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DINÂMICAS DA PERSONALIDADE

FATORES CULTURAIS NA MOTIVAÇÃO DA CONDUTA HUMANA

EURíDICE FREITAS *

O estudo da cultura na orientação da psicologia moderna - Lou-


vando-se em considerações antropológicas, a psicologia moderna - que
com a antropologia mantém estreitas relações - investiga e analisa os
efeitos das exigências culturais sôbre o sêr humano e procura descobrir
até que ponto as pressões íntimas refletem as exigências da sociedade.
Para a psicologia moderna, as dinâmicas da personalidade são,
em grande parte, culturalmente determinadas, por isso que as instituições
interferem com os impulsos, modificando-os ou bloqueando-os; limitam
os meios e caminhos para a satisfação dos objetivos pessoais, sujeitando-os
às conveniências; padronizam os motivos e modelam e plasmam os sen-
timentos e atitudes do homem.
Estas considerações indicam a necessidade de conhecer as condições
culturais de vida para a compreensão mais profunda da natureza e caráter
dos sentimentos, atitudes, motivos e interêsses humanos, assim como
ratificam as observações de antropólogos e psicólogos que - com Horney,
Fromm, Kardiney, Mowrer e Murphy - concluem pela afirmativa de
que nenhuma experiência humana pode ser isolada do contexto sócio-
cultural, isto é, das condições e situações de vida sob as quais vive o
homem.
A expressão cultura, em seu mais amplo sentido, significa tôda
a herança social da humanidade transmitida de indivíduo a indivíduo,
de geração a geração, de sociedade a sociedade por multiplos e diferentes
processos. Tal herança social é a síntese de tôda a cultura intelectual e
material, dos costumes e tradições dominantes num povo em determinada
época e lugar. Em sentido restrito, porém, a cultura é uma das modali-
dades da herança social e se constitui da língua, das idéias, dos princípios
éticos, filosóficos e religiosos, dos sentimentos, das pautas de conduta,
das instituições e leis, bem como dos descobrimentos científicos, dos
instrumentos e aparelhos técnicos, dos quais os sêres humanos de deter-
minada sociedade participam.
. Ralph Linton define a cultura como um fenômeno sócio-psicoló-
gico, contínuo e dinâmico, cuja configuração e conteúdo se modificam
e transformam contInuamente pela integração de novos elementos e cons-
tante perda dos que já não satisfazem às necessidades ou já não são úteis.
Cresce, portanto, mediante um processo cumulativo de aquisição, de acei-
tação e incorporação de idéias, técnicas, instrumentos e instituições, como
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também se modifica pela agregação de uns elementos e perda de outros


