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7/24/2019 PÊCHEUX, Michel. et. al.

Papel Da Memória

DEDALUS Acervo FFCLRP

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

~ : c d da memória í Pierre Achard ... [ct ai.] :


tcJ.dução e introdução José Horta Nunes. -
C arnpinas. SP Pontes. 1999.

r:)utros autores: Jean Davallon, Jean-Louis


__ . : _ ~ J .\ ichel Pêcheux. Eni Puccinelli Orlandi

. \nfüse do discurso 2. História 3. Linguagem


= ~ i s : ó r i a .. . Memória Filosofia) 5 Semiótica
- Sc,2iolingüística I. Achard. Pierre. 11 Davallon
. e_r III Durand. Jean-Louis. IV Pêcheux. Michel,
- '--1 J S ~ V Orlandi. Eni Puccinelli, 1942 .
'\ r . ~ . José Horta. Vil. Título.

CDD-401.4

Indices para catálcgo sistemático:

:..:r:gJagern e história .. O 1.4 · ontes


,1999
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Copyright© 1999 dos Autores


Direitos de tradução gentilmente cedidos para a
Pontes Editores
Coordenação Editorial Ernesto Guimarães
Capa Claudio Roberto Martini
Revisão Equipe de revisores da Pontes Editores
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r;i \ 1 à o S ~
Introdu ção ............................................................................ 7

Memória e Produção Discursiva do Sentido .......................

A Imagem, uma Arte de Memória ..................................... 23

Memória Grega .................................................................. 39

Papel da Memória ............................................................. .49

Maio de 1968: Os Silêncios da Memó ria .......................... 59


PONTES EDITORES
Rua Maria Monteiro 1635
13025.152 Campinas SP Brasil
Fone 019) 252.6011
Fax 019) 253.0769
e-mail: ponteseditor@lexxa.com.br

1999
Impresso no Brasil

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INTRO UÇÃO

O conjunto de quatro textos que ora apresentamos cons


titui a sessão temática «Papel da Memória» inserida em Histó-
ria e Lingüística uma publicação das Atas da Mesa Redonda
«Linguagem e Sociedade» realizada na Escola Normal Superi
or de Paris em abril de 1983. Esse colóquio reuniu especialistas
de diversas áreas tendo como ponto de encontro a relação entre
língua e história. O tema particularmente enfocado aqui a me
mória é visto sob diferentes aspectos: lembra nça ou reminis
cência memória social ou coletiva memória institucional me
mória mitológica memóri a registrada memória do historiador.
Atravessando os artigos a questão: o que é produzir memória?
Como a memóri a se institui é regulada provada conservada
ou é rompida deslocada restabelecida? De que modo os acon
tecimentos - históricos mediáticos culturais - são inscritos ou
não na memória como eles são absorvidos por ela ou produzem
nela uma ruptura ?

Estas questões se desenvolvem nos artigos através de di


ferentes perspectivas disciplinares incluindo-se elementos de
história semiótica sociolingüística análise de discurso. Além

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disso, a memória é analisada em sua materialidade complexa, arquiteturas, etc.), como operadores de memória social, traba
com ênfase para a relação do texto com a imagem, para a passa lham no sentido de entrecruzar memória coletiva (lembrança,
gem do visível ao nomeado. Por um lado, os textos fundadores conservaç ão do passado, foco da tradição, monumento de remi
de memória: mitos, relatos, enunciados, paráfrases. Por outro, a niscência) e história (quadro dos acontecimentos. conhec imen
eficácia simbólica da imagem: a reprodução pictórica, o meio to, documento histórico).
televisual e até objetos arqueológicos. Ficam expostas ao leitor
diferentes práticas memoriais pres entes na sociedade ocidental,
Do contemporâneo passamos para o antigo. Jean-Louis
sejam aquelas da Grécia antiga, sejam as que emergem com as
Durand faz uma interrogação envolvendo as práticas memoriais
recentes mudanças tecnológicas.
da Grécia clássica. Ele coloca uma questão de enunciação im
portante: quem fala e com que direito, ao se produzir memó ria?
Analisando a construção discursiva do sentido e o funci No caso da Grécia antiga, a produção da memória só se daria na
onamento dos implícitos, Pierre Achard mostra que a memória presença do poeta épico - de Homero - por meio de um texto
não pode ser provada, não pode ser deduzida de um corpus,
produzido fora do domíni o da cidade. No entanto, há uma con
mas ela só trabalha ao ser reenquadrada por formulações no
tradição na memória, com a oposição dos valores de grupo, dos
discurso concreto em que nos encontramos. O implícito de um
enunciado (Achard analisa o enunciado: «Neste momento, o textos homéricos, aos valores éticos, políticos, sociais em uma
dada situação. Ao examinar a imagem de um vaso grego, Durand
crescimento da economia é da ordem de 0,5 ») não contém sua
nota a possibilidade de remissão ao mesmo tempo a um herói da
explicitação, não se pode provar que ele tenha existido em al
epopéia e a um simples combatente da cidade, um gueITeiro
gum lugar O que funcionaria então seriam operadores
anônimo. Se pensarmos nos sistemas atuais de memória, pode
linguageiros imersos em uma situação, que condicionariam o remos ver a relação das práticas memoriais gregas com as me
exercício de um a regularidade enunciativa. Haveria, deste modo, mórias heróicas estabelecidas em nossa sociedade.
a colocação em série dos contextos e das repetições formais,
numa oscilação entre o histórico e o lingüístico. Através das
Em seguida o livro, o artigo de Pêcheux faz uma retoma-.

retomadas e das que


força simbólico paráfrases,
constituiproduz-se na memória um jogo de
uma questão social.
da das exposições anteriores, situando-as no contexto das pes
quisas em análise de discurso. Ele discute como as questões de
lingüística e de discurso aparecem nos estudos sobre memória,
Jean Davallon aponta, depois do aparecimento da im introduzindo um debate sobre as disciplinas de interpretação.
prensa, o desenvolvimento dos meios de registro da imagem e Nesse sentido, ele pergunta: a lingüística é uma disciplina pura
do som como fatores que deslocam a questão da memória soci mente experimental ou e la tem algo a ver com as disciplinas de
al, que não se encontraria mais nas «cabeças» dos indivíduos, interpretação? Por sua vez, a análise de discurso cada vez mais
mas nas mídias. O autor esboça uma reflexão sobre a imagem busca se distanciar, afi rma Pêcheux, das evidências da proposi
contemporânea como operadora de memória. Pela análise do ção, da frase e da estabilidade parafrástica. Ademais, ela permi
registro televisual de um acontecimento (a posse do presidente te, após os trabalhos de Benveniste e Barthes com a noção de
Mittetnnd na França), é questionada a distância que separa a
«significância», avançar teoricamente e tecnologicamente na
«realidade» do «fato de significação». Davall on lança a hipóte relação do texto com a imagem.
se de que os objetos culturais (livros, escritos, imagens , filmes,

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Os textos aqui reunidos guardam as marcas do debate


em meio ao qual foram concebidos, com o tom um pouco colo
quial e as freqüentes remissões a outros expositores. Como re
sultado dessas discussões, salientamos o seguinte comentário
de Pêcheux: «A certeza que aparece, em todo caso, no fim desse
debate é que uma memória não poderia ser concebida como
uma esfera plena, cujas bordas seriam transcendentais históri
cos e cujo conteúdo seria um sentido homogêneo, acumulado
ao modo de um reservatório: é necessariamente um espaço mó
vel de divisões, de disjunções, de deslocamentos e de retoma MEMÓRI E PRODUÇÃO DISCURSIV O

das, de conflitos de regularização .. Um espaço de desdobra SENTIDO


mentos, réplicas, polêmicas e contra-discursos». Pou co mais de
dez anos depois, este é um momento bastante apropriado para
retomar esse acontecimento, atualizá-lo, inseri-lo em nosso con
texto para que prod uza sentido e memória.

Acrescentamos ainda nessa edição o texto de Eni Orlandi


Maio de 1968: os silêncios da memória'', em que a autora apre
Se, a partir de uma posição de análise de discurso, que
senta uma reflexão sobre a relação entre memória e censura no
remos falar do papel da memória, e por conseguinte, do estatu
contexto da ditadura no Brasil. Neste caso mostra-se que há acon
to dos implícitos, logo encontramo-nos em posição delicada.
tecimentos que não se inscrevem na memória, como se não ti
Mas se este é um ponto em direção ao qual é perigoso se aven
vessem ocorrido: os sentidos de Maio de 68, entre eles, os rela
turar - sendo real o risco de uma interpretação psicologista dos
' cionados à palavra liberdade , são evitados em um processo
implícitos - é no entanto necessário se preocupar com ele. Ten
histórico-político silenciador, de modo que se estabelece uma tarei então falar sobre isso, considerando que a estruturação do
falta na memória.
discursivo vai constituir a materialidade de uma certa memória
social. Bem entendido não se trata de avançar o termo
materialidade como máscara retórica para explicações que
José Horta Nunes seriam da ordem do inefável ou do inconsciente coletivo, nem
de dar ao termo memó ria social um valor tal que não teríamos
finalmente outro meio de analisá-lo senão colocá-lo.

