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Universidade Federal de Roraima - UFRR

Projeto de Extensão Universitária


Instituto de Ciências Jurídicas
Prof. Me. Mauro Campello
Curso de Direito
“Salinha 201”
1a. edição
2020.1

Unidade 11:

Classificação das normas jurídicas.


Prof. Mestre Mauro Campello*

1. Introdução:
A classificação das normas jurídicas envolve interesse teórico e apresenta
caráter prático dos mais relevantes. A doutrina apresenta diversas classificações das
normas jurídicas segundo vários pontos de vista. Assim como Miguel Reale, optamos pelos
critérios que dizem mais respeito ao conhecimento concreto da Ciência Jurídica.

Reprise-se que na Ciência Jurídica, diferentemente do saber da matemática


ou da física, não há uma precisão terminológica. Ela varia conforme os juristas. Dessa forma,
nesse tema da classificação da norma jurídica há, segundo Reale, uma “certa ambiguidade
e vacilação terminológica”. Isto provoca grandes inconvenientes, especialmente no que se
refere à própria denominação dos principais tipos de normas jurídicas.

2. Das normas jurídicas quanto ao território:

Daremos início aos nossos estudos sobre o tema da classificação das normas
jurídicas utilizando o critério espacial. Todo sistema jurídico positivo cobre dado espaço
social (sociedade), referindo-se a certo território, sob a proteção de um poder soberano1.
Nas estritas palavras do renascentista francês, "a soberania é o poder absoluto e perpétuo

1
- De acordo com Jean Bodin (1530-1596), soberania refere-se à entidade que não conhece poder superior
na ordem externa nem igual na ordem interna. Entende-se por soberania a qualidade máxima de poder social
por meio da qual as normas e decisões elaboradas pelo Estado prevalecem sobre as normas e decisões
emanadas de grupos sociais intermediários, tais como família, escola, empresa e religião.
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de um Estado-Nação", conforme se encontra em sua célebre obra “Os Seis Livros da


República – Livro Primeiro”2.

Logo, todo o território de um Estado acha-se sob a proteção e a garantia de


um sistema de Direito. E essa cobertura jurídica processa-se através de normas jurídicas
de gradação diferente.

2.1. Normas jurídicas de Direito Interno e normas jurídicas de Direito


Externo:

A coexistência de territórios distintos e cada qual sujeito a uma ordem jurídica


soberana, já impõe uma distinção das normas jurídicas em normas de Direito Interno e
normas de Direito Externo.

2.1.1. Normas jurídicas de Direito Interno:

A validade dessas normas se reporta, direta ou indiretamente, ao


Estado, aqui, no sentido de centro de polarização da positividade jurídica. O Estado como
a ordenação de poder em virtude da qual as normas jurídicas obrigam, tornando-se
objetivamente exigível o comportamento que elas prescrevem.

As normas jurídicas de Direito interno ainda podem se distinguir


em:

2
- Essa obra encontra-se à disposição para leitura na biblioteca sóciojuridica Procurador de Justiça Mauro
Campello (MP/RJ), que funciona na sala 201D, do bloco do Direito na UFRR, de segunda a sexta, das 8h às
12h e das 16h às 18h.
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2.1.1.1. Normas jurídicas federais:

Seu âmbito territorial abrange todo o Estado brasileiro,


correspondendo à União. Portanto, sua aplicação ocorre em todo território nacional.

Exemplo:

a) o Código Civil brasileiro: Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002;

b) o Código Penal: Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940;

c) o Código de Processo Civil: Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015;

d) o Código de Processo Penal: Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941;

e) a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro: Lei nº 13.655, de 25 de abril de 2018;

f) o Código de Trânsito Brasileiro: Lei nº 9.503, de 23 de setembro de 1997; e

g) o Código Tributário Nacional: Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966.

2.1.1.2. Normas jurídicas estaduais:

Seu âmbito territorial abrange apenas os dos Estados-


membros. Portanto, sua aplicação ocorre no território do respectivo Estado que a elaborou.

Exemplo:

a) a Constituição do Estado de Roraima, de 31 de dezembro de 1991;

b) o Código Tributário do Estado de Roraima: Lei estadual n° 059, de 28 de dezembro de


1993;

c) o novo Código de Organização Judiciária do Estado de Roraima (COJERR): Lei


Complementar nº 221, de 09 de janeiro de 2014;
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d) o Regime Jurídico dos Servidores Públicos Civis do Estado de Roraima: Lei


Complementar nº 053, de 31 de dezembro de 2001;

e) a Lei de Organização do Quadro de Pessoal e o Plano de Carreira dos Servidores do


Poder Judiciário do Estado de Roraima: Lei Complementar n° 227, de 04 de agosto de 2014;

f) a Lei que dispõe sobre a reorganização da Defensoria Pública do Estado de Roraima e


estabelece a competência e estrutura dos seus órgãos, a organização e estatuto da
respectiva carreira: Lei Complementar n° 164, de 19 de maio de 2010; e
g) a Lei Orgânica da Polícia Civil do Estado de Roraima: Lei Complementar nº 55, de 31 de
dezembro de 2001.

2.1.1.3. Normas jurídicas municipais:

Seu âmbito territorial abrange apenas os dos Municípios.


Portanto, sua aplicação ocorre no território do respectivo Município que a elaborou.

Exemplo:

a) a Lei Orgânica do Município de Boa Vista 1992;

b) a Lei que dispõe sobre o plano diretor estratégico e participativo de Boa Vista e dá outras
providências: Lei Complementar n° 924, de 28 de novembro de 2006;

c) a Lei que dispõe sobre o uso e ocupação do solo urbano do Município de Boa Vista e dá
outras providências: Lei nº 926, de 29 de novembro de 2006;

d) o Regime Jurídico dos Servidores Municipais: Lei Complementar nº 003, de 02 de janeiro


de 2012;

e) o Código Tributário Municipal: Lei nº 1.223, de 29 de dezembro de 2009;

f) o Código de Edificações e Instalações do Município: Lei nº 23, de 10 de outubro de 1974;


e

g) o Código Sanitário do Município de Boa Vista: Lei nº 482, de 03 de dezembro de 1999.


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2.1.2. Hierarquia das leis:

Ainda sobre essa classificação, Miguel Reale chama atenção para


a importância de se verificar se existe uma hierarquia entre essas normas, de maneira que
a incidência de uma implique, necessariamente, ou não, a exclusão das outras.

Alguns doutrinadores costumam afirmar que, sem maior exame,


que as leis federais primam sobre as estaduais e as estaduais sobre as municipais. Essa
afirmação é, em termos, verdadeira.

Estudamos na unidade anterior a competência privativa e


indelegável na Constituição Federal da União para editar normas jurídicas e vimos também
que a própria Lei Fundamental do país reserva aos Estados-membros certo âmbito de ação,
no qual é vedada a interferência do Poder Federal.

Paralelamente, a Lei Maior garante aos Municípios uma esfera


própria e privada de ações, insuscetível de intromissão da União e dos Estados-membros.
Assim, Estados-membros e Municípios possuem uma competência privativa de ações
reconhecidas na Constituição Federal.

Ao lado da competência privativa da União, dos Estados e dos


Municípios vimos ainda que há uma competência denominada concorrente, que autoriza a
manifestação de qualquer dos Poderes conjuntamente sobre o mesmo assunto.

Logo, a ideia da exclusão, ou primazia, das leis federais sobre as


leis estaduais e estas sobre as leis municipais, somente existe em função dos distintos
campos de competência.

Reflexão:

a) Imagine se porventura a União criasse normas jurídicas referentes a temas sensíveis a


Constituição do Estado de Roraima. Essas normas federais teriam força de excluir a regra
de Direito estadual? Entendo que não! Roraima, como Estado-membro, tem a competência
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privativa para elaborar sua própria Constituição, nos limites da Constituição Federal 3 .
Portanto, no problema, a União invadiu a competência exclusiva do Estado de Roraima. O
caso revela uma usurpação de competência legislativa. As normas federais baixadas pela
União, nesse caso, não terão força de excluir as normas de Direito estadual, pela simples
razão, como dito, que as normas de Direito estaduais, assentes em competência privativa
de natureza constitucional, não podem ser substituídas por norma federal.

Segundo Miguel Reale, não há uma hierarquia absoluta entre leis


federais, estaduais e municipais, porquanto esse escalonamento somente prevalece
quando houver possibilidade de concorrência entre as diferentes esferas de ação4.

Contudo, as únicas normas jurídicas que prevalecem sobre todas


as categorias de normas, são as de Direito Constitucional. No sistema do Direito brasileiro
as normas constitucionais federais prevalecem sobre todas as demais normas, sejam
complementares5 ou ordinárias6 vigentes no país.

As normas complementares e as ordinárias, sejam federais,


estaduais ou municipais, são regras que se subordinam aos dispositivos constitucionais,
não tendo validade quando em conflito com estes.

Dessa forma, podemos concluir que uma norma constitucional


estadual não prevalece contra uma lei federal ordinária, se a matéria disciplinada for de
competência privativa ou concorrente da União. Nesse caso Direito federal corta Direito
local nos ensinamentos de Miguel Reale.

3
- Art. 25. Os Estados organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que adotarem, observados os
princípios desta Constituição. (...)
4
- Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: (…) § 4° A
superveniência de lei federal sobre normas gerais suspende a eficácia da lei estadual, no que lhe for contrário.
5
- Na ordem jurídica brasileira há normas que se localizam em leis complementares à Constituição e se situam
hierarquicamente entre as constitucionais e as ordinárias (art. 59, III da CF). A aprovação de normas
complementares se dá de acordo com o art. 69 da Constituição Federal, por maioria absoluta.
6
- Complementa as normas constitucionais que não forem regulamentadas por lei complementar, decretos
legislativos e resoluções. Deve ser aprovada por maioria simples, ou seja, pela maioria dos presentes à
reunião ou sessão da Casa Legislativa respectiva no dia da votação, conforme arts. 47, 59, III e 61, ambos
da Constituição Federal.
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Entretanto, se a União ultrapassa os limites de suas atribuições,


invadindo a esfera de competência do Estado ou do Município, a recíproca é também
verdadeira. Direito local corta Direito federal, continua Reale em suas lições.

Afinal, o que devemos entender por normas constitucionais?


Serão apenas aquelas que estão expressas no texto da Constituição?

