente, te-
nham seus direitos garantidos e sua identidade valorizada (BRASIL, 2004, p. 2).

E ainda, para que estas propostas curriculares obtenham sucesso:


A escola e seus professores não podem improvisar. Têm que desfazer mentalidade
racista e discriminadora secular, superando o etnocentrismo europeu, reestrutu-
rando relações étnico-raciais e sociais, desalienando processos pedagógicos. Isto
não pode ficar reduzido a palavras e a raciocínios desvinculados da experiência
de ser inferiorizados vivida pelos negros, tampouco das baixas classificações que
lhe são atribuídas nas escalas de desigualdades sociais, econômicas, educativas e
políticas (BRASIL, 2004, p. 6).

Essa perspectiva traz implicações muito além daquilo que se pensa em didáti-
ca como mera operacionalização de procedimentos objetivos para o desenvol-
vimento de aprendizagens significativas para educandos de todos os níveis de
ensino. O que está posto é a perspectiva de que não é possível pensar uma educa-
ção para as relações étnico-raciais se não levarmos em consideração uma didática
militante, ou seja, uma didática antirracista.

E o que significa uma didática militante ou antirracista? Para responder esta ques-
tão precisamos levantar algumas reflexões teóricas e pedagógicas como a pro-
posta de combate ao racismo, o antirracismo como elemento integrante das ci-
ências da educação e o antirracismo como conhecimento escolar produzido nos
espaços educacionais e nos espaços acadêmicos.

O combate ao racismo como proposta educacional nos espaços escolares insere


a prática de professores na matriz curricular, não somente enquanto profissionais
do ensino, mas, ao mesmo tempo, como educadores combatentes por uma outra
prática social que tenta eliminar o racismo da sociedade brasileira. Esta prática
educativa, assim pensada, estabelece uma série de conflitos entre sujeitos e po-
siciona os docentes de um lado da moeda dos conflitos e desigualdades raciais.
Em outros termos, os docentes são mobilizados a intervirem nos processos edu-
cacionais e de aprendizagem a partir de um posicionamento político, de combate
a todas as formas de discriminação e preconceito racial existentes nos espaços
escolares e na sociedade.

Se posicionar, nesta perspectiva, significa rejeitar a neutralidade e o status quo


dominante sobre relações raciais e as desigualdades advindas das mesmas. E este
posicionamento proporciona uma condição militante, ou seja, não produz na prá-
tica educativa somente técnicas para um convívio social, mas uma práxis transfor-

52 PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E INTERCUTURALIDADE: INSURGÊNCIAS


madora da realidade. Ou como afirma Paulo Freire (1987):
Se os homens [e as mulheres] são seres do quefazer é exatamente porque seu fazer
é ação e reflexão. É práxis. É transformação do mundo. E na razão mesma, em que o
quefazer é práxis, todo fazer do quefazer tem de ter uma teoria que necessariamen-
te o ilumine. O quefazer é teoria e prática. É reflexão e ação (FREIRE, 1987, p. 145).

É neste sentido que nossa afirmação se insere, pois uma práxis antirracista é sinô-
nimo de militância posicionada, e esta, se expressa na didatização das temáticas
raciais em educação.

Neste sentido, se faz necessário pensar no antirracismo como elemento integran-


te das ciências da educação, pois esta perspectiva educativa é um componente
de fundamento no campo da educação. Quando afirmamos essa perspectiva es-
tamos nos referindo a um dos aspectos basilares para pensar os processos de
ensino e aprendizagem no atual contexto da educação brasileira.

Nos últimos anos, as discussões sobre conhecimento e educação tornaram-


se mais complexas e estão desafiando a reflexão pedagógica a compreender e
apresentar alternativas à prática pedagógica. Esse desafio se apresenta muito em
função dos contextos escolares cada vez mais massivos e com um público dife-
renciado dos padrões ensinados pela/na formação docente de anos anteriores.
Assim, na relação pedagógica, apresenta-se a questão dos limites sociais, cultu-
rais, ideológicos e, na emergência de uma mobilização em torno da Lei 10.639/03,
os limites étnico-raciais da prática pedagógica.