Procurarei então mostrar que é possível colocar um cer


to número de hipóteses concernentes ao funcionamento formal
no discurso, hipóteses a relacionar com a circulação dos discur
sos; esta relação deve permitir que nos afastemos de interpreta
ções psicológicas da memória em termos de realmente-já-ou-

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vido , memória fano-magnética ou registro mecânico. Para isso, memorização de uma forma máxima completa. Além disso. esta
apoiar-me-ei sobre alguns exemplos. memorização repousaria sobre um consenso. Ora. se olhamos
mais de perto, a explicitação desses implícitos em geral não é
Meu primeiro exemplo concerne ao funcionamento da necessária a priori, e não existe em parte alguma um texto de
palavra crescimento no domínio da Economia Política. Um referência explícita que forneceria a chave. Essa ausêncie: rião
um
enunciado como: Neste momento, o crescimento da economia faz falta,posterior
trabalho a paráfrase deoexplicitação
sobre explícito do aparece
que comoantes como
pré-condição.
é d ordem de 0,5 % faz apelo a um certo número de implíci
tos, dos quais evocarei apenas alguns. O primeiro deles é indu O que é pressuposto, esse consenso sobre o implícito, é somen
zido pela pressuposição de que se pode aplicar uma taxa a um te uma representação.

crescimento da economia , quer dizer, que a economia pode


ser medida (e não simplesmen te verifica da , como se diz da Um outro exemplo desse fato foi discutido na oficina
temperatura em física elementar). O segundo implícito, que é sobre os manuais escolares : ainda que se considere que eles
também um implícito segundo (quer dizer, que só toma seu sen constituam urna vulgata em relação a textos mais elaborado s ,
tido em relação ao primeiro), é a equivalência, do ponto de vista o exame dos manuais concretos e sua confrontação permite co
da taxa, entre as diferentes medidas possíveis. Particularmente, locar em evidênc ia não somente que eles estão sujeitos à crítica,
nesse caso, a diferença entre PIB e PNB não será pertinente. apresentam variações consideráveis de um a outro, são
Em terceiro lugar. pressupõe-se implicitamente que esse cresci insatisfatórios para o que se espera deles, mas ainda que é ao
mento seja calculado dentro do prazo de um ano, prazo consi nível dos próprios implícitos supostos por eles que eles chegam
derado como evidente. Enfim, numa ordem um pouco diferen a constituir a dita vulgata. Em suma, eles constituem a ilustra
te, o local desse crescimento não é indicado; isto implica que ção do fato de que, enquanto um registro discursivo supõe urna
me situo em um universo descritivo nacional, e que falo por vulgata para funcionar, a tentativa de esclarecimento, de
conseguinte do crescimento da economia francesa - ou, mais explicitação desta vulgata, jamai s contém o que seria neces
exatamente, do crescimento da economia que concerne à nação, sário para funcionar na retomada, e constitui na melhor das hi
ao país no qual a enunciação se situa. É o que dá a este implícito póteses uma primeira retomada da vulgata.
um estatuto diferente dos precedentes, já que ele remete mais à
situação que à ''memória . A memória intervém, no entan Do ponto de vista discursivo, o implícito trabalha então
to, para enquadrar implicitamente a situação no espaço nacio sobre a base de um imaginário que o representa como memori
nal, pela falta. Esse enquadramento pode ser explicitamente zado, enquanto cada discurso, ao pressupô-lo, vai fazer apelo a
deslocado (podemos falar de crescimento da economia mun- sua (re)construção, sob a restrição ''no vazio de que eles res
dial ) ou utilizado no seu nível abstrato através da retomada em peitem as formas que permitam sua inserção por paráfrase. Mas
um percurso ( em média, no mundo, o crescimento foi .. ). jamais podemos provar ou supor que esse implícito
(re)construído tenha existido em algum lugar como discurso
A representação usual do funcionamento dos implícitos autônomo.
consiste em considerar que estes são sintagmas cujo conteúd o é
memorizado e cuja explicitação (inserção) constitui uma pará Se levamos em conta os elementos enunciativos que es
frase controlada por esta memorização - no nosso exemplo, ses implícitos comportam, podemos ver em que esse problema

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de (re)construção dos implícitos corresponde também àquele Para ilustrar de maneira menos elementar a dialética en
que Robert Lafont, em O trabalho e a língua, designa como tre repetição e regularização, utilizarei, de modo metafórico,
regulagem do praxema • Com efeito, o funcionamento do dis um imaginário topológico. Creio que esta analogia é relativa
curso (e é nisso que a noção de discurso se distingue da de fala mente bem fundada. Tomemos uma série numérica, que seja,
no sentido do CLG)' supõe que os operadores linguageiros só para utilizar um exemplo simples, a série O 1/2, 2/3, 3/4, ( .. ).
4
funcionam com relação à imersão em uma situação, quer dizer, Dizer que esta série tende a 1 pode ser formulado dizendo que
levando-se em consideração as práticas de que eles são porta toda vizinhança de 1 contém toda a série exceto um número
dores. De outro modo, o passado, mesmo que realm ente memo finito de termos. Assim, se admitimos que o termo geral da série
rizado, só pode trabalhar mediando as reformulações que per é da formas= n - l)/n, vemos que a vizinhança de 1 definida
mitem reenquadrá-lo no discurso concreto face ao qual nos en como o conjunto dos números compreendidos entre 999 999
contramos. 999/l 000 000 000 e 1 000 000 001 l 000 000 000 compreende
todos os termos da série exceto um núme ro finito de termos (os
Pelas necessidades da análise, vamos supor um funcio 1 000 000 000 primeiros). Bem entendido, só posso reconhecer
namento linguageiro que comporta apenas um registro que esta série tende a 1 porque substituí a enumeraç ão dos pri
discursivo, e colocar aí o problem a do sentido de uma pala meiros termos pela regra que permite formular o termo geral.
vra . Admitiremos (como hipótese lexicológica) que o que ca
racteriza a palavra é sua unidade, sua identidade a si mesma, Sem esta formulação, nada garante que, com relação a
que permite reconhecê-la em seus diferentes contextos. De ou uma vizinhança suficientemente pequena, o número das exce
tro modo, colocarei aqui a palavra como uma unidade simbóli ções continue finito. E como existe certamente uma infinidade
ca cujo reconhecimento a identificação permite definir em ter de séries que começam pelos mesmos termos, nenhuma obser
mos de repetição. Cada nova co-ocorrência dessa unidade for vação empírica do começo de uma série nos permite deduzir a
mal fornece então novos contextos, que vêm contribuir à cons regra. Em termos lingüísticos, isso corr esponde a constatar que
trução do sentido de que essa unidade é o suporte. Mas para o corpus nunca é suficiente para fundar a gramática, e que a
poder atribuir um sentido a essa unidade, é preciso admitir que regularização repousa sobre um jogo de força. Acrescentamos
suas repetições - essas repetições - estão tomadas por uma regu aqui que o jogo de força pode designar o sentido como limite 6 •
laridade' . É uma regularidade desta ordem que supomos com o
termo ''crescimento no registro econômico. Essa regularidade, Um procedimento desta ordem pare ce necessário se que
no entanto, não se deduz do corpus, ela é de natureza hipotética, remos abordar a semântica de outro modo que não como uma
ela constitui uma hipótese do analista. No caso do crescimento, semântica dos enunciados, que seria baseada em uma lista uni
a hipótese de análise que utilizei consistiu em supor que cres- versal de traços semânticos pré-existentes e em sua combinatória.
cimento é um termo operador que comanda um certo número, A hipótese de uma construção discursiva do sentido é certa
fixo, de posições. O aparecimento em diversos textos das dife mente discutível, mas parece frutífera, pela abertur a às práticas
rentes posições me permite fazer um inventário delas e estabe que podemos estudar ao nível da dialética entre repetição e re
lecer suas regularidades, e me permite em seguida designar, lá
gularização. Com efeito, o fechamento exercido por todo jogo
onde elas não são explicitamente instanciadas, os tipos de im de força de regularização se exerce na retomada dos discursos e
plícito por que elas clamam. constitui uma questão social. Se situamos a memória do lado,

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não da repetição, mas da regularização, então ela se situaria em mada se localiza nesse nível.
uma oscilação entre o histórico e o lingüístico, na sua suspensão
em vista de um jogo de força de fechament o que o ator social ou O que distingue então o analista de discurso do sujeito
o analista vem exercer sobre discursos em circulação. E ste even histórico não é uma diferença radical mas um deslocamento. A
tual jogo de força é suportado pelas relações de formas, mas análise de discurso é uma posição enunciativa que é também
estas são apenas o suporte dele, nunca estão isoladas. Elas estão aquela de um sujeito histórico seu discurso, uma vez produzi
eventualmente envolvidas em relações de imagens e inseridas do, é objeto de retomada), mas de um sujeito histórico que se
em práticas. esforça por estabelecer um deslocamento suplementar em rela
ção ao modelo, à hipótese de sujeito histórico de que fala. O
A regularização se apóia necessariamente sobre o reco que proponho neste texto é um modelo de trabalho do analista,
nhecimento do que é repetido. Esse reconhecimento é da or dem que tenta dar conta do fato de que a memória suposta pelo dis
do formal, e constitui um outro jogo de força, este fundador. curso é sempre reconstruída na enunciação. A enunciação, en
Não há, com efeito, nenhum meio empírico de se assegurar de tão, deve ser tomada, não como advinda do locutor, mas como
que esse perfil gráfico ou fónico corresponde efetivamente à operações que regulam o encargo, quer dizer a retomada e a
repetição do mesmo significante. preciso admitir esse jogo de circulação do discurso. Entre outras conseqüências desta con
força simbólico que se exerce no reconhecimento do mes mo e cepção, levaremos em conta o fato de que um texto dado traba
de sua repetição. Por outro lado, uma vez reconhecida essa re lha através de sua circulação social, o que supõe que sua
petição, é preciso supor que existem procedimentos para esta estruturação é uma questão social, e que ela se diferencia se
belecer deslocamento, comparação, relações contextuais. nessa guindo urna diferenciação das memórias e uma diferenciação
colocação em série dos contextos, não na produção das superfí das produções de sentido a partir das restrições de uma forma
cies ou da frase tal como ela se dá, que vemos o exercício da única.
regra. e outro modo, é engendrando, a partir do atestado
discursivo, paráfrases, a considerar corno derivações de possí
veis em relação ao dado, que a regularização estrutura a ocor
rência e seus segmentos, situando-os dentro de séries. O que
desempenh a nessa hipótese o papel de memória discursiva são
as valorizações diferentes, em termos por exemplo de familiari
dade ou de ligação a situações, atribuídas às paráfrases, que Pierre chard
entretêm então, graças ao processo controlado de derivação, re
lações reguladas com o atestado. Na hipótese discursiva, pois,
ao contrário do modelo chomskiano, o atestado constitui um
ponto de partida, não o testemunho da possibilidade de uma
frase, e a memória não restitui frases escutadas no passado mas
julgament os de verossimilhança sobre o que é reconstituído pelas
operações de paráfrase. Estas considerações deslocam o estatu
to do que é provável historicamente, porque a operação de reto-

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BIBLIOGR FI

LAFONT, R 1978), Le travail et l tangue Flamarion, Paris

SAUSSURE, F 1964), Cours de linguistique générale publ.


por charles Bailly e Albert Secheye, com a colab. de A.
Riedlinger, Payot, Paris Ira. ed. 1915)

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NOT S

1 (NDT) As oficinas, exposições e textos do colóquio citados neste livro


encontram-se publicados em Histoire et Linguistique Pierre Achard,
Max-Peter Gruenais, Dolores Jaulin (Orgs); Éditions de la Maison des
Sciences de l'Homme, Paris, 1984.