Não! No Brasil as normas constitucionais são aquelas que estão


escritas 7 na Constituição, mas também aquelas que decorrem desses textos por força
lógica intrínseca, como princípios implícitos de estruturação da instituição estatal.

Exemplo:

a) o artigo 1° da Constituição Federal8. Esta norma consagra que o Brasil adota a forma de
República 9 Federativa, ipso facto, consagra todas as normas jurídicas fundamentais
inerentes a esse sistema; e

b) o art. 5°, § 2° da Constituição Federal10. Os direitos e garantias expressos na Constituição


não excluem outros decorrentes do regime e princípios por ela adotados, ou dos tratados
internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

7
- Na Inglaterra as normas constitucionais são fundadas nos costumes.
8
- Art. 1°. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do
Distrito Federal, constitui-se em Estado democrático de direito e tem como fundamento: (...)
9
- É uma forma ou modelo de organização política que teve origem na antiga Roma, no século VI a.C., após
a derrubada do último rei etrusco, Tarquínio. O termo “república” deriva do latim Res Publica e significa,
literalmente, “coisa pública”, isto é, aquilo que diz respeito ao interesse público de todos os cidadãos.
Atualmente, república refere-se a um sistema de governo cujo poder emana do povo, opondo-se a outras
origens, como a hereditariedade ou o direito divino. É a designação do regime contrário à monarquia. É a
forma de governo em que o Chefe de Estado é eleito pelos representantes dos cidadãos ou pelos próprios
cidadãos, e exerce a sua função durante um tempo limitado.
10
- Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros
e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança
e à propriedade, nos termos seguintes: (…) § 2º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não
excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em
que a República Federativa do Brasil seja parte. (...)
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Miguel Reale conclui, então, que “o texto constitucional enuncia


princípios e regras que bastam para a organização dos poderes da República, bem como
os essenciais à garantia dos indivíduos e dos grupos, ficando implícitas, todavia, outras
normas que daqueles resultarem como consequência lógica necessária.”

2.1.3. Normas jurídicas de Direito Externo:

2.1.3.1. Direito Internacional Privado:

Existem normas de Direito Externo que para terem eficácia no


território nacional dependem da soberania do Estado brasileiro, podendo coincidir ou não
com as de nosso ordenamento. Logo, podem surgir problemas tanto de qualificação ou
reconhecimento de normas, como de superamento de conflitos entre normas de
ordenamentos distintos. Tema que é objeto de estudo do Direito Internacional Privado.

2.1.3.2. Direito Internacional Público:

Todavia, há normas que independem propriamente do


reconhecimento de cada Estado, por meio de seus órgãos judicantes, impondo-se a todos,
em princípio, como Direito das gentes. Essas normas integram o campo do Direito
Internacional Público disciplinando as relações dos indivíduos e dos Estados no plano da
comunidade das Nações.

- Normas jurídicas federais;


- Normas jurídicas de Direito Interno - Normas jurídicas estaduais; e
- Normas jurídicas municipais.
Quanto ao Território
- Direito Internacional Privado; e
- Normas jurídicas de Direito Externo
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- Direito Internacional Público.

3. Das normas jurídicas quanto às fontes de Direito:

A classificação das normas jurídicas quanto às fontes de Direito baseia-se na


forma de sua produção. Essa classificação está ligada aos meios e processos pelos quais
o Direito se manifesta. Como a norma jurídica expressa um dever ser de conduta ou de
organização, ela poderá resultar de distintos processos, como o legislativo, o jurisprudencial,
o costumeiro e o negocial.

Assim, temos:

- Normas legais: oriundas do legislativo;

- Normas consuetudinárias: oriundas dos costumes;

Quanto às fontes do Direito - Normas jurisprudenciais: oriundas dos tribunais;

- Normas doutrinárias ou científicas: oriundas da doutrina;

- Normas negociais: produto de autonomia da vontade.

3.1. O desuso e as normas consuetudinárias e as normas legais:

3.1.1. O desuso e as normas consuetudinárias:

Vimos na unidade 10, que uma norma jurídica consuetudinária


jamais surge com validade formal, pois sua vigência formal é uma resultante de uma prática
habitual, isto é, da eficácia de um comportamento. A norma jurídica costumeira é algo de
socialmente eficaz, e como tal reconhecida, para depois adquirir validade formal.

Por isso, Savigny qualificava o Direito costumeiro como sendo a


expressão imediata e espontânea do “espírito do povo”, ficando claro que uma norma
costumeira, assim como se constitui pelo uso e convicção de sua juridicidade, perde
validade quando, com o decorrer do tempo, é privada de eficácia social.
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3.1.2. O desuso e as normas legais:

Entretanto, no sistema jurídico do civil law 11 surge a seguinte


indagação: é possível a revogação das normas legais pelo desuetudo12? Ou melhor, no
sistema jurídico do Direito escrito, positivado, só poderemos conceber a norma
consuetudinária que se acorde com a lei ou que a complete, ou poderemos também aceitar
o chamado costume contra legem 13?

Reale nos responde dizendo que “é princípio prevalente em nosso


Direito que só podemos conceber a norma consuetudinária que se acorde com a lei ou que
a complete, sendo inadmissíveis as contra legem.” O princípio14 que o mestre se refere
baseia-se na ideia de que uma lei só se revoga por outra lei de igual ou maior categoria.
Este princípio se encontra previsto no art. 2° da Lei de Introdução de Normas do Direito
brasileiro.15

O desuso pode dar-se:

1) a norma legal nunca foi ou, a certo momento, deixou de ser aplicada; ou

2) a norma legal perdeu sua eficácia social porque veio a prevalecer no seio da comunidade
a obediência a uma norma consuetudinária diversa, com olvido da norma legal.

Observe que nessa segunda hipótese estaremos diante do


costume jurídico contra legem propriamente dito. Entendo, que é preciso reconhecer que

11
- O sistema do Civil Law, de tradição romana, prioriza o positivismo consubstanciado em um processo
legislativo. A norma jurídica constitui-se em um comando abstrato e geral procurando abranger, em uma
moldura, uma diversidade de casos futuros. A sua aplicabilidade funda-se em um processo dedutivo,
iniciando-se em um comando geral com vistas a regular uma situação particular. Nota-se que, neste sistema,
as decisões judiciais não tem o condão de gerar eficácia vinculante para o julgamento de casos posteriores,
desempenhando, deste modo, uma função secundária como fonte de direito. O Brasil adotou o sistema do
Civil Law. Já o sistema do Common Law, sobre forte influência anglo-americana, baseada fundamentalmente
em precedentes jurisprudenciais. As decisões judiciais são fontes imediatas do direito, gerando efeitos
vinculantes. A norma de direito é extraída a partir de uma decisão concreta, sendo aplicada por meio de um
processo indutivo, aos casos idênticos no futuro.
12
- O mesmo que desuso, quando uma lei deixa de ser aplicada por já não corresponder à realidade em que
se insere.
13
- Trad. contrário à lei.
14
- Princípio da revogabilidade formal da lei por outra lei.
15
- Art. 2o Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue. (Lei
nº 12.376, 30 de dezembro de 2010 – LINDB).
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não se pode admitir a existência do requisito eficácia de uma norma legal que, durante largo
tempo, não teve qualquer aplicação em decorrência do seu divórcio com a experiência
social. Sem o requisito mínimo de eficácia, a norma legal não poderá ser aplicada,
tornando-se esta inválida.

Evidentemente, que esses casos são bem raros. Todavia, é


inegável que existam leis obsoletas, as quais o legislador se esquecera de revogá-la. Miguel
Reale sobre o tema arremata afirmando que “esse preceito formalmente vige, ou seja, tem
vigência, mas a experiência aí está a demonstrar que se trata de um Direito morto, de algo
de olvidado no desenrolar dogmático das normas legais.”

Então, como comportar-se em face desse problema?

Positivado que seja o sistema jurídico do país, o desuso, mediante


prova inconcussa da perda de eficácia do dispositivo legal, acarretará a não-aplicação da
norma legal. Seria um absurdo pretender a aplicação desta norma legal tão somente por
apego ao princípio da revogabilidade formal da lei por outra lei, que segundo Reale,
“constitui uma categoria histórica, variável no espaço e no tempo, e não um princípio lógico
de valor geral.”

Observem que não estamos tratando apenas de razões éticas e


sociais para justificar a não-aplicação da norma legal em manifesto desuso, mas utilizando
a estrutura tridimensional da norma jurídica que exige que esta além de possuir o requisito
da vigência tenha um mínimo de eficácia.

Reflexão:

a) Augerio foi preso em flagrante por ter organizado um bingo (jogo de azar), na quadra da
igreja que frequentava, vendendo as cartelas para financiamento de ações sociais
destinadas aos moradores de rua de sua cidade. Sua defesa sustenta que a norma jurídica
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do art. 50 da Lei das Contravenções Penais16, onde estaria prevista a conduta de Augerio,
teria perdido sua eficácia ou efetividade e, portanto, acarretaria a sua não-aplicação. Alega
que tais bingos são recorrentes nas paróquias de sua cidade, tendo tal prática uma
aceitação social. Poderá o julgador absolver Augerio por esse fundamento? O tema chegou
ao Supremo Tribunal Federal vindo do Rio Grande do Sul. A Justiça gaúcha já não
considera mais contravenção penal a prática dos jogos de azar, e foi essa jurisprudência
que chamou a atenção do Ministro Luiz Fux ao votar pela repercussão geral do tema, in
verbis: “As Turmas Recursais Criminais do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do
Sul têm entendido pela atipicidade da conduta, o que vem a demonstrar que, naquela
unidade federativa, a prática do jogo de azar não é mais considerada contravenção penal”.
Para o Ministério Público do Rio Grande do Sul, o jogo de azar ainda é contravenção penal.
Foi o órgão que levou o caso ao Supremo, por discordar da posição da Justiça gaúcha,
mais especificamente de um acórdão da Turma Recursal dos Juizados Especiais Criminais,
que considerou atípica a conduta de exploração de jogo de azar, não vendo a prática como
uma contravenção penal, sob o argumento de que os fundamentos que embasaram a
proibição não se coadunam com os princípios constitucionais vigentes. No STF, o caso
virou o Recurso Extraordinário 966.17717. A livre iniciativa e as liberdades fundamentais
previstas na Constituição Federal são os argumentos das cortes gaúchas para definirem