Os desafios de uma escola cada vez mais massiva, com públicos diferenciados, rit-
mos de aprendizagens diversos, que trazem para o interior da escola problemas
sociais cada vez mais acentuados, ou ainda, contradições e conflitos raciais que
estão cada vez mais expostos na sociedade brasileira, revelam dramaticamente
que as lógicas das atividades pedagógicas e docentes nem sempre coincidem
com as dinâmicas da formação inicial. Assim, a diversidade e as diferenças identi-
tárias e étnico-raciais se apresentam com força, colocando em cheque um deter-
minado modelo de prática pedagógica, aprendido na formação docente.

Na escola massiva, os professores são mobilizados a se desvelarem enquanto


sujeitos socioculturais, nas suas corporeidades, nas suas historicidades, nos seus
relacionamentos subjetivos, nas suas linguagens, etc. As novas identidades es-
tudantis que se apresentam estão começando a estabelecer um confronto com
a cultura escolar hegemônica (modos de regulação, regimes de gestão e produ-
ção simbólica) amalgamadas para resistir aos novos conteúdos, novos significa-
dos ou novas perspectivas de reconceitualizações identitárias ou étnico-raciais.
Neste sentido, a escola e os docentes estão sendo desafiados a uma tarefa quase
colossal, pois devem aprender a educar alunos diferentes e permitir-lhes outra
imagem, diferente daquela padronizada, estereotipada e racializada.

PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E INTERCUTURALIDADE: INSURGÊNCIAS 53


Neste sentido, o antirracismo ganha força como fundamento da educação na me-
dida em que deve dar conta dessa relação conflituosa, onde as diferenças raciais
se apresentam com força, assim como os aspectos sociológicos, históricos, filosó-
ficos e psicológicos que são considerados, também, como fundamentos para se
pensar a educação brasileira.

Por fim, para tentar uma definição sobre o significado da didática militante e an-
tirracista, faz-se necessário pensar esta como mais uma das dimensões daquilo
que é denominado de conhecimento escolar.

A educação antirracista, enquanto componente de fundamento no campo da


educação e que se apresenta no campo curricular enquanto práxis transformado-
ra, precisa ser pensada também em diálogo com as teorias críticas no campo do
currículo, especialmente nas elaborações de autores franceses, ingleses e brasilei-
ros como Chevallard (1991); Forquin (1993); Lopes (2007); Goodson (1998) dentre
outros, que desenvolveram a categoria conhecimento escolar, referindo-se a um
conhecimento específico, recontextualizado a partir das necessidades da ação
educativa. Neste sentido, opera-se a utilização de conceitos como cultura escolar
e conhecimento escolar que possibilitam considerar a didática em suas articula-
ções com o contexto sociocultural e com os saberes de referência, o que implica
considerar aspectos de ordem epistemológica. Assim, o que poderia significar o
reconhecimento dessas teorizações no que toca as relações entre conhecimento
escolar e conhecimento científico?

Quando se questiona quais seriam os objetivos da educação antirracista, quando


se espera dela uma intervenção mais promissora na educação básica ou quando
se propõe novas metodologias e recursos didáticos, mesmo em contextos adver-
sos ao seu ensino, podemos pensar sobre a suposta contradição entre conheci-
mento cientifico e conhecimento escolar.

Focalizamos o conhecimento escolar enquanto mediação didática dos conhe-


cimentos selecionados pela escola, processo esse eminentemente produtor de
configurações cognitivas próprias. O conhecimento escolar é um conhecimento
imerso na contradição de ter por objetivo a socialização do conhecimento cien-
tífico e/ou erudito, ao mesmo tempo em que constrói o conhecimento hegemô-
nico (LOPES, 2004).

O conteúdo da educação está sujeito a grandes variações históricas e expressa,


consciente ou inconscientemente, certos elementos básicos da cultura: é uma se-
leção determinada, um conjunto particular de ênfases e omissões. Neste sentido,
há necessariamente um processo de mediação didática. Tal processo se constitui
numa reconstrução dos saberes, notadamente saberes eruditos e científicos, que
permitem que afirmemos haver a constituição de uma epistemologia eminente-
mente escolar, com uma forte influência dos professores.

54 PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E INTERCUTURALIDADE: INSURGÊNCIAS


Assim, podemos constatar que o esforço de docentes em elaborar explicações
para seus alunos acaba por constituir novas formas de abordagem de conceitos
científicos, novas configurações cognitivas, não necessariamente equivocadas.
Novas formas que facilitam a compreensão de conceitos, inclusive pela comu-
nidade científica. Entretanto, este processo só é possível, sem dúvida, se os pro-
fessores tiverem facilidades em suas condições de formação e trabalho, além da
legitimação epistemológica na produção de seus saberes.

