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AVISO SOBRE DIREITOS AUTORAIS

O material a seguir foi selecionado e resumido


com o intuito de servir apenas como
referência de estudo, respeitando assim os
direitos autorais de seus criadores, com os
devidos créditos destacados na manutenção da
capa da obra.
Desde sempre, a vida em sociedade, mesmo nas mais primitivas, exige
para sua existência o respeito a determinadas regras de convivência, pois os
seres humanos, por serem diferentes e imperfeitos, têm ambições, desejos,
frustrações que naturalmente conflitam com os mesmos sentimentos de outro
integrante do mesmo grupo, gerando lesões ao “direito” do outro.
Assim, quanto mais plural uma sociedade, maior a possibilidade de
conflitos entre seus membros, demandando assim, para a convivência
pacífica, um maior número de regras a serem obedecidas. Dessa forma, o
aumento dos grupos sociais, a perda da importância do parentesco na
organização social e as desigualdades no acesso aos bens e recursos
originaram o surgimento dos Estados e, consequentemente, sistemas
avançados de controle social.1
Por meio dos sistemas de controle social é que se impõem os limites ao
comportamento dos integrantes do grupo social, de forma a permitir o bom
funcionamento das relações sociais e manter suas formas de vida e cultura.
Os limites são impostos aos indivíduos mediante normas (que fixam
modelos de comportamento) que, sendo violadas, geram para o violador uma
sanção. Essas sanções, por sua vez, podem ser sociais ou jurídicas.
As sanções sociais terão lugar quando houver violação de uma norma
social, que não tem um conteúdo jurídico, como, por exemplo, em não mais
se convidar para frequentar sua residência (sanção) determinada pessoa que
sempre que comparece se embriaga e é grosseira com os demais convidados
(aqui a boa educação seria a norma social a ser observada). Já as sanções
jurídicas terão lugar quando houver o desrespeito a uma norma fixada pela
lei, com uma sanção também determinada pela lei, como, por exemplo, a
pena de reclusão de 6 a 20 anos para aquele que matar alguém – art. 121,
caput, do CP.
Podemos, portanto, afirmar que as organizações sociais se utilizam de
dois sistemas articulados entre si para submeter o indivíduo aos modelos e
normas comunitários. Tem-se o sistema de controle social informal, que
passa pela instância da sociedade civil: família, vizinhos, escola, profissão,
opinião pública, grupos de pressão, igrejas etc., e o sistema de controle social
formal, identificado com a atuação do aparelho político do Estado, como, por
exemplo, as Polícias, a Justiça, o Exército, o Ministério Público, a
Administração Penitenciária etc.
Diz-se que os sistemas são articulados entre si, pois somente terão
aplicação as instâncias formais de controle quando as instâncias informais
falharem, ou seja, quando o indivíduo não absorver e reproduzir os
comportamentos transmitidos e exigidos pela sociedade.2
Ainda, segundo Sérgio S. Shecaira, a efetividade do controle social
formal é muito menor do que aquela exercida pelas instâncias informais,
sendo esse o motivo, na opinião do referido autor, de uma criminalidade
muito maior nos grandes centros urbanos do que nas pequenas comunidades,
onde o controle social informal é mais efetivo e presente.3
O Direito Penal está inserido no chamado sistema de controle social e é
uma de suas instituições. O que o diferencia das demais instituições é a
formalização do controle que realiza, o que o libera das surpresas, do
conjunturalismo e da subjetividade das demais formas de controle. O controle
social jurídico-penal é normativo, ou seja, exercido por meio de um conjunto
de normas criadas previamente.4
A partir do Estado moderno, a pena passa a ser considerada monopólio
estatal. No Estado liberal clássico, formou-se a expressão Estado de Direito,
posto que se buscava a limitação jurídica do poder punitivo. A pena era uma
exigência de justiça, base da retribuição penal, fixada no ordenamento
jurídico, sendo, então, um limite para o poder punitivo do Estado.
Com a aparição do Estado social, intervencionista, com a finalidade de
influir e modificar a realidade da sociedade, foi acentuada a luta contra a
delinquência, com atenção para a prevenção especial realizada sobre a pessoa
do delinquente. Entretanto, o Estado social trouxe consigo o risco dos
sistemas políticos totalitários, que existiram historicamente no período entre
as guerras mundiais, embora, ainda hoje, no mundo, sejam sentidos seus
efeitos.
Surge, dessa forma, a necessidade de um Estado que, sem abandonar a
intervenção na realidade social, tenha reforçado seus limites jurídicos em um
sentido democrático. O Estado passa a ser visto como um Estado Social e
Democrático de Direito.
Dentro dessa perspectiva, o Direito Penal passa a assumir as funções de
proteção efetiva dos cidadãos, e sua missão de prevenção ocorrerá na medida
do necessário para aquela proteção, mas sempre dentro dos limites fixados
pelos princípios democráticos.
A relação entre Estado e Direito Penal é, portanto, visceral, pois é do
Estado que emanam as normas jurídico-penais e é o Estado o único detentor
legítimo do jus puniendi, ou seja, o mesmo ente que cria o Direito Penal – por
intermédio de normas jurídico-penais – é quem irá aplicá-las, fazendo-o,
entretanto, por órgãos diversos – Legislativo e Judiciário – numa relação de
interdependência.
O Estado, por sua vez, não pode criar normas de forma indiscriminada e
ilimitada, pois, por ser Democrático de Direito, deve respeitar a lei máxima
que o fundamenta e fixa seus objetivos, qual seja, a Constituição Federal.
Nesse contexto, o Direito Penal não pode ser outra coisa senão um
instrumento à disposição do Estado para realização de suas funções
constitucionais, como, por exemplo: assegurar o direito à vida, à liberdade, à
igualdade, à segurança, à dignidade etc., como faz quando criminaliza o
homicídio, o sequestro, o racismo e outras condutas prejudiciais à sociedade.
Há de ser o Direito Penal,5 portanto, um meio eficaz e necessário para
proteção dos cidadãos, porque Estado e Direito devem servir ao homem, e
não o contrário, pois como afirma Franz von Lizst, “todo direito existe para o
homem e tem por objeto a defesa dos interesses da vida humana”.6
Já Muñoz Conde e García Arán sustentam que a norma penal tem dupla
função: protetora e motivadora. São funções interdependentes, pois a
proteção pressupõe a motivação e somente dentro dos limites em que esta
pode evitar determinados resultados pode-se alcançar a proteção das
condições elementares de convivência social.7
No mesmo sentido, Mir Puig, ao anotar que a função do Direito Penal
não se esgota na fixação da pena e da medida de segurança. O Direito Penal
não é integrado apenas por normas que preveem penas ou medidas de
segurança (normas secundárias), mas também pelas regras que proíbem o
crime aos cidadãos (normas primárias). Ao proibir os delitos, as normas
primárias visam a motivar o cidadão para que não os pratique. Assim, a
função de prevenção geral do Direito Penal não tem concepção meramente
intimidatória, mas tem o aspecto da prevenção geral positiva, que concilia a
prevenção geral com a prevenção especial.8 É nesse sentido, portanto, que
afirma que a prevenção realizada pelo Direito Penal é uma prevenção
limitada, que permite combinar a necessidade de proteger a sociedade com as
garantias oferecidas pelos princípios limitadores.9

4.1 BEM JURÍDICO


A norma penal justifica-se como parte de um sistema de proteção da
sociedade.
Os interesses sociais que, por serem caros à sociedade, merecem a
proteção da ordem jurídica são chamados de bens jurídicos.
Assim, todos os bens jurídicos são interesses vitais dos indivíduos ou da
comunidade que, em determinado momento, passaram a necessitar da tutela
do sistema jurídico.
Entretanto, conforme nos ensina Lizst, importante perceber que os
“interesses” não são criados pela ordem jurídica, mas surgem do próprio
desenvolvimento natural da vida, de forma que somente quando recebem a
proteção do Direito é que os interesses são elevados ao status de bem
jurídico.10
Portanto, a liberdade pessoal, a inviolabilidade do domicílio, a
incolumidade pessoal, o patrimônio etc. eram interesses vitais muito antes de
serem salvaguardados pela Constituição ou pelas leis penais. Assim, é correto
afirmar que a “necessidade cria a defesa e com a alteração dos interesses,
varia o número e a espécie de bens jurídicos”.11
Nos termos colocados por Jescheck, o bem jurídico é o ponto de partida
e o pensamento vetor da formação do tipo penal, consistindo nos interesses
vitais da comunidade a que o Direito Penal outorga sua proteção. Significa
que mediante normas jurídicas se proíbem com ameaça de pena as ações
idôneas a menoscabar de modo particularmente perigoso os interesses vitais
da comunidade. “O tipo retira-se da norma, e a norma, do bem jurídico.”12
O Direito Penal, portanto, deve proteger bens jurídicos, o que não
significa que todo bem jurídico deva ser protegido pelo Direito Penal, mas
somente aqueles que a própria sociedade reputa como mais importantes,
merecedores da tutela penal. Daí o conceito de bem jurídico ser mais amplo
do que o conceito de bem jurídico penal.
No entanto, a tutela penal tem uma medida, um limite, ou seja, um bem
jurídico só é penalmente tutelado quando sofre determinadas formas de
afetação. Por exemplo, o meio ambiente é um bem jurídico, mas somente é
penalmente tutelado quando ocorrem determinados ataques, como a caça
predatória. Essa função limitadora é realizada pelo tipo penal, ao fixar as
condutas consideradas penalmente relevantes.
Apontamos, assim, que a proteção do Direito Penal ocorrerá apenas para
os bens jurídico-penais, verificados em sentido político-criminal, ou seja,
bens que podem reclamar a proteção jurídico-penal, em virtude da escolha
feita pela própria sociedade.
Os bens jurídicos devem ser condições da vida social, à medida que
afetem as possibilidades de participação dos indivíduos no sistema social,
bem como a possibilidade de viver em sociedade. Para que os bens jurídicos
mereçam a proteção jurídico-penal e passem a ser bens jurídico-penais,
devem ter uma importância fundamental para a convivência pacífica na
comunidade.
Claus Roxin, no entanto, alerta que, embora a missão do Direito Penal
como proteção de bens jurídicos seja amplamente reconhecida pela doutrina
moderna, não se tem ganhado muito com esse reconhecimento, em virtude
dos diversos conceitos apontados para os mesmos, o que resulta bastante
vaga sua operatividade para a elaboração de um conceito material de delito.
Assim, o consenso sobre a proteção jurídico-penal dos bens jurídicos repousa
em fundamentos inseguros, o que faz com que o conceito material de delito e
a teoria dos bens jurídicos sejam, entre os problemas básicos do Direito
Penal, os menos clarificados com exatidão.13
Ainda sobre o mesmo assunto, completa Bernard Schunemann:

(...) não poderão fundamentar o uso do Direito Penal meras contrariedades


que ameaçam o indivíduo, ou meras imperfeições da organização social. É
certo que fica pouco clara a delimitação entre a mera lesão de exigências
especiais da religião ou dos bons costumes (que não é objeto admissível do
Direito Penal) e um ataque a seus pressupostos sociais básicos e gerais. Mas
só um ignorante poderia negar que tais faltas de claridade afetam
continuamente as garantias não da Lei Fundamental, mas de toda
Constituição concebível. Por isso, de um ponto de vista da semântica do
princípio de proteção do bem jurídico, não existe fundamento para ver nele
um instrumento inidôneo para limitar a discricionariedade legislativa.14

Dessa forma, precisaremos enfrentar a tormentosa questão da


conceituação do bem jurídico-penal, para podermos reafirmar a sua validade
como vetor de um direito penal que garanta a proteção social ao mesmo
tempo em que garante o pleno exercício da cidadania.

4.1.1 Evolução histórica do conceito de bem jurídico


Zaffaroni anota que desde que se cominou a um ato uma pena foi para
tutelar um bem que se afetava com a conduta lesiva; portanto, a existência de
um bem tutelado é uma inquestionável necessidade lógica, ainda que se
batizem as coisas com o nome que se queira. Exemplifica com o Estado
teocrático, em que a blasfêmia era um delito gravíssimo, porque afetava a um
bem que era devido a Deus. Daí não podermos apontar um momento exato de
criação do conceito de bem jurídico.15
No entanto, afirma Cerezo Mir que “a ideia de objeto jurídico do delito
nasce com o movimento da ilustração e com o surgimento do Direito Penal
moderno”.16
De fato, foi com o Iluminismo que se consolidou a separação entre
crime e pecado, com o prevalecimento do objetivo, da conduta praticada,
sobre o subjetivo, o pensamento interno da pessoa.
Cesare Beccaria, o grande formulador da questão jurídica no
Iluminismo, afirma a distinção entre crime e culpa, entre dolo e culpa, entre
Estado e Igreja. A Igreja cuidaria dos pecados, enquanto o Estado cuidaria
dos danos que as infrações da lei acarretassem aos indivíduos e à sociedade.
Distingue a justiça divina, a justiça natural e a justiça dos homens ou justiça
política, que decorre da relação entre uma ação e a sociedade.
Fundamenta-se o direito e, mais especificamente, o direito de punir na
necessidade dos homens de ceder uma parcela de sua liberdade, para manter a
posse do restante.

A reunião de todas essas pequenas parcelas de liberdade constitui o


fundamento do direito de punir. Todo exercício do poder que desse
fundamento se afaste constitui abuso e não justiça; é um poder de fato e não
de direito; constitui usurpação e jamais um poder legítimo.17

No início do século XIX, com o jusnaturalismo penal surgiu a ideia de


crime como uma lesão de um direito, portanto, como uma lesão jurídica. Era
a transposição para o Direito Penal da visão privatista de Feuerbach, que
entendia que o crime consistia na lesão de um direito subjetivo do particular
ou do Estado.
Na Itália, Carrara formula a ideia de que

o direito penal não tendo outra base de legitimidade que a tutela jurídica, não
pode converter-se em um instrumento de santificação da alma. Não se pune a
violação do dever moral, mas a violação do dever jurídico, que é a ofensa ao
direito.18

Assim, o bem jurídico passa a ser visto como um direito, que é lesionado
quando da ocorrência de um crime, fazendo com que atue a lei penal para a
defesa da ordem externa e não para o aperfeiçoamento interno do indivíduo.
Foi, porém, com Birnbaum, em 1834, que o conceito de bem jurídico
começou a ser formado, ainda que essa expressão não tenha sido por ele
utilizada. O referido autor tinha uma visão jusnaturalista e racionalista,
afirmando que

crime, punível pelo Estado, de acordo com a natureza ou a coisa ou conforme


a razão, deve entender-se toda a lesão ou perigo de lesão, imputável à
vontade humana, de um bem que o poder do Estado tenha garantido a todos
de forma igual.19

Portanto, Birnbaum não via o bem jurídico como um direito, mas como
um bem natural garantido pelo poder do Estado, que podia corresponder tanto
ao indivíduo como à comunidade e que foi concebido como vulnerável em
sentido naturalístico. Era com base na lei que se definia o bem jurídico, o
objeto de proteção era escolhido pela lei. O conceito de bem jurídico era,
então, meramente dogmático.
Nessa mesma época, Hegel não reconhecia no bem jurídico o objeto do
crime, mas a “vontade geral” era vista como único objeto do delito.
Zaffaroni, analisando o pensamento de Hegel, vê como natural essa
conclusão, uma vez que para o referido filósofo não havia distinção entre o
ser e o dever ser, ou seja, o que não devia ser não era. Dentro dessa
concepção hegeliana, o critério para o julgamento jurídico-penal não era o
interesse individual, mas um bem de valor coletivo, e, portanto, o sujeito
passivo do delito era o Estado, enquanto o sujeito passivo do fato era o
indivíduo.20
Posteriormente, com a doutrina do positivismo jurídico, Binding diz que
o bem jurídico não é reconhecido pela norma jurídica, mas se encontra
estabelecido nela fazendo parte da mesma. Inexistiria, assim, separação entre
norma jurídica e bens jurídicos, posto que a norma levaria em si seu próprio
bem jurídico. Trata-se de uma visão formal, assentada no conteúdo da norma
e compreendendo-a como uma regra de obediência, constituindo sua
desobediência na lesão ao bem jurídico.21
Para Binding, o crime consiste na lesão de um direito subjetivo do
Estado, mas toda agressão aos direitos subjetivos produz-se mediante uma
agressão aos bens jurídicos. Nos termos dessa posição, o bem jurídico
identifica-se com o sentido e o fim das normas penais, sendo “todo lo que a
los ojos de la ley, en tanto que condición de la vida sana de la comunidad
jurídica, es valioso para ésta”.22
Ainda dentro da visão positivista, Rocco elaborou a teoria do objeto do
crime em obra que influenciou toda a doutrina penal italiana posterior. Para o
citado autor, no crime, deve-se distinguir um objeto formal e um objeto
substancial. O objeto formal é dado pelo direito do Estado de observância dos
preceitos penais. O objeto substancial, por sua vez, distingue-se em genérico
e específico. O objeto substancial genérico é o interesse do Estado de
assegurar as condições da existência da vida em comunidade, isto é, sua
própria conservação. O objeto substancial específico, ao contrário, consiste
no bem (ou interesse) próprio do sujeito passivo do crime, vale dizer, da
pessoa ou ente diretamente ofendido pelo crime.23
Ainda dentro do positivismo, mas discutindo as conclusões de Rocco,
Carnelutti posicionou-se contra a repartição do objeto substancial em
genérico e específico, objetando que o primeiro, ou seja, o interesse do
Estado à própria conservação, não é um interesse protegido pela lei, mas a
razão pela qual são estabelecidos o preceito e a sanção. O Estado protege
determinados bens porque isso é necessário para assegurar as condições da
vida em sociedade e não protege o interesse à observância dos comandos.
Esse interesse é o pressuposto de toda norma jurídica, mas exatamente por ser
pressuposto não pode ser considerado como objeto de tutela, uma vez que a
norma não pode tutelar interesse à tutela, ou seja, não pode tutelar a si
mesmo. Pelo exposto, o renomado autor conclui que o verdadeiro objeto da
tutela jurídico--penal é o bem que é em particular ofendido pelo crime, aquilo
que Rocco considera objeto substancial específico.24
Como reação aos conceitos da doutrina positivista-legalista, outra
concepção, de caráter positivista-naturalista, cujo maior expoente é Von
Liszt, traz um conceito material de bem jurídico, afirmando que este encontra
sua origem em um interesse da vida, existente anteriormente ao Direito, que
surge das relações sociais, ou seja, é uma realidade protegida pelo Direito. O
interesse, portanto, não é gerado pelo ordenamento jurídico, mas pela vida.
Para que o interesse passe a ser um bem jurídico, deverá ser reconhecido pelo
Direito. Então, todos os bens jurídicos são interesses vitais, do indivíduo ou
da comunidade. Ocorre que as decisões sobre quais dos bens existentes nas
relações sociais deverão ser bens jurídicos é tarefa da norma penal.25
Enrico Ferri, representante também da Escola Positivista, mas dentro de
uma perspectiva que podemos chamar de positivista-sociológica, entretanto,
já trouxe em sua obra o embrião da visão social do bem jurídico, nos
seguintes termos:

Afirmar que o crime seja apenas lesão “de um bem-interesse público” e que
os bens jurídicos individuais sejam tutelados pela norma penal “enquanto são
interesses de todos” é atender somente à razão abstrata, em virtude da qual a
norma foi imposta; mas é esquecer que esta protege – e não só “por via
reflexa, mediata” mas por modo concreto e direto – os direitos e bens
pessoais, enquanto são atributos e condições necessárias à vida social de cada
indivíduo.26

O que se buscava dentro dessa perspectiva positivista-sociológica era


ultrapassar as deficiências do positivismo como visão criminológica, tentando
encontrar um conteúdo para a noção de bem jurídico, algo que pudesse existir
na sociedade humana e ser reconhecido como tal à luz da realidade social.
No começo do século, sob influência da filosofia neokantiana, surgem
concepções que também buscam o conceito material de bem jurídico, numa
realidade prévia ao Direito. Ao contrário, porém, de Von Liszt, a
fundamentação dos bens jurídicos não se encontraria nos interesses sociais,
mas no mundo espiritual subjetivo dos valores culturais. O bem jurídico
passa a ser um valor abstrato, de cunho ético, juridicamente protegido.27
O bem jurídico deixou, então, de ser entendido como um interesse
concreto prévio à norma e converteu-se em meio auxiliar de interpretação,
vinculado ao sentido teleológico, ou seja, aos fins da norma jurídica.28
Defensor desse posicionamento teleológico-sistemático, Honig anota a
inexistência dos bens jurídicos na realidade, tratando-se apenas de uma
função de interpretação, uma “síntese categorial”, uma finalidade reconhecida
pelo legislador em um preceito jurídico penal.29
Ao equacionar o bem jurídico como o escopo da norma incriminadora,
os partidários dessa concepção retiram a capacidade do bem jurídico de
impor limites ao legislador, uma vez que qualquer norma incriminadora
persegue um fim e, portanto, o legislador estará livre para configurar a seu
critério a estrutura do crime.
Nessa mesma época, surge, por meio da Escola de Kiel, o Direito Penal
do na-cional-socialismo, que refutava inicialmente o bem jurídico, por ser de
cunho liberal e individualista e, assim, incompatível com o Estado totalitário.
Posteriormente, passou a admiti-lo, quando já inócuo.30
Welzel, no fim da primeira metade e início da segunda metade do
século, retoma o conceito de bem jurídico como bem vital da comunidade ou
do indivíduo protegido penalmente. Ao formular as bases da doutrina
finalista, acrescenta que é o significado social do bem que o leva à proteção
penal. O referido autor define bem jurídico como “todo o estado social
desejável que o direito penal quer proteger de lesões”.31
A perspectiva trazida e analisada por Welzel acaba por revigorar a noção
de bem jurídico e, encontrando seu ponto de apoio nas relações sociais,
influencia toda a análise posterior sobre a conceituação de bem jurídico,
dando origem a diversas correntes de opinião, mas todas mencionando a
importância do sistema social na conceituação e consequente proteção penal
aos bens jurídicos.
Passaremos então à análise das posições doutrinárias existentes na
atualidade sobre o bem jurídico-penal.