16
- Art. 50. Estabelecer ou explorar jogo de azar em lugar público ou acessível ao público, mediante o
pagamento de entrada ou sem ele: Pena – prisão simples, de três meses a um ano, e multa, de dois a quinze
contos de réis, estendendo-se os efeitos da condenação à perda dos moveis e objetos de decoração do local.
§ 1º. A pena é aumentada de um terço, se existe entre os empregados ou participa do jogo pessoa menor de
dezoito anos. § 2º. Incorre na pena de multa, de R$ 2.000,00 (dois mil reais) a R$ 200.000,00 (duzentos mil
reais), quem é encontrado a participar do jogo, ainda que pela internet ou por qualquer outro meio de
comunicação, como ponteiro ou apostador. § 3º. Consideram-se, jogos de azar. a) o jogo em que o ganho e
a perda dependem exclusiva ou principalmente da sorte; b) as apostas sobre corrida de cavalos fora de
hipódromo ou de local onde sejam autorizadas; c) as apostas sobre qualquer outra competição esportiva. §
4º. Equiparam-se, para os efeitos penais, a lugar acessível ao público: a) a casa particular em que se realizam
jogos de azar, quando deles habitualmente participam pessoas que não sejam da família de quem a ocupa;
b) o hotel ou casa de habitação coletiva, a cujos hóspedes e moradores se proporciona jogo de azar c) a sede
ou dependência de sociedade ou associação, em que se realiza jogo de azar; d) o estabelecimento destinado
à exploração de jogo de azar, ainda que se dissimule esse destino.
17
- Recurso Extraordinário. Contravenção penal. Artigo 50 do Decreto-lei 3.688/1941. Jogo de azar. Recepção
pela Constituição Federal. Tipicidade da conduta afastada pelo Tribunal a quo fundado nos preceitos
constitucionais da livre iniciativa e das liberdades fundamentais. Artigos 1º, IV, 5º, XLI, e 170 da Constituição
Federal. Questão relevante do ponto de vista econômico, político, social e jurídico. Transcendência de
interesses. Reconhecida a existência de repercussão geral. (STF. Repercussão geral no Recurso
Extraordinário nº 966.177. Recurso extraordinário. Contravenção penal. Artigo 50 do Decreto-lei 3.688/1941.
Jogo de Azar. Rel. Ministro Luiz Fux. 10. Out. 2016. Diário Oficial da União. Brasília, recurso extraordinário
966.177).
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como inconstitucional a proibição do jogo do bicho, 21, roleta e afins. A legislação sobre o
tema é de 1941, e sua idade avançada é denunciada pela redação das punições previstas.
A multa era de “dois a 15 contos de réis”. Cinco anos atrás o texto foi atualizado pela Lei
13.155/2015, e ficou definido entre R$ 2 mil a R$ 200 mil o valor a ser pago por quem for
encontrado participando de jogo de azar, ainda que pela internet ou por qualquer outro meio
de comunicação, como ponteiro ou apostador. Em outras instâncias, porém, a exploração
de jogos de azar não é vista com a mesma interpretação dada pelos magistrados gaúchos,
em especial o Superior Tribunal de Justiça, que recentemente condenou uma empresa que
promovia jogos de bingo a pagar danos morais coletivos. Em outro caso, o STJ decidiu que
bingo com fins beneficentes é contravenção penal, porém não gera automaticamente dano
moral coletivo. Cabe-nos acompanhar e aguardar a decisão do STF sobre o tema.

b) Augerio foi preso em flagrante, por estar portando maconha (substância entorpecente)
para consumo próprio, na Praça Ayrton Senna, em nossa cidade. Sua defesa sustenta que
a norma jurídica do art. 28 da Lei nº 11.343/0618, onde estaria prevista a conduta de Augerio,
teria perdido sua eficácia ou efetividade e, portanto, acarretaria a sua não-aplicação. Alega
que tal conduta é recorrente pelos jovens nas praças de Boa Vista/RR, tendo tal prática
uma aceitação social. Poderá o julgador absolver Augerio por esse fundamento? Não!
Mesmo havendo uma recente reforma legislativa sobre a matéria em 2006
(despenalização19 do crime de posse de substância entorpecente para consumo próprio),
tal prática manteve-se como delituosa, não cabendo a alegação de perda de eficácia da
norma tipificadora pela suposta não aceitação da sociedade da criminalização desse fato.
Aplicação da legalidade estrita, como tem entendido a maioria dos Tribunais de Justiça 20.

18
- Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal,
drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às
seguintes penas: I - advertência sobre os efeitos das drogas; II - prestação de serviços à comunidade; III -
medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.
19
- Ato ou efeito de despenalizar, de deixar de punir com uma pena legal. Retirar a pena legal. Na
despenalização o crime continua existindo, conquanto inexista pena.
20
- Ementa: Juizado especial criminal. Direito Penal. Crime de posse de substância entorpecente para
consumo próprio (art. 28, Lei 11.343/06). Extinção da punibilidade de plano. Error in procedendo. Audiência
para oferta de transação penal (art. 72, Lei 9.099/95). Error in judicando. Atipicidade. Costume negativo
(desuetudo). Inocorrência. Legalidade estrita. Tipicidade de conduta. Crime de perigo abstrato. Repercussão
social negativa. Recurso provido. Sentença cassada. (…) 5) Não excluído do ordenamento jurídico o caráter
criminoso da conduta de guardar ou trazer consigo substância entorpecente para uso pessoal, apesar de
recente reforma legislativa sobre a matéria, não há falar em perda de eficácia da lei tipificadora pela suposta
não aceitação da sociedade da criminalização do fato, sobretudo diante dos notórios e devastadores efeitos
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Todavia, em breve, o Supremo Tribunal Federal estará examinando o tema da


descriminalização 21 da posse quanto a qualquer droga 22 . Cabe-nos acompanhar e
aguardar a decisão do STF sobre o tema.

c) Augerio foi preso em flagrante, por estar vendendo cd’s e dvd’s “piratas”, na porta do
supermercado Goiânia, em Boa Vista-RR. Sua defesa sustenta que a norma jurídica do art.
184, § 2º do Código Penal23, onde estaria prevista a conduta de Augerio, teria perdido sua
eficácia ou efetividade e, portanto, acarretaria a sua não-aplicação. Alega que tal conduta
é recorrente na cidade de Boa Vista/RR, tendo tal prática uma aceitação social. Poderá o
julgador absolver Augerio por esse fundamento? Não! O Estado tutela o direito autoral.
Nesse caso, houve a efetiva violação do direito autoral, repercutindo na lesão aos artistas,
comerciantes, integrantes da indústria fonográfica e ao Fisco. A jurisprudência majoritária

causados pelo uso da droga no seio da família e da sociedade, pelo que a Teoria do Desuetudo ou do costume
negativo não encontra guarida no ordenamento, pautado que é pela legalidade estrita. (…). (TJ-DF:
20150410120370 0012037-56.2015.8.07.0004, Relatora Juíza de direito Maria de Avila e Silva Sampaio, data
de julgamento: 06.10.2016, 1ª Turma Recursal, data de publicação: publicado no DJE: 19/10/2016. Pág.
241/251).
21
- Ato legal de excluir da criminalização fato abstrato antes considerado crime. Descriminalização significa
que o crime deixa de existir.
22
- A descriminalização das drogas começou a ser abordada pelo STF em 2015, quando três dos 11 ministros
se manifestaram sobre o tema. O relator do caso, ministro Gilmar Mendes, votou pela declaração de
inconstitucionalidade do art. 28 da Lei de Drogas, para ele, a regra em vigor é uma medida desproporcional
e fere o direito à vida privada. Ele votou pela descriminalização quanto ao porte de qualquer droga. O ministro
Luís Roberto Barroso foi a favor de descriminalizar apenas o porte de maconha, no que foi seguido pelo
ministro Luiz Edson Fachin. O julgamento foi interrompido por pedido de vista do ministro Teori Zavascki e
será retomado, em breve, com o voto do ministro Alexandre de Moraes, que o substituiu. Esse tema sobre a
constitucionalidade do art. 28 da Lei de Drogas está sendo discutido no RE 635.659.
23
- Art. 184. Violar direitos de autor e os que lhe são conexos: Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um)
ano, ou multa. § 1o. Se a violação consistir em reprodução total ou parcial, com intuito de lucro direto ou
indireto, por qualquer meio ou processo, de obra intelectual, interpretação, execução ou fonograma, sem
autorização expressa do autor, do artista intérprete ou executante, do produtor, conforme o caso, ou de quem
os represente: Pena - reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa. § 2º. Na mesma pena do § 1º incorre
quem, com o intuito de lucro direto ou indireto, distribui, vende, expõe à venda, aluga, introduz no País, adquire,
oculta, tem em depósito, original ou cópia de obra intelectual ou fonograma reproduzido com violação do
direito de autor, do direito de artista intérprete ou executante ou do direito do produtor de fonograma, ou, ainda,
aluga original ou cópia de obra intelectual ou fonograma, sem a expressa autorização dos titulares dos direitos
ou de quem os represente. § 3º. Se a violação consistir no oferecimento ao público, mediante cabo, fibra ótica,
satélite, ondas ou qualquer outro sistema que permita ao usuário realizar a seleção da obra ou produção para
recebê-la em um tempo e lugar previamente determinados por quem formula a demanda, com intuito de lucro,
direto ou indireto, sem autorização expressa, conforme o caso, do autor, do artista intérprete ou executante,
do produtor de fonograma, ou de quem os represente: Pena - reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.
§ 4º. O disposto nos §§ 1º, 2ºe 3º não se aplica quando se tratar de exceção ou limitação ao direito de autor
ou os que lhe são conexos, em conformidade com o previsto na Lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998, nem
a cópia de obra intelectual ou fonograma, em um só exemplar, para uso privado do copista, sem intuito de
lucro direto ou indireto.
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no Brasil tem se inclinado no entendimento de que esse argumento da defesa se destina


precipuamente ao legislador, orientando-o na escolha de condutas a serem proibidas ou
impostas, bem como na revogação de tipos penais. Embora sirva de norte para o legislador,
que deverá ter a sensibilidade de distinguir entre as normas que perderam sua eficácia
social e as que regulam condutas as quais a sociedade considera merecedoras da sanção
penal. Mesmo que sejam constantes as práticas dessas infrações penais, cujas condutas
incriminadas a sociedade já não mais considera perniciosas, não cabe, aqui, a alegação,
pela defesa do agente, de que o fato que praticou se encontra adequado ao comportamento
social. Uma lei somente pode ser revogada por outra, conforme determina o caput do art.
2º da Lei de Introdução ao Código Civil. Outro argumento encontra-se na célere apreciação
e aprovação do Projeto de Lei PLC 11/2003, que originou a Lei nº 10.695/2003, resultante
da necessidade premente do mercado consumidor brasileiro em extirpar de seu meio a
indústria da falsificação, consubstanciando-se na reação dos titulares de direitos autorais
frente ao explícito e, por enquanto, impune mercado pirata, o que afasta a ideia de ausência
de eficácia social da norma. Aplicação da legalidade estrita2425.