A especificidade da experiência educativa escolar têm trabalhado com a categoria


“conhecimento escolar”, referida como aquela que designa um conhecimento com
configuração cognitiva própria, relacionado, mas diferente do saber científico de
referência, e que é criado a partir das necessidades do processo educativo, envol-
vendo questões relativas à mediação didática, ao conhecimento de referência e ao
cotidiano, bem como à dimensão histórica e sociocultural. Neste sentido, pensar a
prática docente é constatar que esta resulta da articulação de diferentes saberes.

O conhecimento das teorias raciais e antirracistas produzidos nas universidades


deve passar, na educação básica, necessariamente por um processo de mediação
didática, numa dinâmica social onde intervém os sujeitos presentes na escola,
assim como os diversos aspectos da prática pedagógica, de modo a traduzir esses
conhecimentos em conteúdos ensináveis nas escolas. Essa reflexão indica uma
discussão no campo do currículo antirracista sobre a distinção deste como co-
nhecimento de referência teórica e como conhecimento teórico escolar.

Neste sentido, embora não exista uma longa tradição pedagógica antirracista e
militante nos espaços escolares, faz-se necessário a formulação e consolidação de
uma pedagogia e didática antirracista que se constitua e possa ser expressa num
conhecimento escolar antirracista.

Em uma das passagens do parecer do Conselho Nacional de Educação - CNE que


fundamenta as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Ét-
nico-Raciais - DCNERER, se afirma que “temos, pois, pedagogias de combate ao
racismo e a discriminações por criar. É claro que há experiências de professores e
de algumas escolas, ainda isoladas, que muito vão ajudar”. Entretanto, para em-
preender a construção dessas pedagogias, o mesmo parecer indica que é neces-
sário que se desfaçam alguns equívocos sobre relações raciais no Brasil como: a
constituição da identidade negra, a ideologia do branqueamento, a ideia de que
esta reflexão interessa somente ao movimento negro ou que só atinge os negros,
dentre outras questões. Enfim, há que se didatizar/transpor/mediar certas formu-
lações teóricas do campo dos estudos das relações raciais no Brasil, e torná-los
ensináveis e compreensíveis, numa perspectiva antirracista, para um público ha-
bituado a certos mitos e equívocos que reforçam o racismo e o pensamento racia-
lista. Na medida em que se constrói esta perspectiva, começamos a estabelecer
um novo conhecimento escolar antirracista.

PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E INTERCUTURALIDADE: INSURGÊNCIAS 55


Entretanto, o processo de didatização para a construção de um conhecimento
escolar antirracista não se limita ao encontro da melhor forma de trabalhar um
conteúdo antirracista e com materiais adequados. Esse conhecimento escolar
também necessita enfrentar uma dimensão que as reflexões raciais mobilizam
permanentemente quando explicitadas, ou seja, as angustias, as tristezas, as do-
res, os medos, as humilhações, o desprezo e tantos outros sentimentos humanos
que o racismo produz de forma negativa e que operam hierarquias e podem, in-
clusive, alterar a saúde dos indivíduos.

A didática antirracista necessita levar em consideração estas questões. E isto não


se encontra simplesmente na ordem cognitiva, mas principalmente na ordem das
construções identitárias, ou, em outros termos, o questionamento do ser, tanto
entre educadores como entre educandos.

Um exemplo disto nos informa Dubet (2001) quando discute as contradições entre
a igualdade anunciada pela escola e suas práticas de desprezo a estudantes de pe-
riferia. Dialogando com Dubet, no Brasil, em muitos contextos escolares, no mesmo
instante em que se faz um apelo à igualdade, a escola e uma parcela dos docentes
ainda manifestam um gosto eurocêntrico pelas culturas e referenciais brancos e um
desprezo, igualmente pronunciado, pelas massas e preferências negras. Do número
considerável de exemplos, vamos ilustrar somente dois, o primeiro é esclarecedor
(Meyer, 2002): numa escola do Rio de Janeiro, que se utiliza do “método construti-
vista”, uma menina negra, de três anos, passou a frequentar a pré-escola. Após algu-
mas semanas de “aula”, começou a chorar e a se recusar a ir para a instituição sem,
no entanto, verbalizar os motivos que pudessem justificar tal atitude. A mãe foi pro-
curar a professora, que também não conseguia explicar o fato, e ambas procuraram
conversar e observar mais detidamente a criança para poder entender o que vinha
acontecendo. Depois de repetidas e variadas abordagens, a menina explicou à mãe
que não queria mais ir para a escola porque ali ela tinha descoberto que “não podia
ser anjo” O que, exatamente, ela queria dizer com isso?