2. Lafont, 1978.

3. Saussure, 1964.

4 . A noção de imersão ( plongement ) - que, nas matemáticas. é um con


ceito - supõe ao mesmo tempo a possibilidade de um ponto de vista
intrínseco, e propriedades induzidas pela consideração da situação no
espaço da imersão.

  5. Esse efeito, aliás, é reforçado sobretudo pela existência de vários regis


tros articulados
cação, o discursonoseconômico
discursos desenvolve
reais. Por exemplo,
o papel em economia
de um registrodamaior
edu
no qual são retomados e m1iculados os registros da pedagogia, registros
de considerações tecnológicas, políticas, etc., tomados como englobantes
ou englobados, conforme o caso, o que faz com que haja sempre, na
retomada metafórica das palavras, um deslocamento de uso que só pode
repousar sobre a regularização suposta do funcionamento da palavra no
registro fonte.

6. Bem entendido, os matemáticos não se interessariam tanto pelas séries


se elas convergissem sistematicamente a números, como 1 á definidos
em outro lugar. É na medida em que as séries permitem definir novos
números que elas são interessantes. Do mesmo modo, a perspectiva que
proponho por analogia tem essencialmente por interesse propor pers
pectivas para uma semântica que não se limite a uma combinatória de
semas pré-existentes.

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A IMAGEM UMA RTE DE MEMÓRIA

O aparecimento da imprensa parecia á ter tornado fora


de uso as artes da memóri a antigas e medievais   • Com razão
mais pertinente, o desenvolvimento dos meios de registro d
imagem e do som (essas extensões de nossos sentidos, se acre-
ditamos em Me Luhan), que permitem es tocar depois restituir o
saber quase tão bem quanto os acontecimentos, parece hoje nos
afastar definitivamente da necessidade de situar uma parte da
memória social na cabeça dos (ou de certos) sujeitos sociais:
a memória social estaria inteiramente e naturalmente presente
nos arquivos das mídias.

Uma tal concepção tecnicista da memória social, que


em muitos pontos assimil a esta à memór ia do computador,
supõe resolvidas duas questões maiores. A primeira é bastante
ingênua: registrar, descrever, representar a realidade (saber ou
acontecimento) é suficiente para produzir memória? Ou ainda:
a partir de quando, e do que, um acontecimento constitui me-
mória? A segunda é sociológica: o que ocorre, nessa redução
tecnicista, com os processos de manutenção da coesão social;

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com a instituição/re-instituição societal de que o funcionamen :\ Iemória social e pro duções culturais
to da memória é o lugar, e mais particularmente ainda, com a
reprodução das relações sociais e políticas fundada sobre a
dominância desse funcionamento da memória social ?
Uma primeira constatação se impõe imediatamente: para
Pensemos, a propósito, numa cerimônia política como que haja memória, é preciso que o acontecimento ou o saber
aquela da posse do Presidente da República: com os múltiplos registrado sai a da indiferença, que ele deixe o domínio da insig
jogos que surgem entre a referência, de um lado, a uma memó nificância. É preciso que ele conserve uma força a fim de poder
ria social á existente o Panteão, os heróis republicanos) e, de posteriormente fazer impressão. Porque é essa possibilidade de
outro lado. à produção de uma nova memória. Pois o registro do fazer impressão que o termo lembr ança evoca na linguagem
.. acontecimento·· deYe constituir memória, quer dizer: abrir a corrente. Um sociólogo um pouco esquecido hoje, é verdade,
dimensão, entre o passado originário e o futuro, a construir, de mas que uma sociologia do conhecimento não poderia ignorar -
uma comemoração 2 . a saber, M. Halbwachs - caracterizaria aliás a memória como o
que ainda é vivo na consciência o grupo para o indivíduo e
Com esta alusão rápida a um exemplo político contem para a comunidade •

porâneo, vemos que entre o simples registro da realidade e a


memória social; que entre a reprodução de um acontecimento e Uma segunda constatação comple menta a primeira: lem
a função social de instituição/re-instituição do tecido social atri brar um acontecimento ou um sabe r não é forçosamente mobili
buída à memória, há toda a distância que separa a realida de zar e fazer jogar uma memória social. Há necessidade de que o
do fato de significação . Faria essa distância pensar, em suma, acontecimento lembrado reencontre sua vivacidade; e sobretu
que a memória, como fato social, comportaria uma dimensão do, é preciso que ele seja reconstruído a partir de dados e de
semiótica e simbólica que lhe seria intrínseca ? noções comuns aos diferentes membros da comunidade social.
Esse fundo comum, essa dimensão intersubjetiva e sobretudo
Assim. é em \·ista dessa dupla dimensão da memória so grupal entre eu e os outros especifica, diz-nos Halbwachs, a
cial (como fato societal e como fato de significação) que gosta memória coletiva 5 • Mas a contrapartida seria que a memória
ria de esboçar aqui uma reflexão sobre a imagem contemporâ coletiva só retém do passado o que ainda é vivo ou capaz de
nea como operadora de memória, mas convém antes indicar com viver na consciência do grupo que o mantém. Po r definição, ela
algumas palavras o que é preciso entender por memória social não ultrapassa o limite do grupo •
quando nos interessamos pelos objetos culturais 3 •
Estas duas constatações convidam a salientar o caráter
paradoxal da memória coletiva: sua capacidade de conservar o
passado e sua fragilidade devida ao fato de que o que é vivo na
consciência do grupo desaparecerá com os membros deste últi
mo. Aliás, em páginas que mereceriam um a outra atenção e uma
outra apresentação, que estas rápidas e alusivas evocações não
permitem, Halbwachs pode assim opor a memória coletiva à

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história o foco da tradição ao quadro dos acontecimentos 7 , monumento de recordação.


a lembra nça (corrente de pensamen to contínu a no seio do gru
po social) ao conhecimento (descontínuo e exterior ao pró Por conseguinte, apoiando-nos sobre essa oposição en
prio grupo). Em compensação, a história resiste ao tempo; o tre memória coletiva e história para considerar os objetos
que não pod e a memória. culturais, poderíamos adiantar, a título de hipótese. que ~ s t s

últimos vão no sentido não de um antagonismo, mas antes de


Se a distinção efetuada por Halbwachs entre memória urna conjunção, de um entrecruzamento, de uma síntese entre
coletiva e história permite desse modo compreender melhor memória coletiva e história.
por que registrar ou ainda lembrar um aconteci mento não é obri
gatoriamente ipso facto um fato de memória social, ela nos in Trata-se aí de uma simples hipótese de trabalho, mas ela
troduz acima de tudo em uma problemática dos objetos cultu não me parece sem interesse no quadro de uma reflexão sobre o
rais considerados como operadores de memória social. Eu me papel da memória. Ela torna com efeito a adiantar que os obje
explico. tos culturais abrem a possibilidade de um controle da memória
social; que esse controle está de fato estreitamente ligado ao
Evoquemos novamente o exemplo da emissão funcionamento formal e significante desses objetos; e que, por
1 televisionada que representava a posse do Presidente da Re último, ele é um fato social não desprezível. Eis, a meu ver, o
pública. Compreenderemos muito facilmente a questão p olítica que merece ser examinado; embora não seja questão de preten
e a importância sociológica que estão ligadas à possibilidade de der encarar, no estado atual, a verificação dessa hipótese, seria
casar história e memória coletiva: de entrecruzar, de aliar a em compensação uma atitude bastante heurística voltar-se so
resistência ao tempo que caracteriza uma e o poder de impres bre aquilo qu e autoriza sua formulação.
são - vivacidade - da outra. Assim, o acontecimento, como acon
tecimento memorizado poderá entrar na história (a memória o que veremos a propósito d a imagem.
do grupo poderá perdurar e se estender além dos limites físicos
do grupo social que viveu o acontecimento); mas enquanto his A imagem operador de memória social
tórico . ele poderá se tomar, em compensação, elemento vivo
de uma memória coletiva. Esta última adquirirá então uma ou
Por que a imagem? Porque ela oferece - ao menos em
tra dimensão: aquela, se podemos dizer, de uma memória
um campo histórico que vai do século XVII até nossos dias -
societal. Como esse entrecruzamento se opera? Qual é o seu uma possibilidade considerável de reservar a força: a imagem
instrumento? O acontecimento - no caso, a cerimônia do Panteão representa a realidade, certamente; mas ela pode também con
- por ser representado (o que é mais e outra coisa do que ser
servar a força das relações sociais (e fará então impressão sobre
simplesmente registrado ou difundido), tomará o valor de uma o espectador).
espécie de ponto originário da comunidade social: o aconteci
mento se dará em um momento singular do tempo; mas a essên
L. Marin aliás mostrou muito bem como, por exemplo,
cia do ato se encontrará para sempre na própria estrutura do
no funcionamento do poder absoluto na idade clássica, o retrato
objeto que o representará (a emissão televisionada, por exem
do rei expõe em uma viva pin tura as qualidades reais descritas -
plo) . Ele se tornará indissociavelmente documento histórico e

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. ... . ---------------------------------------·············
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  cont adas - no relato de suas ações; de tal manei ra que estas se se poderia esquecer este ponto - com que 2 isager:-_ c , : ' . ' . ' - r : ' ~ ' e
transformam em substância real. Do relato desse acontecimento um programa de leitura: ela assinala um cert•J lugar ao ópe -
à imagem do rei, o que era o menos representável, o menos
dor (ou melhor: ela regula uma série com a pc:ss::g.:m ce uma a
memorizável (a força), torna-se o mais presente na ocasião da
outra posição de receptor no curso da recep,;-2.: e: ;e:2 :: ::>é .e
representação do personagem histórico do rei. Posso somente
rentabilizar por si mesma a competência semiócic 2 e: : . : ::·
aqui remeter
como esse usoàsdas
análises de se
imagens Marin
apóiano que seu
sobre concerne
próprioaofuncio
modo desse espectador 10 • Este é um fato bastante conhecido peleis
publicitários.
namento9.