4.1.2 Teoria ético-social dentro da perspectiva social


Welzel desenvolve a teoria ético-social do Direito e com ela a visão
ético-social do bem jurídico, ao afirmar que a soma dos bens jurídicos
traduziria a própria ordem social e a missão do Direito Penal consistiria na
proteção dos valores elementares da consciência e de caráter ético da
sociedade.
A “função ético-social do Direito Penal é a de proteger os valores
elementares da vida em comunidade e fá-lo pela proteção de bens jurídicos”.
Somente a norma e com ela os deveres éticos-sociais têm importância.32
Essa perspectiva ético-social do bem jurídico corresponde a um ponto de
vista moral, em que o direito penal traduziria a ordem moral vigente, posto
que as normas incriminadoras vetam comportamentos imorais ou socialmente
contrários à ética. Em outras palavras, o comportamento é proibido enquanto
socialmente imoral.
Dentro dessa mesma visão “ético-social” do Direito Penal, outro autor
de fundamental importância que desenvolveu essa perspectiva, trazendo
novas abordagens, é Jescheck. Aponta que em todas as normas jurídico-
penais estão contidos juízos de valor positivos sobre bens vitais que são
indispensáveis para a convivência humana em sociedade e que devem ser
protegidos pelo poder coativo do Estado, pela sanção penal.
Entretanto, o desvalor do resultado do delito está colocado na lesão ou
no perigo de lesão de um objeto da ação ou do ataque que a norma penal
deseja assegurar ao portador do bem jurídico protegido como manifestação
externa.
Continua o renomado autor dizendo que, então, os juízos de valor
contidos nas normas jurídico-penais não se referem somente aos bens
jurídicos que se deseja proteger, mas também à qualidade das ações humanas
que atingem a pretensão de respeito que se deduz do bem jurídico. Ou seja, a
conduta humana que deprecia a pretensão de validade do bem jurídico atinge
com isso a base da convivência humana e passa a consistir no desvalor da
ação do delito.
O Direito Penal realiza a proteção dos bens jurídicos e procura que a
vontade dos cidadãos se acomode às exigências do ordenamento jurídico,
atuando sobre a vontade de ação. O delito aparece assim como a lesão
simultânea ao bem jurídico e ao dever.33
Portanto, conceitua bem jurídico como um valor abstrato e juridicamente
protegido da ordem social, em cuja manutenção a comunidade tem interesse e
que pode atribuir-se, como titular, à pessoa individual ou à coletividade.
Entende ser o bem jurídico a base da estrutura e da interpretação dos
tipos penais, mas seu conceito não deve ser equiparado à ratio legis, posto ter
um sentido material próprio, anterior à norma penal e concludente em si
mesmo, o que torna possível sua função sistemática de parâmetro para o
conteúdo e a delimitação do preceito penal.34
Na Itália, Manzini, adotando a posição em destaque, vê o Direito Penal
como o mínimo ético da sociedade, nos seguintes termos:

O direito penal se apresenta como o mínimo da quantidade ética considerada


indispensável e suficiente para manter as condições necessárias para uma
determinada organização político-social.35

Entretanto, Manzini reconhece a existência de comportamentos


penalmente irrelevantes que são considerados pela sociedade como
gravemente imorais e, ao inverso, comportamentos penalmente relevantes
que não possuem ressonância ético-social. Ressalta, como exemplos, as
normas penais decorrentes de regimes absolutistas e tirânicos, principalmente
aquelas antissemitas do período nazifascista.36
Essa mesma visão sobre o Direito e o bem jurídico teve ressonância na
América do Sul, cujo principal expoente é Zaffaroni, que desenvolve o tema,
apontando como consequência do interesse jurídico com sinal positivo (valor)
gerador de bens jurídicos o surgimento de um interesse jurídico com um sinal
negativo (desvalor) sobre determinadas condutas.
E conclui:

Deste modo, o interesse jurídico tem um significado positivo quando faz de


um ente um objeto de valor jurídico (bem jurídico), manifestando-se esta
valoração em normas que proíbem condutas que o afetem, de forma que estas
condutas tornam-se objetos de interesses jurídicos com significado negativo,
ou seja, objetos de desvalor jurídicos (condutas proibidas).
Consequentemente, há uma prelação lógica: valoração jurídica (bem jurídico)
– norma proibitiva (conduta proibida, desvaloração jurídica).37

Entretanto, Zaffaroni, ao conceituar bem jurídico, realiza uma definição


diferenciada:

Bem jurídico penalmente tutelado é a relação de disponibilidade de uma


pessoa com um objeto, protegida pelo Estado, que revela seu interesse
mediante normas que proíbem determinadas condutas que as afetam, que se
expressam com a tipificação dessas condutas.38

Explica o referido autor que disponibilidade não significa a


possibilidade de destruir o bem, significado errôneo porque derivado da
noção de propriedade dos bens jurídicos. Disponibilidade configura a
possibilidade de dispor, que deve ser entendida como o uso que os cidadãos
fazem de certos bens para sua realização, ou seja, disponibilidade em seu
entendimento é a possibilidade de uso.39

4.1.3 Teoria funcional dentro da perspectiva social


Amelung, por sua vez, ainda dentro da mesma perspectiva social do bem
jurídico, recorre à teoria sociológica dos sistemas sociais de Parsons, para
criar a teoria do dano social, como fundamento para o conceito material de
delito e assim para a atuação do Direito Penal. Para essa teoria, os processos
de motivação são aqueles que se produzem na personalidade dos indivíduos e
são processos sociais, resultantes da interação do indivíduo com a sociedade.
Define o crime como um fenômeno disfuncional, que impede ou coloca
obstáculos a que o sistema social resolva os problemas para sua conservação.
Conforme expõe o autor, a lesão ao bem jurídico somente é relevante
para o Direito Penal se houver dano social na conduta, ou seja, apenas o
interesse da sociedade para a manutenção de seu sistema social é que
legitimaria a aplicação das sanções penais, que serviriam assim para obstar a
disfuncionalidade sistêmica dos comportamentos.40
Hassemer vê uma ampla dependência do Direito Penal dos outros
processos e setores do controle social, assinalando ao Direito Penal a função
de sustentação e consolidação das normas sociais que a própria sociedade
considera irrenunciáveis. Essas normas são o domínio exclusivo do Direito
Penal, que pode sustentá-las e consolidá-las de modo enérgico.41
Essa visão espelha a teoria funcional do Direito elaborada por Luhmann,
em que as normas jurídicas têm a função de integração social e de modelo de
orientação nas relações sociais e são mesmo um reflexo das normas sociais e
um instrumento de estabilização da sociedade.42
Podemos afirmar que o desenvolvimento dessa teoria funcional do bem
jurídico é adotada na Espanha por Mir Puig, que encontra, na dimensão social
do bem jurídico, aquela que interessa ao Direito Penal, à medida que aqueles
objetos da realidade constituem uma necessidade social e condicionam as
possibilidades de participação do indivíduo nos sistemas sociais. Explica que
o aspecto funcional aludido não tem o sentido de excluir objetos existenciais
concretos do conceito de bem jurídico, mas da análise do sentido funcional
em que tais objetos merecem proteção como bens jurídicos. Somente assim o
conceito de bem jurídico poderá cumprir sua essencial função política liberal
de oferecer uma concretização material e não apenas formal dos diferentes
estados valiosos que por sua importância reclamem a tutela penal.43
Conceitua o autor, então, bem jurídico, em dupla perspectiva, a político-
criminal e a dogmática. Bem jurídico-penal em sentido político-criminal (de
lege ferenda) significa o único que merece ser protegido pelo Direito Penal,
excluindo, sobretudo, os valores somente morais. Enquanto, no sentido
dogmático (de lege data), significa o objeto efetivamente protegido pela
norma penal vulnerada, ou seja, o objeto da tutela jurídica, como, por
exemplo, a vida, a propriedade, a liberdade etc.44
Na mesma linha funcional, Muñoz Conde e García Arán, que, com base
na ideia de que a autorrealização humana pressupõe a necessidade da
convivência e o Direito Penal somente deve intervir diante de ataques graves
à convivência social pacífica, assim conceituam bem jurídico: “São aqueles
pressupostos que a pessoa necessita para sua autorrealização e
desenvolvimento de sua personalidade na vida social”.45

4.1.4 Teoria da imputação objetiva dentro da


perspectiva social
A visão social do Direito Penal, e assim, do conceito de bem jurídico-
penal, traz como uma de suas ramificações e de seu desenvolvimento, na
atualidade, a chamada teoria da imputação objetiva, cujos reflexos são
percebidos na conceituação de bem jurídico.
Antolisei menciona até mesmo uma crise na conceituação de bem
jurídico, com base em alguns reflexos da teoria referida. Reputa que,
conforme entendimento de a imputação do fato somente ocorrer quando o
comportamento do agente tiver criado um perigo para o objeto da ação, ou
esse perigo houver sido realizado no caso concreto, perigo esse não
justificado pelo risco consentido, a tendência é a desvalorização das condutas
em todos os casos de justificação do risco, retirando a clareza da visão dos
bens jurídicos a tutelar, deslocando o fulcro da atenção da tutela dos bens-
interesses para a tutela das funções, dos fins da norma penal.46
Jakobs igualmente critica a teoria da proteção de bens jurídicos,
indicando que o rendimento positivo dos esforços para conceituá-lo é
escasso, não existindo clareza em sua conceituação. Adota o conceito de bem
jurídico como unidade funcional, afirmando que nem todo objeto de
regulação de uma norma consiste em bem jurídico, mas somente aquele que
desempenha uma função para a sociedade, ou para um de seus subsistemas,
incluído o cidadão. Apenas ressalva que o conceito que adota não resolve o
problema fundamental da conceituação do bem jurídico, qual seja, o da
determinação de quais funções devam ser reconhecidas como juridicamente
legítimas. Essa determinação, em sua óptica, é o ponto fraco inerente a todo
conceito de bem jurídico.47
De todo modo, entende que o comportamento jurídico-penalmente
relevante não é caracterizado pela lesão ou colocação em perigo de bens
jurídicos, uma vez que isso também se produz por catástrofes naturais,
animais etc., mas por seu significado. Esse significado há de averiguar-se
mediante uma interpretação que parta da compreensão geral e proceda, nesse
sentido, de modo objetivo. Somente então as conclusões alcançadas
resultarão compreensíveis na vida social. A averiguação e a fixação da
significação social de determinado comportamento são os objetos da teoria da
imputação objetiva.48
Faz duas objeções básicas à teoria do bem jurídico:
1. entende que a teoria do bem jurídico concebe o bem em relação a seu
titular, mas não demonstra a necessidade de assegurar o bem jurídico-
penalmente; somente com o conceito de danosidade social da lesão do bem,
que é um conceito externo ao de bem jurídico, é que fica demonstrada a
necessidade da proteção penal; quais são as unidades de funcionamento que
devem ser elevadas a bens jurídicos por sua significação social não pode ser
determinado pela doutrina do bem jurídico, assim como não pode
fundamentar que a proteção das normas somente deve ser aplicada a bens;
2. a sociedade não é uma instituição para a conservação de bens ou para
otimizá--los; na realidade, às vezes se sacrificam bens para possibilitar as
relações sociais, que também podem ser consideradas um bem; quais riscos
pode suportar um bem para o contato social sem proteção jurídico-penal não
podem ser deduzidos dos bens que estão inseridos no contato social, pois em
realidade só existem bens jurídicos se (e à medida que) estão
desempenhando uma função, ou seja, à medida que estão na vida social
surtindo efeitos e recebendo-os; a vida, a saúde, a liberdade etc. não estão
simplesmente “aí”, e sua essência reside em desempenhar uma função, em
conexão social; por isso, a norma não pode proteger a um bem contra todos
os riscos, mas somente contra aqueles que não sejam consequência necessária
do contato social permitido; todavia, o que seja um contato social permitido
não pode ser resolvido pela doutrina do bem jurídico; toda a teoria da
imputação (com exceção da causalidade entre ação e resultado), bem como
todo caso de estado de necessidade agressivo, em que há ponderação de bens,
está fora da perspectiva da doutrina da proteção dos bens jurídicos.
No que se refere à proteção penal dos interesses difusos, salienta o autor
que os novos bens jurídicos de amplo espectro, como o meio ambiente, estão
fora da perspectiva da doutrina da proteção dos bens jurídicos, tendo em vista
os ataques realizados por fatos permitidos pelo Direito, devendo ser
analisados sob o aspecto do risco social.
Conclui o referido doutrinador que, apesar dos defeitos apontados na
doutrina da proteção dos bens jurídicos, não deve ser afastada
completamente, pelo critério da danosidade social do comportamento. A
configuração social concretiza-se no âmbito dos bens e, ao menos, relativiza
o peso da concreta danosidade social, tendo em vista a importância geral do
bem. A proteção dos bens jurídicos serve de filtro para a danosidade social.49
Cláudia Díaz, analisando a teoria da imputação objetiva na obra de
Jakobs, aponta que a sociedade não pode ser entendida como um sistema que
tende basicamente à proteção de bens jurídicos, porque a realidade demonstra
que eles estão expostos constantemente ao perigo, por exemplo, no
desenvolvimento do transporte aéreo e marítimo, na industrialização e nos
avanços da tecnologia moderna. Como se trata de conglomerados com várias
relações, a complexidade destas somente se resolve mediante a criação de
regras, assinalando a cada pessoa determinado status na vida de relação, que
gera um conjunto de deveres e obrigações. As regras fixadas estabelecem
parâmetros de comportamento para a administração dos riscos.50
Sancinetti, desenvolvendo as ideias da imputação objetiva, também
critica a doutrina do bem jurídico, no que se refere ao entendimento de que a
norma penal está legitimada apenas por sua capacidade de proteger o bem
jurídico tutelado, com a sanção justificada, somente quando o fato afeta esse
bem.
Pergunta o referido autor:

Exige-se que um objeto real de bem jurídico esteja afetado para legitimar a
reação penal, porque esta existe para proteger o bem jurídico; agora: se o bem
jurídico já está afetado, que proteção poderia cumprir realmente a sanção?51

Continua afirmando que não há nenhum sentido em aplicar a sanção


somente quando já não existe o bem jurídico atacado pela conduta, ou seja, a
ordem jurídica chega sempre demasiado tarde para proteger o bem jurídico,
na doutrina tradicional da proteção dos bens jurídicos.
O que importa, então, em sua óptica, é o valor da norma que proíbe a
conduta desviada e não proteger um objeto, que no mais das vezes haverá
deixado de existir depois do fato. Isso não significa que o valor a tutelar seja
o cumprimento do dever pelo dever. É verdade que a legitimidade da norma
e, portanto, do dever tem por fundamento proteger interesses socialmente
valiosos, porém, não proteger um objeto concretamente agredido, mas a
confiança geral de que objetos dessa classe devem ser respeitados. A conduta
do autor questiona essa expectativa. A imposição da pena reafirma que essa
norma tem vigência e deve ser respeitada.52
Claus Roxin, um dos formuladores da imputação ao tipo objetivo, que
hoje está desenvolvida como teoria da imputação objetiva, tem, entretanto,
posição diversa sobre as consequências da teoria à conceituação de bem
jurídico.
Afirma o referido autor que a vinculação do Direito Penal à proteção dos
bens jurídicos não exige que somente haja punibilidade em caso de lesão de
bens jurídicos, sendo suficiente a colocação de bens jurídicos em perigo.
Igualmente, o fato de o Direito Penal, por meio de suas proibições, pretender
assegurar valores da ação (como o respeito à vida, à propriedade alheia etc.)
não afasta a exigência de proteção de bens jurídicos, uma vez que a
manutenção dos valores da ação serve para a proteção de bens jurídicos a que
os mesmos se referem.
Ao analisar a teoria sociológica de Beck sobre a “sociedade de risco”,
Roxin reputa que o Direito Penal deverá ser chamado a intervir nesse campo
das relações sociais, não sendo possível o abandono da referência ao bem
jurídico e dos demais princípios do Estado de Direito, e quando isso não seja
possível, o Direito penal deve abster-se de intervir.
Conclui Roxin que a evolução social e o asseguramento do futuro em
face dos riscos que determinadas condutas trazem para a vida em sociedade
serão objeto de grande importância para o Direito Penal do século XXI, “pero
a lo sumo conducirán a una cierta relativización, y no a un abandono de la
idea de bien jurídico”.53

4.1.5 Posição constitucional dentro da perspectiva


social
Claus Roxin,54 ainda dentro da perspectiva social do bem jurídico,
formula uma visão do conceito material de delito, fundada na proteção
subsidiária de bens jurídicos. Estabelece como ponto de partida a restrição
prévia ao legislador estabelecida pelos princípios da Constituição. Somente
admite um conceito político-criminal de bem jurídico derivado da Lei
Fundamental do Estado de Direito, baseado na liberdade do indivíduo que
limita o poder punitivo do Estado.
Desse modo, conceitua bem jurídico:

circunstâncias dadas ou finalidades que são úteis para o indivíduo e seu livre
desenvolvimento no marco de um sistema global estruturado sobre a base
dessa concepção dos fins e para o funcionamento do próprio sistema.55
Explica o autor que, ao atender às circunstâncias e finalidades, em vez
de interesses de modo geral, quis expressar que o conceito abrange tanto os
estados previamente marcados pelo Direito quanto os deveres de
cumprimento das normas criados pelo mesmo Direito.
Derivam da posição assumida pelo autor as seguintes consequências por
ele mencionadas: 1. as cominações penais arbitrárias não protegem bens
jurídicos, pois não servem à liberdade do indivíduo no Estado Liberal, nem
para a capacidade funcional de um sistema social baseado em tais princípios;
2. as finalidades puramente ideológicas não protegem bens jurídicos, sendo
vedada a proteção de ideologias mediante normas jurídico-penais; 3. as meras
imoralidades não lesionam bens jurídicos e não devem receber qualquer
punição jurídico-penal.56
Prossegue Roxin, analisando se as leis penais que não protegem bens
jurídicos devem ser consideradas nulas. Em sua opinião, não está ainda
suficientemente aclarada a questão se a concretização de um conceito
material de delito calcada na limitação da proteção a bens jurídicos tem
somente efeitos político-criminais, ou também juridicamente vinculantes,
com a consequência de que seja inválida uma norma jurídico-penal que a
infrinja, mas entende que tal nulidade não encontrará nenhuma contradição.
Outra questão tormentosa que aborda é a possibilidade de o legislador
penal estar obrigado a penalizar lesões a bens jurídicos, encontrando apenas o
art. 26, inc. I, da Constituição alemã, que traz um mandato constitucional de
punição, nestes termos:

GG: Art. 26 (...) I – As ações que sejam idôneas para e executadas com a
intenção de perturbar a convivência pacífica dos povos, e especialmente de
preparar a execução de uma guerra de agressão, são inconstitucionais e
devem ser castigadas penalmente.

Refere, também, à seguinte decisão jurisprudencial na Alemanha:


O Tribunal Constitucional Alemão considerou inconstitucional a lei sobre o
aborto que adotava a “solução dos prazos”, ou seja, não incriminava o aborto
realizado até três meses após a gravidez, sob a fundamentação de que não se
pode obter de nenhum outro modo a proteção requerida pela Constituição, a
não ser a obrigação de impor por meio do Direito Penal a proteção da vida
que está se desenvolvendo (BVerfGE 39, 1, 45).

Reputa o autor mencionado que a posição de impor obrigações de


proteção de bens ao Direito Penal merece aprovação somente para o caso de
destruição de bens jurídicos fundamentais, como na hipótese de assegurar a
coexistência pacífica entre os cidadãos, sem a qual o Estado estaria
destruindo a si mesmo. Em relação ao aborto, ou seja, à proteção da vida em
formação, esta seria mais bem obtida por outros meios distintos do Direito
Penal, em sua opinião.
Defende, por fim, que a proteção de bens jurídicos não se realiza
somente por meio dos tipos penais, devendo haver a cooperação de todo o
instrumental do ordenamento jurídico. O Direito Penal é a última entre todas
as medidas protetoras que deve ser considerada, devendo intervir apenas
quando falhem outros meios de solução social do problema. Por isso se
denomina a pena como a ultima ratio da política social e a missão da lei
penal é a proteção subsidiária de bens jurídicos, à medida que somente
protege uma parte dos bens jurídicos, e não de modo geral, mas somente
diante de formas de ataque concretas, assinalando o caráter fragmentário do
Direito Penal.57
A posição constitucional encontrou ampla aceitação e desenvolvimento
no Direito Penal italiano.
Bettiol conceitua o bem jurídico, historicamente ligado aos princípios
liberais, como uma das pedras angulares da ciência criminalística, conforme
considerado pelos princípios constitucionais.58
Nesse sentido, Bricola afirma ser necessária uma limitação às funções
do Direito Penal, e essa limitação é a construção de um conceito de bem
jurídico como sinal de tal limite. E somente aqueles bens de relevo
constitucional devem ser protegidos de ofensa pelo Direito Penal.59
A doutrina penal italiana formula então, a partir da década de 1970, o
princípio da ofensividade, que tem exercido enorme influência no
pensamento penal contemporâneo e será analisado a seguir.