Dubet esclarece que


Se cada um deve ser autônomo, importa primeiro que seja reconhecido como uma
pessoa especial, original, capaz de construir sua vida sem se submeter a outros
princípios que não os seus próprios. Enquanto a vergonha vem do sentimento de
ser desmascarado, o desprezo vem do desejo de reconhecimento de si, do seu ca-
ráter único; a vergonha surge quando o indivíduo é destituído de seu papel, o des-
prezo, quando ele é reduzido a seu papel, quando não é reconhecido (2001, p. 16).

O segundo exemplo, também ocorrido no espaço escolar e relatado por uma pro-
fessora, refere-se a uma discussão em sala de aula, entre alunos e professora. A
questão era a organização de uma apresentação teatral em comemoração à Pás-
coa. A professora pergunta: quem vai fazer o papel de Jesus? Um menino negro, de
10 anos de idade se oferece. Em seguida se instala um profundo silêncio (inclusive

56 PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E INTERCUTURALIDADE: INSURGÊNCIAS


da professora), que informa ao menino que ali não é o seu lugar. Imediatamente, o
mesmo menino desiste afirmando: “- tudo bem, eu posso fazer outro papel!!!”

Partindo desses exemplos não poderíamos deixar de citar uma passagem elo-
quente de Dubet:
Como está, inevitavelmente, ligado ao princípio de autorresponsabilidade, o dese-
jo de igualdade traz consigo uma exigência contínua de reconhecimento. Assim,
a prova da dominação e das desigualdades injustas é primeiramente vivida como
uma manifestação de desprezo, de redução da pessoa ao seu papel e ao olhar do
outro. Os que afirmam que o triunfo do individualismo democrático esvazia o tra-
balho de todo estado de conflito enfraquecendo as comunidades se enganam pro-
fundamente (2001, p. 16).

O que se quer inferir aqui é que alunos negros e negras veem as hierarquias ra-
ciais como cadeias de desprezo. E, sobre os jovens, mais uma vez o autor parece
estar dialogando com a realidade brasileira:
Basta observarmos a obsessão do semblante e do desafio que comanda a sociabi-
lidade dos jovens da periferia, para vermos até que ponto o desprezo é tido como
o sentimento social elementar daqueles que esbarram na contradição aguda entre
igualdade fundamental e desigualdades sociais (2001, p. 17).

Essas cadeias de desprezo racial são um dos elementos estruturantes dos espaços
escolares brasileiros.

Enfim, pensar numa didática antirracista é, fundamentalmente, enfrentar medos, so-


frimentos, angustias, negação do próprio ser, questionamento de experiências vividas
intensamente pelos sujeitos. E essa ordem de ação didática, como dissemos, não pode
se restringir ao cognitivo, pois a ação didática antirracista nos mobiliza a propor uma
mudança profunda, ao mesmo tempo cognitiva e emocional. Não basta dizer repeti-
tivamente, com exemplos ou com denúncias, que uma criança ou jovem negra, que
não se considera como tal, precisa de um reconhecimento e se reconhecer. A mudança
numa educação antirracista só pode acontecer se a mesma criança ou jovem negra
conseguir superar medos, angustias e saber - sentindo - dos riscos e possibilidades de
se assumir negra numa sociedade racista. Esta operação não se estabelece na ordem
simples do discurso ou através de uma técnica (didática) racional e planejada, pois o
racismo não é somente pensado, mas, fundamentalmente, sentido enquanto dor, en-
quanto violência emocional que compromete a integridade e a dignidade humana.

Novas perspectivas na formação docente?

Fanon (2005) afirmava que a descolonização é realmente uma criação de homens


novos, pois a desvalorização das histórias dos colonizados distorceu, desfigurou
e aniquilou as identidades dos oprimidos. Neste sentido, mesmo com as novas

PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E INTERCUTURALIDADE: INSURGÊNCIAS 57


teorizações acadêmicas em torno da reflexão sobre história e identidades na
nova historiografia social da escravidão ou até mesmo das reconceitualizações
promovidas pelo movimento negro e por diversos agentes acadêmicos no cam-
po do pensamento social brasileiro, há um enfrentamento simbólico referente ao
próprio ser, à própria identidade dos afrodescendentes que compõem um amplo
espectro da população escolarizada. E aqui, os professores poderão, por longos
anos, viverem as tensões e os desafios na denúncia do racismo, na afirmação da
existência de diferentes identidades históricas e na afirmação e reconhecimento
de outras formas de ser, pensar e existir. Há um longo caminho a percorrer e há
uma consciência de que estamos vivendo um tempo diferente nas escolas para
qual muitos docentes não estão preparados.