Se procuramos o que serve de fundamento à eficácia sim


Adicionemos que poderíamos, em contraponto a essa
bólic a da imagem, duas caracter ísticas semi óticas parecem en
análise e de um modo comparável, mostrar como a publicidade, tão bastante consideráveis.
desta vez, utiliza a imagem em comp lementar idade com o enun
ciado lingüístico para apresentar - tornar presentes - as qualida
Em primeiro lugar, urna imagem pode ser compreendida
des de um produto e conduzir assim o leitor a se recordar de
ou recebida segundo dois níveis diferentes. C ada um desses dois
suas qualidades, mas também a fazê-lo se posicionar em meio níveis possui regras de funcionamento que lhes são, ao menos
ao grupo social dos consumidores desse produto; a se situar, a
parcialmente, próprias. Por exemplo, os códigos perceptivos
se representar esse lugar. No entanto, desenvolver essas análi
mudam menos rápido que os códigos iconológicos: por isso,
ses nos levaria longe demais e demandaria muito tempo; note
ficamos sensíveis a c.ornposições ou representações de quadros
mos então somente que esses dois exemplos indicam para cer
da Renascença (ou de publicidades do início do século) de que
tos períodos e segundo diferentes modalidades, a eficácia da
ignoramos parcialmente a significação: a potência perceptiva
imagem em pod er se inscrever em uma problemática da memó
ria societal. perdura, enquanto as significações se perdem. Resta urna orga
nização formal que continua a constituir um dispositivo.

Eis o que nos conduzirá talvez a encarar a imagem sob


Sabemos, desde o artigo em muitos aspectos fundador
um prisma particular: menos a nos interessar pelo que a imagem
de E. Benveniste, aparecido em Semiótica em 1969, que exis
pode representar (os objetos do mundo), ou ainda pela informa
tem dois modos de significação: um semiótico fundado sobre o
ção que ela pode oferecer, nem mesmo pelo modo corno ela
reconhecimento de unidades de significação previamente defi
efetua um ou outro desses processos, do que a prestar atenção à
nidas (eu reconheço o sentido das palavras), outro semântico e
maneira como certa imagem concreta é urna produção cultural -
meta-semântico, fundado sobre a compreensão do sentido do
quer dizer, a levar em consideração sua eficácia simbólica. Co m
texto em sua totalidade (eu compreendo o sentido do conjunto
efeito, aquele que observa uma imagem desenvolve urna ativi
de uma frase, por exemplo) e que inclui os mecanismos da
dade de produção de significação; esta não lhe é transmitida ou
entregue toda pronta. Esse estado de coisas abre, como aliás enunciação. Benveniste adianta que a imagem funciona antes
de tudo sob o mo do semântico e que ela não pode conjug ar os
insistem em nos fazer observar, a uma liberdade de interpreta
dois modos de significação (somente a língua poderia operar
ção o que quer dizer que o conteúdo legível , ou antes dizível ,
essa conjunção) e há um largo acordo entre os sernioticistas para
pode variar conform e as leituras); mas o que faz também - e não
reconhecer que a imagem depende de uma abordagem textu-
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al 11 • De minha parte, resumirei as coisas como segue: existe Esse apagamento da passagem dos componentes à tota
uma espécie de aproximação entre as oposições formais (de for lidade tem por conseqüência essencial interditar que se reen
ma, de cor e de topologia) e a instância textual e enunciativa: na contre a maneira como o efeito estético e significante é produzi
publicidade, por exemplo, certa relação de cor ou certo contras do. A gênese se apaga; a (re )construção de uma or igem míti ca é
te de forma retém o olhar e, ao mesmo tempo, quer nos dizer da aberta, com mais um efeito de força viva. Então, começa aderi
qualidade que distingue um produto dos outros. Ess a aproxima va indefinida e não infinita) que caracteriza toda interpretação
ção escamoteia - se posso dizê-lo - um nível intermediário que de imagem; não obstante, se nos volvemos para essa deriva,
teria por homólogo na linguag em o nível das palavras; a lingua percebemos que essa busca, essa reprodução da significação
gem supre aliás essa escamoteação (pode-se sempre descrever do dispositivo, se faz segundo o próprio programa trazido pelo
uma imagem)::. Em compensação, essa aproximação possui a dispositivo Do mesmo modo que a recitaç ão do mito ou os ges
vantagem de trabalhar sobretudo com os sistemas de oposi ção e tos litúrgicos seguem a estrutura do mito ou do ritual, cada lei
simultaneamente com as relações entre emissor, receptor, men tura é em si mesma uma pequena recitação. Momento central,
sagêm ê contexto. É porque a imagem é antes de tudo um dispo ato que fornece à imagem sua razão de ser, que está fora do
sitiYo que pertence a uma estratégia de comunicação: dispositi espaço da imagem, assim como, aliás, o acontecimento memo
vo que tem a capacidade, p or exemplo, de regul ar o tempo e as rizado.
modalidades de recepção da imagem em seu conjunto ou a emer
gência da significação 13 • E é um dispositivo, lembremo-nos, que onclusão
por natureza é durável no tempo.
Eis então o que leva a pensar a imagem como um opera
Em segundo lugar a imagem é um operador de dor de memória social no seio de nossa cultura. Assim, volte
simbolização. Conviria observar, a esse propósito, que a difi mos a nossa hipótese. Com efeito, se a imagem define posições
culdade, conhecida por todos os semioticistas da imagem, em de leitor abstrato que o espectador concreto é convidado a vir
segmentar esta. se deve menos a sua má-formação semiótica do ocupar a fim de poder dar sentido ao que ele tem sob os olhos,
quê à aproximação que eu assinalava logo acima entre oposi
ções formais e instância textual e enunciativa entre a isso vai permitir criar, de uma certa maneira, um a comunidade -
um acordo - de olhares: tudo se passa então como se a imagem
matêrialidade e o sentido. Entrecruzando esses dois níveis, a colocasse no horizonte de sua percepção a presença de outros
imagem teria assim capacidade para integrar os elementos que a espectadores possíveis tendo o mesmo ponto de vista. Domes-
compõem em uma totalidade. É porque compreenderíamos o mo modo como - explicava Halbwachs - a reconstrução de um
sentido global antes de reconhecer a significação dos elemen acontecimento passado necessita, para se tornar lembrança, da
tos; e atingiríamos primeiro o efeito dessa integração; estaría existência de pontos de vista compartilhados pelos membros da
mos sob o charme desse efeito formal, estético; toda imagem comunidade e de noções que lhes são comuns 14 ; assim a ima
pareceria assim se apresentar como única origem dela mesma gem, por poder operar o acordo dos olhares, apresentaria a ca
assim como de sua significação; e enfim, ela introduziria uma
diferença de natureza, um salto qualitativo entre os componen pacidade de conferir ao quadro da história a força da lembran
ça. Ela seria nesse momento o registro da relação intersubjetiva
tes (os que a análise pode repertoriar) e ela mesma considerada e social.
em sua totalidade.

30 31
,. ).

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Restaria, então e enfim, considerar como a imagem in
tervém concretamente no estabelecimento de uma forma de
memória societal própria à nossa época e à nossa sociedade; e
sobretudo, qual é a relação que se instaura entre o que podería
mos chamar "a memória interna (aquela situada nos membros
do grupo) e "a memória externa (aquela dos objetos culturais),
mas isto seria perguntar sobre as características das estruturas
mentais de nossa cultura e se engajar na psicologia histórica15 •
BIBLIOGR FI

Jean Davallon

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art ofmemory, 1966] por D. Arasse, Paris, Gallimard.

1 . Como assinala Yates, 1966. Lembremos que o autor define assim a arte
da memória: Esta arte visa permitir a memorização graças a uma
técnica de 'lugares' e 'de imagens' que impressionam a memória .

2. Penso particularmente na cerimônia da memória que se desenrolou


durante as jornadas de posse de F. Mitterand, em 21 de março de 1981.
O que está então em jogo, para além da referência declarada ao cerimo
nial republicano herdado em grande parte das festas revolucionárias
(ou ao menos de sua ideologia), é o estatuto que se atribui aos meios de
difusão e de representação do acontecimento - no caso: à emissão
televisionada desta cerimônia.

3. Entendo por objetos culturais o conjunto dos objetos concretos (li


vros, escritos, imagens, filmes, arquiteturas, etc.) que resultam de uma
produção formal e que são destinados a produzir um efeito simbólico.
Sobre esse ponto ver Davallon, 1983.

4. Halbwachs, 1950, p. 70.

5. Ibid., p. 13: Não basta reconstruir peça por peça a imagem de um


acontecimento passado para se obter uma lembrança. preciso que
essa reconstrução se opere a partir de dados e de noções comuns que
se encontram tanto em nosso espírito quanto no dos outros, porque
eles passam sem cessar destes àquele e reciprocamente, o que só é
possível se eles fazem e continuam f zer parte de uma mesma socie-
dade. Somente assim podemos compreender que uma lembrança possa
ser ao mesmo tempo reconhecida e reconstruída .

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-  -c ::-:emória coletiva: é uma corrente de pensamento contínuo, de uma 13. Par a a análise detalhada, ver: Davallon, 1983.
. ·:.-C ::iidade que não tem nada de artificial, pois ela só retém dopas-
que dele ainda é i·irn ou capa: de viver na consciência do
 _
14. Halbwachs insiste várias vezes sobre a partilha de um ponto de vista e
_ ~ - q u e o mantém Ibid., p 70. sobre a comunhão dos dados de referência como fundamentos da me
mória coletiva, por exemplo: op cit, pp. 3, 48-53, 61, etc._
Did.. pp. 74-79. Na seqüência da exposição. empregarei o termo es-
pectador um movimento que ultrapassa a simples compreensão do es- 15. om relação à memória coletiva. a memória individual estaria na ver
Detáculo proposto e se faz produtora de sentido. Composição, monta- tente oposta àquela em que se situa o objeto cultural. Uma abordagem
gem, ritmo conduzem da visão à compreensão , F Albera, 1980, p. 9. que se refira à psicologia histórica seria então possível (Meyerson, 1948).

S. Assim acontece com a representação do juramento no momento da


Revolução Francesa ou ainda com a representação do herói revolucio-
nário: J. Davallon, 1981.

9. De um lado, então, um ícone que é a presença real e 'viva' do monar-

ca; de outro, um
representação relato
como queo époder
poder, seu túmulo subsistindo para
como representação sãosempre. A
um e ou-
tro um sacramento na imagem e um 'monumento' na linguagem, onde,
cambiando seus efeitos, o olhar deslumbrado e a leitura admirativa
consomem o corpo radioso do monarca, um recitando sua história em
seu retrato, o outro contemplando uma de suas perfeiçües no relato
que eterniza a manifestação . L. Marin, 1981, p.