4.1.6 Conceito de bem jurídico na doutrina brasileira


A doutrina penal brasileira sofreu enorme influência do pensamento
doutrinário italiano a respeito do bem jurídico, principalmente de Rocco,
assumindo a visão positivista-legalista de bem jurídico, principalmente até a
década de 1960, embora tal influência faça-se presente até nossos dias.
Assim, Hungria:60

Bem é tudo aquilo que satisfaz a uma necessidade da existência humana


(existência do homem individualmente considerado e existência do homem
em estado de sociedade), e interesse é a avaliação ou representação subjetiva
do bem como tal (Rocco, L’oggetto del reato). Bem ou interesse jurídico é o
que incide sob a proteção do direito in genere. Bem ou interesse jurídico
penalmente protegido é o que dispõe da reforçada tutela penal (vida,
integridade corporal, patrimônio, honra, liberdade, moralidade pública, fé
pública, organização familiar, segurança do Estado, paz internacional etc.).61

Aníbal Bruno, no mesmo sentido:

O objeto jurídico do crime é o bem ou interesse jurídico por ele ameaçado ou


ofendido. Bem jurídico vem aí entendido como tudo que é capaz de satisfazer
uma necessidade humana, como a vida, a integridade corporal, a honra, o
patrimônio, e é tutelado pelo direito. Bem material ou bem imaterial.
Interesse entende-se como a importância que o homem atribui a um bem
capaz de satisfazer uma necessidade sua. Igualmente quanto a bens ou
interesses sociais, que correspondem diretamente a necessidades coletivas.62

Frederico Marques efetua a mesma distinção de Rocco entre objeto


jurídico formal e material do crime:

Se o crime é ofensa a um bem juridicamente tutelado está claro que seu


objeto é esse próprio bem. Todavia o Estado estende a tutela penal, a esse
bem ou valor, porque o exigem os imperativos do bem comum. Como o bem,
assim tutelado, está vinculado ao interesse estatal, e sua violação pode atingir
ou pôr em perigo a conservação ou desenvolvimento da comunhão social, o
crime é, antes de mais nada, uma ofensa ao direito que tem o Estado de que
todos se abstenham de condutas delituosas. Se os bens fundamentais da vida
individual e coletiva estão sob a tutela penal do Estado, o ataque a esses bens
é, primeiramente, uma ofensa ao direito de obediência, que a todos é imposto,
nos preceitos jurídico-penais. O crime atinge, antes de tudo, “o direito
subjetivo público estatal à obediência e observância dos preceitos penais” – o
que constitui o objeto formal do delito.63

Entretanto, na conceituação do objeto material do crime, adota a visão


de Von Liszt, abrindo nova tendência no direito brasileiro:

O crime é ação materialmente ilícita porque atinge interesses dos particulares


e da coletividade tutelados pelas normas jurídicas. Os bens jurídicos são,
portanto, os interesses que o Direito tutela. É natural, assim, que o crime se
apresente como ofensa de um bem protegido pelo Direito. Em todo crime,
portanto, existe um bem, que lhe constitui o objeto e que, necessariamente, é
também objeto da tutela penal.64

Magalhães Noronha assim conceituou:

Não obstante a variedade de opiniões e doutrinas que procuram conceituar o


bem jurídico de um crime, estamos que é ele o bem-interesse protegido pela
norma penal. Bem é o que satisfaz a uma necessidade do homem, seja de
natureza material ou imaterial: vida, honra etc. Interesse é a relação
psicológica em torno desse bem, é sua estimativa, sua valorização.65

Heleno Fragoso, igualmente, adota a visão material de Von Liszt. O


importante autor divide o objeto do crime em formal e substancial. Por objeto
formal entende a “ofensa sempre irrogada pela ação delituosa ao direito
público subjetivo do Estado à observância do preceito penal”. O objeto
substancial do crime

é a ofensa a um bem jurídico suposto pelo legislador. O bem jurídico não é


apenas um esquema conceitual, visando proporcionar uma solução técnica de
nossa questão: é o bem humano ou da vida social que se procura preservar,
cuja natureza e qualidade depende, sem dúvida, do sentido que a norma tem
ou a ela é atribuído, constituindo, em qualquer caso, uma realidade
contemplada pelo direito. Bem jurídico é um bem protegido pelo direito: é,
portanto, um valor da vida humana que o direito reconhece, e a cuja
preservação é disposta a norma jurídica.66

Damásio E. de Jesus, por sua vez, ensina que:

Objeto jurídico do crime é o bem ou interesse que a norma penal


tutela. É o bem jurídico, que se constitui em tudo que é capaz de
satisfazer as necessidades do homem, como a vida, a integridade
física, a honra, o patrimônio etc.67

Mirabete, no mesmo sentido:

Objeto jurídico do crime é o bem-interesse protegido pela lei penal, ou como


diz Nuvolone, “o bem ou interesse que o legislador tutela, em linha abstrata
de tipicidade (fato típico), mediante uma incriminação penal”.68
Francisco Assis Toledo, já a partir da década de 1980, sob influência de
Welzel, abriria nova corrente doutrinária, trazendo a ideia de situação social
valiosa, ou valores ético-sociais, para o reconhecimento do bem jurídico
penalmente protegido, definindo:

bens jurídicos são valores ético-sociais, que o direito seleciona, com o


objetivo de assegurar a paz social, e coloca sob sua proteção para que não
sejam expostos a perigo de ataque ou a lesões efetivas.69

Cezar Bitencourt avança na concepção social do bem jurídico, para


afirmar que:

Admite-se atualmente que o bem jurídico constitui a base da estrutura e


interpretação dos tipos penais. O bem jurídico, no entanto, não pode
identificar-se simplesmente com a ratio legis, mas deve possuir um sentido
social próprio, anterior à norma penal e em si mesmo decidido, caso
contrário, não seria capaz de servir a sua função sistemática, de parâmetro e
limite do preceito penal e de contrapartida das causas de justificação na
hipótese de conflito de valorações.70

Entretanto, o referido autor aponta a necessidade de uma limitação à


concepção social em sentido amplo, devendo o Estado de Direito “outorgar
proteção penal à ordem de valores constitucionalmente assegurados,
rechaçando os postulados funcionalistas protetores de um determinado status
quo”.71
Regis Prado formula a teoria constitucional eclética, reconhecendo que o
escopo principal do Direito Penal reside na proteção dos bens jurídicos, mas
dentro do quadro axiológico constitucional decorrente da concepção de
Estado de Direito democrático. Conforme seu pensamento, a tutela penal
somente é legítima quando socialmente necessária (princípio da necessidade),
o bem jurídico, como bem do Direito, conjuga o individual e o social e possui
importância para manter a livre convivência social.
Conclui o mencionado autor:

O conceito material de bem jurídico reside na realidade ou experiência social,


sobre a qual incidem juízos de valor, primeiro do constituinte e depois do
legislador ordinário. Trata-se de um conceito necessariamente valorado e
relativo, isto é, válido para um determinado sistema social e em um dado
momento histórico-cultural. Para defini-lo, o legislador ordinário deve
sempre ter em conta as diretrizes contidas na Constituição e os valores nela
consagrados, em razão do caráter limitativo da tutela penal. Portanto,
encontram-se na norma constitucional as linhas substanciais prioritárias para
a incriminação ou não de condutas.72

4.1.7 Conceito de bem jurídico-penal


Figueiredo Dias percebe que a noção de bem jurídico, embora fulcral do
direito penal, não pôde, até o presente momento, ser determinada com
segurança capaz de convertê-la em conceito fechado, e talvez jamais venha a
ser.73
O direito é um objeto cultural, criado pelo homem e dotado de um
sentido de conteúdo valorativo. A partir da noção tridimensionalista
formulada por Miguel Reale, verificamos que o fenômeno jurídico é formado
de um tríplice aspecto, qual seja, fato, valor e norma, integrados em uma
unidade funcional e de processo. A ciência do direito é uma ciência histórico-
cultural que tem por objeto a experiência social, enquanto esta,
normativamente, desenvolve-se em função de fatos e valores para a
realização da convivência humana.74
Portanto, o direito é dinâmico e não estático, configurando um sistema
aberto e não fechado. Assim, a dificuldade da conceituação do bem jurídico
deve ser vista não como uma impossibilidade, mas como uma decorrência da
própria natureza do direito.
Assim, o conceito de bem jurídico, igualmente, não é estático, mas
dinâmico, aberto às mudanças sociais e ao avanço científico. Daí ser seu
conceito mutável de acordo com a evolução do homem, da sociedade e do
Estado.
Da mesma forma, há, constantemente, uma modificação na valoração
dos bens jurídicos, de forma a incrementar o movimento de
descriminalização e criminalização de condutas, bem como a fixação de
penas mais brandas ou mais rigorosas, e ainda a determinar a utilização de
regras processuais diferenciadas conforme a gravidade do delito praticado.
São exemplos recentes em nossa legislação: a lei dos crimes hediondos, a lei
dos juizados especiais criminais e o Código de Trânsito, mostrando a
modificação da valoração dos bens jurídicos conforme as modificações
sociais.
O Direito Penal é resultado de escolhas políticas influenciadas pelo tipo
de Estado em que a sociedade está organizada. O direito de punir é uma
manifestação do poder de supremacia do Estado nas relações com os
cidadãos, principalmente na relação indivíduo-autoridade. Portanto, as
condições históricas condicionam o conceito de crime e consequentemente o
conceito de bem jurídico e sua importância para o Direito Penal.
No entanto, não poderemos jamais abandonar a necessidade de o Direito
penal proteger as lesões aos bens jurídicos, posto ser uma verdadeira
conquista da cidadania. Os iluministas, quando formularam a Teoria do
Estado Moderno, impuseram uma série de limitações ao poder estatal,
inclusive ao poder de punir, que ficava circunscrito nas mãos dos soberanos,
dando causa aos mais diversos desvirtuamentos, servindo para a manutenção
dos privilégios e do status quo.
O reflexo dessa escola de pensamento sobre o Direito Penal foi a criação
da teoria do bem jurídico, ficando a sanção penal guardada para as condutas
descritas na lei penal que violassem os bens jurídicos considerados
importantes para a manutenção da própria sociedade.
Dessa forma, não é qualquer lesão a bens jurídicos que acarretará a
atuação do Direito Penal, mas apenas aquelas lesões ou ameaças de lesões
consideradas relevantes e justificadoras da sanção penal. Portanto, passamos
a encontrar a noção de bem jurídico-penal como aquela espécie de bem
jurídico cuja importância fosse considerada vital para a manutenção da
sociedade e que é objeto da proteção das leis penais.
Essa noção de bem jurídico-penal é verdadeiramente limitadora do
poder estatal de aplicar a sanção penal e é uma das garantias fundamentais
dos cidadãos, que não poderá ser abandonada em um Estado Democrático de
Direito.
O desenvolvimento dessa visão, nos dias de hoje, encontra-se no
princípio da ofensividade, pelo qual o Direito Penal somente poderá atuar
ante lesões ou ameaças de lesões aos bens jurídico-penais. Esse princípio,
também chamado de intervenção penal mínima, deve ser entendido como
uma limitação ao direito de punir do Estado a favor dos cidadãos, uma
garantia da cidadania perante a Administração do Estado.
A conduta praticada pela pessoa para acarretar a sanção penal deve
lesionar ou ameaçar bens jurídico-penais, que são os bens jurídicos dotados
de dignidade penal, ou melhor dizendo, de relevância penal. Essa relevância
revela-se por meio da carência da tutela, ou seja, da necessidade da proteção
penal do bem jurídico. Caso a proteção possa ser efetuada adequadamente
por meio dos outros ramos do Direito, como o Direito Civil, ou o Direito
Administrativo, não deverá haver a intervenção do Direito Penal.
A questão que se coloca em face da teoria do bem jurídico, hoje
desenvolvida por meio do princípio da ofensividade ou da intervenção penal
mínima, é a seguinte: qual é o conceito de bem jurídico-penal? A crítica
realizada pelos defensores da teoria da imputação objetiva é válida: a teoria
do bem jurídico não oferece uma conceituação do que seja bem jurídico-
penal.
O único caminho encontrado foi o positivismo jurídico, que afirma estar
o conceito de bem jurídico-penal na própria lei penal, ou seja, a criação do
bem jurídico-penal é feita pela norma jurídico-penal.
A visão constitucional defendida hoje por inúmeros doutrinadores em
todo o mundo nada mais é do que o desenvolvimento da visão positivista,
reconhecendo a criação do conceito do bem jurídico-penal a partir das
normas jurídicas hierarquicamente superiores às demais, quais sejam, aquelas
decorrentes da Constituição Federal.
Essa posição dogmática não serve para a conceituação do bem jurídico,
mas somente para mostrar quais bens jurídicos são reconhecidos pelo Direito
Positivo vigente em determinado momento.
Há uma questão lógica não superada pela visão constitucional: a norma
jurídica é apenas um dos elementos da formação do Direito, que não se
esgota positivamente.
O conceito de bem jurídico existe anteriormente à norma jurídica e,
portanto, o conceito de bem jurídico-penal é anterior à norma penal, ainda
que de matiz constitucional.
Pagliaro refuta com precisão a visão constitucional, entendendo que não
é possível que exista no ordenamento jurídico uma proibição ao legislador
ordinário de incriminar condutas ofensivas a valores que, sem serem
contrários à Constituição, não tragam seu reconhecimento explícito ou
implícito.
Conclui o renomado autor italiano:

É necessário, de fato, deixar uma certa elasticidade à manobra do legislador


ordinário, em relação à possibilidade que surge das exigências de prevenção
geral e especial que ao tempo da formação da Constituição não eram ainda
previsíveis.75

Em face da rigidez das disposições constitucionais, necessária para


assegurar a tranquilidade jurídica e social do Estado Democrático de Direito,
o legislador penal não pode estar limitado ao conteúdo axiológico-
constitucional para o reconhecimento de bens jurídico-penais. A rapidez com
que ocorrem as mudanças sociais e os valores e necessidades da sociedade de
massa contemporânea fazem com que seja de todo recomendável que o
próprio legislador penal possa ter espaço próprio para a escolha dos bens
jurídico-penais reconhecidos.
Também é essa a posição de Muñoz Conde e García Arán, nos seguintes
termos:

Deve, assim mesmo, advertir-se contra uma tendência que pretende


identificar bem jurídico protegido penalmente com direito fundamental
reconhecido na Constituição, ainda que, obviamente, detrás de todo bem
jurídico exista um direito fundamental reconhecido constitucionalmente. Na
realidade, um direito fundamental pode dar lugar a diversos bens jurídicos,
que mereçam distinta proteção penal. [...] o legislador penal está legitimado
não só para selecionar as distintas ações merecedoras de penas, mas também
para marcar os limites da proteção penal e a diferente proteção penal que
merece cada um deles, utilizando para isso critérios políticos-criminais
extraídos das próprias formalidades e limites do Direito Penal.76

É o próprio legislador penal que tem a incumbência de determinar a


proteção penal, observados os limites do Direito Penal, por meio de critérios
político-criminais e não dogmático-constitucionais.
A resposta à questão formulada sobre o conceito de bem jurídico-penal
somente pode ser dada por meio da visão social do bem jurídico e não por
meio da visão exclusivamente positivista.
A perspectiva social do bem jurídico está presente, com importância e
destaque variados, ou ainda que de forma incipiente, em todas as suas
formulações teóricas, até hoje.
Birbaum já concebia que só a totalidade, isto é, a sociedade e nunca o
indivíduo, poderá decidir quais objetos hão de ser abrangidos pela proteção
das normas do direito, bem como que significado ou valor lhes advém
enquanto objeto de regulamentação jurídica. Concebe o bem jurídico como
valor social suscetível de ser lesado.77
Binding, com seu acentuado positivismo legal, defendia que pode
converter-se em bem jurídico tudo que, aos olhos do legislador, tem valor
como condição para uma vida saudável dos cidadãos. O bem jurídico é
sempre bem jurídico da coletividade e somente como bens jurídicos sociais é
que os objetos dos juízos individuais de valor gozam de proteção jurídica.78
Liszt, com a conceituação predominantemente pré-jurídica, em que os
bens jurídicos são interesses protegidos pelo Direito, embora criados pela
vida e não pela ordem jurídica, também vê os bens jurídicos como interesses
vitais para a comunidade, condições da convivência pacífica e ordenada da
vida em sociedade.
Assim, desde a formulação inicial do conceito de bem jurídico, inclusive
com a formação da teoria do bem jurídico, o que está sempre presente é a
referência sistêmico-social, que vem ganhando importância fundamental em
toda a doutrina penal sobre o conteúdo material do ilícito.
Inclusive a teoria da imputação objetiva de Jakobs, que mitiga a
importância do conceito de bem jurídico para a doutrina penal, aponta a
danosidade social como fundamento para a caracterização penal da conduta,
ou seja, utiliza uma perspectiva social funcionalista para justificar a atuação
do direito penal, e reconhece que a formulação do conceito de bem jurídico é
um filtro para que a danosidade social da conduta seja reconhecida como
penalmente relevante.
Podemos afirmar com Costa Andrade:

Considerações análogas se poderiam fazer a propósito das tentativas mais


recentes de substituição do conceito de bem jurídico pelo de danosidade
social nos termos do funcionalismo sistémico-social. Uma substituição que
valeria quer como fundamento material (e limite) da criminalização, quer
para efeitos de definição do objecto da infracção. Também elas acabam – à
revelia dos pressupostos metodológicos e dos princípios doutrinais que
começam por invocar – por apelar para a referenciação sistémico-social do
objecto da infracção, mediatizada pela subjectivização dos pertinentes juízos
de valor pelo legislador.79

Conceituamos, então, o bem jurídico como um objeto da realidade, que


constitui um interesse da sociedade para a manutenção de seu sistema social,
protegido pelo direito, que estabelece uma relação de disponibilidade, por
meio da tipificação das condutas.
Adotamos a perspectiva sistêmico-social como núcleo central do
conceito de bem jurídico, sem abandonar a referência normativa, mediante a
qual o direito atua, especificamente no que se refere ao Direito Penal, por
meio do tipo que é uma estrutura protetora tanto da sociedade, quanto do
indivíduo, uma vez que tutela bens jurídicos considerados imprescindíveis
para a vida social, tanto quanto estabelece os limites da atuação penal do
Estado, principalmente naquilo que não foi objeto de tipificação, garantindo
aos indivíduos sua liberdade.
Na feliz expressão de Manoel da Costa Andrade: “O tipo legal vale pelo
que incrimina e, nessa medida, protege; como vale outrossim pelo que não
incrimina e, nessa medida, igualmente protege”.80
O tipo penal também estabelece uma relação de disponibilidade, que é
inerente ao bem jurídico, ou seja, a possibilidade de fruição, de uso pelas
pessoas dos objetos da realidade que são os bens jurídico-penais.
Os objetos da realidade são convertidos em bens por meio de uma
consciência valoradora que decide sobre seu significado para a
regulamentação jurídica. Essa eleição de bens jurídicos é realizada pelo
sistema social, de acordo com a danosidade social das condutas, sendo seu
próprio beneficiário, ou seja, há uma aferição social de bens jurídicos, tendo
em vista a própria existência do sistema social.
Apontamos como critério de aferição social de quais bens jurídicos
deverão ser considerados bens jurídico-penais a relevância do objeto para o
funcionamento do sistema social, que se traduz na necessidade de sua tutela
penal.
Aquilo que puder ser adequadamente tratado por outros ramos do
direito, como o direito civil ou administrativo, não deve ser objeto de tutela
penal. A criminalização de condutas deve ser criteriosa, para garantir a
eficácia das sanções penais e, assim, garantir o próprio sistema social.

1
SPINAR, Jose Miguel Zugaldia. Fundamentos de Derecho Penal. 2. ed. Universidad de
Granada. Granada. 1991. p. 26.
2
SHECAIRA, Sérgio S. Criminologia. Editora Revista dos Tribunais. São Paulo. 2006. p.
56.
3
SHECAIRA. Sérgio S. Criminologia. Editora Revista dos Tribunais. São Paulo. 2006. p.
56.
4
MUÑOZ CONDE, Francisco; GARCÍA ARÁN, Mercedes. Derecho penal: parte general.
3. ed. Valência. Tirant lo Blanch. 1998. p. 31.
5
Importante salientar que, conforme lição de Marco Antonio Ferreira Lima, não só o
Direito Penal, mas também o Processo Penal, deve servir como instrumento a serviço dos
indivíduos para proteção de seus bens e de sua liberdade, através do Princípio do Devido
Processo Legal. In. Acesso à Justiça Penal no Estado Democrático de Direito. Editora
Juruá. Curitiba. 2008. p. 104.
6
LISZT, Franz Von. Tratado de Derecho Penal. Traduzido por Quintiliano Saldaña. Tomo
I. 3. ed. Editorial Reus. Madrid. 1929. p. 6.
7
MUÑOZ CONDE, Francisco; GARCÍA ARÁN, Mercedes. Op. cit. p. 64.
8
MIR PUIG, Santiago. Derecho penal: parte general. 5. ed. Barcelona. Reppertor. 1998. p.
66.
9
MIR PUIG, Santiago. Derecho penal: parte general. 5. ed. Barcelona. Reppertor. 1998. p.
65.
10
LISZT, Franz Von. Tratado de Derecho Penal. Traduzido por Quintiliano Saldaña.
Tomo I. 3. ed. Editorial Reus. Madrid. p. 6.
11
LISZT, Franz Von. Tratado de Derecho Penal. Traduzido por Quintiliano Saldaña.
Tomo I. 3. ed. Editorial Reus. Madrid. p. 6.
12
JESCHECK, Hans-Heinrich. Tratado de derecho penal: parte general. 4. ed. Trad. José
Luis Manzanares Samaniego. Granada. Comares. 1993. p. 231.
13
ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general. Trad. Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel
Díaz y Garcia Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madri. Civitas. 1999. t. 1, p. 71.
14
SCHUNEMANN, Bernard. Obras. Tomo II. Rubinzal-Culzoni Editores. Santa Fe. 2009.
p. 94.
15
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Tratado de derecho penal: parte general. Buenos Aires.
Ediar. 1981. t. 3, p. 248.
16
CEREZO MIR, J. Curso de derecho penal español. Madri. Tecnos. 1985. v. 1, p. 77.
Apud REGIS PRADO, Luiz. Bem jurídico-penal e constituição. 2. ed. São Paulo. Revista
dos Tribunais. 1997. p. 25.
17
BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Trad. GUIMARÃES, Torrieri. São Paulo.
Hemus. p. 15.
18
CARRARA, Francesco. Programma del corso di diritto criminale: parte generale. 1871.
p. 32. Apud MARINUCCI, Giorgio; DOLCINI, Emilio. Corso de diritto penale. 2. ed.
Milão. Giuffrè. 1999. v. 1, p. 291.
19
BIRNBAUM. Apud BUSTOS RAMIREZ, Juan. Manual de derecho penal español:
parte general. Barcelona. Ariel. 1984. p. 5.
20
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Tratado de derecho penal: parte general. Buenos Aires.
Ediar. 1981. t. 3, p. 248.
21
BINDING. Apud BUSTOS RAMIREZ, Juan. Op. cit. p. 52-53.
22
BINDING. Apud JAKOBS, Günther. Derecho penal: parte general. Trad. Joaquin
Cuello Contreras e Jose Luis Serrano Gonzalez de Murillo. Madri. Marcial Pons. 1997. p.
50.
23
ROCCO, Arturo. L ’oggetto del reato e della tutela giuridica penale. Apud ANTOLISEI,
Francesco. Manuale di diritto penale: parte generale. 14. ed. Milão. Giuffrè. 1997. p. 173-
174.
24
CARNELUTTI, F. Il dano e il reato. Padova. 1926. p. 51. Apud ANTOLISEI,
Francesco. Manuale di diritto penale: parte generale. 14. ed. Milão. Giuffrè. 1997. p. 174.
25
LISZT, Franz Von. Tratado de Derecho Penal. Traduzido por Quintiliano Saldaña.
Tomo I. 3. ed. Editorial Reus. Madrid. p. 6 ss.
26
FERRI, Enrico. Princípios de direito criminal: o criminoso e o crime. Trad. Paolo
Capitanio. Campinas. Bookseller. 1996. p. 381.
27
REGIS PRADO, Luiz. Bem jurídico-penal e constituição. 2. ed. São Paulo. Revista dos
Tribunais. 1997. p. 34.
28
JESCHECK, Hans-Heinrich. Op. cit. p. 232.
29
HONIG, Richard. Die einwilligung des verletzen. 1919. p. 94. Apud ZAFFARONI,
Eugenio Raúl. Op. cit. p. 249.
30
REGIS PRADO, Luiz. Bem jurídico-penal e constituição. 2. ed. São Paulo. Revista dos
Tribunais. 1997. p. 36.
31
WELZEL, Hans. Derecho penal aleman: parte general. 11. ed. 1970. p. 15.
32
FERREIRA MONTE, Mário. Da proteção penal do consumidor. Coimbra. Almedina.
1996. p. 273-274.
33
JESCHECK, Hans-Heinrich. Op. cit. p. 6-7.
34
Ibidem. p. 232.
35
MANZINI. Trattato di diritto penale italiano. 5. ed. Milano: UTET, 1981., v. 1, p. 38.
36
MANZINI. Op. cit., p. 278.
37
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Tratado de derecho penal: parte general. Buenos Aires.
Ediar. 1981. t. 3, p. 221.
38
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Tratado de derecho penal: parte general. Buenos Aires.
Ediar. 1981. t. 3, p. 240.
39
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Tratado de derecho penal: parte general. Buenos Aires.
Ediar. 1981. t. 3, p. 240.
40
AMELUNG. Rechtsgüterschutz und schutz der gesellschaft. 1972. Apud ROXIN, Claus.
Op. cit. p. 68.
41
HASSEMER, Einfühurung in die grundlagen des strafrechts. 1981. p. 296. Apud
MARINUC-CI, Giorgio, DOLCINI, Emilio. Op. cit. p. 279-280.
42
LUHMANN. Sociologia del diritto. 1977.
43
MIR PUIG, Santiago. Op. cit. p. 137.
44
MIR PUIG, Santiago. Op. cit. p. 134-135.
45
MUÑOZ CONDE, Francisco; GARCÍA ARÁN, Mercedes. Op. cit. p. 65.
46
ANTOLISEI, Francesco. Manuale di diritto penale: parte generale. 14. ed. atualizada
por CON-TI, Luigi. Milão. Giuffrè. 1997. p. 176.
47
JAKOBS, Günther. Derecho penal: parte general. Trad. Joaquin Cuello Contreras e Jose
Luis Serrano Gonzalez de Murillo. 2. ed. Madri. Marcial Pons. 1997. p. 52.
48
JAKOBS, Günther. La imputación objetiva en derecho penal. Trad. Manuel Cancio
Meliá. Bogotá. Colección de estudios no 1, Universidad Externado de Colombia, 1998. p.
13.
49
JAKOBS, Günther. Derecho penal. Op. cit. p. 55-58.
50
DÍAZ, Cláudia Lopez. Introdución a la imputación objetiva. Bogotá. Universidad
Externado de Colombia. 1996. p. 87. Colección de estudios no 5.
51
SANCINETTI, Marcelo A. ¿Responsabilidad por acciones o responsabilidad por
resultados? Cuadernos de conferencias y artículos. Universidad Externado de Colombia, no
9, 1996. p. 14.
52
SANCINETTI, Marcelo A. ¿Responsabilidad por acciones o responsabilidad por
resultados? Cuadernos de conferencias y artículos, Universidad Externado de Colombia, no
9, 1996. p. 14.
53
ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general. Trad. Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel
Díaz y Garcia Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madri. Civitas. 1999. t. 1, p. 60-62.
54
ROXIN, Claus. Op. cit. p. 56.
55
ROXIN, Claus. Op. cit. p. 56.
56
ROXIN, Claus. Op. cit. p. 56-57.
57
ROXIN, Claus. Op. cit. p. 63-67.
58
BETTIOL, G. Bene giuridico e reato. Apud ANTOLISEI, Francesco. Op. cit. p. 175.
59
BRICOLA. Teoria generale del reato. Apud ANTOLISEI, Francesco. Op. cit. p. 177.
60
HUNGRIA, Nélson. Comentário ao Código Penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Revista
Forense, 1953. t. I, vol. 1.
61
HUNGRIA, Nelson. Comentários ao código penal. 4. ed. Rio de Janeiro. Forense. 1958.
v. 1, t. 2, p. 10-11.
62
BRUNO, Aníbal. Direito penal: parte geral. 2. ed. Rio de Janeiro. Forense. 1959. v. 1, t.
2, p. 212.
63
FREDERICO MARQUES, José. Tratado de direito penal: da infração penal. Atualizado
por Antonio Cláudio Mariz de Oliveira, Guilherme de Souza Nucci e Sérgio Eduardo
Mendonça de Alvarenga. Campinas. Bookseller. 1997. v. 2, p. 37.
64
LISZT, Franz von. Tratado de derecho penal. Trad. Quintiliano Saldaña. 3. ed. Madrid:
Reus. 1929. t. I. p. 38-39.
65
NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal. 11. ed. São Paulo. Saraiva. 1974. v. 1, p.
109.
66
FRAGOSO, Heleno C. Lições de direito penal. Parte Geral. 16. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2003.
67
JESUS, Damásio Evangelista de. Direito penal. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 1992. vol. 1,
p. 159.
68
MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal: parte geral. 13. ed. São Paulo.
Atlas. 1998. p. 123.
69
TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 4. ed. São Paulo:
Saraiva, 1991. p. 16.
70
BITENCOURT, Cezar R. Op. cit., 11. ed., 2007, p. 240.
71
BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de direito penal: parte geral. 5. ed. São Paulo.
Revista dos Tribunais. 1999. p. 238.
72
REGIS PRADO, Luiz. Curso de direito penal brasileiro: parte geral. São Paulo. Revista
dos Tribunais. 1999. p. 79-80.
73
FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Questões fundamentais do direito penal revisitadas. São
Paulo. Revista dos Tribunais. 1999. p. 62.
74
REALE, Miguel. Filosofia do direito. 5. ed. São Paulo. Saraiva. 1969. v. 2, p. 507-511.
75
PAGLIARO, Antonio. Principi di diritto penale: parte generale. 6. ed. Milão. Giuffrè,
1998. p. 229.
76
MUÑOZ CONDE, Francisco; GARCÍA ARÁN, Mercedes. Derecho penal: parte
general. 3. ed. Valencia: Tirant lo Blanch, 1998. p. 91.
77
COSTA ANDRADE, Manuel da. Consentimento e acordo em direito penal. Coimbra.
Coimbra Editora. 1991. p. 37.
78
BINDING. Die Normen. Apud COSTA ANDRADE, Manoel da. Op. cit. p. 39.
79
COSTA ANDRADE, Manuel da. Consentimento e acordo em direito penal. Coimbra:
Coimbra Ed., 1991. p. 41.
80
COSTA ANDRADE, Manuel da. Op. cit. p. 23.
PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS LIMITADORES
DO DIREITO PENAL