desnecessários e inúteis a determinada sociedade.
O crescimento e modificações culturais se processam graças aos
descobrimentos e invenções que, aplicados aos mais variados campos da
experiência humana, exercem poderosa influência transformadora nas
idéias, atitudes e valores dominantes na vida da sociedade. Assim, o
reflexo do desenvolvimento científico - difícil embora de se identificar
- se faz sentir com mais evidência na orientação filosófica quanto à
interpretação do mundo e dos valores da vida.
Com efeito, os descobrimentos nos campos da física, da biologia
e da sociologia operaram e continuam operando notáveis e, por vêzes,
radicais transformações ideológicas no que diz respeito à interpretação
do universo e da posição do homem nesse universo, ao conhecimento da
natureza do homem e de sua relação com a sociedade, de que aliás é parte
inalienável.
As escolas psicológicas que se baseiam na unidade essencial de
tôda a experiência humana, implícita ou explicitamente, atentam para a
influência sócio-cultural na estruturação da personalidade.
A escola topológica com K. Lewin mostra que o organismo psico-
fisiológico adquire padrões de tensões e valências, ao ressaltar as relações
entre sistemas de tensões da pessoa e certas ,propriedades do ambiente
e ao mostrar a poderosa influência dêste na indução de valências positivas
e negativas. Implicitamente, a escola topológica mostra o poder sócio-
cultural na motivação de conduta humana, quando, à saciedade, demonstra
como as barreiras físicas e sociais (proibições, repreensões, sanções
morais, restrições legais) agem como fôrça repressora e limitadora dos
impulsos, desviando a direção e o curso dos movimentos e ações humanas.
A escola personalística com W. Stern se refere à relação estreita
entre os fatôres externos e as possibilidades inatas dos indivíduos. Em
sua lei da convergência, mostra a interferência das fôrças sociais no
comportamento humano, cuja direção para determinados objetivos sofre
as influências do ambiente, as quais não só transformam a direção das
tendências despertadas, como intervêm nas formas de expressão e de
realização, seja favorecendo, seja dificultando ou controlando sua satis-
fação dinâmica.
A escola néo-analítica salienta o papel dos fatôres culturais, das
condições e situações de vida como fôrça motivadora do comportamento
e ações humanas, e mostra que na etiologia das neuroses se deve buscar,
também, as condições específicas da cultura em que vive o homem.
A psicologia dinâmica moderna, ao vêr o comportamento humano
como "resposta significativa de todo o organismo a uma situação de vida"
e ao fazer da expressão "o homem comportando-se no mundo" o centro
de seus estudos, implicitamente mostra que a compreensão do sêr humano
e os dinamismos de sua orientação na vida, implicam sempre uma refe-
rência à configuração cultural na qual se desenvolvem as estruturas
predominantes da personalidade.
Em síntese, e nas palavras do prof. Mira y Lopez, a psicologia
atual, qualquer que seja sua posição doutrinária, não deixa de cogitar
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do fenômeno social, do estudo "do homem e sua circunstância", do estudo


do homem em sua relação dinâmica com o ambiente.
A determinação cultural nas dinâmicas da personalidade - A per-
sonalidade como as culturas são formadas na interação de múltiplos e
variados fatores. Nessa formação interativa, entretanto, não se deve
perder de vista a realidade humana. Isto significa que tanto na formação
da personalidade como da cultura, o processo de interação é específico,
por isso que o homem não recebe passivamente os estímulos e as culturas
não são algo de estático não podendo ser entendidas senão como criação
do próprio homem, que êste é o único animal construtor de culturas.
Não se pode afirmar quais os fatores cuja influência é dominante
em tôdas as circunstâncias. Se fôrças culturais fossem decisivas na for-
mação da personalidade e na motivação da conduta humana, todos os
indivíduos constituintes de determinada sociedade apresentariam conduta
uniforme e manifestariam traços e características idênticas. Se admi-
tirmos o predomínio da cultura, êsse ponto de vista nos induzirá a êrros,
porque realmente numa ligeira observação todos os indivíduos de um
grupo nos parecerão iguais. Quando, porém, dêles nos aproximamos, pro-
fundas diferenças aparecem e inferimos que cada pessoa se manifesta e
comporta de modo característico, próprio, individual.
O comportamento humano, além de resultar da interação de muitos
fatores, é uma realidade humana e as relações comportamentais no
contacto social incluem sempre outros fatores que não os oriundos da
cultura, ou seja, os fatores da constituição, do temperamento e das apti-
dões inatas.
Os motivos e necessidades humanas sofrem, pois, a influência dos
padrões sociais e tôda experiência conativa só termina em ação explícita,
quando a situação ambiente lhe proporciona o estímulo adequado. É inútil,
p.ex., desejar e querer adquirir conhecimentos acadêmicos, se a localidade
onde o indivíduo reside é destituída de meios para tal. De outra parte,
não sente êsse mesmo indivíduo as inquietações do impulso à afirmação
no plano intelectual, uma vez que aquela localidade não tem caráter
solicitador, isto é, não desperta nêle o desejo de conhecimentos.
Antropólogos e psicólogos - principalmente o psicólogo social
- dão ênfase à influência da cultura sôbre a intensidade e manifestação
dos motivos da conduta humana, mostrando que a motivação caracterís-
tica de cada personalidade deriva não só de tensões biológicas, como de
pressões sociais. Afirmam, ainda, que a cultura cujos padrões o homem
internalizou determina o gráu e a extensão em que êle manifestará os
"motivos comuns". Aliás a "enculturação" de motivos, atitudes e inte-
rêsses por indivíduos representantes de um mesmo grupo social é fenô-
meno verificado nas pesquisas de muitos estudiosos das ciências humanas.
Aspectos culturais da motivação - O impulso sexual é profunda-
mente modificado pelo meio social em que o indivíduo vive. As experiências
e observações de Margaret Mead e outros antropólogos mostram a influ-
ência dos tabús e preconceitos sôbre o comportamento sexual e suas
manifestações, e revelam que o sexo, como forma de motivação varia
de intensidade de grupo para grupo. '
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As valências positivas de que se investe o sexo em certas culturas