10. Esta particularidade da imagem foi notavelmente bem estudada pela


semiologia do cinema. Como indica F A Ibera, é ela que S. M. Eisenstein
:i:: s:;:: ..2. ~ e ~ . : te:ra: : e . n ; . : . ; : - i s m o : ·· que caracteriza efetivamente es-
 J • e : ~ = : _ ~ . : ; S é r c n ~ Van
Toulouse-Lautrec Gogh.
.._ .::·:_:-...:. ::.. ~ : _ , ::.:= ~~ _ es:;ldar para compreender esta no
~ ; , , e 5;,,; consrrnção impüe ao espectador um
-e·· a simples compreensão do espetáculo pro-
- · : . : ; - . : s . > : ~
  ,-, _ . : ~ ;;rc âwora de sentido. Composição, montagem, ritmo
1:c::1:em da l'isão à compreensão , F Albera, 1980, p. 9.

l
11. Esse artigo de E. Benveniste foi retomado em Problemas de lingüística
geral, t. 2., 1974. Essa dominância do modo semântico e meta-semân
tico foi reconhecida bem cedo pela semiologia (J .L. Schefer, 1969; R.
Barthes, L. Martin, etc.), depois apoiada e corroborada pelas análises
da semiótica visual que se referem à teoria de A. J. Greimas.

12. Este ponto exigiria uma análise precisa e circunstanciada. Encontrare


mos uma primeira e indispensável abordagem em Metz, 1975.

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MEMÓRI GREG
, , ~ - • · ' ' ' :

Escolhi propor-lhes, para introduzir o debate desta ma


nhã, não uma descrição de nossas próprias práticas memoriais,
uma análise de nossa própria gestão da memória, mas uma in
terrogação envolvendo aquelas da Gr écia antiga, da Grécia clás
sica. Observar em que posição particular os gregos se coloca
vam com relação à sua própri a memória, à gestão que eles podi

am fazer dela. Serei rápido, portanto esquemático, e aqueles


que conhecem esses problemas queiram desculpar a brutalida
de deste esboço grosseiro. A discussão permitirá, espero, voltar
a todos os pontos que se desejar que eu retome.

Os gregos apresentam um problema com sua memória,


um problema muito simples. Não é possível para o não-grego,
digamos, para o bárbaro (o que não é um termo necessariamen
te negativo), reconhecer-se grego sem referência a toda uma
série de relatos com todo seu peso, seu valor normativo, sejam
eles retomados coletivamente ou não, e sejam eles fixados ou
não m formas literá rias precisas: o Mito. Mas o mito é tam
bém algo de muito organizado, m uma forma codificada, diga-

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mos, a epopéia. E imediatamente coloca-se o problema funda em resumo, valores políticos e sociais, no qual nos situamos, as
mental. Falo certamente aqui situando-me como observador em coisas se apresentam de outro modo e a contradição aparece.
uma Atenas do século V sempre tão mítica e sempre tão neces
sária. Se pretendemos, por exemplo, fazer a guerra, a guerra
da cidade, como o fazia Aquiles, arriscamos com os nossos nas
Se, como esse menino grego, sou educado através da piores dificuldades. Observem os o modo como as coisas se pas
salmodia de Homero, ou se, como grande diva percorrendo as sam nesse texto célebre (analisado por P Vida Naquet) 1   a cena
cidades gregas, interpreto o poeta durante manifestações coleti dos escudos em os Sete contra Tebas 2 • O guerreiro do mito é
vas, festas que organizam e estruturam o grupo, não produzo atingido pelo menos esse furor que possui sua alma e o rende.
uma epopéia. Quero dizer com isso que aquele que recita o tex Ele é invadido pela ira de matar, orientado para realizar os gran
to épico pode apenas retomar indefinidamente uma memória des feitos que são objeto do canto épico. Isto o coloca em con
organizada em um texto que se tornou fechado e em relação ao tradição total com as regras do grupo social no quad ro da cida
qual ele mantém uma relação que podemos ch amar demoníaca, de, regras que supõem uma guerra racional e democrática. A
que ultrapassa então as estruturas da memória humana, uma re igualdade dos combatentes é aí fundamental: não se trata de
lação que o faz entrar em contato, de maneira quase possessória, combater para se fazer ilustre no combate mas de defender a
com o próprio poet a ou alguma coisa que resta dele e se trans cidade com os companheiros de linha, cada um solidário um
mite por sua palavra. Por quê? Porque o poeta, ele mesmo, o com o outro, na falange. Há verdadeiramente uma contradição
aedo, não possui fala própria. No momento em que recita as inevitável em uma memória que estabelece ao mesmo tempo o
proezas dos heróis, o aedo só o faz porqu e a Musa fala através sistema categorial que nos define como partidários de nosso
dele, por ele. Quer dizer que não há possibilidade de prod ução grupo, e valores sociais que nos colocam em oposição a ele.
da memória na cidade fora da presença do poeta épico, diga Isto teve como efeito imediato na produção cultural, para reto
mos, para ser breve, de Homero. Os gregos apresentam, então, mar a fórmula proposta logo acima, a tragédia. A tragédia na
como principal meio de reconhecimento de si mesmos, um dos qual vemos estabelecidas ao mesmo tempo a necessidade do
textos que se produziram e se fixaram fora de seu domínio e que mito e as dificuldades que ele provoca. Não podemos nos livrar
eles são forçados a repetir sem meios de modificá-los em fun do Édipo nem se acomodar com ele. e onde a necessidade de
ção de novas exigências sociais. Textos que lhes fornecem as interrogar o mito em função do sistema de valores da cidade
categorias de percepção do mundo no qual se encontram. O contemporânea, já que não podemo s levá-lo tal qual em consi
garoto educado em Atenas aprende música, recita a epopéia, e deração.
sabe assim definir o mar em oposição à terra, a tempestade em
oposição ao céu sereno, etc. Ele recebe toda uma série de meios Por outro lado, existe a necessidade de se produzir uma
de categorizar o real, que o situam como grego. Em contraste memória, um memorável válido para o tempo da cidade, e, de
com os vizinhos persas, que possuem calças, modos de viver certa forma, nos trabalhos de memória, estamos sempre em ri
diferentes,
blema aí nãoque percebem
é maior, isso as coisas de
funciona diferentemente,
modo bastanteetc. O pro
imediato. validade
ticas
com Homero. Quando, por exemplo, as primeiras prá
historiadoras aparecem (F. Hartog, ausente da França, es
Mas a partir do momento em que olhamos não mais as categori taria melhor posicionado do que eu para falar disso), vemos
as de percepção da realidade, mas o sistema de valores éticos, bem que a necessidade da pesquisa vem da necessidade de fa-

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~ ~ ~ e - c ' : i ~ . ' í ~ i ; l i l i i 1 1 i l i i 1 1 1 1 1 U l ü U í l i i i i í í i l i i i i i i l i i i i i i i i i í i i i l i i i i i i i i

 
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mente Da guerreiro
Memória em presença de Atena. O que faz com que
bricar um memorável adequado ao mundo dos contemporâne
uma representação desse gênero seja ao mesmo tempo válida
os. Ao mesmo tempo coloca-se a questão da enunciação. Quem
para o herói e para a situação na qual o comb atente da cidade, o
fala e com que direito? O poeta com suas garantias não está
hoplita, é declarado comparável aos heróis, com uma verdadei
mais aí para fazê-lo em meio aos seus. Aquele que produz o
ra metaforização interna à imagem. Podemos ir ainda mais lon
memorável para a cidade, assim, tem sempre, de certo modo, a
ge, nesse sentido, adicionando por exemplo no dispositivo car
nostalgia da epopéia definitivamente impossível. Quando a ci
dade produz um discurso adequado pelo qual ela se funda, fa regador/carregado, em presença de Atena, um leão que desfila
com os personagens da imagem, ao fundo do conjunto. O valor
bricando seu próprio memorável mítico, quando ela pratica a
metafórico da imagem é assim assinalado do interior do próprio
oração fúnebre, ela o faz em referência aos valores do epos (N.
dispositivo, o leão não tendo outra significação possível em um
Loraux, de novo aqui, seria bem melhor que eu para falar dis
contexto como esse. Aliás, o ritual dos funerais públicos não
so). O orador oficial narra então a grandez a de Atenas pela gran
tinha rigorosamente nada o que fazer com o que era representa
deza de seus guerreiros mortos ao modo dos heróis, incorporan
do nas imagens desse tipo (eu deveria, desculpem, tê-lo dito no
do os valores que servem a isso.
começo), quer dizer com esse transporte individual do cadáver
incluído no universo épico. Os mortos celebrados pelo ritual
Para não multiplicar os casos de figura, gostaria agora ateniense são anônimos, coletivamente honrados, etc. e disso a
de observar o modo como a imagem pode se inserir nesse dis
imagem não diz nada. Podemos assim ver como a imagem pode
positivo de produção (seguindo desta vez F. Lissarrague que
jogar nessa estratégia da memória onde as margens de mano
não pode estar aqui hoje. Espero não trair ninguém, enfim não
bras são bastante reduzidas. Visto que as questões de enunciação
muito, fazendo falar tantos amigos ausentes ). A imagem possui
não se colocam mais no interior do novo conjunto onde a ima
uma vantagem fundamental: ela representa e ao mesmo tempo
gem joga com suas condições específicas de produção, torna-se
produz sentido. De outro modo, quando a imagem é representa
possível praticar uma política de memória mais flexível nesse
ção, ela pode representar um guerreiro da cidade, o hoplita car
mundo, somando-se tudo, tão comple xo que é o domínio gre
regando o corpo de seu companheiro morto. Através de alguns
go. Penso que seria necessário desdobrar um pouco mais tudo
elementos do dispositivo icónico, é possível mostra r que o guer isso diante de vocês.
reiro morto é um herói parecido com o da epopéia, com o guer
reiro épico: a forma do escudo, o tipo de penteado, por exem
E isso para remeter, certamente, dentro de uma perspec
plo. A imagem pode conter nomes, Aquiles, Ajax, com uma
referência evidente aos dados épicos. Ela é representação ou tiva antropológica, que eu defendia ontem em uma outra ofici
motor de discursos, ocasião assim de reatualizar a memória para na, à nossa própri:i prática memorial, no sistema com memór ia
retomar o que estava dito antes, a memória dos valores do epos. institucional que é o nosso. Temos historiadores, universidades
Em uma cena desse gênero, podemos introduzir Atena. A deu onde se ensina a história. Gostaria simplesmente que nos inter
sa, sabemos, mantém uma relação específica com os heróis do rogássemos, enquanto produtores de memória, com relação ao
funcionamento grego da prática memorial. E gostaria, para ter
ciclo troiano: ela pode então fazer parte dessas representações. minar e à guisa de incitar a discussão, de me perguntar se o fato
Se suprimimos as indicações de nomes, Atena continua reco
nhecível graças aos elementos que a definem (armas, coruja, de que a primeira memória heróica produzida no curso do esta
etc.) mas o guerreiro carregador ou carregado, torna-se simples- belecimento de nossa história republicana gire em torno de per-

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7/24/2019 sonagens como Vercingétorix ou Joana d Are, que eu PÊCHEUX,
diria Michel. et. al. Papel Da Memória
massivamente míticos à grega, é um acaso ou se isso coloca
questões sobre nossa própria gestão da memória no quadro da
BIBLIOGR FI
instituição que a produz.