4. Das normas de equidade e tipos de justiça:


A colocação da equidade nos domínios da Ciência Jurídica e saber se
efetivamente há normas de equidade como uma categoria autônoma do Direito, tratam-se
de um grande desafio para a Teoria Geral do Direito.

Nas obras dos pensadores pré-aristotélicos encontramos considerações


imperfeitas a essa questão da norma de equidade como uma categoria autônoma. Todavia,

24
- Ementa: Apelação criminal. Crime de violação de direito autoral. Venda de cd’s e dvd’s “piratas”. Sentença
absolutória fundamentada com base na atipicidade da conduta por força do Princípio da adequação social.
Improcedência. Norma incriminadora em plena vigência. Sentença anulada. Recurso provido. (TJ-RR: Relator
Desembargador Mauro Campello, data de julgamento: 26.06.2012, Turma Criminal da Câmara Única do
Tribunal de Justiça de Roraima, data da publicação: publicado no DJE: 07.07.2012. Pág. 21).
25
- Súmula 502 do STJ: “Presentes a materialidade e a autoria, afigura-se típica, em relação ao crime previsto
no art. 184, § 2º, do CP, a conduta de expor à venda CDs e DVDs piratas.”
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coube a Aristóteles26 precisar esse problema, que viria a se tornar clássica em sua obra
“Ética a Nicômaco”27.

Para Aristóteles, a equidade é uma forma de justiça. É a justiça mesma em


um de seus momentos, no momento decisivo de sua aplicação ao caso concreto. Seria a
justiça do caso concreto, enquanto adaptada, “ajustada” à particularidade de cada fato
ocorrente.

E o que diferenciaria justiça de equidade para Aristóteles?

A justiça em si é medida abstrata, suscetível de aplicação a todas as hipóteses


a que se refere, enquanto a equidade é a justiça no seu dinâmico ajustamento ao caso28.

A justiça é uma expressão ética do princípio da igualdade. Se há a ideia de


liberdade como uma das fundamentais do Direito, existe, também, completando-a, a de
igualdade.

Então, como conceber a igualdade no plano ético-jurídico?

Aristóteles também estudou esse questionamento. Ele procurou discriminar


os vários tipos de igualdade que se manifestam na vida prática.

4.1. Justiça comutativa:

É aquela que obedece à igualdade ou proporção própria das trocas nos


escambos mercantis: o pressuposto é que as duas partes mutuem entre si objetos de igual

26
- Foi um filósofo grego durante o período clássico na Grécia antiga, fundador da escola peripatética e do
Liceu, além de ter sido aluno de Platão e professor de Alexandre, o Grande. Seus escritos abrangem diversos
assuntos como: a física, a metafísica, as leis da poesia e do drama, a música, a lógica, a retórica, o governo,
a ética, a biologia, a linguística, a economia e a zoologia. Juntamente com Platão e Sócrates (professor de
Platão), Aristóteles é visto como um dos fundadores da filosofia ocidental.
27
- Essa obra encontra-se à disposição para leitura na biblioteca sóciojuridica Procurador de Justiça Mauro
Campello (MP/RJ), que funciona na sala 201D, do bloco do Direito na UFRR, de segunda a sexta, das 8h às
12h e das 16h às 18h.
28
- Para melhor compreensão dessas ideias, Aristóteles comparou a equidade à “régua de Lesbos”. Essa
régua era uma régua especial de que se serviam os operários para medir certos blocos de granito, por ser
feita de metal flexível que lhe permitia ajustar-se às irregularidades do objeto. Assim, a justiça seria uma
proporção genérica e abstrata, ao passo que a equidade seria específica e concreta, como a “régua de Lesbos”
flexível, que não mede apenas aquilo que é normal, mas, também, as variações e curvaturas inevitáveis de
experiência humana, segundo Miguel Reale.
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valia (do ut des29). Assim, o vendedor transfere um objeto e o comprador recebe o preço
que ele vale. Há nessa relação uma proporção aritmética.

Trata-se de um critério de igualdade retributiva ou correspectiva.


Entretanto, esse critério não é exclusivo das relações contratuais. Ele também é
reconhecido na aplicação das penas, ou seja, quem infringe a lei penal não deve sofrer
pena desproporcional à gravidade de seu ato. Na modernidade, o critério da igualdade
continua governando substancialmente as relações contratuais e penais, porquanto se
deve ter sempre em vista a pessoa do infrator ou o objeto da relação obrigacional.

4.2. Justiça distributiva:

As relações sociais examinadas anteriormente por Aristóteles dizem


respeito apenas a direitos e deveres dos homens entre si, porém também existem outros
tipos de relações sociais que se referem às obrigações dos indivíduos para com o todo.

Reale leciona que “não existem apenas direitos e deveres dos homens
entre si, porquanto também se põem direitos e deveres dos homens para com a
coletividade”.

Assim surgem outras indagações: qual a medida de contribuição de cada


um para o todo? O que cada um deve ao todo? O que o todo deve a cada um?
Percebemos dos questionamentos a existência de dois aspectos
distintos, porém complementares. De um lado, o que cada um deve ao todo, e,
concomitantemente, o que o todo deve a cada um.
Aristóteles enxergou apenas o segundo aspecto, ao situar esse
problema como da justiça distributiva, dizendo que ela tem o caráter de proporção
geométrica, diversa do que ocorre na justiça comutativa. O Estado não dá a todos
igualmente, como nas trocas, mas dá a cada um segundo o seu mérito.
Então, há um critério de igualdade para cada tipo de justiça?
Sim! A igualdade se apresenta sob múltiplas facetas, conforme a
natureza da situação jurídica, da situação social e da conduta a ser regulada.

29
- Trad. eu dou e dou.
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4.3. Justiça social:

O problema do dever de cada um para com o todo é o que diz respeito


à chamada justiça social. Esse problema começou a ser tratado pelos jurisconsultos
romanos, e de maneira mais clara na obra de Santo Agostinho30 e Santo Tomás de Aquino31.

Contudo, com o passar do tempo, o conceito de justiça social sofre


ampliações, e em meados do século XIX, passa a referir-se às situações de desigualdade
social, e define a busca de equilíbrio entre partes desiguais, por meio da criação de
proteções (ou desigualdades de sinais contrários), a favor dos mais fracos.

Essa nova ideia de justiça social tem uma construção moral e política
baseada na igualdade de direitos e na solidariedade coletiva. Em termos de
desenvolvimento, a justiça social é vista como o cruzamento entre o pilar econômico e o
pilar social.

30
- Foi um dos mais importantes teólogos e filósofos nos primeiros séculos do cristianismo, cujas obras foram
muito influentes no desenvolvimento do cristianismo e filosofia ocidental. Ele era o bispo de Hipona, uma
cidade na província romana da África. Escrevendo na era patrística, ele é amplamente considerado como
sendo o mais importante dos padres da Igreja no ocidente. Suas obras-primas são "A Cidade de Deus" (De
Civitate Dei) e "Confissões". Para o filósofo “justiça é dar a cada um o que é seu, punindo os que não agirem
de forma correta”. Destaca-se em seu pensamento uma grande preocupação em defender a ideia de que o
Direito só pode ser Direito se ele condizer com a justiça, e todo governo ainda, para ser justo deve seguir os
preceitos da lex divina.
31
- Um dos principais filósofos do período conhecido como escolástica, Tomás de Aquino foi um filósofo da
idade média proponente da teologia natural, disciplina dedicada a provar a existência de Deus ou de seus
atributos por modos puramente filosóficos, e originador do tomismo, uma tentativa de conciliar as posições e
métodos de Aristóteles com o cristianismo, adotado como a principal corrente filosófica oficial da Igreja
Católica. Diversos aspectos da filosofia ocidental floresceram como respostas a posicionamentos de Aquino,
com influência na ética, teoria política e metafísica. Santo Tomás de Aquino acresce outra modalidade de
justiça as apresentadas por Aristóteles, a qual denomina de justiça legal. Segundo ele, a justiça legal é a
decorrente da ordenação legal que orienta o comportamento humano para o bem comum. a justiça legal
refere-se não à distribuição dos bens aos particulares, mas à contribuição de cada um para o bem comum.
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Para ilustrar o conceito, diz-se que, enquanto a justiça tradicional é cega,


a justiça social deve tirar a venda para ver a realidade e compensar as desigualdades que
nela se produzem. No mesmo sentido, diz-se que, enquanto a chamada justiça comutativa
é a que se aplica aos iguais, a justiça social corresponderia à justiça distributiva, aplicando-
se aos desiguais. O mais importante teórico contemporâneo da justiça distributiva é o
filósofo liberal John Ralws32.

- Comutativa;

Justiça - Distributiva; e

- Social.

4.4. Jus est ars aequi et boni33:

A equidade é a justiça bem aplicada, ou seja, prudentemente aplicada.


Reprise-se, é o momento dinâmico da concentração da justiça em suas múltiplas formas.
Essa ideia inspira-se na definição romana jus est ars aequi et boni. Trata-se do princípio da
igualdade ajustada à especificidade do caso que legitima as normas de equidade.