As limitações que a Constituição Federal estabeleceu para o legislador


penal estão previstas no extenso rol do art. 5o, como direitos e garantias
individuais e coletivos, determinando, assim, às vezes de forma expressa e às
vezes de forma implícita, os limites ao jus puniendi estatal.
Forjam-se, portanto, na Constituição Federal, os princípios limitadores
do Direito Penal.
Entretanto, conforme lição de Paulo Queiroz, os princípios
constitucionais não exercem somente a função limitadora, mas sim uma dupla
função, pois se de um lado constituem um limite à intervenção estatal (função
de garantia), de outro são um instrumento de justificação dessa intervenção
(função legitimadora), motivo pelo qual tanto servem à legitimação quanto à
deslegitimação do sistema.1
Portanto, temos que a Constituição Federal é a linha intransponível do
Direito Penal.
Entretanto, as disposições constitucionais são de extrema relevância para
todo o direito, por se tratarem de normas hierarquicamente superiores dentro
do sistema normativo, em especial para o direito penal, que está limitado
pelas garantias constitucionais aos indivíduos.
5.1 PRINCÍPIO DA OFENSIVIDADE
Para o posicionamento hoje majoritário na doutrina, o Direito Penal
acolheu o princípio da ofensividade, que significa que não há crime sem
ofensa a um bem jurídico.2
Esse princípio, assim formulado, vincula o legislador e o intérprete. O
legislador deve configurar os crimes como uma conduta de ofensa a um bem
jurídico, de forma que somente possuam relevância penal os fatos que
importem a lesão ou ao menos o perigo de lesão a um bem jurídico. O
intérprete, por sua vez, deve reconstruir os tipos de crime com a ajuda do
critério do bem jurídico, excluindo os comportamentos não ofensivos ao bem
tutelado pela norma incriminadora.
A adoção desse princípio impede ao legislador e ao intérprete qualquer
regressão aos modelos reacionários de crime, que imputavam como crime a
mera manifestação de vontade, ou o mero sintoma de periculosidade do
indivíduo.3
São diversas as consequências da adoção desse princípio. A primeira
delas encontra-se nas funções da pena: são duas as funções reconhecidas, a
retributiva e a reeducativa. Para que a pena não assuma a função de mera
retribuição, reprimindo a simples desobediência aos preceitos legais, ou de
mera reeducação, mediante a repressão dos estados subjetivos ou disposições
pessoais, a razão da incriminação e, portanto, da punição deve ser a
realização de um fato ofensivo a um interesse tutelado. Igualmente, a pena
deve ter um tempo limitado, uma duração circunscrita no tempo, para evitar
que seja realizada uma instrumentalização do homem aos fins da política
criminal.
Por outro lado, o direito à liberdade moral, ou à liberdade do
pensamento, definidas pela máxima cogitationis poenam nemo patitur,
reconhecidos pela Constituição, além dos princípios de tolerância ideológica,
da tutela das minorias, do respeito à dignidade do homem, da igualdade de
todos perante a lei, proíbem a consideração do fato criminoso como mero
indício da personalidade ou da periculosidade do sujeito.
Essa visão ressalta o aspecto do bem jurídico como uma limitação
intransponível ao legislador na configuração da estrutura do crime, necessária
para a consolidação das democracias ocidentais e dos princípios do Estado de
Direito.
A questão principal a respeito do princípio da ofensividade é se a
Constituição estabelece ao legislador diretivas vinculantes para a realização
da estrutura do crime.
Aponta a referida doutrina que no Estado republicano, em que a
soberania pertence ao povo e a justiça é administrada em nome do povo,
reconhecendo o princípio da igualdade, sem distinção de sexo, raça, língua,
religião, opinião política e situação social, não é admitida a estrutura do crime
como imposição de posições políticas, religiosas ou éticas, não importando se
majoritárias ou minoritárias.
Da mesma forma, a adoção do princípio da dignidade do homem e do
reconhecimento do homem como portador de direitos invioláveis afasta a
possibilidade de o crime ser considerado um sintoma de periculosidade ou
antissocialidade individual, ou como mera desobediência a deveres.
Em conclusão, o único modelo de crime compatível com a Constituição
é aquele estruturado como ofensa aos bens jurídicos, seja na forma de lesão
ou de colocação em perigo. Portanto, o Direito Penal é o instrumento de
proteção aos bens jurídicos.
O princípio da ofensividade possui um limite fixado pela própria
Constituição, que é o princípio da culpabilidade. Não basta que seja previsto
um fato ofensivo a um ou mais bens jurídicos, nem basta que a conduta seja
antijurídica, ou seja, não autorizada ou imposta por outra norma jurídica. É
necessário, outrossim, que a prática do fato possa ser pessoalmente imputada
e repreendida ao autor. Em outras palavras, o agente deve responder
pessoalmente pela conduta praticada, com os critérios compreendidos na
culpabilidade.
A responsabilidade pessoal, ou seja, a responsabilidade culpável, é a
responsabilidade pelo fato cometido. Todos os critérios sobre os quais se
funda a culpabilidade devem ser estreitamente ligados ao fato praticado pelo
agente.
Em Portugal, o referido princípio também é adotado majoritariamente
pela doutrina penal, sendo um de seus defensores Figueiredo Dias, que é um
dos maiores expoentes do Direito Penal português, expondo da seguinte
forma:

É exato ser no sistema social, enquanto tal, que se deve ver em último termo
a fonte legitimadora e produtora da ordem legal dos bens jurídicos. Mas com
apelo direto a um tal sistema é absolutamente impossível emprestar ao
conceito de bem jurídico a indispensável concretização. Com uma via para a
alcançar só se depara quando se pensa que os bens do sistema social se
transformam e se concretizam em bens jurídicos dignos de tutela penal (em
bens jurídico-penais) através da ordenação axiológica jurídico-
constitucional.4

Entende o referido autor que a Constituição portuguesa, em seu art. 3o-2,


ao dispor que toda atividade do Estado, incluída a atividade legiferante em
matéria penal, se subordina à Constituição, impõe a adoção do princípio da
ofensividade como norteador do Direito Penal.
A Constituição portuguesa está assim redigida:

Art. 3o
(Soberania e legalidade)
1. A soberania una e indivisível reside no povo, que a exerce segundo as
formas previstas na Constituição.
2. O estado subordina-se à Constituição e funda-se na legalidade
democrática.
3. A validade das leis e dos demais actos do Estado, das regiões autónomas e
do poder local depende da sua conformidade com a Constituição.

Também o art. 18o-2 da Constituição portuguesa determina que as


restrições dos direitos, liberdades e garantias, o que sempre ocorre quando da
criminalização, devem-se limitar ao necessário para salvaguardar outros
direitos ou interesses constitucionalmente protegidos. Assim, na visão do
autor referido, fica clara a adoção dos critérios axiológico-constitucionais na
definição da conduta criminosa.
O art. 18o da Constituição portuguesa está assim redigido:

Art. 18o
(Força jurídica)
1. Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias
são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas.
2. A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos
expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao
necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente
protegidos.
3. As leis restritivas de direitos, liberdades e garantias têm de revestir carácter
geral e abstrato e não podem ter efeito retroativo nem diminuir a extensão e o
alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais.

Conclui que um bem jurídico político-criminalmente vinculante existe


apenas

onde se encontre refletido num valor jurídico-constitucionalmente


reconhecido em nome do sistema social total e que, deste modo, se pode
afirmar que “preexiste” ao ordenamento jurídico-penal. O que por sua vez
significa que entre a ordem axiológica jurídico-constitucional e a ordem legal
– jurídico-penal – dos bens jurídicos tem por força de se verificar uma
qualquer relação de mútua referência.5

Na visão do mencionado autor, somente pela via dos valores


constitucionalmente protegidos é que os bens jurídicos se transformam em
bens jurídicos dignos de tutela penal ou com dignidade jurídico-penal.
Então, toda norma incriminatória na base da qual não seja possível
divisar um bem jurídico-penal claramente definido deve ser considerada nula,
por materialmente inconstitucional, devendo ser assim declarada pelos
tribunais aos quais caiba aferir a constitucionalidade das leis ordinárias.6
O autor formula, portanto, uma concepção teleológica-funcional dentro
de uma perspectiva racional, firmando o critério da necessidade ou da
carência da tutela penal para legitimar a criminalização efetuada por meio da
noção de bem jurídico dotado de dignidade penal, nos seguintes termos:

A violação de um bem jurídico-penal não basta por si para desencadear a


intervenção, antes se requerendo que esta seja absolutamente indispensável à
livre realização da personalidade de cada um na comunidade. Nesta precisa
acepção o direito penal constitui, na verdade, a ultima ratio da política social
e sua intervenção é de natureza definitivamente subsidiária.7

Essa subsidiariedade decorre, na visão do autor, do princípio jurídico-


constitucional da proporcionalidade que é inerente ao Estado de Direito, uma
vez que o Direito Penal só pode intervir nos casos em que todos os outros
meios da política social, em particular da política jurídica, revelem-se
insuficientes e inadequados.
Caso assim não ocorra, quando se determine a intervenção penal para
hipóteses de proteção de bens jurídicos que podem ser suficientemente
tutelados por intervenção dos meios civis, essa intervenção penal
determinada deverá ser entendida como contrária ao princípio da
proporcionalidade por violação ao princípio da proibição de excesso.
A doutrina espanhola da atualidade reconhece o princípio da
ofensividade, chamando-o de princípio da exclusiva proteção de bens
jurídicos, ou princípio da intervenção mínima, mas o vê de forma diferente,
como um dos limites ao poder punitivo do Estado.
Mir Puig defende que o Direito Penal de um Estado Social justifica-se
como sistema de proteção da sociedade. Os interesses sociais que por sua
importância podem merecer a proteção do Direito Penal se denominam bens
jurídicos. Portanto, o Direito Penal somente pode proteger bens jurídicos,
entendidos em sentido político-criminal, como objetos que podem reclamar
proteção jurídico-penal.8
Muñoz Conde e García Arán também apontam a proteção de bens
jurídicos como limite ao poder punitivo do Estado, adotando o princípio da
intervenção mínima, pelo qual os bens jurídicos não somente devem ser
protegidos pelo Direito Penal, mas também ante o Direito Penal, ou seja, se
para o restabelecimento da ordem jurídica violada são suficientes medidas
civis ou administrativas, são estas as que devem ser empregadas e não as
medidas penais.9

5.1.1 Função limitadora


Entendemos que a Constituição Federal não tem por função a criação
axiológica de um sistema em que possamos depreender bens jurídicos, mas
exerce importante papel de limitação da perspectiva social do bem jurídico,
estabelecendo os princípios normativos que deverão nortear o legislador
penal na tipificação das condutas.
A Constituição, conforme lição de Canotilho, deve ser vista como uma
“ordem--quadro”, ou seja, uma ordem fundamental do Estado e da
sociedade, devendo instituir “princípios relevantes para uma sociedade
aberta bem ordenada”, definindo uma “ordem essencial constitucional
básica”, capaz de recolher as tensões da integração comunitária e o
pluralismo social, econômico e político.10
Entre as funções da Constituição, não se encontra o estabelecimento de
bens jurídico-penais, mas a limitação do poder, por ser a “lei superior”,
vinculando juridicamente os titulares do poder estatal. Realiza, então, sua
“função garantística” dos direitos e liberdades inerentes ao indivíduo e
preexistentes ao estado.11
A Corte Constitucional italiana decidiu, exatamente nesse sentido, a
questão posta em análise sobre as funções e o papel da Constituição, nos
seguintes termos citados por Marinucci-Dolcini:

La Corte costituzionale ha infatti affermato che la Costituzione ha sì posto “il


principio della più stretta riserva di legge in materia penale”, ma “in nessun
modo” ha vincolato “il legislatore al perseguimento di specifici interessi”:
come ha sottolineato lo stesso massimo sostenitore della teoria in esame, la
Corte si è sempre “astenuta dal sindacare, salvo il limite della incompatibilità,
l’oggetto prescelto di tutela”.12

Essa interpretação constitucional realizada pela Suprema Corte italiana


deve ser a mesma em relação à Constituição Federal brasileira, que estabelece
diversos princípios e normas garantidoras do indivíduo, em relação ao poder
de punir criminalmente do Estado, mas abstém-se de indicar ou controlar os
objetos escolhidos para a tutela penal, salvo no limite da incompatibilidade,
ou seja, o legislador ordinário não poderá de nenhuma forma afrontar os
princípios e normas constitucionais, mas tem liberdade para a escolha dos
bens jurídico-penais.
A doutrina italiana também é amplamente majoritária nesse sentido, de
que o poder discricionário do legislador ordinário na escolha dos bens a
tutelar penalmente não está vinculado ao âmbito dos bens
constitucionalmente relevantes, mas encontra um limite intransponível nos
princípios ou direitos de liberdade garantidos pela Constituição.13
O legislador ordinário não pode proteger bens incompatíveis com a
Constituição, como, por exemplo, permitir o racismo, as discriminações por
motivo de sexo, crença, religião, consciência etc., que são objeto dos direitos
e garantias fundamentais do indivíduo, constitucionalmente protegidos.

5.2 OBRIGAÇÕES CONSTITUCIONAIS


EXPRESSAS DE TUTELA PENAL
A Constituição Federal, além de impor limites ao legislador ordinário na
escolha dos bens jurídico-penais, impõe ao legislador penal a obrigação de
incriminar a ofensa de determinados bens jurídicos, ou estabelece a exclusão
de benefícios ou até mesmo a espécie de pena a ser aplicada em certos
crimes.
O art. 5o da Magna Carta traz diversas obrigações de incriminar ao
legislador ordinário, nos seguintes termos:

Art. 5o (...)
XLI – a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades
fundamentais;
XLII – a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível,
sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei;
XLIII – a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou
anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o
terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os
mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem;
XLIV – constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos
armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado
Democrático.

As normas suprarreferidas significam que a Constituição Federal se


antecipou ao legislador ordinário na valoração político-criminal de certos
bens jurídicos, que normalmente seria tarefa deixada à legislação
infraconstitucional. Tal ocorreu, primeiramente, em virtude das razões
históricas existentes no momento em que a Assembleia Nacional Constituinte
elaborava a Magna Carta. A democratização do país, o desejo de evitar o
retorno do regime de exceção do período da “ditadura militar”, bem como das
práticas que levaram à ruptura política no país, fizeram com que o
constituinte determinasse a punição criminal de condutas que atentassem
contra direitos e garantias individuais, o regime democrático, as condutas de
terrorismo etc.
Outro motivo para a opção constitucional é a estrutura econômico-social
do país, que fez com que a Constituição determinasse a punição rigorosa do
racismo, do tráfico de entorpecentes e dos crimes hediondos, como forma de
ressaltar a resposta que nossa sociedade democrática deve dar a tais condutas.
Essa dinâmica social, fruto de desigualdades econômicas e sociais
acentuadas, também é a razão para as determinações constantes dos arts. 225,
§ 3o, e 227, § 4o, da CF, com a seguinte redação:

Art. 225. (...)


§ 3o As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente
sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e
administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos
causados.
Art. 227. (...)
§ 4o A lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da
criança e do adolescente.

A proteção ao meio ambiente e à infância e juventude são considerados


interesses difusos, que merecem atenção especial em face dos abusos do
poder econômico e dos desequilíbrios sociais de nossa atualidade. Também o
futuro da sociedade é protegido, com a preservação ambiental para as
gerações futuras e a tutela da criança e do adolescente vistos como pessoas
em desenvolvimento e que serão os futuros cidadãos do país. Então, a
importância desses interesses para a sociedade fez com que a Constituição
determinasse a proteção criminal.
O critério pelo qual são impostas as obrigações constitucionais não é
outro senão a relevância do bem jurídico, que se traduz na necessidade de sua
tutela penal.
A questão que resta para ser discutida é a força vinculante das
obrigações constitucionais de incriminação.
São três as possibilidades para análise: a primeira é a existência anterior
de legislação penal incriminadora, que será recepcionada pela Constituição; a
segunda é a hipótese de inexistir legislação penal a respeito do bem tutelado
pela obrigação constitucional, com a omissão do legislador em cumprir o
mandamento constitucional; a terceira, também com a inexistência da
legislação penal, mas com o cumprimento por parte do legislador da
obrigação constitucional.
1ª Caso já exista anteriormente a lei penal incriminadora, sendo
recepcionada pela Constituição, as normas constitucionais terão eficácia
imediata, naquilo que modificarem a legislação anterior, bem como a força
vinculante impedirá eventual tentativa de descriminalização das condutas,
tratando-se de norma inconstitucional qualquer uma que não esteja de acordo
com o mandamento constitucional de criminalização.
2ª Inexistindo a legislação penal incriminadora, na hipótese de omissão
do legislador, a Constituição estabelece a ação de inconstitucionalidade por
omissão, no art. 103, § 2o, nos seguintes termos:

Art. 103. (...)


§ 2o Declarada a inconstitucionalidade por omissão de medida para tornar
efetiva norma constitucional, será dada ciência ao Poder competente para a
adoção das providências necessárias e, em se tratando de órgão
administrativo, para fazê-lo em trinta dias.
A intenção constitucional é conceder plena eficácia para suas normas,
assim, a ação de inconstitucionalidade por omissão vem permitir a concessão
de eficácia para aquelas normas que dependem de complementação
legislativa, portanto, atingem as normas constitucionais de eficácia limitada
de princípio institutivo e de caráter impositivo em que a constituição obriga o
legislador a expedir comandos normativos.14
Quando a Constituição determina ao legislador que tenha uma conduta
positiva, com a elaboração de legislação que garanta a eficácia da norma
constitucional, e esse omite, tendo então conduta negativa, configura-se a
inconstitucionalidade por omissão, que pode ser total ou parcial, na hipótese
de descumprimento incompleto do mandamento constitucional.
3ª Nesta terceira hipótese possível de ser analisada, o legislador cumpriu
o mandamento constitucional. Então, a eficácia da norma constitucional
agora é plena, novamente vinculando as futuras legislações, impedindo
eventual tentativa de descriminalização; caso exista lei nesse sentido, será
considerada inconstitucional por ser incompatível com a obrigação
constitucional de incriminação.