Jean-Louis Durand
VIDAL-NAQUET, P (1978), Les boucliers des héros ... ,
Revue des Études grecques no XVI.

ESCHYLE. Les Sept contre Thebes texto elaborado e traduzi


do por Paul Mazon, Paris, Les Belles Lettres, l a ed., 1963; re
vista em 1966.

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7/24/2019 PÊCHEUX, Michel. et. al. Papel Da Memória

NOT S

1. Vidal-Naquet P. 1978. Les boucliers des héros . . Revue des Études


grecques no XVI.

2. Eschyle. Les Sept contre Thebes texto elaborado e traduzido por Paul
Mazon Paris Le s Belles Lettres l ed. 1963 re vista em 1966.

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7/24/2019 PÊCHEUX, Michel. et. al. Papel Da Memória

P PEL D MEMÓRI

Não pretendo fornecer um levantamento exaustivo do


trabalho da manhã, nem resumir as três apresentações de que
nos beneficiamos. Gostaria simplesmente de dar a tonalidade
delas, acentuando o que me pareceu ser as nervuras principais
do debate.

De início, uma observação de conjunto sobre as três apre


sentações: Pierre Achard trabalha em sociolingüística e m ná-
lise de discurso, Jean Davallon em semiótica e sociosemiótica
do espaço e Jean-Louis Durand efet ua pesquisas semióticas so
bre o gestual na antiguidade ateniense clássica.

Corríamos o risco então de ter discussões agradavelmente


paralelas, sem ponto de contato: por exemplo, uma sobre os
textos e os discursos, e outra sobre a imagem. De fato, a questã o
do papel da memória permitiu um encontro efetivo entre temas
a princípio bastante diferentes. Esta questão conduziu a abordar
as condições mecanismos, processos ) nas quais um aconteci
mento histórico um elemento histórico descontínuo e exterior)

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7/24/2019 é suscetível de vir a se inscrever na continuidade interna, no
PÊCHEUX,
rações e na discussão, sobre a especificidade da ordem propria
Michel. et. al. Papel Da Memória
espaço potencial de coerência próprio a uma memória. mente lingüística (definida por exemplo como a da variação
combinatória, à qual J.-C. Milner se referiu em sua apresenta
ção), em relacão à ordem do discursivo, e afortiori em relação
Memória deve ser entendida aqui não no sentido direta
às do icônico, do simbólico ou da simbolização.
mente psicologista da memória individual , mas nos sentidos
entrecruzados da memória mítica, da memória social inscrita
em práticas, e da memória construída do historiador. O risco O fato de que possa existir localização de traços distinti
evocado de uma vizinhança flexível de mundos paralelos se deve vos e de oposições pertinentes na esfera do icônico, por exem
de fato à diversidade das condições supostas com essa inscri plo, não conduziu ninguém a supor que, mesmo para um
ção: é a dificuldade - com a qual é preciso um dia se confrontar sincronia dada, haveria universais do icônico (pessoalmente, a
- de um campo de pesquisas que vai da referência explícita e impensabilidade de uma sintaxe do icônico me parece marcada
produtiva à lingüística, até tudo o que toca as disciplinas de pela inexistência da negação e da interrogação no interior da
interpretação: logo a ordem da língua e da discursividade, a da imagem). A questão de uma possível combinatória culturalmente
linguagem , a da significância (Barthes), do simbólico e da determinada dos segmentos gestuais (a propósito da qual J.-L.
simbolização Durand mencionou certos trabalhos etnológicos americanos re
centes) coloca provavelmente um problema bem diferente, mas
não desemboca mais em impossíveis universais gestuais.
Não é de se admirar, nessas condições, que a idéia de
uma fragilidade, de uma tensão contraditória no processo de
inscrição do acontecimento no espaço da memória tenha sido Concebemos desde então que o fato incontornável da
constantemente presente, sob uma dupla forma-limite que de eficácia simbólica ou significante da imagem tenha atraves
sempenhou o papel de ponto de referência: sado o debate como um enigma obsediante, e que, por seu lado,
os fatos de discurso, enquanto inscrição material em uma me
mória discursiva, tenham podido aparecer como uma espécie
- o acontecimento que escapa à inscrição, que não chega
a se in'screver; de problemática-reserva.
acontecimento histórico Essa negociação
singular entre o choque
e o dispositivo de um
complexo de
uma memória poderia bem, com efeito, colocar em jogo a nível
- o acontecimento que é absorvido na memória, como se
crucial uma passagem do visível ao nomeado na qual a imagem
não tivesse ocorrido.
seria um operador de memória social, comportando no interior
dela m e s m um programa de leitura, um percurso escrito
discursivamente em outro lugar: tocamos aqui o efeito de repe
tição e de reconhecimento que faz da imagem como que a reci
No que concerne aos múltiplos registros evocados aci tação de um mito. Na transparência de sua compreensão, a ima

ma,
tica que
e asformam uma de
disciplinas continuidade problemática
interpretação (restando entre
sabera em
lingüís
que gem mostraria como ela se lê, quer dizer, como ela funciona
enquanto diagrama, esquema ou trajeto enumerativo. Refiro
medida a própria lingüística é ou não uma disciplina de inter me a tudo o que Jean Davallon adiantou a esse respeito.
pretação), um acordo muito amplo se manifestou, nas apresen-

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illll ill

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Haveria assim sempre um jogo de força na memória, sob
7/24/2019 Tocamos aqui um dos pontos de encontro co m a questão
PÊCHEUX, Michel. et. al. Papel Da Memória
o choque do acontecimento:
da memória c omo estruturação de materialidade discursiva com
plexa, estendida em uma dialética da repetição e da regulariza
- um jogo de força que visa manter uma regularização
ção: a memória discursiva seria aquilo que, face a um texto que
pré-existente com os implícitos que ela veicula, confortá-la como
surge como acontec imento a ler, vem restabelecer os implíci
'boa forma , estabilização parafrástica negociando a integração
tos (quer dizer, mais tecnicamente, os pré-construídos, elemen
tos citados e relatados, discursos-transversos, etc.) de que sua do acontecimento, até absorvê-lo e eventualmente dissolvê-lo;
leitura necessita: a condição do legível em relação ao próprio
legível. Ora, acontece que esta é uma das questões cruciais atu - mas também, ao contrário, o jogo de força de uma
almente abordadas pela análise de discurso: uma discussão aberta desregu lação que vem perturbar a rede dos implícitos .
a esse respeito, que - sem ser puro 11egócio de butique - reveste
apesar de tudo um caráter relativamente técnico . A questão é m relação com a questão da regularização, a da repeti

saber onde residem esses famosos implícitos, que estão ausen ção (dos itens lexicais e dos enunciados) prolongou o debate: a
tes por sua presença na leitura da seqüência: estão eles dispo repetição é antes de tudo um efeito material que funda comuta
níveis na memória discursiva como em um fundo de gaveta, um ções e variações, e assegura - sobretudo ao nível da frase escri
registro do oculto? P Achard levanta a hipótese de que não en ta1 - o espaço de estabilidade de uma vulgata parafrástica pro
contraremos nunca, em nen huma parte, explicitamente, esse dis duzida por recorrência, quer dizer, por repetição literal dessa
curso-vulgata do implícito, sob uma forma estável e sedimentada: identidade material.
haveria, sob a repetição, a formação de um efeito de série pelo
qual uma regularizaç ão (termo introduzido por P. Achard) se Mas a recorrência do item ou do enunciado pode tam
iniciaria, e seria nessa própria regularização que residiriam os bém (este é um ponto introduzido por Jean-Marie Marandin na
implícitos, sob a forma de remissões, de retomada s e de efeitos discussão) caracterizar uma divisão da identidade material do
de paráfrase (que podem a meu ver conduzir à questão da cons item: sob o mesmo da materialidade da palavra abre-se então

trução dos estereótipos). P


regularização discursiva, Mas, sempre
que tende segundo
assim a formarAchard, essa
a lei da série o jogo da metáfora, como outra possibilidade de articulação
discursiva .. Uma espécie de repetição vertical, em que a pró
do legível, é sempre suscetíve l de ruir sob o peso do aconteci pria memória esburaca-se, perfura-se antes de desdobrar-se em
mento discursivo novo, que vem perturbar a memória: a memó paráfrase.
ria tende a absorver o acontecimento, como uma série matemá
tica prolonga-se conjeturando o termo seguinte em vista do co Esse efeito de opacidade (correspondente ao ponto de
meço da série, mas o acontecimento discursivo, provocando divisão do mesmo e da metáfora), que marca o momento em
interrupção, pode desmanchar essa regularizaçã o e produzir que os implícitos não são mais reconstrutíveis, é provavel
retrospeciivamente uma outra série sob a primeira, desmascarar mente o que compele cada vez mais a análise de discurso a se
o aparecimento de uma nova série que não estava constituída distanciar das evidências da proposição, da frase e da estabili
enquanto tal e que é assim o produto do acontec imento; o acon dade parafrástica, e a interrogar os efeitos materiais de monta
tecimento, no caso, desloca e desregula os implícitos associa gens de seqüências, sem buscar a princípio e antes de tudo sua
dos ao sistema de regularização anterior.