Existem certas situações em que a aplicação rigorosa do Direito


redundaria em ato profundamente injusto. A jurisprudência romana lapidou uma das
afirmações mais belas e profundas sobre o tema: summum jus, summa injuria34. Ela põe

32
- Foi professor de filosofia política na Universidade de Harvard, autor de “Uma Teoria da Justiça” (1971),
“Liberalismo Político” (Political Liberalism, 1993) e “O Direito dos Povos” (The Law of Peoples, 1999). Em sua
obra “Uma Teoria da Justiça”, Rawls utiliza o artifício da “situação inicial” ou “posição original” como base para
construir sua ideia de justiça equitativa. Esses dois termos servem de alusão ao estado de natureza que a
teoria contratualista esboça. No entanto, ele almeja uma finalidade distinta da qual, geralmente, as teorias do
contrato social pretendem. Utilizando o artifício da “posição original”, Rawls não pretende delinear como a
sociedade ou o estado foram estabelecidos, mas, especular como os princípios de justiça são escolhidos
nessa situação inicial hipotética da sociedade. Para John Rawls a justiça equitativa é fruto da busca de um
ideal de justiça que consiga, de certa forma, neutralizar as contingências, circunstâncias sociais e biológicas
(no que se refere as habilidades naturais que deem vantagens em alguma instância ao indivíduo), as quais
são arbitrárias de um ponto de vista moral. Faleceu em 24.11.2002.
33
- Trad. o certo é a arte do bem e da justiça.
34
- Trad. a lei suprema da maior lesão.
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em evidência a noção fundamental de que o Direito não é apenas sistema lógico-formal,


mas, sobretudo, a apreciação estimativa, ou axiológica da conduta.

4.5. A equidade no Direito brasileiro:

O nosso Direito positivo, desde o Código de Processo Civil de 1939, em


seu art. 114, rezava que, “quando autorizado a decidir por equidade, o juiz aplicará a norma
que estabeleceria se fosse legislador.

O Código de Processo Civil seguinte, de 1973, em seu art. 127, limitou-


se a determinar que o juiz só pode decidir por equidade nos casos previstos em lei.

E o Código de Processo Civil, de 2015, prevê em seu artigo 140 que o


juiz não se exime de decidir sob a alegação de lacuna ou obscuridade do ordenamento
jurídico e que só decidirá por equidade nos casos previstos em lei. E ao tratar dos
procedimentos de jurisdição voluntária35, reza em seu art. 723, parágrafo único que o “juiz
não é obrigado a observar critério de legalidade estrita, podendo adotar em cada caso a
solução que considerar mais conveniente ou oportuna.”

A doutrina indica o respeito pelo direito de cada pessoa como sendo o


fundamento dessa norma. Ela se dirige ao julgador que deverá adequar a norma ao caso
concreto, pelo que se considera justo. É a apreciação e julgamento justo em virtude do
senso de justiça imparcial, visando a igualdade no julgamento. Utiliza-se a equidade para
auxiliar no julgamento imparcial de pedidos idênticos.

A equidade também aparece: no § 3º, do art. 212 da Constituição Federal,


nos arts. 413, 479 e nos parágrafos únicos dos arts. 928, 944 e 953, todos do Código Civil.

4.6. O Estado democrático de direito e a equidade:

A doutrina tem entendido que a equidade autoriza ser possível decidir


contra legem. Dessa forma, menosprezando o direito positivo. Partem da ideia de que a

35
- Jurisdição voluntária é a função exercida pelo Estado, através do juiz, mediante um processo, onde se
solucionam causas que lhe são submetidas sem haver conflito de interesses entre duas partes .
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equidade seria superior ao justo legal, porque seria a expressão do justo natural. Entendido
o justo natural como sendo o autenticamente justo em relação ao caso concreto, mas não
o justo legal, aquele encontrado nas palavras da própria lei.

Portanto, poderá o juiz decidir segundo seu prudente arbítrio quando ele
próprio entender inaceitável a aplicação do texto legal, isto é, quando considerar que o
resultado daí advindo seja disparatado.

Existem outras posições sobre o tema. Para parte da doutrina a


equidade seria um recurso às insuficiências da legislação, utilizável no suprimento de
lacunas normativas, ou mesmo para aclarar enunciados abertos. Seria um método de
integração.

Encontramos também alguns doutrinadores que defendem a equidade


como a propriedade dos enunciados legais abstratos de se adaptarem, segundo certos
critérios, às circunstâncias ou exigências fáticas do caso concreto.

Para essa última corrente doutrinária, o julgador estaria proibido de se


afastar do direito positivo. Logo, não poderia corrigir ou retificar a lei, pois seus propósitos,
ainda que nobres, não seriam suficientes para autorizá-lo, a partir de seu próprio
voluntarismo, a amoldar o resultado de suas decisões a sua própria ideia de justiça. Essa
posição doutrinária seria um mecanismo de interpretação jurídica, que sempre impeliria o
intérprete a adotar exegeses razoáveis, afinadas ao bom senso e toleradas, sem
repugnância, pela razão humana36.

Para Lenio Streck37 o Código de Processo Civil, em seus artigos 140,


parágrafo único e 723, parágrafo único, concedeu “uma licença para o legislador
infraconstitucional criar exceções à legalidade (art. 140, parágrafo único) e, de outro, a
autorização expressa para que o juiz se afaste dela em procedimentos de jurisdição
voluntária (artigo 723, parágrafo único) 38 .” E conclui que há uma manifesta abertura

36
- Não se tem propriamente uma decisão por equidade, mas uma decisão proferida segundo a equidade. A
ideia de exegeses razoáveis é de difícil conceituação.
37
- É jurista, professor de Direito Constitucional, pós-doutor em Direito, Procurador de Justiça (MP/RS)
aposentado, escritor e advogado.
38
- In Novo CPC e decisão por equidade: a canibalização do Direito. Por Lenio Streck e Lúcio Delfino.
Publicado no site ConJur. Em 29.12.2015. Link: https://www.conjur.com.br/2015-dez-29/cpc-decisao-
equidade-canabalizacao-direito
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decisionista nas referidas normas jurídicas, cujo contrassenso fere as bases do Estado
Democrático de Direito39.

Streck diz que “desdenha-se um direito fundamental que compõe a


identidade da Constituição e que, só por isso, está blindado a manobras legislativas
tendentes a eliminá-lo ou a minimizar sua importância (CFRB, artigo 60, § 4º, IV)”40.

Fundamenta essa ideia, primeiramente na legalidade constitucionalizada,


ou seja, “a lei não é mais aceita per si, como algo cuja supremacia esteja nela própria,
isoladamente considerada, pois apenas se legitima, é validada, se conforme a Constituição,
isto é, caso esteja ajustada às cargas axiológicas e deontológica das normas
constitucionais”41, e depois no regime republicano adotado pelo Brasil.

A Constituição Federal ao reconhecer o Brasil como uma república


constituída num Estado democrático de direito, quis dizer que se vivencia um “governo das
leis”, fruto da vontade geral, contrário a arbitrariedades e voluntarismos praticados pelo
Estado.

Não cabe mais decisão ao sabor do capricho do governante ou de


qualquer outra autoridade pública. Ressalta-se que não há na Constituição Federal
qualquer cláusula de exceção a esta regra, que legitime uma fissura no princípio da
legalidade.

Portanto, inexiste base normativa constitucional que sirva de


fundamento para decisões proferidas em desacordo com o ordenamento jurídico. Assim,

39
- Programa Direito & Literatura. Lenio Streck recebe no estúdio José Luís Bolzan de Moraes, professor de
Direito da Unisinos, Draiton Gonzaga de Souza, professor de filosofia da PUCRS e Eloísa Capovilla,
professora de História da Unisinos, para debaterem o tema “equidade” (https://youtu.be/K24kLdtT8ok, bloco
1; https://youtu.be/gtaBqucGQ9s, bloco 2; https://youtu.be/7KMij8yyhIg, bloco 3; e
https://youtu.be/5wnHbn8xZLE, bloco 4).
40
- Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta: (...) § 4º Não será objeto de deliberação
a proposta de emenda tendente a abolir: (…) IV - os direitos e garantias individuais.
41
- Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros
e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança
e à propriedade, nos termos seguintes: (…) II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa
senão em virtude de lei; (…)
- Art. 37. A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes da União, dos
Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade,
moralidade, publicidade e, também, ao seguinte: (...)
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torna-se impossível justificar uma exceção ao princípio da legalidade em legislação


infraconstitucional.

Conclui Lenio Streck que “a aquiescência legal no que tange às decisões


por equidade importa reconhecer, no seio do sistema normativo a presença de portal
encantado cujo ingresso transporta o julgador para uma realidade alternativa que o liberta
das amarras da lei, permitindo-o fazer uso de práticas concernentes a espécie de realismo
jurídico à brasileira.”

5. Das normas jurídicas quanto à sua violação:


As normas jurídicas também são classificadas quanto aos efeitos decorrentes
de sua violação. Vimos que a norma jurídica é promulgada para ser cumprida, todavia não
podemos negar a existência da possibilidade de sua violação. A violação da norma jurídica
gera da sociedade e do Estado uma resposta em face do infrator e com referência ao ato
lesivo como tal.

Segundo esse critério, a doutrina dividiu as normas jurídicas em quatro


espécies: plus quam perfectae42; perfectae43; minus quam perfectae44 e imperfectae45.

Essa classificação é fruto doutrinário dos expositores medievais do Direito


Romano, tendo atingido contornos mais precisos na Ciência Jurídica renascentista,
conforme lições do jusfilósofo italiano Pietro Cogliolo.

5.1. Normas jurídicas plus quam perfectae:

São aquelas cuja violação determina duas consequências:

1) a nulidade do ato; e

2) a aplicação de uma restrição ou de uma pena ao infrator.

42
- Trad. mais perfeito.
43
- Trad. completo.
44
- Trad. quanto menos perfeito.
45
- Trad. fraco.
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Exemplo:

a) o art. 1.521 do Código Civil46. Quanto à violação da norma em investigação, ela se


classifica como norma plus quam perfectae. Por quê? Porque: 1°) o art. 1.548 do Código
Civil47declara nulo o casamento por violação de impedimento; e 2°) o art. 235 do Código
Penal48 prevê o crime de bigamia e consequentemente a aplicação de uma pena ao seu
infrator. O art. 1.521 do Código Civil está cercado de dupla garantia: a primeira, concernente
ao ato e a segunda, relativa às restrições impostas ao infrator.

5.2. Normas jurídicas perfectae:

São aquelas que fulminam de nulidade o ato, mas não implicam qualquer
outra sanção de ordem pessoal. O Direito contenta-se com o restabelecimento da ordem
jurídica, considerando que a volta ao estado anterior já é por si, até certo ponto, uma sanção.

