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Estética e Literatura
Márcio Seligmann‐Silva
Cult y edição nº 120 y dezembro de 2007
Do Renascimento ao século 20, os caminhos cruzados
da arte das letras e da arte das imagens
Tratar da relação entre Estética e literatura exige uma abordagem com um viés du‐
plo: do ponto de vista da teoria estética a literatura sempre ocupou um local central. A
Estética, desde seus primórdios ‐ antes mesmo do surgimento propriamente dito da disci‐
plina “Estética” no século 18 ‐, ocupa‐se de textos da literatura. Já do ponto de vista da
produção literária e da disciplina que a estuda, a teoria literária, a Estética aportou impor‐
tantes idéias e deixou naquela última uma marca profunda, impossível de ser contornada.
Desde a Antiguidade greco‐romana a teoria das artes foi pensada a partir dos tra‐
tados de poética. A reflexão sobre as imagens foi em grande parte derivada de uma
análise de obras literárias. A Poética de Aristóteles teve um papel fundamental na re‐
flexão sobre as artes, assim como sua Retórica e, posteriormente, tratados latinos de
autores como Horácio, Cícero e Quintiliano. Poucos textos da Antiguidade se detêm na
reflexão mais aprofundada das artes plásticas. Tratados como o Naturalis historiae, de
Plínio, contêm uma incipiente história da arte, mas não podem ser comparados com o
grau de complexidade da teoria poética alcançada então.
Os artistas plásticos do Renascimento não possuíam um acervo de regras e pre‐
ceitos nem de longe tão rico quanto os vários tratados de retórica e de poética her‐
dados da Antiguidade. Roger de Piles, no século 17, lamentava o fato de que tanto os
tratados de pintura da Antigüidade, como também as próprias pinturas daquela época
longínqua houvessem sido destruídos. Leon Battista Alberti, o primeiro pintor renas‐
centista que resolveu diminuir essa desvantagem dos pintores diante dos poetas, ba‐
seou o seu De pictura (1435) em obras de oradores e teóricos da poesia antigos.
Em decorrência desse fato a própria concepção de pintura e de escultura será, de
início, eminentemente lingüística. Se entre os teóricos da Antiguidade a poesia era
esporadicamente comparada com a pintura ‐ lembremos, sobretudo, o famoso verso
da poética de Horácio: “ut pictura poesi” (“Poesia é como pintura”) ‐, no Renascimento
essas comparações esporádicas, que tinham um papel meramente ilustrativo, ganham
um peso que não existia nos seus contextos de origem.
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Aristóteles, apesar de não ter deixado um tratado de artes plásticas, fundamenta a
sua teoria da tragédia com base na noção de mímesis. Todas as artes seriam miméti‐
cas. O importante dessa concepção é que, apesar da centralidade da reflexão sobre a
poesia na Antiguidade, esse tratado de Aristóteles, com sua ênfase na arte como imi‐
tação, coloca o ideal das artes como sendo um ideal imagético e, portanto, mais pró‐
ximo da pintura que das artes das palavras. O paradoxo aqui é que o discurso, logos, é
visto como meio privilegiado para essa realização da mímesis.
O pintor moderno se torna teórico e realizador de uma pintura voltada, sobretudo,
para a representação da narração, ou seja, da História. Esse pintor deve ser, para cum‐
prir essa nova função, um pictor doctus (pintor erudito), cópia do doctus poeta (poeta
erudito, com uma larga bagagem de leitura): sem essa erudição ele não poderia cor‐
responder à doutrina do decorum. Por fim, o pintor está submetido a um rigoroso có‐
digo de regras sociais, de âmbito moral, político e religioso. Nesse último sentido a
pintura torna‐se ilustração, um meio didático de atingir de modo mais “imediato” o
que a escrita não consegue realizar; basta lembrar do papel fundamental atribuído a
ela na era da Reforma e da Contra‐Reforma. A pintura, desde o Renascimento, é, de
certo modo, uma pintura de e sobre palavras. O seu fim também é o (re)despertar, no
espectador, das palavras que ela encerra em si: se a poesia, como vimos, quer ser ima‐
gem, a pintura quer ser lida, traduzida em comentários, quer voltar a ser texto. A pin‐
tura histórica ocupa o local privilegiado dentro da hierarquia dos gêneros de arte, o
que também dá provas da valorização da Idéia sobre o elemento material nas artes.
Graças ao predomínio da invenção é que se pôde afirmar a traduzibilidade entre as artes.
Criaram‐se correspondências entre os personagens principais de cada uma delas:
Zêuxis seria um Homero; Michelangelo, um Dante; Giotto, o Petrarca. Nessa série em
espelho refletem‐se também conceitos herdados da filosofia ‐ sobretudo do neoplato‐
nismo ‐ como a oposição entre o olho e o espírito, entre visível e Idéia, sendo que
constituía um lugar comum no neoplatonismo renascentista, com sua concepção pan‐
teísta de mundo, atribuir ao olhar a função central dos sentidos, pois o mundo seria
ele mesmo uma escrita divina e os nossos olhos seriam as portas de acesso para o Sa‐
ber. O pintor não deveria representar o objeto individual; isso não importava, não era
digno de ser representado. Ele visava representar o macrocosmo através do micro‐
cosmo. A pintura buscava o universal, o tipo, vale dizer: o Belo absoluto.