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7/24/2019 significação ou suas condições implícitas de interpretação.PÊCHEUX, Michel. et. gestos deDa
al. Papel designação
Memóriaantes que sobre os designata, sobre os pro
cedimentos de montagem e as construções antes que sobre as
significações? A questão da imagem encontra assim a análise
Trata-se, de outro modo, de retirar-se provisoriamente,
de discurso por um outro viés: não mais a imagem legível na
taticamente, da questão do sentido, sabendo ao mesmo tempo
transparência, porque um discurso a atravessa e a constitui, mas
que a questão da interpretação é incontornável e retornará sem
a imagem opaca e muda, quer dizer, aquela da qual a memória
pre. A esse propósito, devo fazer um esclarecimento a respeito "perdeu" o trajeto de leitura (ela perdeu assim um trajeto que
da fala de Sylvain Auroux, que me atribuiu uma controvérsia
jamais deteve em suas inscrições).
com J.-C. Milner sobre a questão de saber se ele se estimava ou
não ser colega de Beauzée: parece-me útil explicar um pouco
de que se trata A questão concerne de fato ao estatuto da lin A imagem muda é por exemplo o choque opaco de uma
güística frente às disciplinas de interpretação. Eu tinha pergun imagem de vaso grego: a arquelogia possui apenas o olho, quer
tado a Vidal-Naquet (a partir da alusão ao artigo de Nicole dizer, imagens e textos, sem coincidência, e não, como a antro
Loraux ''Tucídides não é um colega", muito citado no decorrer pologia de hoje, o a mais" do ouvido (a voz, a "trilha sonora").
dessas jornadas), se, para ele, Tucídides, sem ser seu colega, era O que evoco aqui remete à apresentação de J.-L. Durand, que

não obstante um historiador; questão à qual P Vidal-Naquet res mostrou


visuais dacomo a epopéia
democracia heróica(em
ateniense grega fazia irrupção
particular nas
as cenas cenas
funerá
pondeu: "Sim, certamente ", o que implica que não há começo
histórico assinalável para a disciplina histórica, na medida em rias), através de telescopias burlescas por seu anacronismo (mais
que a história é uma disciplina de interpretação: para um físico, ou menos como se mostrássemos Vercingétorix a bordo de um
por exemplo, o problema de saber se Aristóteles é um colega avião a jato).
não se coloca. Aristóteles não é para ele nem um colega, nem
um físico. Minha questão a J.-C. Milner concernia então de fato No outro extremo, o choque opaco do acontecimento
à posição da lingüística a respeito da interpretação. Perguntar televisual é também algo que não se inscreve, na medida em
se se há ou não um momento histórico assinalável em que se que está sempre "já lá", no retorno de um paradigma pesado
pode dizer de alguém ''é um lingüista'', não é então colocar um que se repete no interior de sua aparição instantânea: por exem
mero poblema de datação, mas levantar a questão de saber se a plo (intervenção de Maurice Mouillaud), a história do submari
lingüística é uma disciplina puramente "experimental", ou se no soviético perdido no Báltico, quando este vem à superfície
ela tem necessariamente algo a ver (de modo complexo, equí da tela de TV; o submarino está sempre lá, não necessariamente
voco, ambíguo mas algo a ver) com as disciplinas de interpre no fundo do mar, mas nas profundezas de um paradigma que
tação, desde a história até a psicanálise. estrutura o retorno do acontecimento sem profundidade.

Fecho este parêntese para retornar à questão da interpre Reencontramos assim, para finalizar, a questão da rela
tação em análise de discurso: P Achard caracterizou esse movi ção entre a imagem e o texto: no entrecruzamento desses dois
mento de retirada provisório da questão do sentido e da vontade objetos, onde estamos, tecnologicamente e teoricamente, hoje,
de interpretar, lembrando o provérbio chinês "Quando lhe mos com relação a esse problema que, após Benveniste, Barthes de
tramos a lua, o imbecil olha o dedo". Com efeito, por que não? signou com o termo "significância"?
Por que a análise de discurso não dirigiria seu olhar sobre os

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Em que pé estamos com relação a Barthes? Barthes era
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tanto lingüista dos textos como teórico das imagens, ou de pre
ferência não era nem um nem outro quer dizer, nem lingüista,
nem semiólogo, nem analista) mas antes de tudo o esboço con
traditório de gestos que tentamos hoje reencontrar, e que ele
soube agenciar à sua maneira talvez única, quer dizer, em pes
soa - logo também, e de maneira equívoca: como pessoa? NOT S

A certeza que aparece, em todo caso, no fim desse deba


te é que uma memória não poderia ser concebida como uma
esfera plena, cujas bordas seriam transcendentais históricos e 1 Assinale-se a esse propósito uma intervenção de Françoise Madré,
cujo conteúdo seria um sentido homogêneo, acumulado ao modo problematizando a relação escrito/oral do ponto de vista da repetição e
da memória.
de um reservatório: é necessariamente um espaço móvel de di
visões, de disjunções, de deslocamentos e de retomadas, de con
2 Penso nas teses desenvolvidas por Paul Veyne, que poderiam bem ilus
flitos de regularização .. Um espaço de desdobramentos, répli
trar esse pantextualismo que foi designado como risco constante no
cas, polêmicas e contra-discursos. decorrer dos debates. O último livro de P Veyne Les Grecs ont-ils cru
à leurs mythes dá uma idéia desse frasco ideal do relativismo absoluto.
E o fato de que exista assim o outro interno em toda
memória é, a meu ver, a marca do real histórico como remissão
necessária ao outro exterior, quer dizer, ao real histórico como
causa do fato de que nenhuma memória pode ser um frasco sem
exterior

Michel Pêcheux

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MAIO E 1968: OS SILÊNCIOS DA MEMÓ RIA

ntrodução

Falando de história e de política, não há como não consi


derar o fato de que a memória é feita de esquecimentos, de si
lêncios. De sentidos não ditos, de sentidos a não dizer, de silên
cios e de silenciamentos.

Os sentidos se constróem com limites. Mas há também


limites construídos com sentidos. E quando penso maio de 68, o
que vem à frente d a cena - política e histórica - é o silenciamento,
são os sentidos que impõem limites. A tortura, a censura, a agres
são da ditadura à sociedade, à cidadania.

Mais do que ver o acontecimento maio-68 a constatação


dess violência, interessa vê-lo, enquanto cont eci ment o
discursivo, justamente, como fato desencadeador de um pro
cesso de produção de sentidos que, reprimido, vai desembocar
na absoluta dominância do discurso neo)liberal. No entanto,
enquanto tal, o momento em que apareceu, maio-68 abria para
uma nova discursividade, produzindo efeitos metafóricos que
afetavam a história e a sociedade, de maneira explosiva, em várias

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para significar. E é isso a materialidade discursiva, isto é,
direções: politicamente, culturalmente, moral mente. E o que vai
se dar com essa discursividade no futuro? O que signi fica maio linguístico-histórica. a interpelação do indivíduo em sujeito
7/24/2019 PÊCHEUX, Michel. et. al. Papel Da Memória
de 68 hoje? pela ideologia resulta a forma-sujeito histórica. Em nosso caso,
a forma-sujeito histórica capitalista corresponde ao sujeito-jurí
Para trazermos essa questão para a reflexão, podemos dico constituído pela ambiguidade que joga entre a autonomia e
referir o texto de M. Pêcheux (p. 33 aqui mesmo), no qual ele a responsabilidade sustentada pelo vai-e-vem entre direitos e
procura compreender, junto a lingüistas, semioticistas e histori deveres. Podemos dizer, então, que a condição inalienável para
adores, a fragilidade no processo de inscrição do acontecimen a subjetividade é a língua, a história e o mecanismo ideológico
to no espaço da memória que, segundo ele, joga em uma dupla pelo qual o sujeito se constitui.
forma: a. o acontecimento que esca pa à inscrição, que não che
ga a inscrever-se, e b. o acontecimento que é absorvido na me Por outro lado, esse sujeito, uma vez constituído, sofre
mória como se não tivesse ocorrido. diferentes processos de individualização (e de socialização) pelo
Estado. Assim, se temos o indivíduo como ponto de parti da para
O caso que estou apresentando não se enquadra nem na o assujeitamen to ao simbólico - e, quanto a este assujeitamento
primeira, nem na segunda possibilidade. uma nuance entre o sujeito não tem controle pois ele se pass a antes, em outro

elas: é como se não tivesse ocorrido (b , não porque foi absorvi lugar e independentemente
sos que - temos
o individualizam e que sobre
derivam dasesse sujeito proces
diferentes formas
do mas, ao contrário, justamente porque escapa à inscrição na
memór ia (a). este, penso eu, o caso da censura em geral. Nes de poder. E aí as Instituições e o Poder constituído têm um
se sentido, embora eu explore aqui uma situação particular de papel determinante. nessa instância que se dão as lutas, os
censura, essa minha reflexão pode contribuir para a compreen confrontos e onde podemos observar os mecanismos de imposi
são da relação entre memória e censura em geral. ção, de exclusão e os de resistência.

Pois bem, é assim, partindo dessa posição teórica, que


procuraremos compreend er o que tenho chamado de proces
m pouco de teori
sos de de-significaçã o que estão presentes em discursividades
como as que incidem sobre maio de 68. Portanto, não tratare
mos o sujeito como algo que se trabalha do ponto de vista de
já conhecido, na análise de discurso, que há interpela uma sua essência, mas pensando sua existência como constituí
ção do indivíduo em sujeito pela ideologia. assim que se con da pela sua relação com a língua e com a história onde se con
sidera que o sujeito se constitui em sujeito por ser afetado pelo frontam o simbólico e o político.
simbólico. aí seu assujeitamento, ou seja, para que o sujeito
seja sujeito é necessário que ele se submeta à língua. E é por E a nossa questão é: o que aconteceu com os sentidos
estar sujeito à língua, ao simbólico, que ele, por outro lado, pode
que constituem o evento maio-68?
ser sujeito de.
Para falar disso retomamos o fato de que falar é esque
Além disso, é preciso que a língua se inscreva na história
cer. Esquecer para que surjam novos sentidos mas também es-

60 61

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quecer apagando os novos sentidos que á foram possíveis mas
cusa a uma vida reduzida a regras e a um trabalho que, por sua
foram estancados em um processo histórico-político silenciador.
vez, reduz o homem em suas possibilidades de vida.
São sentidos que são evitados, de-significados.
7/24/2019 PÊCHEUX, Michel. et. al. Papel Da Memória

Uma paráfrase agora, com o tempo á deslocado, mostra


a conversão desse discurso em um processo que o de-signifi
Formações iscursivas e Esvaziamento de Sentido cou. Essa paráfrase aparece, em maio de 1998, em um poster
de propaganda no metrô de Paris: um casal nu, tatuado com
flores no peito, dirigindo-se a uma exposição, e embaixo, os
A definição de formação discursiva diz que ela delimita dizeres "Ent rada livre. Isso faria sonh arem seus pais .. ".
"aquilo que pode e deve ser dito por um sujeito em um a posição
discursiva em um momento dado em uma conjuntura dada" Esse enunciado por sua vez mostra a forma como os sen
(Haroche, Henry, Pêcheux, 1975). tidos concretos e explosivos de liberdade, que estavam levando
à uma revolução social e cultural, a novos sentidos para os su
No modo como o político se simboliza nos anos 60 há jeitos e para à história, foram barrados violentamente pelo status
todo um possível dizer da sociedade, da cultura que coloca os quo. Pelas instituições, pelo poder. E, no caso do Brasil, mais
violentamente ainda porque estávamos em uma ditadura e era
sujeitos em medidaEssa
grande dimensão. de uma transformação
possibilidade histórica
eclode e social de
nos movimentos bem diferente dizer É proibido proibir" aqui em uma rua de
de 68 tendo a palavra liberdade como carro-chefe. No mundo São Paulo e em uma rua de Paris ..
todo há manifestações de rua em que uma discursividade can
dente trabalha os muitos sentidos postos na reivindicação das No poster dos anos 90 "e ntrada livre" e gratuita reduz o
liberdades concretas necessárias à sociedade em suas novas sentido de liberdade ao preço de um parque de diversões.
posssíveis formas.