Reflexão:

a) Augerio, menor de 10 realiza um contrato de compra e venda de um aparelho celular


com Negidio, maior de 18 anos, pagando-o pelo mesmo o valor de 500 reais, referente as
suas economias. Pergunta-se: esse ato será nulo? A norma jurídica que regula essa
situação pode ser classificada como norma jurídica perfectae? Esse ato denomina-se
compra e venda, que é um contrato bilateral pelo qual uma das partes (vendedor/Negidio)
por meio de oferta se obriga a transferir o domínio de uma coisa à outra

46
- Art. 1521. Não podem casar: (…) IV – as pessoas casadas; (…).
47
- Art. 1.548. É nulo o casamento contraído: (…) II – por infringência de impedimento.
48
- Art. 235. Contrair alguém, sendo casado, novo casamento: Pena - reclusão, de dois a seis anos. § 1º -
Aquele que, não sendo casado, contrai casamento com pessoa casada, conhecendo essa circunstância, é
punido com reclusão ou detenção, de um a três anos. § 2º - Anulado por qualquer motivo o primeiro casamento,
ou o outro por motivo que não a bigamia, considera-se inexistente o crime. Induzimento a erro essencial e
ocultação de impedimento.
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(comprador/Augerio), mediante a contraprestação de certo preço em dinheiro (500 reais),


conforme art. 481 do Código Civil49. E para realizar um contrato de compra e venda as
partes devem ser capazes, segundo o art. 1° c/c art. 3°, ambos do Código Civil50, ou seja,
Augerio e Negidio51 devem ser aptos a exercerem todos os atos advindos da capacidade
jurídica. Todavia, Augerio é menor de 10 anos de idade, o que o torna absolutamente
incapaz, gerando a nulidade do contrato, como determina art. 166, I do Código Civil52.
Então, o contrato será nulo e a norma jurídica classificada como perfectae, uma vez que
não estabelece penalidade ou sanção relativamente à pessoa do infrator.

5.3. Normas jurídicas minus quam perfectae:

São aquelas que se limitam a aplicar uma pena ou uma consequência


restritiva e não querida, mas não privam o ato de sua eficácia.

Exemplo:

a) o art. 1523, I do Código Civil53. Essa é uma causa suspensiva do casamento e não
configura estrutura real de seu impedimento e sim fato suspensivo do processo de sua
celebração. O casamento não está proibido, apenas os nubentes são advertidos que, caso
venham a se casar desobedecendo a hipótese prevista na norma jurídica, sofrerão sanções,
tais como a imposição do regime obrigatório da separação de bens, de acordo com o art.

49
- Art. 481. Pelo contrato de compra e venda, um dos contratantes se obriga a transferir o domínio de certa
coisa, e o outro, a pagar-lhe certo preço em dinheiro.
50
- Art. 1º. Toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil.
- Art. 3º. São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil os menores de 16
(dezesseis) anos.
51
- Art. 5º. A menoridade cessa aos dezoito anos completos, quando a pessoa fica habilitada à prática de
todos os atos da vida civil.
52
- Art. 166. É nulo o negócio jurídico quando: I – celebrado por pessoa absolutamente incapaz; (...)
53
- Art. 1.523. Não devem casar: I - o viúvo ou a viúva que tiver filho do cônjuge falecido, enquanto não fizer
inventário dos bens do casal e der partilha aos herdeiros; (...)
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1.641, I do Código Civil54. A finalidade é evitar a confusão patrimonial do casamento anterior.


Trata-se de uma norma jurídica menos que perfeita.

5.4. Normas jurídicas imperfectae:

São aquelas que, quando válidas, não importam em pena ao infrator,


nem em alteração daquilo que já se realizou. Para Miguel Reale, elas representam um
momento de passagem das normas éticas e costumeiras, lato sensu, para o campo do
Direito efetivamente garantido.

Essas normas dizem respeito especialmente às chamadas obrigações


naturais. Para melhor entendermos a ideia de obrigação natural, iremos trabalhá-la na
seguinte reflexão.

Reflexão:

a) Augerio venceu uma partida de pôquer contra Negidio. Ocorre que, o jogador/perdedor
Negidio recusa-se a honrar com o pagamento de 50 mil reais relativa a aposta daquele jogo.
Augerio procura seu escritório para saber de seus direitos. Pergunta-se: Poderá Augerio
cobrar a dívida do jogo em juízo? Não! O indivíduo que perde no jogo não é obrigado,
juridicamente, a pagar. A obrigatoriedade do pagamento é de ordem ético-social. Ninguém
poderá chamar ao Poder Judiciário o jogador/perdedor para que efetue o pagamento da
aposta/dívida contraída no pôquer, conforme art. 814 do Código Civil55, pois as dívidas de

54
- Art. 1.641. É obrigatório o regime da separação de bens no casamento: I – das pessoas que o contraírem
com inobservância das causas suspensivas da celebração do casamento; (...)
55
- Art. 814. As dívidas de jogo ou de aposta não obrigam a pagamento; mas não se pode recobrar a quantia,
que voluntariamente se pagou, salvo se foi ganha por dolo, ou se o perdente é menor ou interdito. § 1o
Estende-se esta disposição a qualquer contrato que encubra ou envolva reconhecimento, novação ou fiança
de dívida de jogo; mas a nulidade resultante não pode ser oposta ao terceiro de boa-fé. § 2o O preceito contido
neste artigo tem aplicação, ainda que se trate de jogo não proibido, só se excetuando os jogos e apostas
legalmente permitidos. § 3o Excetuam-se, igualmente, os prêmios oferecidos ou prometidos para o vencedor
em competição de natureza esportiva, intelectual ou artística, desde que os interessados se submetam às
prescrições legais e regulamentares.
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jogo ou de aposta não obrigam a pagamento. Sem embargo, quem as pagou


voluntariamente não pode exigir de volta os valores pagos, salvo se foi ganha por dolo, ou
se o perdente é menor ou interdito. Noutras palavras, as dívidas de jogo ou de aposta estão
no conceito de obrigação natural (também chamada de "obrigação degenerada"), que
corresponde a uma obrigação moral e é, pois, bem diferente de uma obrigação civil. Com
efeito, nas obrigações naturais o credor não pode exigi-las; porém, se o devedor efetuar
voluntariamente o pagamento, este será válido para todos os efeitos legais, ou seja, não
poderá ser reclamado de volta pelo devedor. Assim, as normas que regem as obrigações
naturais são tidas como normas imperfectae.

E por que as normas que regem as obrigações naturais são


consideradas jurídicas?

Porque, no caso citado na reflexão acima, uma vez efetuado o


pagamento da dívida de jogo, não poderá o devedor exigir a devolução. Há um preceito
que impera de forma indireta. Portanto, são normas jurídicas porque que implicam
consequências indiretas de direito.

Reale conclui que essas normas “deixam a iniciativa ao agente, mas,


uma vez efetuado o pagamento, este passa a ser justo título da obrigação fundada em jogo.”

- Normas jurídicas plus quam perfectae;

- Normas jurídicas perfectae;

Quanto à violação da norma

- Normas jurídicas minus quam perfectae; e

- Normas jurídicas imperfectae.

6. Das normas jurídicas quanto à imperatividade:


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A imperatividade é uma das características essenciais do Direito, uma vez que


este tem por finalidade disciplinar a conduta humana (normas de comportamento), visando
a que se faça ou se deixe de fazer alguma coisa, ou organizar o serviço público (normas de
organização).

A imperatividade não pode ser vista como sendo a expressão da “vontade”,


do “querer” de um Chefe ou do Estado. Ela deve ser interpretada, segundo Reale, como
sendo uma expressão axiológica do “querer social”, tal como se acha consubstanciado nas
valorações que as regras jurídicas consagram.

Existem juristas que negam a imperatividade como um dos elementos


característicos do Direito. Reale identifica entre estes, Hans Kelsen e Duguit56, para os
quais “o Direito não estabelece aquilo que deve ser obedecido ou cumprido, mas apenas
traça determinados rumos que poderão ser seguidos, ou não, segundo as tendências,
inclinações ou a vontade dos obrigados. A obrigatoriedade jurídica seria de tipo lógico,
específico, não implicando, propriamente, um comando dirigido à vontade, de tal sorte que
esta fique ligada a certa conduta.”

Miguel Reale, como visto em estudos anteriores, discorda desse pensamento.


Pra ele, o Direito é sempre voluntas57. O Direito é uma vontade permanente e constante de
dar a cada um o seu direito, vontade essa que não é dos governantes, mas da coletividade

56
- Léon Duguit é responsável por influenciar significativamente a teoria do Direito Público. Seu trabalho
jurídico caracteriza-se por uma crítica das teorias então existentes do Direito e pelo estabelecimento da noção
de serviço público como fundamento do Estado e seu limite. Duguit vê os seres humanos como animais
sociais dotados de um senso universal ou instinto de solidariedade e interdependência. Deste senso vem o
reconhecimento de respeito a certas regras de conduta essenciais para uma vida em sociedade. Desta forma,
as regras jurídicas são constituídas por normas que se impõem naturalmente e igualmente a todos. Sobreleva-
se a governantes e governados o dever de se absterem de qualquer ato incompatível com a solidariedade
social. Na visão de Duguit, o Estado não é um poder soberano, mas apenas uma instituição que cresce da
necessidade de organização social da humanidade. Os conceitos de soberania e direito subjetivo são
substituídos pelos de serviço público e função social. Postulava que a ciência do direito deve ser puramente
positiva, rejeitando a ideia de direito natural, juízos axiológicos, e quaisquer outras concepções metafísicas
(como os conceitos de soberania do Estado e de personalidade jurídica). Assim o direito, para Duguit,
encontra seu verdadeiro fundamento num substrato social, representado pela solidariedade e
interdependência entre pessoas, ou seja, pela consciência inerente a todo indivíduo das relações que o ligam
a seus semelhantes. A função social do direito é, destarte, a realização dessa solidariedade. Faleceu em 1928.
57
- Trad. vontade.
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através de um processo axiológico de opções e preferências. Os romanos já diziam que o


Direito é uma constans et perpetua voluntas jus suum cuique tribuendi58.