é função de outros fatores que não os biológicos. M. Mead observa que
nas sociedades onde não se acentúa e enfatiza a necessidade sexual, veri~
fica-se menos intensidade em sua motivação. Na cultura de Samoa, p. ex.,
notou a ausência de interêsse exagerado sôbre o sexo, decorrendo dêsse
fato a quase inexistência de perversões e neuroses, o que estava em evidente
contraste com outras culturas por ela estudadas. Para Mead, portanto,
muitos desvios da personalidade e insanidade mental, geralmente atribui-
dos ao sexo, devem ser levados à conta dos tabús e padrões culturais que,
ao reprimir êsse impulso e controlar sua satisfação, exageram o interêsse
sôbre a necessidade sexual que passa, então, a elemento dominante da
personalidade.
Com efeito, a imposição de padrões culturais sôbre certos impulsos
contribui para focalizar a atenção para tensões e valências a êles corres-
pondentes, a:::entuando a sua importância na dinâmica pessoal. As puni-
ções, os castigos e as ameaças não somente dão vulto e relêvo à necessi-
dade sexual como tornam mais agradáveis os prazeres proibidos.
A interrupção de uma atividade - como bem o mostraram os
topologistas - não acalma a tensão que o impulso provocou. A menos
que apareça um substituto, a criança punida, castigada quando repreen-
dida ao tocar os órgãos genitais, p. ex., retornará tão cêdo como lhe seja
possível à atividade interrompida.
No lar, as disciplinas culturais são impostas antes que a criança
seja capaz de entender seu sentido e utilidade. Entretanto, dependente
que é, aprende a aceitar as proibições e a obedecer, porque esta é a
condição para ser amada e protegida.
Pelas disciplinas, o ambiente social impõe o que é permitido e o
que é proibido, e tal imposição interfere sempre com o impulso que passa
a ser percebido como algo de bom ou que faz sofrer. Muitos psicólogos
vêem, na atitude dos pais em relação à imposição das disciplinas sexuais,
as origens de algumas formas pervertidas da conduta sexual.
Não se pode separar as necessidades e impulsos do dinamismo total
da personalidade, pois que esta não só os vivencia como os percebe, os
configura como algo de positivo ou de negativo. Se as disciplinas, p. ex.,
conduzem à gratificação (alívio, liberação das tensões e prazer) pro-
piciarão o desenvolvimento de um normal conceito de auto-estima, de
segurança e de confiança; se, porém, atuam apenas como elemento re-
pressor e frustrador dos impulsos, determinam um sentimento de inse-
gurança, de incapacidade e enfraquecem o conceito de auto-estima.
A repressão dos impulsos se reflete, quase sempre, no bloqueio do desen-
volvimento psicológico, gerando caractéres inibidos, tímidos, ansiosos e
imaturos.
O cinema, o rádio, a televisão, a imprensa e até a moda constan-
temente induzem à valorização positiva do impulso sexual, intensificando-o.
Em nosso meio, a propaganda se encarrega de pôr os assuntos sexuais
em relêvo e, em muitos grupos, há verdadeira pressão social para que o
adolescente não somente adquira experiência sexual, como fale e se conduza
irreverentemente ou cinicamente a respeito do sexo. Em alguns, cria-se
uma situação verdadeiramente conflitiva entre a consciência moral -
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que teme transgredir os padrões internalizados na infância - e o desejo