São assim enunciados que funcionam em suas relações O interditado que toma a forma do impossível
parafrásticas, relacionando-se em suas diferentes formulações
ao que pode significar "liberdade":

Então, sentidos possíveis, historicamente viáveis foram


a. É proibido proibir ". politicamente interditados E tornaram-se inviáveis. Essa im
possibilidade, posta pela censura e pela força, se naturaliza e
b. "Faça amor e não faça guer ra " que deriva ainda para funciona como um pre-construído restritivo a certos sentidos de
"Paz e Amor ". liberdade, de tal maneira, que eles parecem impossíveis Foram
assim desmoralizados, amolecidos, inviabilizados, de-signifi
c. "Boulot, Metro, Dodo " em português: "Trabalho,
Condução e Cama ". cados, postos fora
feito florzinha quedo
sediscurso. E a palavra
prende com "liberdade"
um bottom aparece
numa roupinha
maneira .. Ao mesmo tempo, pela outra mão, a da direita, nesse
Que, em suas diferentes formas de dizer, afirmam a re- mesmo processo, se estabelecem as bases do discurso neo-libe-

62 63

ralem que se individualiza a questão da liberdade, destituindo


http://slidepdf.com/reader/full/pecheux-michel-et-al-papel-da-memoria e esquecidas, ao longo do tempo e de nossas experiências de 31/35
ª da força concreta histórica que ela tinha na outra formação linguagem que, no entanto, nos afetam em seu esqueci mento .
discursiva - a da esquerda, em que o partido comunista propu
Assim como a língua é sujeita a falhas, a memória também é
nha em seu programa a necessidade de construção de uma de
7/24/2019 constituída
PÊCHEUX, Michel. et. al. pelo esquecimento; daí decorre que a ideologia, diz
Papel Da Memória
mocracia fundada nas liberdades concretas necessárias para as
M. Pêcheux (1982), é um ritual com falhas, sujeito a equívoco,
novas formas sociais - em que haviam se alocado sentidos ex
de tal modo que, do já dito e significado, possa irromper o nm o
plosivos de liberdade. E o que é silenciado em uma formação
o irrealizado. No movimento contínuo que constitui os sentidos
discursiva é acolhido em outra formação discursiva, esta, domi
e os sujeitos em suas identidades na história.
nante, que corresponde ao viés pragmático e empresarial da
política neo-liberal desembaraçada dos sentidos mais corrosi
Ainda em M. Pêcheux (aqui mesmo, p. 36) temos: uma
vos, transformadores do político. Essa liberdade sem determi
espécie de repetição vertical, em que a memória esburaca-se,
nações concretas, agora generalizada, pode ser reivindicada,
perfura-se antes de desdobrar-se em paráfrase . O que dá, se
individualizando-se, até pelos neo-nazistas que, em nome dela,
gundo esse autor (idem, p.39), a idéia de memória como um
exigem o direito de usar a suástica em suas roupas opressivas.
espaço móvel de divisões, de disjunções, de deslocamentos e
de retomadas, de conflitos de regularização. Um espaço de des
dobramentos, réplicas, polêmicas e contra-discursos (1).
O que é isto companheiro

Memória e Censura
Não é nada disso, companheiro, diz uma paráfrase de
José Simão que, com seu humor, evoca o jogo discursivo que
atravessa esse enunciado em sua memória, agora transformada
O que acontece com maio-68 porém é de outra ordem. A
de romance em filme.
falha é constitutiva da memória, assim como o esquecimento.
No entant o o que acontece com os sentidos de 68 é que eles não
E a questão é sem dúvida uma questão de memória. No falham apenas nessa memória, eles foram silenciados, censura
sentido discursivo, A memória - o interdiscurso, como defini dos, excluídos para que não haja um já dito, um já significado
mos na análise de discurso - é o saber discursivo que faz com constituíd o nessa memória de tal modo que isso tornasse, a par
que, ao falarmos, nossas palavras façam sentido. Ela se consti tir daí, outros sentidos possíveis. Há faltas (2) - e não falhas -
tui pelo já-dito que possibil ita todo dizer. de tal modo que eles não fazem sentido, colocando fora do dis
curso o que poderia ser significado a partir deles e do esqueci
Pois bem como dissemos no início o sujeito é mento produzido por eles para que novos sentidos aí significas
assujeitado, pois para falar precisa ser afetado pela língua. Por sem. Há, assim, furos , buracos na memória, que são luga
outro lado, para que suas palavras tenham sentido é preciso que res, não em que o sentido se cava mas, ao contrário, em que o
já tenham sentido. Assim é que dizemos que ele é historicamen sentido falta por interdição. Desaparece. Isso acontece por
te determinado, pelo interdiscurso, pela memória do dizer: algo que toda uma região de sentidos, uma formação discursiva, é
fala antes, em outro lugar, independentemente. Palavras já ditas apagada, silenciada, interditada. Não há um esquecimento pro-

64 65

duzido p r eles, mas sobre eles. Fica-se semmemória. E isto


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impede que certos sentidos hoje possam fazer (outros) sentidos. to a repressão porque resvala para o que, hoje, se considera como
Como a memória é ela mesma, condição do dizível, esses sen ilegal, indo na direção do que se considera mobilização soci
7/24/2019 tidos não podem ser lidos. PÊCHEUX, Michel. et. al. Papel Da Memória
al , ilegal, e que, em maio-68, estava absolutamente dentro das
espectativas do político.
Para observarmos isso basta pensarmos nos sentidos dos
nossos companheiros de maio-68 trucidados pela tortura e pela Para tenninar, eu gostaria de dizer que o real histórico
repressão militar. Eu vi, em meu silêncio, muitos de meus cole
gas com suas fotos afichadas como perigosos guerrilheiros em faz
rial pressão, fazendo
contraditória que algo irrompa
(a ideologia). O que nessa objetividade
foi censurado não mate
desa
pilares da rodoviária de São Paulo toda vez que ia tomar ôni parece de todo. Ficam seus vestígios, de discursos em suspenso,
bus. Eram lidos, vistos, pensados como perigosos terroristas. in-significados e que demandam, na relação com o saber
Por onde passam os sentidos do terrorismo? Por onde passam discursivo, com a memória do dizer, uma relação equívoca com
os sentidos da resistência política de 68? Os sentidos de liber as margens dos sentidos, suas fronteiras, seus des-limites.
dade?

Acontece que estes sentidos - excluídos, silenciados -

não puderam e não podem significar, de tal modo que há toda ni P Orlandi
uma nossa história que não corresponde a um dizer possível.
Não foram trabalhados socialmente, de modo a que pudésse
mos nos identificar em nossas posições. Do mesmo modo ficam
sem ser politicamente significados os feitos da tortura e do que
resultou dela na nossa política. Toda vez que vamos votar, mes
mo que nem pensemos nisso, o fato de que o Brasil é um país
que tortura os dissidentes políticos faz parte de nossa memória
e de nossos gestos políticos. E isso não mereceu ainda sua

explicitação política (3). Está fora da memória como uma


sua margem que nos aprisiona nos limites desses sentidos.
que está fora da memória não está nem esquecido nem foi traba
lhado, metaforizado, transferido. Está in-significado, de-signi
ficado (4).

Em conseqüência, a discursividade política tem seus


pontos de tensão nos indícios desses silenciamentos. Hoje, dis
cursos como os do MST, que são uma ruptura no discurso polí
tico neo-liberal, têm dificudade de significar-se nessa margem
em que muitos sentidos não podem fazer o sentido do político,
onde palavras como movimento podem significar algo sujei-

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NOT S
, .

Uma primeira versão deste texto foi apresentada em Santa Maria


(RS), no Colóquio Utopias e Distopias' ', em maio de 1998.
Agradeço a Amanda Scherer a oportunidade e a convivência com os
que estiveram no evento.

1 As teses de Bethania C S Mariani, sobre o discurso do Partido


Comunista no Brasil (1997), a de Suzy Lagazzi Rodrigues sobre o
discurso do As sentamento ( 1998) e a de Maria Onic e Payer sobr e
memória da língua, na situação da imigração italiana (em curso),
trabalham todas elas esses aspectos de cristalização, de apagamento,
ou de ruptura e resistência.

2 Estou aqui fazendo uma distinção - falha CCll1stitutiva e falta por inter
dição - que corresponderia, em paralelo, à distinção que faço entre não
sentido (que aponta para o sentido que poderá vir, o irrealizado) e o
sem-sentido (o que já significou e que não faz mais sentido). No caso, a

. falha é o lugar do possível, do sentido a vir: e a falta, é o que foi tirado


do sentido, o que não pode significar. Essas formas se indistinguem e,

na maior
ponto de parte
vista das vezes, nãoaéeficácia
da ideologia, fácil separá-las. E está aí justamente, do
de seus efeitos.
r---
 n
T
.---< 3 Mais recentemente, há referências públicas à tortura, mas que permane
µ cem à margem, como acasos sem história, violência que não aparece
o z como parte da política mas à parte dela. Transferida para a polícia.

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Conferir - a respeito da falta de trabalho da memória, da dificuldade de
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: dizer, de se identificar e de transferir (metaforizar) sentidos que se pode
o u .
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.._ 0i O +- perceber na falta de palavras, na tensão dos gestos, dos olhares e do
o
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1)
8 silêncio constrangido (e constrangedor para nós cidadãos brasileiros )
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E
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a
1) dos corpos - o filme 15 Filhos : a imaterialidade da morte (sob tortura,
::<: . l fabricam-se os desaparecidos, a morte fica sem corpo ... ) é a
imaterialidade da vida diz um dos, ou melhor, uma das filhas.

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