5.3 PRINCÍPIO DA LEGALIDADE OU DA


RESERVA LEGAL
Tal princípio encontra-se expresso no art. 5o, XXXIX, da CF, bem como
no art. 1o do CP, em ambos com a seguinte redação: “não há crime sem lei
anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”.
Deve-se a formulação latina desse princípio, representada pelo brocardo
nullum crimen, nulla poena sine praevia lege, ao jurista alemão Anselm von
Feuerbach, que o desenvolveu como consectário necessário de sua concepção
de coação psicológica da pena, pois somente poderá a pena ter qualquer
efeito psicológico quando se conhece o que proíbe (previsão da conduta não
permitida), bem como se conhece a coação (pena).15
Entretanto, conforme nos alerta Marco Aurélio Florêncio Filho,
Feuerbach não criou o brocardo exatamente da maneira que hoje o
conhecemos, mas sim desmembrado em três princípios derivados – nulla
poena sine lege – para se aplicar uma pena, deve existir previamente uma lei
penal; nulla poena sine crimine – uma pena só poderá incidir sobre uma ação
criminosa; e nullum crimen sine poena legali – a ação criminosa legalmente
cominada está condicionada pela pena legal16 –, que depois foram fundidos
na consagrada fórmula.
Ensina-nos, Jiménez de Asúa, que apesar de sua formulação em latim, o
referido princípio não é de origem romana e teve suas primeiras
manifestações durante a Idade Média, quando o homem aspirou a um pouco
de segurança. Aponta, ainda, o mestre espanhol, que o documento originário
do qual se retira o princípio para aplicação em matéria penal é a Magna Carta
inglesa, conquistada de João Sem-Terra, pelos nobres, em 1215,
especialmente no art. 39,17 que tinha a seguinte redação:

Nenhum homem livre será detido, preso ou perderá suas posses, ou proscrito,
ou morto de qualquer forma; nem poderá ser condenado, nem poderá ser
submetido à prisão, senão pelo julgamento de seus iguais ou pelas leis do
país.18

Porém, sem sombra de dúvidas, é com a Declaração Francesa dos


Direitos do Homem e do Cidadão, em 1789, que o princípio da legalidade
adquire a importância que nunca antes havia alcançado. Tal fato, entretanto,
justifica-se pela própria filosofia do século XVIII, já que a doutrina de
Montesquieu sobre a divisão de poderes e as ideias filosóficas de Rousseau
influenciaram muito Beccaria, que ao escrever na sua conhecida obra que “só
as leis podem decretar penas para os delitos e esta autoridade não pode residir
exceto no legislador”, eternizou o referido princípio e o transformou num
símbolo da garantia individual contra o arbítrio estatal, universalizando-o, de
maneira que praticamente todos os ordenamentos jurídicos posteriores
adotaram o princípio da legalidade.
Não podemos olvidar, entretanto, que mesmo nos Estados Modernos, o
princípio da legalidade passou por alguns momentos de desprestígio, que de
forma não estranha coincidem exatamente com os momentos em que o
próprio Estado Democrático também estava desprestigiado, como na
Alemanha nazista, em que o § 2o do Código Penal Alemão possibilitava a
punição criminal de acordo com o “pensamento fundamental de uma lei e
com o são sentimento do povo”, bem como os Códigos Criminais da antiga
URSS nos anos de 1924 e 1926, que permitiam a punição de atos que, mesmo
que não expressamente previstos, ofendessem “a ordem jurídica estabelecida
pelo Governo dos operários e agricultores para a época de transição para o
Estado Comunista”.19
Atualmente, o princípio da legalidade penal é uma exigência básica de
todo e qualquer Estado Democrático de Direito,20 já que por razões de
segurança jurídica a lei penal deve ser, antes de tudo, uma garantia para o
cidadão.
Günther Jakobs, quando trata do princípio da legalidade, salienta que a
vinculação à lei deve garantir objetividade, ou seja, o comportamento punível
e a medida da pena não devem ser definidos sob efeito de fatos ocorridos,
mas ainda não julgados, nem como instrumento contra agentes já conhecidos,
mas sim antecipadamente e de forma geralmente válida, mais precisamente
por uma lei promulgada e definida anteriormente ao fato.21
Luigi Ferrajoli, mestre italiano autor da obra Direito e razão, ao analisar
o princípio da legalidade à luz da sua teoria do garantismo penal, faz uma
distinção entre o que chama de princípio da mera legalidade (ou lata
legalidade) e o princípio da estrita legalidade. Diz que enquanto o princípio
da mera legalidade se limita a exigir a lei como condição necessária da pena e
do delito (nulla poena, nullum crimen sine lege), o princípio da legalidade
estrita exige todas as demais garantias como condições necessárias da própria
legalidade penal (nulla lex poenalis sine necessitate, sine injuria, sine
actione, sine culpa, sine judicio, sine accusatione, sine probatione, sine
defensione). Devido ao primeiro princípio, a lei é condicionante; devido ao
segundo, condicionada. Há, portanto, um papel distinto entre os dois
princípios: a mera legalidade da forma e da fonte é condição da vigência ou
existência das leis que preveem os crimes e as penas, qualquer que seja o seu
conteúdo; já a legalidade estrita é uma condição de validade ou de
legitimidade das leis vigentes. Assim, se por um lado o princípio da mera
legalidade é dirigido aos juízes, aos quais prescreve que considera como
crime qualquer fenômeno definido pela lei como tal, o princípio da legalidade
estrita é uma norma metalegal, dirigida ao legislador, a quem prescreve uma
técnica para elaboração das leis e de seu conteúdo.22 Para ilustração, trazemos
o seguinte trecho:

O princípio da legalidade estrita é proposto como uma técnica legislativa


específica, dirigida a excluir, conquanto arbitrárias e discriminatórias, as
convenções penais referidas não a fatos, mas diretamente a pessoas e,
portanto, com caráter “constitutivo” e não “regulamentar”, daquilo que é
punível: como as normas que, em terríveis ordenamentos passados,
perseguiam as bruxas, os hereges, os judeus, os subversivos e os inimigos do
povo; como as que ainda existem em nosso ordenamento, que perseguem “os
desocupados” e os “vagabundos”, os “propensos a delinquir”, os “dedicados
a tráficos ilícitos”, os “socialmente perigosos” e outros semelhantes.
Diremos, pois, aplicando ao direito penal uma distinção recentemente
elaborada pela teoria geral do direito, que o princípio da estrita legalidade não
admite “normas constitutivas”, mas somente “normas regulamentares” do
desvio punível: portanto, não admite normas que criam ou constituem ipso
jure as situações de desvio sem nada prescrever, mas somente regras de
comportamento que estabelecem uma proibição, quer dizer, uma modalidade
deôntica, cujo conteúdo não pode ser mais do que uma ação, e a respeito da
qual seja aleticamente possível (sic) tanto a omissão quanto a comissão, uma
exigível e a outra obtida sem coação e, portanto, imputável à culpa, ou
responsabilidade de seu autor.23
Luigi Ferrajoli, expoente máximo do garantismo penal, assinala que:

O sentido e o alcance garantista do convencionalismo penal residem


precisamente nesta concepção, ao mesmo tempo nominalista e empírica do
desvio punível, que remete às únicas ações taxativamente indicadas pela lei,
dela excluindo qualquer configuração ontológica ou, em todo caso,
extralegal. Auctoritas, non veritas facit legem é a máxima que expressa este
fundamento convencionalista do direito penal moderno e por sua vez do
princípio constitutivo do positivismo jurídico: o que confere relevância penal
a um fenômeno não é a verdade, a justiça ou a moral, nem a natureza, mas
somente o que, com autoridade, diz a lei. E a lei não pode qualificar como
penalmente relevante qualquer hipótese indeterminada de desvio, mas
somente comportamentos empíricos determinados, identificados exatamente
como tais e, por sua vez, aditados à culpabilidade de um sujeito.24

Desse modo, toda pessoa tem o direito de saber não só aquilo que pode
fazer, mas também aquilo que não pode fazer, bem como quais serão as
consequências caso deseje fazer aquilo que a lei não permite.
O princípio da legalidade representa, ao mesmo tempo, uma limitação
formal e uma limitação material ao Estado.
Do ponto de vista formal, significa que somente a lei em sentido estrito,
ou seja, aquela derivada do Poder Legislativo, respeitado todo o trâmite legal,
poderá definir crimes e contravenções, bem como majorar as penas ou de
qualquer forma aumentar o rigor punitivo do Estado limitando a liberdade do
cidadão. O contrário, porém, não é verdadeiro, pois pode o Estado, por meio
de outros atos que não a lei em sentido estrito, diminuir o rigor punitivo e
aumentar a esfera de liberdades do cidadão.
Do ponto de vista material, a limitação ao Estado decorre do próprio
Estado Democrático de Direito, pois se todo poder emana do povo, toda
atividade repressiva deve derivar da “vontade popular” e ser exercida
exatamente nos seus limites. Entretanto, tal não significa que a “vontade
popular” tudo pode, pois assim haveria a possibilidade de uma “ditadura da
maioria”, não admitida em um Estado Democrático de Direito. Não podemos
nos esquecer de que o regime nazista de Adolf Hitler era legal, posto que
construído sob as vigentes leis alemãs da época e, ainda, apoiado pela
maioria da população.
Há sempre uma limitação material ao Estado, mesmo quando este atua
representando a “vontade popular”: os direitos do cidadão enquanto ser
humano.
É importante que se diga que o princípio da legalidade tem um valor
absoluto e não admite qualquer exceção ou flexibilização, em prejuízo do
indivíduo.25
No âmbito nacional, nos termos do art. 22, I, da CF, somente a União
poderá legislar sobre matéria penal por meio de seu corpo legislativo, ou seja,
o Congresso Nacional. Os Estados-membros somente poderão legislar sobre
matéria penal em relação às questões específicas ao seu interesse e desde que
haja autorização por lei complementar, nos termos do art. 22, parágrafo
único, da CF. Não pode, portanto, de maneira alguma, o Poder Executivo, por
intermédio de Medidas Provisórias, criar crimes ou majorar penas.

5.3.1 Garantias individuais decorrentes do princípio da


legalidade
A doutrina costuma diferenciar e apontar quatro garantias individuais
decorrentes do princípio da legalidade: criminal, penal, jurisdicional e de
execução.

5.3.1.1 Garantia criminal – Nullum crimen sine lege


Decorre da teoria da tripartição dos poderes. Segundo esse postulado,
somente a lei, elaborada na forma constitucionalmente prevista, é que pode
criar crimes.
Tem caráter absoluto, de modo que somente o Poder Legislativo é que
pode criar normas de caráter penal e, ainda, não pode delegar essa
competência para outros poderes. Há, portanto, um papel negativo a ser
exercido por essa garantia: impedir o acesso do Poder Executivo e Judiciário
à função de criar normas penais.26
A competência legiferante pertence ao Poder Legislativo em virtude de
sua legitimação democrática, pois nos termos do parágrafo único do art. 1o da
CF: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes
eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.

5.3.1.2 Garantia penal – Nulla poena sine lege


Desse aforismo, surge para o cidadão a garantia de que não receberá
penas que não foram determinadas pela lei.
A garantia penal, desse modo, visa a limitar a atuação do Poder
Judiciário, impedindo que os juízes fixem penas arbitrárias, indeterminadas,
ou ainda, que alterem os marcos penalógicos estabelecidos por lei.27

5.3.1.3 Garantia jurisdicional – Nemo damnetur nisi


per legale iudicium
Segundo essa garantia, nenhum cidadão poderá ser processado e
condenado senão por um juiz ou Tribunal competente.
Trata-se, também, de uma consequência da tripartição dos poderes. Se
por um lado somente o Poder Legislativo, pela lei, é que pode definir crimes
e penas, por outro, cabe ao Poder Judiciário – os Tribunais e seus juízes – a
interpretação e aplicação dessas leis.
Entretanto, a função julgadora não pode ser exercida arbitrariamente,
pois deve respeitar todas as garantias processuais que também estão
estabelecidas na lei, como, por exemplo: publicidade dos atos processuais,
liberdade de provas, presunção de inocência, contraditório, ampla defesa
etc.28

5.3.1.4 Garantia de execução


O princípio da legalidade não só define a pena, mas também a maneira
como a pena, se aplicada, deverá ser cumprida. Conforme lição de Alexis
Couto de Brito:

O cânone do direito penal possui ressonância na execução penal: não há pena


sem lei anterior que a defina. E acrescentamos: não há execução da pena sem
lei. O princípio da legalidade garante que tanto o juiz como a autoridade
administrativa concorrerão para com as finalidades da pena, garantindo
direitos e distribuindo deveres em conformidade com a lei.29

Nos termos dessa garantia, não basta que a lei preveja a pena, mas
também a forma como a pena será executada, isto é, cumprida pelo
sentenciado.
O cidadão sentenciado não perde, em momento algum, a sua
humanidade. A pena deve ser executada de forma a respeitar todos os direitos
que não foram restringidos pela sentença condenatória.
Nesse sentido é o art. 5o da Declaração Universal dos Direitos Humanos:
“Ninguém será submetido a torturas nem a tratos cruéis, desumanos ou
degradantes”; e o art. 10, item 1, do Pacto Interamericano de Direitos Civis e
Políticos: “Toda pessoa privada de sua liberdade será tratada humanamente e
com respeito à dignidade inerente ao ser humano”.
Nossa Constituição Federal também trata do tema ao prever no art. 5o,
XLVIII, que “a pena será cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo
com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado”; no art. 5o, XLIX, “é
assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral”.
Não obstante todas essa previsões, é mais que sabida a dramática
situação carcerária brasileira, fato que decorre, diretamente, mas não
exclusivamente, do total desrespeito ao princípio da legalidade, posto que a
Lei de Execução Penal (Lei 7.210/1984), em vigor há mais de 30 anos,
jamais foi aplicada como pretendido pelo Legislador.
Nesse sentido, transcrevemos a crítica realizada por Alexis Augusto
Couto de Brito sobre o desrespeito à Lei de Execução Penal:

Se um sistema é engendrado para funcionar com um certo número de peças e


recursos, cada qual com sua medida e especificação, não se pode condená-lo
ou sequer dele exigir funcionamento escorreito se nele colocamos peças
irregulares, energia insuficiente ou o relegamos à própria sorte, sem a
manutenção periódica necessária. A execução penal, hoje, no Brasil, funciona
dessa forma: ora com voltagem errada, ora com peças trocadas, e ora somente
pela inércia, que chega a desafiar as leis da física diante de todo o atrito que
não consegue fazê-la parar.30

5.3.2 Os efeitos do princípio da legalidade – Princípios


derivados – subprincípios
De uma forma genérica, a doutrina mais autorizada31-32 entende que o
princípio da legalidade comporta os seguintes efeitos ou desdobramentos: 1. a
determinação da punibilidade deve ser feita pela lei (lex scripta); 2. a lei deve
determinar a punibilidade (lex certa), ou seja, “se” e “quando” punir; 3. o
intérprete está vinculado à determinação da lei (lex stricta); e 4. a
determinação deve ser anterior ao fato (lex praevia).

5.3.2.1 Nullum crimen, nulla poena sine lege praevia


O princípio da legalidade, conforme já demonstrado, tem como um de
seus principais efeitos a exigência de que a lei que cria crimes – para que
possa ter aplicabilidade e eficácia – seja anterior ao fato praticado. Assim, a
lei posterior ao fato não retroagirá para alcançar os fatos passados, salvo
quando for para melhorar a situação do acusado, ou seja, para descriminalizar
condutas, reduzir penas ou criar benefícios.
Dessa forma, é possível afirmar que do Princípio da Legalidade,
especificamente da sua exigência de que haja uma lei anterior (lex praevia)
ao fato, derivam outras consequências e efeitos, às quais nos referiremos
como subprincípios.

5.3.2.1.1 Princípio da anterioridade


Conforme afirma Maurício Antonio Ribeiro Lopes, “anterioridade
corresponde imediatamente à ideia de que uma lei incriminadora, para que
possa ser aplicada a um fato, deve estar em plena vigência antes do
cometimento do delito apenado”, ou seja, não basta para existência da lei,
mas sim que tal existência legal seja anterior à prática do fato definido como
crime.33
O princípio da anterioridade é, portanto, uma necessidade lógica do
princípio da legalidade, pois se a finalidade do referido princípio é garantir
liberdade ao cidadão, permitindo que este conheça previamente o rol das
condutas proibidas e suas respectivas sanções, essa garantia seria totalmente
ineficaz se a lei posterior pudesse regressar e alcançar os fatos já praticados.
Trata-se, portanto, de uma limitação ao próprio legislador em favor do
cidadão, já que os fatos praticados no passado, por mais perniciosos e
perturbadores que sejam, nem mesmo a lei posterior poderá alcançar.
É esse, portanto, o momento de se falar sobre a irretroatividade da Lei
Penal.
5.3.2.1.2 Princípio da irretroatividade da lei penal
O princípio da irretroatividade da lei penal também decorre diretamente
do princípio da legalidade e, assim, pode ser considerado um subprincípio
daquele.
Apesar de parte da doutrina não fazer qualquer distinção entre os
subprincípios da anterioridade e da irretroatividade, Maurício Antônio
Ribeiro Lopes explica o motivo pelo qual a distinção deve ser feita:

A anterioridade relaciona-se genericamente com a validade da lei penal em


relação à sua vigência puramente considerada, enquanto os demais,
provenientes da noção da irretroatividade e de suas formas de exceção
relacionam-se com a legalidade no que tange à sucessão de leis penais no
tempo. Vale dizer, o princípio da anterioridade é interior ao sistema que
engloba o princípio da legalidade em suas relações temporais enquanto o
princípio da irretroatividade (e seus corolários) lhe são externos.34

Relaciona-se, portanto, a irretroatividade da lei penal mais com o


aspecto de sucessões de leis penais no tempo do que com o aspecto da
vigência e eficácia da lei penal, sendo esse o momento de analisarmos esses
fenômenos.

5.3.2.1.3 Sucessão de leis penais


A Constituição Federal, em seu art. 5o, XL, prevê expressamente que “a
lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”, enquanto o art. 2o do
CP, caput, prevê que “ninguém pode ser punido por fato que lei posterior
deixa de considerar crime, cessando em virtude dela a execução e os efeitos
penais da sentença condenatória”, e o parágrafo único diz que “a lei posterior,
que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores,
ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado”.
Dos dispositivos supracitados podemos concluir que: 1. a lei penal mais
grave (lex gravior) jamais retroage em desfavor do acusado; e 2. a lei penal
mais favorável (lex mitior) ou a lei penal que descriminaliza conduta (abolitio
criminis) ao réu sempre retroagirá.
Assim, podemos dizer que a lei penal mais grave é dotada de
irretroatividade, já que seus efeitos não poderão alcançar os fatos passados,
enquanto a lei penal benéfica é dotada de retroatividade e ultratividade.
A retroatividade ocorre porque a lei penal mais branda socorre àquele
que praticou infrações penais na vigência de lei mais grave, podendo gozar
dos benefícios daquela. Tal garantia impõe-se em um Estado Democrático de
Direito pelo simples fato de que se o próprio Estado resolveu tratar de
maneira menos grave determinada conduta, não se justifica que alguém
continue sofrendo seus efeitos.
Já a ultratividade da lei mais favorável tem o mesmo significado da
irretroatividade da lei mais gravosa, ou seja, os efeitos da lei mais benéfica se
sobreporão aos efeitos da lei mais gravosa quando essa for posterior àquela.
Os efeitos da lei benéfica continuam a ser usufruídos pelo réu, enquanto os
efeitos da lei mais grave não lhe podem ser aplicados.

5.3.2.2 Nullum crimen nulla poena sine lege scripta


Conforme já salientado, somente a lei escrita, isto é, promulgada de
acordo com a Constituição Federal, é que pode criar crimes e penas. É,
portanto, a lei, a única fonte formal e direta criadora de proibições e sanções.
Entretanto, conforme assinala Francisco de Assis Toledo, não se pode
supor que o direito costumeiro esteja totalmente abolido do âmbito penal,
pois ele tem grande importância para elucidação do conteúdo dos tipos.35 No
mesmo sentido, Nilo Batista afirma que é indiscutível que os costumes
desempenham uma função integrativa, que se apresenta na elucidação de
elementos de alguns tipos penais, como, por exemplo, o termo “mulher
honesta” que era previsto no revogado art. 219 que definia o crime de rapto,
ou então “ato, objeto e escrito obsceno” previstos nos crimes de ultraje
público ao pudor, nos vigentes arts. 233 e 234 do CP,36 pois é preciso que se
analisem os costumes de determinada época e local para que se possa integrar
o tipo penal e saber se efetivamente o “ato, objeto ou escrito” tem ou não
cunho obsceno que possa afrontar a “moralidade pública”.
Sendo assim, os costumes, comumente considerados como fonte do
direito em outras áreas jurídicas, no âmbito penal não podem de forma
alguma criar crimes e/ou penas.
O contrário, porém, não é verdadeiro. Admite parte da doutrina37 e da
jurisprudência38 que os costumes constituem fonte de direito penal quando
operam na exclusão da ilicitude, diminuição da pena ou da culpabilidade,39
fenômeno esse conhecido por desuetudo.
Para ilustração, utilizaremos um exemplo de desuetudo citado por
Cláudio Brandão ao tratar sobre o tema. Utiliza-se, o referido autor, do art.
132 do CP, que traz a seguinte redação: “Expor a vida ou a saúde de outrem a
perigo direto e iminente: Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, se
o fato não constitui crime mais grave”. O referido autor traz à baila uma
situação circense, em que um homem de olhos vendados atira facas em
direção a uma mulher, a qual se encontra numa roda em movimento. Tal fato,
sem a menor dúvida, expõe a saúde e vida de outrem (mulher, no caso) a
perigo direto e iminente, pois existe a possibilidade concreta de dano ao bem
jurídico tutelado, já que pode ser atingida por uma das facas. Do ponto de
vista puramente formal, o tipo encontra-se configurado. Entretanto, o
costume exclui a reprovação social da conduta, que pelo consenso social
torna-se lícita.40
O Direito Consuetudinário, portanto, não pode ser utilizado quando
houver prejuízo para o indivíduo, ou seja, em malam partem. Todavia, o
costume poderá ser invocado para socorrer o acusado, isto é, em bonam
partem.
Essa situação se justifica pelo simples fato de que o princípio da
legalidade deve sua existência à necessidade de limitar o arbítrio estatal e
garantir a segurança do cidadão. Admitido o costume como fonte de
incriminação ou agravamento da situação do réu, esvai-se a almejada
segurança jurídica. Porém, se o costume passa a admitir determinada conduta
que antes era considerada “profana”, perniciosa, causadora de mal-estar
social, como normal, a proibição perde todo o sentido, já que o Estado e o
próprio Direito Penal somente existem como meio para que os cidadãos
alcancem seus ideais e não como fins em si mesmos.