No entanto, na atual conjuntura de reflexões teóricas e pedagógicas no campo


da educação brasileira, devemos ressaltar que há um certo consenso na literatura
acadêmica sobre a formação docente de que o processo de formação profissio-
nal é contínuo e dinâmico e, na última década, há um crescente reconhecimento
de que os docentes “sempre trabalharam e trabalharão com as semelhanças e
as diferenças, as identidades e a alteridade, o local e o global” (GOMES e SILVA,
2002, p. 19). No entanto, com a afirmação da temática racial, através das pres-
sões e formulações dos movimentos negros, das iniciativas governamentais e
das contribuições das novas formulações historiográficas e do pensamento so-
cial brasileiro, a diferença racial, enquanto temática teórica vem se apresentando
como componente relevante que entrelaça conhecimento, socialização e educa-
ção. Está presente de forma marcante nos espaços escolares, na medida em que
provoca e exige dos docentes uma tomada de posição. Além disso, questiona o
discurso universal da produção de conhecimento e tenta afirmar a diversidade da
construção do conhecimento histórico.

Vivenciamos um novo período que não se restringe às denúncias da presença de


preconceito, discriminação e racismo no espaço escolar, nos currículos e nos ma-
teriais didáticos. Esse novo período, caracterizado por proposições pedagógicas,
afirmações de novas categorias de análise e, o mais importante, certo investimen-
to público e pressões concretas dos movimentos sociais, nos levam a afirmar a
profundidade e complexidade das tensões no âmbito da formação docente.

Levando em consideração que nas atuais discussões sobre a formação docente


os professores são mobilizados a terem um papel mais reflexivo e ativo na formu-
lação de suas práticas e que começam a serem reconhecidos como produtores
de conhecimentos pedagógicos e não meros reprodutores, as mobilizações e as
reflexões teóricas em torno de uma reeducação das relações étnico-raciais convo-
cam os docentes a avançar um pouco mais.

Em outro espaço de reflexão (OLIVEIRA, 2012), percebemos que os professores


deverão enfrentar muito mais do que deficiências, barreiras ou incorporar uma

58 PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E INTERCUTURALIDADE: INSURGÊNCIAS


nova formação. Eles estão sendo chamados a uma complexa tarefa: de redimen-
sionamento epistemológico e historiográfico de suas formações, de pôr em ques-
tão certos princípios fundadores de suas formações e de se mobilizarem para pro-
duzir novas epistemologias pedagógicas que envolvem aspectos nas relações de
poder e de saber. Por outro lado, na perspectiva de suas subjetividades, a dimen-
são do ser, são chamados a redefinir estratégias pedagógicas e esquemas simbó-
licos racializados que estão profundamente arraigados no senso comum escolar e
profissional. É, neste sentido, que afirmamos que as novas legislações sobre edu-
cação antirracista estão possibilitando uma experiência nova de julgamento da
formação anterior, num outro patamar epistemológico. O que podemos vivenciar
num futuro próximo é um estado de tensão na formação dos professores, que se
não for enfrentado coletivamente enquanto projeto, sua temporalidade será mais
longa do que possamos imaginar.

Estas perspectivas que os professores devem enfrentar, possibilitam abrirmos


uma reflexão: há que se pensar que os processos de formação docente, a luz des-
se novo cenário de emergência da discussão racial, podem tomar um rumo em
que os professores serão requisitados a tomarem posição e terem como elemen-
to formativo a competência de saber se situar nas tensas relações conflituais e
desiguais que caracterizam as discussões raciais no Brasil. Não como um simples
aspecto de conteúdo a mais nos programas curriculares, mas como fundamentos
formativos que concebem a profissionalidade docente.

A formação docente, com as pressões dos movimentos sociais, já vem há alguns


anos sofrendo este impacto e sendo influenciada por esta demanda. No entanto,
com a crescente mobilização em torno da Lei 10.639/03, podemos afirmar que a
formação profissional dos docentes poderá não ser mais a mesma.