A imperatividade jurídica é de natureza social. É algo que só se compreende


no sistema ordinatório das regras que consubstanciam os valores ou estimativas
dominantes no seio da comunidade.

Logo, o reconhecimento da imperatividade como uma das características da


norma jurídica tem como consequência o reconhecimento, também, de várias
manifestações ou tipos dessa imperatividade. A imperatividade do Direito não se manifesta
sempre com a mesma intensidade. Existem, portanto, graus de imperatividade, implicando
no surgimento de diversas categorias de normas, envolvendo a análise das posições de
seus destinatários.

Não há legislador que edite uma lei sem pensar naqueles que a deverão
cumprir ou executar. Logo, existirão sempre destinatários para a norma jurídica que
disciplina a conduta. Segundo as várias posições do obrigado perante a norma teremos
vários tipos desta.

6.1. Normas jurídicas cogentes ou de ordem pública:

É aquela que constrange à quem se aplica, tornando seu cumprimento


obrigatório de maneira coercitiva. A expressão ordem pública bem representa isto. Traduz
a ascendência ou primado de um interesse que a regra tutela, o que implica a exigência
irrefragável do seu cumprimento, quaisquer que sejam as intenções ou desejos das partes
contratantes ou dos indivíduos a que se destinam.

Reale ressalta que “o Estado não subsistiria, nem a sociedade poderia


lograr seus fins, se não existissem certas regras dotadas de conteúdo estável, cuja
obrigatoriedade não fosse insuscetível de alteração pela vontade dos obrigados.”

58 - Trad. dar à vontade constante e perpétua de dar a cada um o seu direito.


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São normas jurídicas que amparam altos interesses sociais, ou seja, os


chamados interesses de ordem pública, não sendo lícito as partes contratantes disporem
de maneira diversa.

Exemplo:

a) o art. 108 do Código Civil59. A norma jurídica determina que ninguém poderá, salvo
casos especiais previstos na lei, efetuar compra e venda de imóvel de valor superior a trinta
vezes o maior salário mínimo vigente no País com dispensa de escritura pública. A norma
estar a exigir como forma do ato a escritura pública e especifica que a transferência da
propriedade somente se efetivará quando levado a registro público o respectivo título,
momento em que a propriedade se transferirá60. Assim, se o contrato de compra e venda
sobre bem imóvel de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País
(negócio jurídico) não se submeter a forma de escritura pública, o mesmo será considerado
nulo, na forma do art. 166, IV do Código Civil61. Norma de ordem pública;

b) o art. 1.534 do Código Civil62. O ato de casamento está revestido de certas solenidades
essenciais a validade do mesmo e a preterição de alguma delas torna o casamento nulo,
na forma do art. 166, V do Código Civil63. Imagine que não tenham comparecido as duas
testemunhas no ato de casamento em prédio público. A presença de duas testemunhas,
parentes ou não dos contraentes é solenidade que a norma considera essencial para sua

59
- Art. 108. Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos
que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor
superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País.
60
- Art. 1.245. Transfere-se entre vivos a propriedade mediante o registro do título translativo no Registro de
Imóveis. § 1º Enquanto não se registrar o título translativo, o alienante continua a ser havido como dono do
imóvel. § 2º Enquanto não se promover, por meio de ação própria, a decretação de invalidade do registro, e
o respectivo cancelamento, o adquirente continua a ser havido como dono do imóvel.
61
- Art. 166. É nulo o negócio jurídico quando: (…) IV - não revestir a forma prescrita em lei; (…).
62
- Art. 1.534. A solenidade realizar-se-á na sede do cartório, com toda publicidade, a portas abertas,
presentes pelo menos duas testemunhas, parentes ou não dos contraentes, ou, querendo as partes e
consentindo a autoridade celebrante, noutro edifício público ou particular. § 1o Quando o casamento for em
edifício particular, ficará este de portas abertas durante o ato. § 2o Serão quatro as testemunhas na hipótese
do parágrafo anterior e se algum dos contraentes não souber ou não puder escrever.
63
- Art. 166. É nulo o negócio jurídico quando: (…) V – for preterida alguma solenidade que a lei considere
essencial para a sua validade; (…).
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validade. O não comparecimento e a realização do casamento sem elas, importará em sua


nulidade. Norma de ordem pública; e

c) o art. 1.876, § 1° do Código Civil64. O testamento particular, se escrito de próprio punho,


exige como requisitos essenciais à sua validade que seja lido e assinado por quem o
escreveu, na presença de pelo menos três testemunhas, que o devem subscrever. Logo,
não obedecendo a regra, o testamento será nulo, conforme visto no art. 166, V do Código
Civil. Norma de ordem pública.

Reflexão:

a) Imagine um contrato de locação de imóvel (negócio jurídico), pelo prazo de dois anos,
celebrado entre Augerio (locatário) e Negidio (locador), no qual há uma cláusula prevendo
multa de dois mil reais pelo inadimplemento do pagamento do aluguel. Pergunta-se: poderá
o juiz reduzir o pagamento da multa na proporção do tempo de adimplemento da locação?
Sim! O art. 413 do Código Civil65 autoriza o juiz reduzir o pagamento da multa na proporção
do tempo de adimplemento da locação, por se tratar de norma cogente. As partes não
poderão dispor de forma contrária ao previsto na referida norma jurídica. Essa norma
consagra o princípio do equilíbrio que devem reger as prestações e contraprestações
contratuais (imperativo de Justiça social). Norma de ordem pública.

A expressão de ordem pública tem trazido confusão com as normas de


Direito Público. As normas jurídicas de Direito Público são aquelas que regem as relações
sócias em que, de maneira imediata, prevalece o interesse da coletividade. A ideia de

64
- Art. 1.876. O testamento particular pode ser escrito de próprio punho ou mediante processo mecânico. §
1o Se escrito de próprio punho, são requisitos essenciais à sua validade seja lido e assinado por quem o
escreveu, na presença de pelo menos três testemunhas, que o devem subscrever. § 2o Se elaborado por
processo mecânico, não pode conter rasuras ou espaços em branco, devendo ser assinado pelo testador,
depois de o ter lido na presença de pelo menos três testemunhas, que o subscreverão.
65
- Art. 413. A penalidade deve ser reduzida equitativamente pelo juiz se a obrigação principal tiver sido
cumprida em parte, ou se o montante da penalidade for manifestamente excessivo, tendo-se em vista a
natureza e a finalidade do negócio.
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ordem pública que estamos trabalhando nesse subcapítulo é a da ascendência ou primado


de um interesse que a regra tutela e que implica em seu cumprimento, independentemente
das intenções ou desejos das partes contratantes ou dos indivíduos a que se destinam.
Uma regra a que todos estamos adstritos – norma de ordem pública.

Essas normas seriam propriamente as normas cogentes em virtude de


um interesse superior da sociedade e do Estado. E quem declara que tais normas são de
ordem pública? As vezes do legislador, mas também a doutrina ou a jurisprudência.

6.2. Normas jurídicas dispositivas ou supletivas:

As regras dispositivas formam a grande massa das normas jurídicas nos


dizeres de Miguel Reale. São normas de conduta que deixam aos destinatários o direito de
dispor de maneira diversa. Assim, é da própria natureza dessas normas estabelecer uma
alternativa de conduta. Os seus destinatários podem disciplinar a relação social ou não o
fazendo, sujeitar-se-ão ao que a norma determina.

Exemplo:

a) o art. 1.984 do Código Civil66. Essa norma é dispositiva! Observem que a norma dá ao

testador a faculdade de nomear o testamenteiro. Mas se ele não nomear? A norma declara
que se não for usada essa faculdade pelo testador, deverá ser concedida a execução
testamentária a um dos cônjuges, e assim por diante, segundo as hipóteses previstas; e

b) o art. 1.640 do Código Civil67. Essa norma é dispositiva! Observem que a norma dá aos
cônjuges a faculdade de optarem por qualquer dos regimes de bens (os de comunhão
parcial, comunhão universal, separação convencional ou legal e participação final nos

66
- Art. 1.984. Na falta de testamenteiro nomeado pelo testador, a execução testamentária compete a um dos
cônjuges, e, em falta destes, ao herdeiro nomeado pelo juiz.
67
- Art. 1.640. Não havendo convenção, ou sendo ela nula ou ineficaz, vigorará, quanto aos bens entre os
cônjuges, o regime da comunhão parcial. Parágrafo único. Poderão os nubentes, no processo de habilitação,
optar por qualquer dos regimes que este código regula. Quanto à forma, reduzir-se-á a termo a opção pela
comunhão parcial, fazendo-se o pacto antenupcial por escritura pública, nas demais escolhas.
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aquestos). Todavia, se os cônjuges não optarem no processo de habilitação, a norma


dispõe que prevalecerá o regime da comunhão parcial de bens.

- Normas cogentes ou de ordem pública; e

Quanto à imperatividade

- Normas dispositivas ou supletivas.

6.3. Diferença entre normas jurídicas cogentes e dispositivas:

A diferença básica entre normas jurídicas cogentes de normas jurídicas


dispositivas é que nas primeiras, jamais poderemos estabelecer a alternativa da ação, ou
seja, a faculdade de fazer ou não fazer. A norma de ordem pública coloca-nos na
necessidade irrefragável de fazer ou deixar de fazer.

7. As normas jurídicas quanto ao seu comando:

As normas jurídicas ainda podem ser classificadas quanto à natureza daquilo


que se ordena, ou seja, de seu preceito ou comando. Assim, temos normas preceptivas,
proibitivas e permissivas.

7.1. Normas preceptivas:

São as que determinam que se faça alguma coisa, as que estabelecem


um status, as que reconhecem ou identificam outras normas como pertencentes ao sistema
vigente.

7.2. Normas proibitivas:

São as que negam a alguém a prática de certos atos.


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7.3. Normas permissivas:

São as que facultam fazer ou omitir algo.

Observação: As normas jurídicas cogentes podem ser tanto preceptivas como proibitivas.

- Normas preceptivas;

Quanto ao seu comando - Normas proibitivas; e

- Normas permissivas.

08. As normas jurídicas quanto ao seu destinatário:

Segundo Miguel Reale, prevalecia na Ciência Jurídica do século XIX e das


primeiras décadas do XX a tese de que normas jurídicas deveriam ter sempre o
característico da generalidade.