de afirmar-se como "homem" tal como o concebe o grupo, para não ser
alvo de motejos e zombarias.
O complexo de Edipo, como fatalidade universal, não é ratificado
pelos antropólogos, que não o observaram em culturas em que o triângulo
pai-mãe-filho é estruturado de maneira diferente da nossa cultura. Muitos
psicólogos são unânimes em afirmar que a ocorrência da reação
edipiana é, antes, condicionada pela atitude dos pais, atitude que, por
sua vêz, é moldada nas expectativas da cultura.
As atitudes de submissão e de dominação - Em estudos reali-
zados em três sociedades da N ova-Guiné sôbre masculinidade e femini-
lidade, Margaret Mead demonstra que são os fatores culturais antes
que os biológicos os responsáveis pelas atitudes de submissão e de domi-
nação observada entre os sexos. Tais atitudes não estariam, assim, ligadas
a fatores de masculinidade ou de feminilidade, e muito menos correspon-
deriam ao temperamento, mas seriam condicionadas pelas normas e
exigências culturais.
O impulso ao poder --;- A auto-afirmação que, para Adler, é a
contrapartida do complexo de inferioridade, motiva diferentemente o
comportamento individual em sociedades de diferentes estruturas
econômicas. A nossa cultura, que valoriza a competição e exalta a vontade
de poder, desenvolve em muitos indivíduos uma tendência compulsiva para
o êxito, para o destaque, para sobrepôr-se aos demais, mesmo que seja
à custa de processos ilícitos. O clima emocional do lar, as valências por
êste induzidas podem acentuar a ambição, a necessidade de afirmação
pessoal a um ponto que ultrapasse as bases genuínas dêsses impulsos.
É comum, aliás, a intensificação de determinados motivos na
cultura ocidental em contraste com os motivos da cultura oriental. En-
quanto a cultura chinesa, p. ex., valoriza o belo e a sabedoria, a cultura
americana exalta o poder econômico e o sexo.
Incentivos e interêsses - No que concerne aos interêsses profis-
sionais, p. ex., é patente a influência sugestiva do meio cultural. A escôlha
profissional, com efeito, obedece em grande parte à influência das ins-
tituições, estando em alto gráu condicionada pelas demandas do ambiente.
A ocupação, definindo e simbolizando a posição do indivíduo no grupo
social, sofre as injuções da cultura que lhes empresta determinado valor,
decorrendo daí a intensificação do interêsse que em nossa sociedade incide
precisamente sôbre as profissões liberais. Na cultura européia, cujo tra-
balho escravo não se apoiou na agricultura e no artesanato, como aconteceu
principalmente no Brasil, não se verifica o que ocorre entre nós: uma
verdadeira idiosincrasia para atividades manuais e técnicas. Verdade é
que a intensidade de tal aversão está diminuindo gradativamente, graças
às transformações sociais que já estão influindo para a modificação de
nossa atitude em face do trabalho humano que deve ser escolhido de
acôrdo com as aptidões e potencialidade psico-físicas de cada indivíduo.
Em síntese, a psicologia dinâmica moderna percebe que os processos
fundamentais da adaptação e motivação humanas não podem ser enten-
didos e interpretados senão quando inseridos no quadro da situação total
que lhes deram origem; atenta, assim, para o fato de que as fôrças da
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cultura exercem influência na motivação do comportamento humano,


motivação que se torna padronizada pela configuração cultural em que
se processa o desenvolvimento da personalidade.

BIBLIOGRAFIA

Stagner, R. Psychology of Personality - 2. a Edição (McGraw-


Hill Book Company, Inc., 1948).
Kardiner, A. EI indivíduo y su sociedad - Fondo de Cultura
Econômica, México.
Herskovits, M. J. - Les bases de l'antropologie culturelle - Payot, Paris,
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Young, K. Personality and Problems of Adjustment - (F. S.
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Mead, M. Sexo y Temperamento - Editorial Abril - B.
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