Evidentemente, não podemos prever o que pode ocorrer, entretanto, há de fato


uma experiência que está deixando suas marcas enquanto políticas públicas1,
está se produzindo memórias docentes com editoras, instituições de ensino e
pesquisadores, que já produzem novos materiais didáticos que seguem as orien-
tações da Lei, sem contar com os vários fóruns de discussão acadêmica que são
realizados e as centenas de publicações, sejam em formato de livros ou artigos
para eventos de peso no campo da Educação, enfim, há uma política pública que
está em curso, envolvendo inclusive o poder judiciário. Assim, a formação dos
professores está sendo chamada a uma reorganização em termos de conheci-
mento, bem como em termos pedagógicos. Relevante ainda é o fato de que a ree-
ducação das relações étnico-raciais, ao transformar uma demanda formativa num
direito, faz surgir a necessidade e a possibilidade de rever um passado marcado

1 As referências a estas afirmações dizem respeito a mais de uma década de intervenções dos
movimentos sociais negros que interferiram em algumas políticas de estado, anteriores ao atual
retrocesso conservador iniciado com o golpe parlamentar de 2016.

PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E INTERCUTURALIDADE: INSURGÊNCIAS 59


pela voz uníssona do eurocentrismo, para formar as novas gerações. E a exigên-
cia que se anuncia é a tomada de posição política, epistemológica e identitária,
na perspectiva de abertura de um novo diálogo entre conhecimentos, culturas e
sujeitos históricos.

Pedagogia decolonial: é possível mudar os termos da conversa epistemológica?


A partir de algumas ideias que colocamos aqui, as questões que envolvem a im-
plementação do artigo 26A da LDBEN são extremamente complexas do ponto de
vista pedagógico, político e epistemológico.

Quando refletimos sobre as possibilidades e tensões de uma didática antirracista,


uma das coisas que podemos destacar é que, na discussão racial, os professores
também são aprendizes. Eles não têm a fórmula pronta quando estão em sala de
aula, pelo contrário, na maioria das vezes, no combate às situações de racismo,
eles devem sondar o campo de atuação, perceberem sentimentos, dores, medos,
culpas, tristeza, agressividades, ou seja, sentimentos e percepções tanto de estu-
dantes como do próprio docente. Ao fim, eles precisam aprender a desaprender e
reaprender cotidianamente o trato com a crueldade do racismo.

Nestas atuações, muitos docentes sentem e vivenciam uma profunda solidão,


pois nem todos no seu ambiente escolar estão dispostos a enfrentarem essas si-
tuações, mesmo que alguns considerem injustas e incompatíveis com processos
educacionais o racismo e suas práticas discriminatórias decorrentes.

Os docentes dispostos a enfrentar esta solidão, necessitam estar profundamente


conscientes de que há uma pedagogia a se construir baseado no questionamen-
to e na atuação militante, ou como conceitua Walsh (2013), uma pedagogia deco-
lonial. Essa postura militante, que requer o reconhecimento do problema racial,
implica, do ponto de vista cognitivo, apreender a transgredir, se insurgir e atuar
de forma permanente, para tentar criar espaços de humanização e outras possi-
bilidades de viver, ou seja, intencionalidades que ao final significa um projeto de
vida. E neste projeto, corpo e espírito devem se doar a causa antirracista, para no
mínimo, conseguir sensibilizar e humanizar as relações com e entre os estudantes.
Em certo momento de nossa trajetória militante e intelectual, ouvimos de um
professor negro que o “racismo é onipotente e onisciente”. O significado de sua
fala, numa plateia de seus pares docentes, não mobilizou a todos, pois, segundo
este professor, quanto mais privilégios uma pessoa tem, menos se enxerga esses
mesmos privilégios e, neste sentido, só quem sente o racismo sente a dor profun-
da de ser um “não-ser.”

A didática antirracista também enfrenta a tensão dos momentos de desconforto,


ou seja, se num debate em que sujeitos antirracistas ficam policiando o tempo
todo as expressões racistas de amigos e parentes, como podemos imaginar do-
centes-militantes que têm como didática permanente a promoção de reflexões

60 PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E INTERCUTURALIDADE: INSURGÊNCIAS


raciais? Estes docentes estão mobilizando o cotidiano emocional dos sujeitos a
cada aula, a cada encontro. Podemos, portanto, imaginar o desgaste emocional
dessa postura vigilante? Ser vigilante contra o racismo, desconfiamos, estressa os
outros e a si mesmo e pode levar ao cansaço, pelo sentimento de estar só e, às
vezes, o desgaste emocional pode travar subjetivamente o docente na reflexão
antirracista. Pois, como nos diz Bell Hocks (2013, p. 103) “não é fácil dar nome à
nossa dor, teorizar a partir desse lugar”.