5.3.2.3 Nullum crimen nulla poena sine lege certa


Para que o princípio da legalidade concretize a garantia individual a que
se propõe, não basta que haja uma lei – em sentido estrito – anterior ao fato,
pois ainda é necessário que o conteúdo dessa lei seja cognoscível pelo
indivíduo, de modo que ele consiga compreender seu conteúdo e determinar-
se de acordo com ele.
Nas palavras de Heleno Cláudio Fragoso:

Atinge o princípio da legalidade a incriminação vaga e indeterminada de


certos fatos, que deixa incerta a esfera da licitude, comprometendo, desta
forma, a segurança jurídica do cidadão. É este um aspecto novo do velho
princípio, que pode ser formalmente observado, com a existência de uma lei
prévia, mas violado na substância com a indeterminação da conduta
delituosa. (...) A incriminação vaga e indeterminada faz com que, em
realidade, não haja lei definindo como delituosa certa conduta, por entrega,
em última análise, a identificação do fato punível ao arbítrio do julgado.41

É, portanto, uma exigência do Estado Democrático de Direito,


decorrente do princípio da legalidade, que a lei seja certa e determinada, ou
seja, que especifique exatamente quais são as condutas proibidas e suas
consequências, para que o cidadão possa, de forma simples, entender quais
limitações lhe foram impostas pelo Estado-legislador.
Surge aqui, portanto, um novo – no sentido de moderno – aspecto e
subprincípio do princípio da legalidade, chamado pela doutrina ora de
princípio da taxatividade, ora da determinação, ora da taxatividade-
determinação, ora da certeza ou, ainda, do mandato da certeza.
Assim, por determinação do referido subprincípio, não pode a lei penal
ser ambígua, genérica, vazia, indeterminada ou abusar de cláusulas gerais e
conceitos indeterminados, mas sim buscar, com simplicidade, a maior
determinação possível.
Todavia, nos alerta Francisco de Assis Toledo:

Infelizmente, no estágio atual de nossa legislação, o ideal de que todos


possam conhecer as leis penais parece cada vez mais longínquo,
transformando-se, por imposição da própria lei, no dogma do conhecimento
presumido, que outra coisa não é senão pura ficção jurídica.42

Em famosa sistematização, Eugenio Zaffaroni distinguiu as seguintes


modalidades de violação do princípio da legalidade com a criação de
proibições vagas e indeterminadas:

Ocultação do núcleo do tipo: chama-se de núcleo do tipo penal o verbo


através do qual o agente pratica a conduta criminalizada (o núcleo do tipo
penal de homicídio é matar), sendo que em alguns tipos penais a ação não é
descrita perfeitamente, de modo que possa ser diferençável de outras, mas
sim de forma confusa, omitindo seu significado no emprego de um verbo
inadequado, como acontecia, por exemplo, com o antigo crime de adultério,
previsto no art. 240: “cometer adultério”, onde o crime era definido pela
utilização do próprio objeto que se queria definir. Assim, para a lei, cometia o
crime de adultério aquele que praticasse adultério, ou seja, a lei não definia o
que era adultério, tampouco como esse adultério poderia ser praticado: era
necessário que houvesse conjunção carnal, atos libidinosos ou bastava um
beijo com outra pessoa que não o cônjuge? Ainda, a tipificação do art. 149 do
CP: “Reduzir alguém a condição análoga à de escravo”, onde o legislador
quer tutelar a liberdade e, para tanto, ao invés de proibir a sua constrição,
constrói o tipo sobre o resultado que quer evitar, sem delimitar quais
condições considera análogas à de escravo.
Emprego de elementos do tipo sem precisão semântica: é possível
compreender exatamente o significado de expressões tais como “estado de
perigo moral”, art. 245; “casa mal afamada”, “pessoa viciosa ou de má vida”,
“espetáculo capaz de pervertê-lo”, art. 247; “mulher honesta”, revogado art.
219? Tais elementos normativos não gozam de um nível aceitável de “certeza
típica”.43
Tipificações abertas e exemplificativas: são os chamados tipos “abertos” ou
“amplos” e também os “exemplificativos”, entendidos como aqueles que
valem-se de expressões genéricas tais como: “qualquer outro meio
fraudulento”, art. 171; “ou qualquer outro meio simbólico”, art. 147, “ou por
qualquer outro título”, art. 226, II.44

Everardo da Cunha Luna já dizia que

o maior perigo atual para o princípio da legalidade, em virtude da forma com


que se apresenta, são os chamados tipos penais abertos ou amplos, para os
quais o direito consuetudinário não tem força restritiva. Aqui, o dogma da
reserva legal é aparentemente mantido, porque a lei, em vez de falar, concede
a palavra para quem dela quiser, ou melhor, puder fazer uso. Trata-se de uma
tendência autoritária do direito penal contemporâneo, que se observa em
vários países, inclusive no Brasil (...).45

O referido autor preocupa-se tanto com a utilização indiscriminada dos


“tipos penais abertos” e seus efeitos negativos que propõe um acréscimo ao
princípio. Segundo o autor, o art. 1o do CP, depois do acréscimo, passaria a
ter a seguinte redação:

Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia
cominação legal. Parágrafo único [sugestão de Cunha Luna]: O crime,
definido em lei anterior, de que trata este artigo, consiste em fato concreto e
determinado.46

A lei penal, como qualquer outra, é compreendida por meio da


linguagem. Desse modo, o princípio da determinação, corolário do princípio
da legalidade, impõe ao legislador uma exigência linguística: a utilização de
signos linguísticos claros que possibilitem uma individualização do modelo
abstrato de conduta.47

5.3.2.4 Nullum crimen nulla poena sine lege estricta


Tal subprincípio relaciona-se diretamente com a proibição da analogia
em matéria penal para criar crimes, fundamentar ou agravar as penas.
Para seu estudo, é necessária, portanto, uma análise prévia de alguns
institutos.
De forma bem simples, a analogia pode ser conceituada como um
método de integração de lacunas no direito.
Segundo Karl Engish, as lacunas são

deficiências do Direito positivo (do direito legislado ou do Direito


consuetudinário), apreensíveis como faltas ou falhas de conteúdo de
regulamentação jurídica para determinadas situações de facto em que é de
esperar essa regulamentação e em que tais falhas postulam e admitem a sua
remoção através de uma decisão judicial jurídico-integradora.

Continua o referido autor: “As lacunas aparecem, portanto, quando nem


a lei nem o Direito consuetudinário nos dão uma resposta imediata a uma
questão jurídica”.48
Sendo vedado ao magistrado abster-se de realizar o julgamento por
ausência de previsão legal, havendo uma lacuna, é preciso que de algum
modo ela seja preenchida. Utiliza-se, para tanto, a analogia, que possui uma
função integradora, isto é, ela não exclui as lacunas existentes no
ordenamento, mas fecha-as.
Miguel Reale, ao explicar a analogia, escreve:

A analogia atende ao princípio de que o Direito é um sistema de fins. Pelo


processo analógico, estendemos a um caso não previsto aquilo que o
legislador previu para outro semelhante, em igualdade de razões. Se o sistema
do Direito é um todo que obedece a certas finalidades fundamentais, é de se
pressupor que, havendo identidade de razão jurídica, haja identidade de
disposição nos casos análogos, segundo um antigo e sempre novo
ensinamento: ubi eadem ratio, ibi eadem juris dispositio (onde há a mesma
razão deve haver a mesma disposição de direito).49
Assim, é a analogia uma forma de integração comumente utilizada para
integração de lacunas no sistema jurídico. É aplicável em diversos ramos do
direito. No direito civil, por exemplo, na Lei de Introdução às Normas do
Direito Brasileiro – LINDB, que tem aplicabilidade subsidiária a todo
regramento jurídico, o art. 4o tem a seguinte redação: “Quando a lei for
omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os
princípios gerais de direito”.

Entretanto, não obstante a sua aplicação nos demais ramos do direito, o


princípio da legalidade impede a incidência da analogia no âmbito penal para
restringir a liberdade do cidadão, pois tal função é reservada única e
exclusivamente à lei, em seu sentido estrito.
Ilustremos com um exemplo.50
O art. 269 do CP diz: “Deixar o médico de denunciar à autoridade
pública doença cuja notificação é compulsória. Pena – detenção, de 6 (seis)
meses a 2 (dois) anos, e multa”. O referido tipo penal tem como bem jurídico
a saúde pública. Assim, o médico que diagnosticar um paciente com uma
doença que possa gerar uma epidemia – malária, por exemplo – tem a
obrigação legal de notificar tal fato às autoridades públicas, para que estas
possam tomar as providências necessárias para evitar a epidemia. Se o
médico, após esse diagnóstico, não notificar o fato à autoridade sanitária,
comete o crime previsto no art. 269. Imaginemos, porém, uma situação
comum em alguns povoados do Nordeste, que por serem muito longe dos
centros urbanos não têm médicos suficientes, motivo pelo qual a chefia do
posto de saúde local é entregue à enfermeira. Se essa enfermeira, responsável
pelo posto de saúde, deixa de denunciar às autoridades públicas alguma
doença de notificação compulsória da qual toma conhecimento, haverá, sem
sombra de dúvidas, um perigo de lesão ao bem jurídico saúde pública, que é
exatamente o mesmo que existiria se o responsável pelo posto de saúde fosse
um médico que não denunciasse a doença. Entretanto, somente o médico
responderia pelo crime do art. 269 e a enfermeira, na mesma situação, não. O
princípio da legalidade impede que se estenda à enfermeira, por analogia, a
obrigação legal imposta ao médico, ainda que haja exatamente o mesmo
perigo ou dano ao bem jurídico tutelado, pois a lei – fonte única de
criminalização – impôs a obrigação somente ao médico e não à enfermeira.
A permissão da criação de crimes ou majoração das penas por meio da
analogia violaria toda e qualquer segurança jurídica almejada pelo princípio
da legalidade, pois permitiria o exercício de arbitrariedades pelo magistrado
que, caso entendesse que se determinada conduta, não prevista pelo
legislador como crime, fosse análoga a outra com previsão legal, poderia
aplicar a pena dessa àquela. Tal situação violaria, certamente, não só a
segurança jurídica do cidadão – que como já dissemos tem o direito-garantia
de saber o que pode ou não fazer –, mas também os postulados do próprio
Estado Democrático de Direito, que sempre deve ter o Direito Penal como
um limite a sua própria atuação perante o indivíduo.
Entretanto, a vedação à utilização da analogia não é absoluta, pois se
permite sua utilização naquelas situações em que seja favorável ao réu.

A analogia encontra-se excluída se é in malam partem, enquanto é admitida


caso seja in bonam partem, ao estar sua proibição dirigida, conforme o
critério geral do favor rei, a impedir não a restrição, mas somente a extensão
por obra da discricionariedade judicial do âmbito legal da punibilidade.51

Um exemplo que permitia aplicação da analogia in bonam partem era


possível no art. 126 da Lei de Execuções Penais. O art. 126 da LEP tinha a
seguinte redação: “O condenado que cumpre a pena em regime fechado ou
semiaberto poderá remir, pelo trabalho, parte do tempo de execução da
pena”. O § 1o do mesmo artigo dizia que: “contagem do tempo para o fim
deste artigo será feita à razão de 1 (um) dia de pena por 3 (três) de trabalho”.
Assim, o condenado que durante o cumprimento da pena trabalhar poderá
descontar um dia de sua pena para cada três dias trabalhados. Porém, não
existe trabalho para todos os sentenciados e a própria LEP, em seu art. 122,
II,52 permite que os condenados frequentem cursos profissionalizantes, de
instrução de 2o grau e superior, mas não previa a hipótese de remição para
aqueles que estiverem estudando. Assim, de forma analógica, era possível
que se aplicasse o benefício da remição – descontar um dia de prisão para
cada três de estudo – àquele sentenciado que em vez de trabalhar, estudava,
pois dessa forma estava-se priorizando e ampliando a liberdade do
indivíduo.53 Entretanto, para o caso específico acima descrito não há mais
necessidade de se fazer analogia in bonam partem, vez que a Lei no
12.433/2011, alterou o art. 126 da LEP, possibilitando expressamente a
remição pelo estudo.
Assim, de maneira bem simples, podemos dizer que não se pode aplicar
a analogia para prejudicar o réu – restringindo sua liberdade ou majorando
sua pena –, mas que poderá ser aplicada caso o beneficie – aumentando a sua
liberdade ou amenizando sua pena.
Nesse sentido, afirma o italiano Giusseppe Bettiol:

Malgrado contudo da possibilidade lógica da extensão em concreto de uma


norma penal, a extensão “desta” norma não deve ser considerada admissível.
É-lhe hostil, de modo insuperável, o art. 1o do CP, ou seja, o princípio da
legalidade pelo qual um fato pode ser considerado crime e uma pena pode ser
infligida somente se há uma norma que expressamente preveja o fato como
crime e preveja sanção, o que significa que, conforme o art. 1o, reforçado pelo
art. 14 das disposições preliminares do Código Civil, as normas penais
incriminadoras, as que preveem crimes e penas, seja de forma típica, seja de
forma agravada, não são passíveis de extensão analógica. O bem supremo da
liberdade individual deve ter preponderância sobre a possibilidade de
extensão da lei.54

Importante que não se confunda a analogia com a interpretação


extensiva e tampouco com a interpretação analógica. Nélson Hungria faz bem
a distinção de uma e de outra. Em relação à primeira diz que:

Certa semelhança existe, prima facie, entre a interpretação extensiva e a


analogia, que, como já vimos, é inadmissível em matéria penal; mas
essencialmente se distinguem. Na interpretação extensiva, dá-se a ampliação
do sentido das palavras para acomodá-lo à própria vontade da lei, para
resolver, por mera identidade de razão, um caso não previsto, explícita ou
implicitamente, pelo legislador. A analogia, portanto, não é interpretação,
mas criação ou formação de direito novo, isto é, aplicação extensiva da lei a
casos de que esta não cogita. Com ela, o juiz faz-se legislador, para suprir as
lacunas da lei. É um processus integrativo, e não interpretativo da lei.55

Em relação à segunda escreve:

Não há confundir a analogia com a interpretação analógica, permitida pela


própria lei. Trata-se, aqui, de analogia intra legem, de que é exemplo, entre
outros muitos, a consentida na fórmula do crime continuado (art. 71 do CP),
que depois de mencionar as condições de “tempo, lugar, maneira de
execução”, indiciárias da homogeneidade objetiva dos fatos sucessivos,
acrescenta: “e outras semelhantes”. É óbvio que, no limite da semelhança,
referida à casuística exemplificativa, cabe ao juiz reconhecer as hipóteses não
previstas individualmente. Toda vez que uma cláusula genérica se segue a
uma fórmula casuística, deve entender-se que aquela somente compreende os
casos análogos aos destacados por esta, que, do contrário, seria inteiramente
ociosa.56

Encerramos com trecho de Everardo Cunha Luna que sintetiza a


importância do princípio da legalidade ao afirmar que:

O princípio da reserva legal deve ser mantido e defendido pelos juristas de


formação liberal. Sem ele, empalidece a certeza, a mínima segurança jurídica
indispensável à boa prática da justiça. E a segurança, de um modo geral, não
pode dar a vida, observa Jorge Santayana, mas sem a sensação de segurança e
se a liberdade vital que essa sensação comporta, a vida não valeria a pena de
ser vivida.57

5.4 PRINCÍPIO DA INTERVENÇÃO MÍNIMA


O princípio da intervenção mínima é resultado do movimento social de
ascensão da burguesia, que reagia contra o absolutismo e toda sua
arbitrariedade, contestando as instituições do antigo regime.
Trata-se, portanto, de um típico princípio liberal, tanto que se encontra
nas obras dos mais importantes pensadores do liberalismo, tais como John
Locke, Montesquieu, Rousseau e Beccaria.
A construção desse princípio parte do reconhecimento de que o Direito
Penal é a forma mais grave e violenta de intervenção do Estado na vida do
cidadão, pois retira deste um de seus bens mais preciosos: a liberdade.
O princípio da intervenção mínima relaciona-se diretamente com a ideia
de bem jurídico, pois conforme assinala Hassemer: “Com o
comprometimento da tutela penal com a proteção de bens jurídicos, ocorreu
que (...) o princípio da ultima ratio ganhou vida (...)”.58
Assim, por ser uma medida extrema, o Direito Penal não deve ser
utilizado em toda e qualquer situação, mas somente naquelas situações em
que for estritamente necessário para proteção dos bens jurídicos.
Todavia, se for possível que se protejam esses bens jurídicos por meio
de formas menos invasivas e menos violentas, que privilegiem a liberdade do
cidadão (compreendem-se aqui atuações não jurídicas como o aprimoramento
de políticas educacionais e culturais, bem como atuações jurídicas menos
agressivas, tais como o Direito Civil e o Direito Administrativo), não deverá
ser utilizado o Direito Penal.
No seguinte trecho, Claus Roxin explícita a questão:

A razão pela qual o Direito Penal apenas deve ser empregado quando
fracassam todos os outros meios político-sociais de coibição de um
comportamento social criminoso reside no fato de que a punição pode
prejudicar a existência social do condenado e arrastá-lo para a margem da
sociedade, tendo até mesmo um efeito socialmente nocivo. Por isso, deve-se
preferir, no lugar da punição, todas as medidas que possam evitar uma
perturbação social, mas que tragam para o condenado consequências menos
incisivas. Costuma-se expressar essa ideia dizendo que o Direito Penal seria a
ultima ratio (o último recurso) da política social.59

De fato, mesmo o Direito Penal, que supostamente é o instrumento mais


eficaz à disposição do Estado para controlar o problema criminal, demonstra-
se ineficaz na prevenção dos delitos. A intervenção no conflito social é tardia,
pois não se dá enquanto o conflito é criado, mas somente quando este se
manifesta. Além de intervir tardiamente, intervém mal, pois não apresenta
uma resposta às causas do conflito (etiológica), mas somente uma resposta
aos efeitos do delito (sintomatológica). Assim, uma prevenção genuína e
eficaz dos crimes deve ser programada a longo prazo e não buscada na sua
estrita e negativa função intimidatória. Ademais, analisando-se de forma
científica os efeitos do Direito Penal no infrator, desmistifica-se o suposto
impacto positivo causado pela pena. Pelo contrário, tudo parece indicar que a
pena não ressocializa, mas sim estigmatiza; não limpa, mancha, ou seja, o
controle penal não resolve o problema da desviação do delinquente, mas sim
o potencializa. Ademais, a intervenção penal também produz perniciosos
“efeitos colaterais” a terceiros, tais como familiares e pessoas próximas ao
condenado, que apesar de não terem participado do crime, restam também,
assim como o apenado, estigmatizados e socialmente excluídos. Por fim, a
intervenção penal é negativa para a própria comunidade em que está inserido
o condenado, pois evidencia a incapacidade desta para resolver seus
problemas de uma maneira menos traumática e sem os elevados custos
sociais que decorrem da intervenção penal.60
Daí podermos afirmar que quanto menos o Direito Penal for aplicado,
melhor para o cidadão, para sua família e para a sociedade, devendo ser
guardado apenas para os casos de extrema necessidade.
O princípio da intervenção mínima é, portanto, mais um limite imposto
ao poder punitivo estatal, que busca evitar a produção de uma legislação
inadequada e injusta.61
Conforme lição de Pablos de Molina, afirmar que a intervenção do
Direito Penal deve ser uma intervenção “legalizada” (nullum crimen sine
lege), e que este só pode incriminar comportamentos ativos ou omissivos (só
há crime se houver a prática de uma conduta – fazer ou não fazer algo) que
lesionem ou ponham em perigo “bens jurídicos” (princípio da lesividade),
não basta, pois traçando o marco de atuação do ius puniendi, seus contornos
obrigatórios (princípio da legalidade) e seu objeto (princípio da lesividade),
se limita de forma muito imprecisa e insatisfatória a intervenção penal. Na
opinião do autor, seguiria sendo possível a perniciosa “fuga ao Direito Penal”
e o conhecido fenômeno da “perversão do bem jurídico”, tornando, assim,
imprescindível, destacar outros “limites materiais” (político-criminais) do
poder punitivo estatal que circunscrevam a legítima atuação deste; limites,
por outro lado, que afetem não suas condições ou formas de exercício, mas
sim seu próprio conteúdo e extensão.62
Para alcançar o fim a que se destina, o princípio ora tratado desdobra-se
em dois aspectos – subsidiariedade e fragmentariedade –, que parte da
doutrina considera como princípios autônomos, desvinculados do princípio
da intervenção mínima, situação com a qual não concordamos, motivo pelo
qual os trataremos como subprincípios.