Essa linha teórica, de influência Kelseniana, reduzia o Direito à lei, e esta era
entendida sempre como norma escrita e genérica. Atualmente, essa teoria acha-se
superada pela teoria que admite também a existência de normas particulares e
individualizadas, assim como normas desprovidas da característica da generalidade.

8.1. Normas genéricas:


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São as que obrigam, indiscriminadamente, a quantos venham a se situar


sob sua incidência, em função dos pressupostos que elas enunciam (a maioria das leis e
regulamentos e certas normas costumeiras e jurisprudenciais).

8.2. Normas particulares:

São as que vinculam determinadas pessoas, como as que compõem um


negócio jurídico, um contrato; ou as de uma lei que expressamente contenha disposições
só aplicáveis a casos particulares.

8.3. Normas individualizadas:

São as que pontualizam ou certificam, in concreto, as disposições


anteriores, como se dá numa sentença judicial, ou numa provisão ou resolução
administrativa.

- Normas genéricas;

Quanto ao seu destinatário - Normas particulares; e

- Normas individualizadas.

9. Normas interpretativas:

Existem certos textos legais que provocam tamanha confusão no mundo


jurídico que o próprio legislador sente a necessidade de determinar melhor o seu conteúdo.
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Quando tal fato ocorre, denominamos de interpretação autêntica, uma vez que se opera
por meio de outra lei.

A lei não fica presa à personalidade do legislador que participou da sua


elaboração. Para Reale, uma vez “promulgada a lei, ela se desprende das matrizes do
legislador para passar a ter vida própria.”

Quando uma lei é elaborada para interpretar outra lei, o que se faz é substituir
a primeira pela segunda, e nesta hipótese a interpretação não retroagirá. Ela disciplinará a
matéria tal como nela foi esclarecido, tão somente a partir de sua vigência.

9.1. Normas interpretativas em sentido impróprio:

São aquelas elaboradas pelo trabalho científico dos juristas, ou seja,


pela doutrina, ou então pelos juízes e tribunais, ou seja, pela jurisprudência, que é a mais
adequada forma de entendimento a ser dada a uma questão de direito.

Outras normas interpretativas em sentido imprópria são aquelas baixadas


pela Administração Pública para fixar a interpretação que os órgãos subordinados devem
dar as leis e regulamentos. Essas normas acabam vinculando as autoridades
administrativas, porém não vinculam os particulares do poder-dever de adotar
interpretações diversas, à luz do texto legal ou regulamentar em vigor.
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*Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de Roraima, professor efetivo no curso de direito do


Instituto de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Roraima (UFRR), professor contratado da
Faculdade Cathedral e da Universidade da Amazônia (UNAMA), e pesquisador pelo programa de pós-
graduação stricto sensu da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGD/UERJ). É pós-doutor em direito
pela Università degli Studi di Messina na Itália, tendo como orientador o prof. doutor Mario Trimarchi,
doutorando em direito pelo PPGD/UERJ, tendo como orientador o prof. doutor Gustavo Silveira Siqueira,
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mestre pelo programa de pós-graduação stricto sensu em Sociedade e Fronteiras (PPGSOF) da UFRR, tendo
como orientadora a prof.ª doutora Maria das Graças Santos Dias e especialista em Direito de Família pela
Universidade Gama Filho (UGF/RJ), em Violência Doméstica contra Crianças e Adolescentes pelo Laboratório
de Estudos da Criança (LACRI), do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP) e em MBE
Analista Internacional pelo Instituto de Relações Internacionais e Defesa da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ). Diplomado pela Escola Superior de Guerra (ESG), no Curso de Altos Estudos em Política e
Estratégia (CAEPE). Foi advogado no Rio de Janeiro, promotor de justiça em Rondônia e juiz de direito em
Roraima. Lecionou como professor contratado nos cursos de direito das Faculdades Integradas Estácio de
Sá (RJ), da Faculdade Atual da Amazônia (RR) e do Centro Universitário Estácio da Amazônia (RR), como
professor efetivo da Universidade Federal de Rondônia (UNIR) e como professor substituto na Universidade
Estadual de Roraima (UERR). Como professor convidado lecionou nos programas de pós-graduações Lato
sensu em Direito Especial da Criança e do Adolescente do Centro de Estudos e Pesquisas no Ensino do
Direito (CEPED), da UERJ, em Direito Civil e Processual Civil da Universidade Estácio de Sá (RJ) e em Direito
Público da UERR. Possui artigos publicados em revistas especializadas e científicas. Realizou diversas
palestras no Brasil e no exterior sobre temas ligados ao Direito da Criança e do Adolescente. Prêmio Sócio
educando - 2ª edição do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), com o programa Justiça
Dinâmica. Finalista do I Prêmio Innovare: O Judiciário do Século XXI, categoria Juiz individual, com o
programa Centro Sócio educativo Homero Filho.

Fontes bibliográficas:
1. REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. São Paulo: Saraiva, 2002.
2. STRECK, Lenio. Novo CPC e decisão por equidade: a canibalização do Direito. Conjur,
2015. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2015-dez-29/cpc-decisao-equidade-
canabalizacao-direito>. Acesso em: 19.05.2020.
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Questionário sobre a Unidade 11.

Responder as perguntas abaixo utilizando-se do texto da Unidade 11:


Classificação das normas jurídicas.

1. Qual o critério utilizado para classificar as normas jurídicas em Direito Interno e Direito
Externo?
2. O que se entende por soberania?
3. Quem foi Jean Bodin e qual seu legado para o Direito?
4. O que são normas jurídicas de Direito Interno? Cite dois exemplos.
5. O que são normas jurídicas federais, estaduais e municipais? Cite um exemplo para cada
uma dessas categorias de norma.

6. Para alguns doutrinadores, as leis federais primam sobre as estaduais e as estaduais


primam sobre as municipais. Explique.
7. Quais são as únicas normas que prevalecem sobre todas as categorias de normas
jurídicas?
8. O que devemos entender por normas constitucionais?
9. O que são normas complementares?
10. O que são normas ordinárias?

11. Quando ocorre a hierarquia entre lei federais, estaduais e municipais? Cite o
fundamento legal.
12. O que são normas de Direito Externo?
13. Como se classificam as normas de Direito Externo? Explique cada uma.
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14. Qual o critério utilizado para classificar as normas jurídicas quanto às fontes do Direito?
15. Cite as categorias das normas jurídicas quanto às fontes do Direito e indique suas
origens.

16. Defina norma jurídica consuetudinária.


17. Quando que a norma jurídica consuetudinária adquire sua validade formal?
18. Quando que a norma jurídica consuetudinária perde sua validade?
19. O que significa dizer que um sistema jurídico pertence ao modelo civil law ou ao
common law? E qual desses sistemas o Brasil adotou?
20. O que é desuso?

21. O sistema jurídico baseado no Direito Positivado, ou seja, no direito escrito, admite o
costume contra legem? Explique.
22. Em quais situações o sistema do civil law admite o desuso?
23. O que é o princípio da revogabilidade formal da lei por outra lei? Qual seu fundamento
legal no sistema jurídico brasileiro?
24. Qual a noção de equidade dada por Aristóteles?
25. Qual a noção de justiça dada por Aristóteles?

26. O que diferencia justiça de equidade para Aristóteles?


27. A Justiça é uma expressão ética do princípio da igualdade. Explique esse pensamento
de Aristóteles.
28. O que é justiça comutativa para Aristóteles?
29. O que é justiça distributiva para Aristóteles?
30. Aristóteles defende que não há um critério único de igualdade para cada tipo de Justiça.
Assim, quais foram os critérios de igualdade adotados pelo filósofo grego para conceituar
as justiças comutativa e distributiva?

31. Quem foi Aristóteles e qual seu legado para o Direito?


32. Para Santo Agostinho a “justiça é dar a cada um o que é seu, punindo os que não
agirem de forma correta.” Explique.
33. Quem foi Santo Agostinho e qual seu legado para o Direito?
34. O que é justiça legal para Santo Tomás de Aquino?
35. Quem foi Santo Tomás de Aquino e qual seu legado para o Direito?

36. O que é justiça social?


37. Quais são as bases para o conceito contemporâneo de justiça social?
38. O que é justiça equitativa para John Ralws?
39. Quem foi John Ralws e qual seu legado para o Direito?
40. Qual o princípio que legitima as normas de equidade? Explique esse princípio.
Universidade Federal de Roraima - UFRR
Projeto de Extensão Universitária
Instituto de Ciências Jurídicas
Prof. Me. Mauro Campello
Curso de Direito
“Salinha 201”
1a. edição
2020.1

41. A jurisprudência romana lapidou uma das afirmações mais belas e profundas sobre a aplicação
rigorosa do Direito: summum jus, summa injuria (trad. a lei suprema da maior lesão). Analise essa
afirmação.
42. A equidade tem previsão no sistema jurídico brasileiro? Em caso afirmativo, indique o(s)
dispositivo(s) legal(is).
43. A previsão da equidade em norma infraconstitucional fere o Estado democrático de direito?
Explique.
44. Qual o critério utilizado na classificação das normas jurídicas quanto à sua violação? Indique as
categorias existentes nessa classificação.
45. O que são normas jurídicas plus quam perfectae?

46. O que são normas jurídicas perfectae?


47. O que são normas jurídicas minus quam perfectae?
48. O que são normas jurídicas imperfectae?
49. O que são obrigações naturais?
50. Por que as normas que regem as obrigações naturais são consideradas jurídicas?

51. Sobre a imperatividade do direito, o que difere os entendimentos de Hans Kelsen e Miguel Reale?
52. O que são normas jurídicas cogentes?
53. As normas de direito público e as normas de ordem pública significam a mesma coisa? Explique.
54. Quem declara que tais normas são de ordem pública?
55. O que são normas jurídicas dispositivas?

56. Diferencie normas jurídicas cogentes das normas jurídicas dispositivas.


57. O que são normas jurídicas preceptivas?
58. O que são normas jurídicas proibitivas?
59. O que são normas jurídicas permissivas?
60. O que são normas jurídicas genéricas?

61. O que são normas jurídicas particulares?


62. O que são normas jurídicas individualizadas?
63. O que são normas jurídicas interpretativas?
64. Quando uma lei é elaborada para interpretar outra lei, o que se faz é substituir a primeira pela
segunda. Sua interpretação retroagirá? Explique.

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