Essa postura militante antirracista, que se expressa numa didática própria, é uma
escolha, um projeto de vida. Requer a disponibilidade de engajamento em vá-
rias dimensões deste debate e desta luta. Como bem fundamentou Paulo Freire
(1987), é um ato político, de intencionalidade em direção a uma práxis transfor-
madora de ação e reflexão.

Bell Hocks (2013) comenta sobre o fato de que os processos de ensino engajados
devem reconhecer que “ser professor é estar com as pessoas” (p. 222). Esse estar
com as pessoas não se restringe a um mero ato técnico-pedagógico, mas repre-
senta uma opção de compartilhar objetivos para um crescimento intelectual e
humano, para a criação de uma comunidade de aprendizagem. Este é o sentido
profundo da militância antirracista, da didática militante e a antirracista e da pe-
dagogia decolonial.

Esse ato político, militante, antirracista e decolonial, também se desdobra num


giro epistemológico, na medida em que há que se construir uma (re)existência
de compreensão do mundo e dos termos que embasam este mundo racista. O
exemplo evidente desta perspectiva é o conceito de raça.

O conceito de raça atualmente é atravessado de luta política, foi ressignificado


para um combate ao racismo. Nos últimos 30 anos de “cor preta” ou “negro” como
terminologia pejorativa, o movimento negro, ainda de forma incipiente, conse-
gue ressignificar a categoria “negro” como símbolo de uma condição étnica e ra-
cial. A “raça” é ressignificada, não se tratando mais de uma noção biológica, mas
política, ou seja, “raça negra” como um conjunto de indivíduos que possuem his-
tórias e culturas comuns, no passado e no presente.

Toda esta construção conceitual pode ser caracterizada na perspectiva de um


pensamento crítico de fronteira (Walsh, 2005) que significa tornar visível outras
lógicas e formas de pensar, diferentes da lógica eurocêntrica e dominante. Pois,
estas reconceitualizações partem da perspectiva das experiências subalterniza-
das pela colonização europeia.

Quijano (2005) afirma que o conceito de raça é uma invenção europeia que en-
gendrou formas de dominação onde a apropriação dos produtos do trabalho era
acompanhada pela classificação de povos e culturas. As terminologias “negro” e

PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E INTERCUTURALIDADE: INSURGÊNCIAS 61


“raça”, por exemplo, se processam nesta história colonial. Nesse sentido, as ressig-
nificações, promovidas pelos movimentos negros, tratam de uma operação con-
ceitual a partir de um lócus específico de enunciação, marcada pela opressão, dis-
criminação e racismo contra aqueles considerados não brancos. Alguns discursos
e formulações da intelectualidade negra, atualmente, evidenciam a possibilidade
concreta da emergência de uma razão subalterna, ou seja, um conjunto diverso
de práticas teóricas que emergem em determinados contextos em resposta aos
legados coloniais e dialogando com estes.

Essa operação epistêmica de mudar não somente os conteúdos, mas os termos


da conversa é uma intervenção de extrema complexidade, na medida em que
mobiliza os docentes a aprender a reaprender conhecimentos subalternizados
e invisibilizados por uma formação docente eurocentrada, e que, até hoje, tem
como fundamento a prática do racismo epistêmico2.

São muitos os desafios, as dificuldades, as armadilhas e as possibilidades de cons-


trução de uma didática antirracista e uma pedagogia decolonial. Entretanto, o
que nos mobiliza nesta reflexão é a certeza de que, ou avançamos coletivamente
junto aos movimentos sociais, a intelectualidades negra e os docentes militantes,
na perspectiva de construção de uma didática antirracista e transformadora, ou
sucumbimos reproduzindo uma prática bancária sob a máscara do antirracismo
técnico em sala de aula.

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2 Grosfoguel (2007) nos diz que o racismo epistêmico significa o processo histórico de como a “(...)
epistemologia eurocêntrica ocidental dominante não admite nenhuma outra epistemologia como
espaço de produção de pensamento crítico nem científico” (p. 35).

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