A partir do final do século 17 essa situação se modifica. Aos poucos uma retórica
anti‐racionalista vai se impondo. Dubos, com seu tratado de 1719 sobre a literatura e
pintura, já anuncia as idéias de artista como um original, e não mais como um imita‐
dor. Em Breitinger, por exemplo, importante teórico suíço da literatura e contemporâ‐
neo de Voltaire, fica evidente a combinação na então incipiente Estética entre, de um la‐
do, a filosofia de Christian Wolff, com sua tendência iluminista para a valorização dos con‐
ceitos claros e distintos (da linguagem discursiva) e, do outro, a retórica irracional e sensu‐
alista. É nesse contexto que um novo conceito de imaginação começa a ser delineado.
A imagem ou, mais exatamente, o elemento imagético do conhecimento, é vista
como um momento indispensável na formação do conhecimento racional. A obra de
Breitinger representa justamente um passo importante no desenvolvimento da Estéti‐
ca como campo de estudo desse elemento imagético, o que significou a superação do
tradicional rebaixamento do valor dos sentidos na constituição do aparelho racional. O
renascimento da retórica irracional e as tentativas de conectá‐la à criação de uma lin‐
guagem “direta”, imagética, são pressupostos sem os quais a fundação dessa nova
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disciplina, a Estética, teria sido impossível. A comparação entre as artes revelou‐se
para esse e muitos outros autores daquele século como um campo fértil para desen‐
volver essa teoria da imaginação.
A teoria estética propriamente dita nasce em 1750, com Alexander Gottlieb Baum‐
garten, a partir de questões tanto filosóficas como literárias. A Estética se desenvolve
justamente enquanto uma “ciência” que tenta mediatizar entre o absolutamente único
(pensado tanto como o individual percebido na natureza, como a obra fruto do “gê‐
nio”) e o universal (campo ao qual a arte pertenceu até o séc. 17). A reflexão interse‐
miótica que está na sua base leva a uma teoria dos signos: o meio de ligação entre o
indivíduo e o mundo, entre o sujeito e o objeto. A Estética é a disciplina que se desen‐
volveu para dar conta dessa faculdade anímica das imagens, “ponte” entre a percep‐
ção ‐ aisthesis ‐ e os conceitos, entre o individual‐imagético e o universal‐conceitual,
que, por sua vez, não existe sem as imagens. (Lembremos a famosa máxima kantiana:
“Conceitos sem intuição são vazios...”). Se o mundo se torna ao longo do século 18
mais e mais um fato lingüístico, a nossa linguagem, por sua vez, torna‐se um “fato i‐
magético e conceitual”. A doutrina da comparação entre as artes e a literatura vai, por
assim dizer, se dissolvendo nesse novo paradigma da linguagem: se tudo é linguagem e
imagem, a discussão não deve se dar mais nos termos da mímesis, mas sim em termos
de uma teoria da linguagem produtora do mundo.
Os grandes teóricos da Estética do final do Iluminismo e do Idealismo, como Dide‐
rot, Moses Mendelssohn, G. E. Lessing, Herder, Kant, Schiller, Schelling e Hegel vão
transitar em seus exemplos entre as artes plásticas e a literatura, mas de um modo
geral podemos dizer que a literatura continua a predominar (o que já era o caso no
próprio Baumgarten), tendo em vista a familiaridade maior daqueles autores com o‐
bras literárias do que com a história da arte. Kant pouco conhecia desta última. A mo‐
derna teoria literária, por sua vez, nasceu de um diálogo daquelas reflexões estéticas
com a tradição filológica anterior. Além dos autores já citados, outros, como Friedrich
Schlegel, Novalis e Baudelaire foram fundamentais para a reflexão sobre a literatura, e
em todos os três a teoria literária nunca deixou de ser realizada ao lado da teoria das
artes plásticas e da própria criação de obras literárias. É apenas ao longo do século 19,
com a criação dos departamentos de filologia nacionais, que surgem os teóricos espe‐
cializados apenas em literatura.
No século 20 vemos tanto filósofos que tiveram uma importante produção de te‐
oria literária e de estética (Heidegger, W. Benjamin, Adorno, H‐G. Gadamer, P. Ricoeur,
J. Derrida e G. Deleuze), como teóricos da literatura que influenciaram o pensamento
estético (G. Bataille, M. Banchot, R. Barthes, T. Todorov, G. Genette). Adorno pode ser
visto como o último filósofo que ainda tentou escrever a sua teoria estética dentro da
tradição idealista alemã (mas também contra ela). Desde as últimas décadas do século
20 detectamos uma dissolução das fronteiras entre as disciplinas Estética e teoria lite‐
rária, que ocorre tanto em função de uma crise das disciplinas das humanidades, de
um modo geral, como devido ao surgimento de novas abordagens e de novos temas. A
midialogia, por exemplo, incorpora elementos dessas duas tradições. Com a web, a
distinção entre literatura e artes visuais entra em crise também. Mas a Estética, onde
quer que ela seja pensada, ainda tem uma grande dependência em relação à lite‐
ratura, mesmo que esta agora seja concebida cada vez mais como imagem.
Márcio Seligmann‐Silva é professor livre‐docente de Teoria Literária na UNICAMP
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