5.4.1 Intervenção fragmentária do Direito Penal


Aponta a doutrina que o caráter fragmentário do Direito Penal foi
registrado pela primeira vez por Karl Binding, em seu Tratado de direito
penal alemão comum (1986), e desde então sempre esteve presente no estudo
do Direito Penal.63
Entretanto, importante destacar que Binding apontou o caráter
fragmentário do direito penal de uma forma crítica, lamentando o fato de os
Códigos Penais não preverem uma proteção total e homogênea dos bens
jurídicos, mas sim apenas parcial, incompleta e “fragmentária”. Justifica-se
tal posição pelo simples fato de Binding ser adepto de uma concepção
conservadora e retribucionista do Direito Penal – a pena como retribuição do
mal causado e não como forma de prevenção do delito –, não podendo
admitir que ficassem impunes algumas condutas lesivas ao bem jurídico. Para
Binding, portanto, a fragmentariedade do Direito Penal é um defeito que deve
ser solucionado para propiciar uma proteção penal aos bens jurídicos sem
fissura.64
Não obstante a autoridade de Binding, a evolução dos Estados para o
estágio em que pretendem ser Democráticos e de Direito exigiu que o Direito
Penal recuasse diante da liberdade individual, pois uma proteção penal
absoluta e generalizada seria própria de um Estado Policial e provocaria a
angústia e insegurança dos cidadãos, de modo que a fragmentariedade
tornou-se uma necessidade político-criminal.65
No atual estágio da dogmática penal, pode-se dizer que o caráter
fragmentário do direito penal significa que este não pretende abarcar com
seus efeitos todas as condutas ilícitas, mas somente aquelas que constituem
ataques intoleráveis contra bens jurídicos essenciais à convivência
pacífica.66,67
Mas não é só. A limitação imposta pela fragmentariedade é ainda maior,
pois além de não se admitir a tutela penal de todos os bens jurídicos, mesmo
em relação àqueles que merecem a tutela penal, somente intervirá o Direito
Penal quando o ataque for demasiadamente gravoso.
Com base nesse subprincípio, podemos afirmar que de todas as condutas
que são consideradas ilícitas pelo ordenamento jurídico, apenas algumas
delas serão objeto da tutela penal, especificamente, aquelas que atingem de
forma mais grave os bens jurídicos. Desse modo, algumas condutas, por
atingirem os bens jurídicos de forma mais amena, apesar de não serem
permitidas pelo ordenamento jurídico, não são consideradas infrações penais,
mas apenas ilícitos civis ou administrativos.
Exemplifiquemos: o Direito Penal sem sombra de dúvidas tutela o
patrimônio, por considerá-lo um bem jurídico essencial. Entretanto, não são
todas as condutas lesivas ao patrimônio que são consideradas crimes, mas
apenas aquelas que o atingem de maneira mais gravosa. Importa-se, portanto,
o Direito Penal com o furto (art. 155 do CP), o roubo (art. 157 do CP), a
extorsão (art. 158), a extorsão mediante sequestro (art. 159), o estelionato
(art. 171), a apropriação indébita (art. 168 do CP), o dano (art. 163 do CP)
etc., pois são agressões graves ao patrimônio. Entretanto, se em um acidente
de trânsito um motorista destrói, sem intenção, o carro do outro, apesar de ter
causado uma lesão ao patrimônio alheio, tal conduta não é considerada
criminosa. O mesmo acontece se uma pessoa emprestar para outra
determinada quantia em dinheiro e aquele que pegou emprestado recusar-se a
quitar a dívida. Não, nas duas hipóteses, apesar de haver uma clara lesão ao
bem jurídico alheio, não há que se falar em crime e tampouco chamar o
Direito Penal para resolução do conflito. Assim, àquele que sofreu o prejuízo
só resta buscar, por intermédio do Direito Civil, uma reparação indenizatória
ou ajuizar uma ação de cobrança.
Nesse sentido, importante a sentença de Nélson Hungria ao comentar o
tipo penal do estelionato – cuja fraude é necessária – e distingui-lo de um
ilícito civil – descumprimento de um contrato ou não pagamento de uma
dívida:

Somente quando a sanção civil se apresenta ineficaz para reintegração da


ordem jurídica, é que surge a necessidade da enérgica sanção penal. O
legislador não obedece a outra orientação. As sanções penais são o último
recurso para conjurar a antinomia entre a vontade individual e a vontade
normativa do Estado. Se um fato ilícito, hostil a um interesse individual ou
coletivo, pode ser convenientemente reprimido com as sanções civis, não há
motivo para a reação penal.68

5.4.2 Intervenção subsidiária do Direito Penal


A intervenção subsidiária do Direito Penal é um postulado limitador do
ius juniendi, também com fundamento político-criminal, que sugere ao
Estado uma utilização moderada e cuidadosa dos instrumentos penais,
precisamente por haver à disposição do Estado de Direito outros meios
eficazes e de menor custo social.69
Apesar de ser o Direito Penal o setor do ordenamento que dispõe dos
meios mais drásticos para proteção dos bens jurídicos, não é o único a fazê-
lo. O Estado moderno dispõe de um verdadeiro arsenal de meios (não só
penais) para cumprir sua função protetora da ordem social. Assim, é
necessário que se tenha uma estratégia racional para o controle do crime que
pondere a eficácia do instrumento utilizado e o custo social do mesmo, de
modo que não será legítima a utilização de meios severos, como os penais, se
é possível a utilização exitosa de meios “não penais”, menos devastadores.
Nas palavras de Molina:

A “cirurgia penal”, por seus efeitos traumáticos e irreversíveis – por sua


nocividade intrínseca – só pode prescrever-se in extremis, isto é, quando não
se dispõem de outras possíveis técnicas de intervenção ou estas resultam
ineficazes: como ultima ratio.70

O princípio da subsidiariedade expressa, portanto, uma exigência


elementar: a necessidade de hierarquizar, otimizar e racionalizar os meios
disponíveis para responder ao problema criminal de forma adequada e eficaz.
Trata-se de uma autêntica exigência de “economia social”, que deverá optar
sempre pelo tipo de intervenção menos lesiva ou limitativa dos direitos
individuais, vez que o Direito Penal é o último recurso de uma política social
saudável.71
Günther Jakobs entende que o princípio da subsidiariedade é uma
variante do que chama de princípio da proporcionalidade, segundo o qual
“uma intervenção penal não está autorizada se o mesmo efeito puder ser
alcançado da mesma forma por meio de uma medida menos incisiva”.72
Zulgardia Espinar aponta os seguintes exemplos como aplicação prática
do princípio da subsidiariedade:

(A) os roubos noturnos em postos de gasolina reduziram-se notavelmente


com a instalação de caixas-fortes em que os empregados, sem dispor das
chaves de abertura, iam depositando o dinheiro recebido; (B) a proibição de
vender bebidas alcoólicas nos postos de serviço perto de estradas é uma
importante medida de prevenção, não penal, de acidentes de trânsito; (C) uma
política de pleno emprego que ofereça alternativas ao comportamento
desviante dos jovens seria, sem dúvida, sumamente eficaz para evitar os
gravíssimos problemas que as drogas causam nessa faixa da população.73
Impossível não admitir que a colocação em prática, com seriedade, do
princípio da intervenção mínima – respeitando seu caráter fragmentário e
subsidiário – é, na maioria dos casos, muito difícil.74
A dificuldade, entretanto, não pode ser utilizada pelo Estado como uma
escusa para ignorar tal princípio e utilizar o Direito Penal como panaceia dos
problemas de criminalidade e da segurança pública em geral, pois como
afirma Claus Roxin ao tratar do tema:

É verdade que não surgirão daí soluções prontas para o problema da


legitimação de tipos penais, mas ter-se-ão linhas de argumentação bastante
concretas, que podem auxiliar que se impeça uma extensão das faculdades de
intervenção do direito penal em contrariedade à ideia do estado de direito.75

O princípio da intervenção mínima deve ser encarado como um


postulado fundamental do Estado Democrático de Direito, orientado a
garantir a paz social com a maior liberdade individual possível, ou seja:
busca-se a segurança pública com respeito ao cidadão.
A ideia da intervenção mínima pode, em uma primeira leitura, sugerir
que ao Estado Democrático de Direito interesse apenas a redução pura e
simples da incriminação e da apenação. Isso, entretanto, não é verdade. Uma
intervenção repressiva orientada pela ideologia do Estado Democrático de
Direito importa na redução da incriminação e da apenação ao estritamente
necessário. A utilização do direito punitivo deve ser sempre limitada e
orientada pelos objetivos de realização dos interesses sociais maiores. Assim,
“se o Direito Penal deve restringir sua interferência ao mínimo necessário, a
força punitiva da intervenção deve ser bem orientada para produzir os
melhores resultados possíveis”.76
De forma bem simplista, podemos afirmar que o princípio da
intervenção mínima, no âmbito do Estado Democrático de Direito, exige que
se puna menos para que se puna melhor, com mais justiça.
5.4.3 Concretização da intervenção mínima – o
princípio da insignificância ou criminalidade de
bagatela
O princípio da insignificância, também chamado de criminalidade de
bagatela, deriva do princípio da ofensividade (lesividade) e também da
intervenção mínima do Direito Penal, que não deve se ocupar de condutas
irrelevantes, cuja lesão ao bem jurídico protegido não demonstre a
necessidade da intervenção estatal punitiva. Por exemplo, furtos de objetos de
valor insignificante, como uma borracha, um lápis, um sabonete, que não
caracterize lesão relevante à propriedade ou a qualquer outro bem jurídico,
não devem justificar a atuação do Estado de combate à criminalidade, uma
vez que podem ser resolvidas dentro de outras formas de atuação estatal.
Esse princípio da insignificância atua como uma forma de exclusão da
tipicidade, considerada em seu aspecto material.
O crime possui uma descrição na lei penal, chamada tipo penal. Esse
tipo possui um aspecto formal, que é essa narrativa estabelecida na norma
jurídica, como, por exemplo, os artigos da parte especial do Código Penal.
Mas, há também um aspecto material do crime, também contido no tipo
penal, que legitima a sua conceituação: a conduta deve afetar um bem
jurídico protegido pela norma penal de forma relevante. Essa tipicidade
material é que está excluída pelo reconhecimento da insignificância da
conduta.
O STF e o STJ adotam essa caracterização, exigindo, ao arrepio da
doutrina que não faz essas exigências, quatro requisitos para o
reconhecimento do princípio da insignificância, no caso concreto: (a) a
mínima ofensividade da conduta; (b) a ausência de periculosidade social da
ação; (c) o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento; (d) a
inexpressividade da lesão jurídica.77
5.4.4 A crise do princípio da intervenção mínima e a
tendência neocriminalizadora
Embora o princípio da intervenção mínima remonte à Revolução
Francesa e tenha sido consagrado expressamente na Declaração dos Direitos
do Homem e do Cidadão, a partir da segunda década do século XIX, as
normas penais incriminadoras cresceram desmedidamente, a ponto de chamar
a atenção de penalistas de diversas épocas.78
O alemão Carl Joseph A. Mittermaier, em 1819, já enfatizava que um
dos erros fundamentais da legislação penal era a sua excessiva extensão, fato
que, para ele, representava a própria decadência do Direito Criminal. Na
Itália, em 1855, Giuseppe Puccioni falava em “delitos de mínima importância
política” e na “ameaça da pena aflitiva de prisão a levíssimas lesões pessoais
e a simples injúria”. Sustentava, ainda, que a ampliação do direito penal
desencadearia duas consequências: a primeira é de que os Tribunais se
achariam sobrecarregados, retardando a administração da justiça; e a segunda
é de um agravamento das finanças públicas que têm que arcar com os custos
da manutenção dos condenados. Francesco Carrara, em 1883, na obra Um
nuovo delito, falava da “nomomania” ou “nomorreia” penal, escrevendo que
a praga de seu tempo estava no fato de se ter esquecido do sábio aforisma da
jurisprudência romana: minima non curat praetor. Franz von Liszt, em 1896,
enfatiza que a legislação de seu tempo fazia “um uso excessivo da arma da
pena” e que seria aconselhável resgatar a máxima minima non curat praetor.
Reinhart Franck, em 1898, emprega, pela primeira vez, a expressão
hipertrofia penal, salientando que a pena estava sendo utilizada
abusivamente, motivo pelo qual perdera parte de seu crédito. Já em nosso
século, as advertências e críticas continuaram a ser dirigidas à criação
excessiva e descriteriosa de delitos e o esvaziamento da força da pena.
Francesco Carnelutti falava de “inflação legislativa”, sustentando que seus
efeitos eram parecidos ao da inflação monetária, já que “desvalorizavam as
leis, e no concernente às leis penais aviltam a sua eficácia preventiva geral”.
Carlo Enrico Paliero fala em crescimento “patológico” da legislação penal.79
Em relação ao atual Código Penal brasileiro, afirma Luiz Luisi:

O Código Penal de 1940 – cuja parte especial está ainda em vigor –, foi
acrescido por uma série vultosa de leis que preveem novos tipos penais, em
sua maioria totalmente desnecessários e em desacordo com reais injunções, e
outros elaborados de modo a comprometer a seriedade da nossa legislação
penal, chegando em alguns casos a conotações paradoxais e hilariantes.80

O problema é que o Estado tenta solucionar, por meio de uma política


penal, e não de uma política criminal,81 o problema da criminalidade, levando
a cabo um aumento na quantidade de penas e de crimes, utilizando-se cada
vez mais do direito penal na tentativa de resolver situações que seriam
facilmente solucionadas por outros ramos do direito.82

5.4.5 Concretização da intervenção mínima – Os


processos de descriminalização
Em virtude dessa “inflação legislativa” e da consciência de que o
encarceramento, além de ter um alto custo, acaba, na maioria dos casos, por
trazer mais prejuízos do que benefícios para o condenado e também para a
sociedade, várias medidas têm sido propostas para tentar reduzir a aplicação
do Direito Penal e de seus perniciosos efeitos.
Um importantíssimo documento internacional, “As regras de Tóquio”,
especificamente na regra 2.6, prevê que “as medidas não privativas de
liberdade devem ser utilizadas de acordo como princípio da intervenção
mínima”, e na regra 2.7, que “a utilização de medidas não privativas de
liberdade deve ser parte do movimento em prol da despenalização e
descriminação, em vez de interferir ou retardar as iniciativas nesse sentido”.83
Na Itália, na década de 1980, uma série de juristas elaborou um
instrumento que fixa critérios orientadores para a escolha entre delitos e
contravenções e para elaboração dos tipos penais. Os critérios recomendados
para a elaboração de novos tipos penais são o da proporção e da necessidade.
Segundo o referido instrumento, é necessário que o fato que se pretende
criminalizar atinja valores fundamentais, básicos para o convívio social, e que
a ofensa a esses valores seja de efetiva e real gravidade. Por outro lado, prevê
o documento a indispensabilidade de inexistência de outro meio, no
ordenamento jurídico, capaz de prevenir e reprimir tais fatos com a mesma
eficácia da sanção penal. Essas normas orientadoras foram formalizadas por
circulares do Conselho de Ministros.84
Entre as várias tendências apresentadas para a reforma do sistema penal,
no sentido de se operar uma redução da intervenção punitiva do Estado,
normalmente encontram-se os seguintes processos: descriminalização,
despenalização e diversificação.
A descriminalização é a renúncia formal do Estado em punir penalmente
determinada conduta. Diz-se que houve a descriminalização quando um fato
que era considerado crime deixou de sê-lo pela lei penal. A
descriminalização, ainda, segundo Zaffaroni e Pierangeli, pode ser de fato,
quando o sistema penal deixa de agir, sem que formalmente tenha perdido
competência para isso. Em 1980, o Comitê Europeu sobre Problemas da
Criminalidade propôs a descriminalização em relação a vários delitos, tais
como: cheques, furtos em fábricas pelos empregados, furtos em grandes lojas
etc.85
A despenalização, nas palavras de Raúl Cervini, é “o ato de diminuir a
pena de um delito sem descriminalizá-lo, quer dizer, sem tirar do fato o
caráter de ilícito penal”. Trata-se, portanto, apenas de uma forma de
atenuação das penas e/ou adoção de alternativas penais, tais como a prisão de
fim de semana, prestação de serviços à comunidade, multa reparatória,
indenização à vítima, semidetenção, sistemas de controle de condutas em
liberdade, prisão domiciliar, inabilitação e todas as medidas reeducativas dos
sistemas penais.86
Normalmente, utiliza-se desse procedimento para deixar de aplicar
penas privativas de liberdade de curta duração. No Brasil, a Lei 9.099/1995,
que criou os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, é um excelente exemplo a
ser citado. A citada lei, em seu art. 61, criou o conceito de crimes de menor
potencial ofensivo ao dispor que: “Consideram-se infrações penais de menor
potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, as contravenções penais e os
crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 2 (dois) anos,
cumulada ou não com multa”.
Assim, no sentido de evitar as penas privativas de liberdade de curta
duração, a referida lei fez previsão de diversos benefícios, aplicáveis aos
crimes de menor potencial ofensivo. Esses benefícios são: composição civil;87
transação penal88 e suspensão condicional do processo.89
Por fim, a diversificação é a possibilidade legal de suspensão do
processo penal em determinado momento para que se alcance a solução do
conflito de forma não punitiva. É o que acontece no “sistema de prova”
anglo-saxão.90 No Brasil, a Lei 9.099/1995 retrata essa tendência em seu art.
89,91 que permite que o acusado tenha seu processo suspenso por um
determinado período e, ao final deste, desde que cumpridos alguns requisitos,
extinga-se a punibilidade.
Diante do exposto, concluímos que o princípio da intervenção mínima é
uma necessidade do Estado Democrático de Direito, pois tem a função de
limitar e regular a aplicação do Direito Penal, guardando-o somente às
condutas extremamente graves, dirigidas a bens jurídicos essenciais à
convivência social, sempre no sentido de preservar ao máximo a liberdade do
cidadão.

5.5 PRINCÍPIO DA CULPABILIDADE


No âmbito do Direito Penal, a palavra culpabilidade pode ser
compreendida em pelo menos duas acepções: primeiro, em uma concepção
dogmática, como elemento do crime, ao lado da tipicidade e da ilicitude;
segundo, como princípio político--criminal, atuando ora como limite e
fundamento do ius puniendi estatal, ora como critério para fixação da pena.
Segundo Franz von Liszt: “Culpabilidade, no mais amplo sentido, é a
responsabilidade do autor pelo ato ilícito que realizou”.92
No presente momento, estudaremos a culpabilidade como um princípio
político--criminal, que ao lado dos princípios já apresentados – ofensividade,
legalidade e intervenção mínima – presta-se a limitar a atuação punitiva do
Estado e a garantir a maior liberdade possível ao cidadão.
Sob o prisma político-criminal, ou seja, como um princípio limitador ao
Estado, deduz-se do princípio da culpabilidade, de um lado, que a pena
pressupõe sempre a culpabilidade, de modo que quem atua sem culpabilidade
não pode ser castigado (exclusão da responsabilidade pelo resultado); e, de
outro, que a pena não pode ultrapassar a medida da culpabilidade
(determinação da pena no marco do limite da culpabilidade). A essência da
culpabilidade, portanto, não é vista como um defeito de caráter decorrente de
uma má ou culpável condução da vida (culpabilidade pelo modo de vida),
mas sim que o autor, na situação concreta da prática do crime, não agiu
conforme o direito, mesmo isso sendo possível.93
Passemos à análise do princípio da culpabilidade em suas várias
vertentes.

5.5.1 Culpabilidade como responsabilidade subjetiva


(proibição da responsabilização pelo resultado ou
pelo fato de terceiro)
Conforme já tratado, o princípio da culpabilidade tem uma dimensão
relacionada diretamente com a responsabilização penal do agente por aquilo
que ele causou por meio de uma conduta sua – ação ou omissão.
Nesse sentido, podemos afirmar que toda responsabilidade penal
repousa em uma relação de dolo (intenção de causar o resultado) ou culpa
(agir de forma negligente a causar o resultado) entre o agente e o resultado,
devendo ser descartada a hipótese de que o puro e simples nexo de
causalidade (sem dolo ou culpa) entre o agente e o resultado dê lugar ao
nascimento da responsabilidade penal.94
Entretanto, nem sempre foi assim, pois não só a questão da
voluntariedade da ação era desconsiderada no momento da apuração da
responsabilidade penal, pois muitas vezes o próprio caráter humano e
individual do autor do crime era desconsiderado para apuração de sua
responsabilidade. Por esse motivo, tanto em épocas remotas como em tempos
mais recentes os processos contra animais95 e defuntos não eram raros, bem
como não eram difíceis de se encontrarem processos contra estátuas e
objetos.96
Apenas como exemplo, podemos relembrar o período conhecido como
“vingança de sangue”, quando a própria vítima ou seus familiares tinham o
dever-poder de vingar a agressão sofrida, e para tanto podiam investir contra
o autor da agressão e seus familiares, indistintamente. No antigo direito
grego, acontecia a mesma coisa, ou seja, a punição prescindia da
voluntariedade do delito, podendo alcançar não só o agressor, mas também
outros membros de seu círculo de parentes. O mesmo ocorria no direito
hebreu, que não fazia qualquer distinção entre os delitos intencionais e
acidentais e previa penas não só para o infrator, mas também para seus filhos
e descendentes até a sétima geração. Na Idade Média, no antigo direito
germânico, a vingança recaía sobre o réu e seus agregados e, quando não
resultava em um confronto armado, era resolvida mediante um acordo entre
as partes, sendo que a indenização era incumbência do réu e de seus parentes,
representando um ressarcimento do dano, independentemente da
voluntariedade da ação.97,98
Atualmente, o princípio da culpabilidade deve ser entendido como uma
limitação ao direito estatal de punição; isso significa que é mais um postulado
a favor da liberdade do cidadão.
Essa limitação opera-se da seguinte maneira: não se pode
responsabilizar ninguém de forma objetiva, isto é, unicamente pelo resultado
causado, se o autor não lhe deu causa por agir culposa ou dolosamente. Quer
dizer, somente poderá ser punido aquele que agir de forma reprovável,
desrespeitando o ordenamento jurídico, embora pudesse fazê-lo.
Expliquemos recorrendo a um exemplo de Nilo Batista. Numa antiga
legislação da Babilônia, editada por Hammurabi, encontramos que, se um
pedreiro constrói uma casa e esta desaba e mata seu morador, o pedreiro seria
morto. Se também morresse o filho do morador, também o filho do pedreiro
seria morto. Ora, segundo a previsão dessa lei, de nada adiantaria que o
pedreiro provasse que tomou todos os cuidados devidos na construção, ou
que o desabamento ocorreu por conta de um abalo sísmico ou acomodação do
terreno, fatos esses fortuitos e imprevisíveis.99
O raciocínio seria da seguinte forma: a casa caiu? Sim! O morador
morreu? Sim! Deve o construtor ser penalmente responsabilizado,
independentemente de ter agido com intenção de que a casa caísse (dolo) ou
com negligência na sua construção (culpa). Ainda, não nos esqueçamos do
julgamento do filho do pedreiro, que seria da seguinte forma: A casa caiu?
Sim! Matou o morador e seu filho? Sim! Deve o filho do construtor ser
punido penalmente, pois sua responsabilidade está associada simplesmente ao
acontecimento de um resultado objetivo (desmoronamento da casa e morte do
morador e de seu filho), independentemente de ter o filho do construtor
sequer participado da construção. Punia-se somente por ser filho do pedreiro
cuja casa construída desabou e matou o morador e seu filho.
Agora, se aplicássemos o princípio da culpabilidade, o raciocínio seria
da seguinte forma: a casa caiu? Sim! O morador morreu? Sim! Quando da
construção da casa, o pedreiro tinha a intenção (dolo) de que ela caísse e
matasse o morador? Se a resposta for positiva, então há responsabilidade
penal; se for negativa, ainda há outra pergunta: Quando da construção da
casa, o pedreiro foi negligente (culpa) e não observou as técnicas usuais para
construções de casa? Se a resposta for positiva, então há responsabilidade
penal; se for negativa, não haverá responsabilidade, sendo o fato
considerado um caso fortuito, não imputável a ninguém. Em relação ao filho
do pedreiro, a questão seria ainda mais simples, pois precisaríamos de uma
única pergunta: Agiu (ação ou omissão) o filho do pedreiro em relação à
construção da casa? Não! Não há que se falar de responsabilidade penal.
Nesse sentido, o princípio da culpabilidade, atualmente, impede que se
responsabilize alguém penalmente se não agiu ao menos de maneira culposa,
isto é, sem observar os cuidados necessários, e muito menos, que se puna um
terceiro (filho do pedreiro) por um ato praticado por outro,
independentemente de esse ter agido com dolo ou culpa, pois mesmo que o
pedreiro tivesse agido com a intenção de matar o morador e toda sua família,
seu filho nunca poderia ser responsabilizado penalmente por isso, já que não
há um ato (ação ou omissão) seu.
Impõe, portanto, o princípio da culpabilidade um limite à
responsabilização dos indivíduos, que é a voluntariedade, o que significa
dizer que somente pode ser considerado culpável aquele que causou o
resultado voluntariamente, seja pelo dolo ou pela culpa.
Por isso, diz-se não admitir, em sede de Direito Penal, a
responsabilidade objetiva (aquela que decorre exclusivamente pela causação
de um resultado), mas somente a responsabilidade subjetiva (aquela que além
do resultado, exige que haja um nexo psicológico – voluntariedade – entre
esse e a ação do agente, ou seja, investiga o próprio sujeito da ação).
No âmbito processual, ou seja, quando se investiga e procura definir a
culpabilidade de determinado indivíduo pela prática de uma infração penal, é
preciso, para sua condenação, que haja provas da culpabilidade, sendo que
essa jamais poderá ser presumida. Por esse motivo, comum encontrarmos na
jurisprudência absolvições fundamentadas no seguinte aforisma: “a culpa não
se presume”.100
Ao tratar da culpabilidade Ferrajoli diz que:

(...) a punibilidade apenas dos atos intencionais é, com certeza, um insuprível


elemento do sentimento comum de justiça, ao ponto de reputarmos bárbara e
injusta qualquer forma de responsabilidade objetiva ou destituída de culpa.101

O fundamento dessa exigência reside na própria função do Direito


Penal, que é a proteção dos bens jurídicos por meio da ameaça da punição, no
sentido de dissuadir o pretenso infrator. Castigar a causação objetiva de
resultados imprevisíveis e inevitáveis seria inútil, desnecessário e ineficaz.
Um Direito Penal que pretenda exigir responsabilidades por fatos que não
dependem em absoluto da vontade do indivíduo merece ser qualificado de
arbitrário e disfuncional, porque a pena carece de poder motivador e o castigo
perderia toda justificação.102
Ana Flávia Messa, ao comentar o assunto, diz que:
Num Estado Democrático de Direito não é possível transformar a
pena em relação de causalidade, sem que exista vontade ou
previsibilidade do agente, sob pena de configurar flagrante
intervencionismo estatal na liberdade individual.103

Para finalizar, trazemos trecho de Zulgaldia Spinar:

Em efeito, seria absolutamente arbitrário e inseguro um Direito Penal que


pretendesse exigir responsabilidade das pessoas por questões que não
dependem em absoluto de sua voluntariedade. Da mesma maneira que não se
pode exigir de ninguém que “não chova” e não se pode sancionar o Diretor
de um Centro Sismológico pela ocorrência de um terremoto, não se pode
sancionar quem, ao sair de um estabelecimento de onde acaba de comprar
um carro novo, atropela e mata uma pessoa pela falha do mecanismo de freio
do automóvel, que o comprador do veículo não conhecia nem poderia
prever.104

5.5.2 A culpabilidade como critério regulador da pena


O princípio da culpabilidade, no que se refere à pena, tem uma “virtude”
dúplice: funcionar, ao mesmo tempo, como fundamento e como limite da
pena.105
Quando se diz que a culpabilidade é, exclusivamente, o fundamento da
pena, atribui-se a esta caracteres retributivos, compensadores do mal causado
pelo infrator, na medida em que esse mal reflete a vontade do réu. A
culpabilidade, como fundamento da pena, projeta um sistema penal
eticizante, com o homem no seu centro, como sujeito de responsabilidade
moral, decorrente de sua autodeterminação, ou seja, capacidade para escolher
entre o “mal” e o “bem”.106
Por outro lado, admitir o princípio da culpabilidade,

exclusivamente, como limite da pena é próprio de um sistema penal no qual a


sanção encontra sua justificação na finalidade de prevenção do crime,
respondendo a culpabilidade à exigência de evitar que o Estado, na
persecução da finalidade preventiva, abuse de seu poder punitivo, chegando,
até, a “ferir” o respeito ao qual não se põe nenhuma exigência de irrogar a
pena; a culpabilidade, como limite da pena, projeta um sistema numa
perspectiva utilitarista na qual o maior perigo é o da instrumentalização do
homem para o “bem comum”.107

Dessa maneira, é preciso que se conjuguem as duas vertentes do


princípio da culpabilidade, pois o reconhecimento do referido princípio
apenas como fundamento da pena tem como consequência a adoção de um
sistema punitivo lastreado na moral, em que se pune o infrator apenas para
retribuir o mal por ele praticado, caracterizando uma espécie de “vingança
moderna”, baseada unicamente no “comportamento interior” do réu,
desconsiderando a ofensa ou perigo perpetrado contra o bem jurídico. Já o
reconhecimento do princípio da culpabilidade unicamente com limite da pena
desencadeia um utilitarismo excessivo que, em nome do “bem comum” –
representado aqui pela necessidade de prevenção dos crimes –, encontra seus
limites somente nos mecanismos de sua eficiência funcional, abrindo-se a
possibilidade de eventuais involuções aos direitos individuais.108
No que se refere à aplicação da pena, portanto, a culpabilidade é o
“termômetro”, pois ao mesmo tempo que será a razão da sua aplicação – já
que o agente praticou uma conduta (ação ou omissão), com um resultado,
decorrente de seu dolo ou culpa –, será também a sua limitação, pois não
poderá o agente receber uma pena que exceda seu grau de culpabilidade, ou
seja, o grau de reprovação de sua conduta.
Jeschek e Weigend fazem a seguinte afirmação:

O princípio da culpabilidade serve, de um lado, para a necessária proteção do


autor frente a todo excesso da intervenção repressiva do Estado. Ademais,
também procura que a pena fique limitada estritamente a uma censura pública
daquelas ações que merecem um juízo de valor ético-social, com o que,
simultaneamente, enfatiza o compromisso do Direito penal com um
“minimum ético” (Georg Jellinek). A Suprema Corte Alemã, em uma
declaração programática, fez do princípio da culpabilidade uma das peças
básicas de sua jurisprudência: “A pena pressupõe culpabilidade. Esta última
significa reprovação. Com o juízo de desvalor da culpabilidade reprova-se ao
autor por não ter atuado conforme o Direito, isto é, haver se decidido pelo
injusto apesar de que podia não tê-lo feito”. Também é expressamente
extraída do princípio da culpabilidade a seguinte consequência para o limite
superior da pena: “A finalidade preventiva não pode conduzir a ultrapassar a
pena justa”.109

A pena não pode exceder o limite adequado à reprovação da conduta do


autor. Esse limite somente pode ser alcançado pela sua culpabilidade, isto é,
pelo grau de censurabilidade de sua conduta. Assim, aquele que mata outra
pessoa merece uma censura maior (pena mais grave) do que aquele que
simplesmente subtrai uma pequena quantia em dinheiro. Da mesma forma,
aquele que mata por dinheiro merece uma pena maior do que aquele que
mata, por motivo de relevante valor moral, o estuprador da própria filha, já
que a primeira conduta é mais reprovável do que a segunda.
Claus Roxin, ao tratar do tema, expressa a necessidade de utilização da
culpabilidade como critério para fixação da pena e cita o art. 46, § 1o, do CP
Alemão, que diz: “A culpa do agente é a base para a atribuição da pena. Há
que se considerarem os efeitos que devem ser esperados para vida futura do
agente na sociedade”.110
No nosso Código Penal não é diferente, pois o art. 59, caput, de forma
expressa, prevê a culpabilidade como primeiro elemento a ser considerado no
momento da fixação da pena base ao prever que:

O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à


personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e consequências do
crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja
necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime.

É possível que afirmemos, então, que a culpabilidade do agente é um


elemento individualizador de sua pena, pois esta deverá ser fixada com base
na sua culpabilidade.
Havendo a hipótese de concurso de agentes, ou seja, mais de uma pessoa
concorrendo para o mesmo crime – imaginemos dois agentes que praticam
juntos um homicídio –, cada um deles deverá receber uma pena de acordo
com sua culpabilidade. Voltando ao exemplo já tratado, se um deles matou a
vítima porque esta estuprou sua filha, e o outro porque foi contratado pelo
primeiro, ambos receberão penas diferentes, pois a censurabilidade é
diferente e os aspectos pessoais de um não podem ser aplicados para o outro.
Do princípio da culpabilidade retiramos, então, outro princípio: o
princípio da individualização da pena.
O princípio da individualização da pena encontra assento na
Constituição Federal, especificamente no art. 5o, XLVI, que conta com a
seguinte redação:
Art. 5o (...)
XLVI – a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as
seguintes:
a) privação ou restrição da liberdade;
b) perda de bens;
c) multa;
d) prestação social alternativa;
e) suspensão ou interdição de direitos.

Consiste a individualização, basicamente, em mensurar a pena de acordo


com o caso concreto, ou seja, adaptar a pena ao condenado, considerando as
características do agente e do delito.111
Ensina-nos José Frederico Marques que: a individualização da pena tem
que ser equacionada de maneira integral, de forma a compreender em seu
âmbito o aspecto objetivo do crime, como fato violador de um bem jurídico
penalmente tutelado, e a pessoa do delinquente. Com isso, as sanções penais
atingem seu duplo objetivo de medida retributiva e de providência destinada
a recuperar o delinquente. É a fórmula unitária, já assim fixada por Nélson
Hungria: “Retribuir o mal concreto de crime com o mal concreto da pena, na
concreta personalidade do criminoso”.112
Dessa forma, todas as vezes em que há o cometimento de um crime,
para fixação da pena, devem-se levar em conta todas as características e
condições do agente que praticou a conduta, qual a natureza da conduta
criminosa praticada, bem como a maneira que se praticou essa conduta.
Entretanto, conforme ensina Shecaira, nem sempre foi assim. Segundo o
referido autor, na Antiguidade, imperava o princípio da flexibilidade da pena,
ou seja, o juiz podia escolher e aplicar qualquer sanção àquele que houvesse
cometido o crime, sendo que o critério nada mais era do que o livre-arbítrio
do juiz no caso concreto. Durante o movimento iluminista, em virtude das
reformas operadas, no sentido de se evitar a arbitrariedade judicial, criou-se
um sistema rígido e inflexível, segundo o qual para cada delito correspondia
uma pena certa, fixa e predeterminada pela lei. Retira-se do magistrado a
possibilidade de adequação da pena ao crime praticado, sendo que o juiz nada
mais era do que um mero reprodutor das palavras da lei. Todavia, com o
passar do tempo, o princípio da separação dos poderes foi mitigado em vários
aspectos, refletindo diretamente no Direito Penal, possibilitando o
reconhecimento do princípio da individualização da pena, desde que em
consonância com o princípio da legalidade, pois conforme já analisado, a
pena, bem como sua execução devem estar previstas pela lei.113
Atualmente, entende a melhor doutrina que o princípio da
individualização da pena precisa manifestar-se em três momentos distintos: o
legislativo, que ocorre no momento em que o legislador cria a norma penal
(individualização em abstrato); o judicial, que ocorre no momento em que o
juiz aplica a pena ao réu (individualização em concreto); e o executivo, que
ocorre no momento em que o condenado está cumprindo sua pena
(individualização executória).
O momento legislativo refere-se à criação da norma penal e à definição
da quantidade de pena. Assim, quando o legislador cria um crime, já define
também a pena mínima e a pena máxima que lhe será correspondente. Já
nesse momento, o legislador está individualizando a pena, baseado na
gravidade do delito. O critério utilizado para definir a pena deve ser o da
proporcionalidade, de forma que não pode haver previsão de penas parecidas,
por exemplo, entre o crime de lesão corporal e de homicídio, ou então, entre
o crime de furto e o de extorsão mediante sequestro. O legislador deve, desde
já, escolher as sanções que pretende que sejam aplicadas ao delito,
escolhendo entre aquelas que se encontram no rol do art. 5o, XLVI, da CF,114
respeitando as vedações expressas também no texto constitucional.115
No momento judicial, cabe ao juiz – caso condene o réu – aplicar a pena
em concreto, com base nas possibilidades previstas abstratamente pelo
legislador. Caberá ao magistrado, com base no art. 59 do CP,116 escolher uma
entre as espécies de pena117 previstas pelo legislador; escolhida a pena, deverá
o magistrado fixar a quantidade a ser cumprida – dentro dos limites legais –
e, se a pena escolhida for a restritiva de liberdade, fixar o regime inicial de
cumprimento de pena e analisar a possibilidade de substituição da pena
privativa de liberdade por restritivas de direito. Para que isso ocorra, é
necessário que o quantum da pena não seja predeterminado pelo legislador,
ou seja, deve haver a previsão de uma pena mínima e de uma pena máxima,
que permitirá ao juiz determinar a quantidade mais adequada ao caso
concreto, ou seja, individualizar a pena.118
Passemos a um exemplo: o crime de homicídio simples, previsto no
caput do art. 121 do CP, tem a seguinte redação: “Art. 121: matar alguém;
Pena: reclusão de 6 a 20 anos”. Quando, em 1940, o legislador criou o tipo de
homicídio, com base na gravidade desse delito e da importância do bem
jurídico tutelado, definiu abstratamente que a espécie de pena a ser aplicada
deveria ser a mais grave – restritiva de liberdade (reclusão) – e que o mínimo
de tempo que o autor desse crime deveria cumprir de pena seria 6 anos e o
máximo 20. Assim, quando alguém cometer um crime de homicídio simples,
com base nos arts. 68 e 59 do CP, o magistrado, com base nos limites
prefixados pelo legislador, aplicará a pena de forma individualizada,
concretizando-a entre esses limites.
Assim, conforme lição de Luiz Luisi:

O juiz, pois, nos limites que a lei impõe realiza uma tarefa de ajustamento da
resposta penal em função não só das circunstâncias objetivas, mas
principalmente da pessoa do denunciado, e, também, do comportamento da
vítima. Trata-se de missão em que o aplicador da lei tem, sem dúvidas, uma
área significativa de discricionariedade.119

Por fim, o último momento é o da execução da pena, que ocorre depois


que o magistrado já definiu exatamente a pena que será aplicada, a sua
duração e o regime inicial de seu cumprimento.
O momento da execução é tão ou mais importante que os demais
momentos, embora seja sempre o mais negligenciado.
Nos termos do inc. XLVIII do art. 5o da CF, “a pena será cumprida em
estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o
sexo do apenado”. Tal preceito nem precisaria estar expresso, pois não há
nada mais ilógico e despropositado do que colocar, num mesmo ambiente,
pessoas que cometeram crimes leves (furto, lesões corporais, estelionato etc.)
e pessoas que cometeram crimes graves (homicídios qualificados, roubos,
extorsões mediante sequestro etc.), pois o único efeito que se alcançará é que
aqueles que praticaram crimes leves aprenderão a praticar crimes graves ou
serão cooptados pelos grupos de criminosos que dominam os presídios, ou
seja, em vez de se ressocializar, sairão de lá piores do que quando entraram.
Entretanto, infelizmente, é exatamente isso que a realidade carcerária
brasileira nos tem mostrado: o presídio como “escola do crime”, fato que
muito contribui para o fracasso da pena como instrumento de reinserção
social, atuando, inclusive, de maneira contrária.
Com base no princípio da individualização da pena, a execução da pena
não pode ser igual para todos os presos, justamente porque todos são
diferentes. Assim, nem todo preso deve ser submetido ao mesmo programa
de execução e, durante este, exige-se um ajustamento do programa conforme
a reação observada no condenado. Individualizar a execução da pena consiste
em dar a cada preso a oportunidade e os elementos necessários para que
possa ser reinserido na sociedade. A individualização, portanto, deve ser
técnica e científica, nunca improvisada, iniciando-se com a indispensável
classificação120 dos condenados a fim de serem destinados aos programas
mais adequados, conforme as condições pessoais de cada um.121
É exatamente por esse motivo que a elaboração de legislações que não
permitem a progressão de regime, a concessão de liberdade provisória ou
livramento condicional, bem como outros institutos individualizadores
merecem toda sorte de críticas, pois tratam da mesma maneira pessoas
diferentes, que reagirão de forma diferente à execução da mesma pena.122
Ainda, decorrente do princípio da culpabilidade e da individualização da
pena, alguns autores apontam o princípio da personalidade das penas.
Atualmente, o princípio da personalidade, também chamado de princípio
da pessoalidade, responsabilidade pessoal, ou da intranscendência, encontra
previsão constitucional expressa no art. 5o, XLV, que contém a seguinte
redação: “nenhuma pena passará da pessoa do condenado (...)”.
Segundo esse princípio, somente a pessoa que praticou o crime é que
pode sofrer as consequências do fato que cometeu, sendo completamente
vedada a extensão desses efeitos aos herdeiros ou qualquer outra pessoa que
não tenha participado do fato criminoso.
Tal postulado também é uma consequência do Iluminismo, pois em
tempos antigos era muito comum que as penas corporais, pecuniárias ou
infamantes atingissem não só o infrator, mas também seus familiares e, em
alguns casos, todo o grupo social. Na história brasileira, o exemplo sempre
lembrado é a condenação de Tiradentes, que além de enforcado em praça
pública, teve todos os seus bens confiscados e a infâmia lançada aos seus
descendentes até a terceira geração, ou seja, filhos e netos.
Tal princípio, assim como os demais, deve ser observado em todas as
espécies de pena, de forma que tanto a pena privativa de liberdade, como a
restritiva de direitos ou pecuniária devem produzir efeitos somente contra o
infrator, e nunca contra terceiros. Não se pode, por exemplo, aplicar uma
pena de multa alta para determinado estudante que praticou um crime e que
não tem renda, pelo simples fato de que seu pai é um milionário, pois dessa
forma não se estaria punindo o estudante, mas sim seu genitor.123
A responsabilidade penal, portanto, é sempre pessoal, não se admitindo
a responsabilidade coletiva, subsidiária, solidária ou sucessiva.
Conforme aponta Nilo Batista, a questão do princípio da
intranscendência é que justifica a existência, no sistema de seguridade social,
do “auxílio-reclusão”, que é um benefício pecuniário que o Estado paga para
a família do preso pobre enquanto este estiver cumprindo pena, pois não
poderá, de dentro do presídio, prover o sustento de sua família, que estaria,
assim, indiretamente, sofrendo os efeitos da pena.124

5.6 PRINCÍPIO DA HUMANIDADE


Desde as reformas iluministas, o ser humano passou a figurar como
personagem principal da história, de forma que o Estado somente encontra
razão de ser se for para servi-lo. Nas palavras de Kant, o ser humano é um
fim em si mesmo e não pode, de maneira alguma, ser utilizado como meio
para consecução de qualquer fim.
Tal concepção influenciou todos os ramos do saber, inclusive o Direito
Penal, que conforme nos ensina Marco Antônio Ferreira Lima, passou por
uma “humanização”, que acaba resultando na necessidade de criação de um
conjunto de preceitos mínimos, primários, que passam a compor o ser
humano desde sua formação, para assegurar, sobretudo, sua dignidade, de
modo que

A simples condição humana passa a permitir que a pessoa possa ter um


conjunto de direitos morais e universais que lhe são afetos (...) Tais direitos
nascem com o indivíduo sendo inatos e universais que, pela visão do
positivismo, seriam meramente constituídos. Se naturais, não poderão ser
restritos (...).125

Assim como outros princípios já tratados, o princípio da humanidade


desen-volveu-se a partir do Iluminismo, especificamente durante os séculos
XVII e XVIII, baseando-se, por um lado, na afirmação da existência de
direitos inerentes à condição humana, e de outro, na elaboração jurídica do
Estado fundamentado no contrato social. Assim, o Estado, formado a partir
dos indivíduos, deveria tutelar os direitos fundamentais destes, ou seja,
estaria vinculado a leis prévias e certas, limitadas ao mínimo estritamente
necessário, estando vedada qualquer espécie de pena cruel ou degradante.126
Esse princípio define os níveis de afetação pessoal que em hipótese
alguma podem ser ultrapassados pela sanção penal e está diretamente
relacionado à natureza das penas a serem aplicadas e à sua forma de
execução.
Impõe uma obrigação negativa de forma a impedir a utilização de certas
reações penais, consideradas eticamente inaceitáveis, independentemente das
condutas que as tenham originado, dos danos sociais que elas tenham
causado ou dos efeitos “sociopessoais” que se queira obter com tais penas.127
Impede, tal princípio, a aplicação, pelo Estado, de qualquer punição que
viole os direitos e garantias fundamentais, entendidas com tais características
aquelas penas cruéis ou degradantes, causadoras de sofrimentos e
humilhações desnecessárias, pois completamente estranhas aos legítimos fins
do Estado Democrático de Direito.
Na lição de Jescheck e Weigend, o princípio da humanidade deve ser o
fundamento da política criminal e o princípio reitor do Direito
Penitenciário.128
Zaffaroni e Pierangeli explicam que o antônimo de “pena cruel” é a
“pena racional” (e não a pena “doce”, é claro).129
A pena racional deve ser entendida como aquela que busca uma
finalidade legítima, coerente com os princípios constitucionais de qualquer
Estado Democrático de Direito, que procure sempre trazer a “maior
felicidade possível” para o maior número de pessoas possíveis, que no caso
específico do Direito Penal é a devolução do ex-delinquente à sociedade.
Assim, conforme sustenta Nilo Batista: “A pena não pode, pois, exaurir-
se num rito de expiação e opróbrio, não pode ser uma coerção puramente
negativa”.130
Como os demais princípios, a humanidade deve ser respeitada durante
todo o processo necessário para aplicação da sanção penal, ou seja, desde a
investigação, passando-se pelo julgamento, até o último dia da execução da
pena.
Desse modo, ainda que a execução de qualquer tipo de pena –
principalmente as privativas de liberdade – contenha certa dose de
inumanidade, por supor sempre uma restrição de direitos fundamentais da
pessoa (fato só evitável com a eliminação das penas), pretende o princípio da
humanidade excluir do sistema de reações penais todas as sanções que por
seu conteúdo resultem especialmente cruéis ou degradantes para o
condenado.131
Proíbe-se, portanto, a existência de penas cruéis e infamantes e a
utilização de torturas e de maus-tratos durante os interrogatórios policiais,
bem como impõe--se, ao Estado, o dever de dotar sua infraestrutura
carcerária de meios e recursos que impeçam a degradação e a dessocialização
dos condenados. Ainda, determina esse princípio a proibição de qualquer
pena que crie uma deficiência física (morte, amputação, castração física ou
química, lobotomia etc.), como também qualquer consequência jurídica
inapagável do delito.132
No nosso ordenamento jurídico, o princípio da humanidade encontra
previsão em vários dispositivos, tanto na Constituição Federal quanto em
legislações esparsas, como na Lei de Execuções Penais, por exemplo. Na
Constituição, já no art. 1o encontramos a seguinte redação:

Art. 1o A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos


Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado
Democrático de Direito e tem como fundamentos:
I – a soberania;
II – a cidadania;
III – a dignidade da pessoa humana;
IV – os valores sociais do trabalho e da livre-iniciativa;
V – o pluralismo político.

Ainda na Constituição Federal, agora encontramos:


Art. 5o (...)
(...)
III – ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou
degradante;
(...)
XLVII – não haverá penas:
a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX;
b) de caráter perpétuo;
c) de trabalhos forçados;
d) de banimento;
e) cruéis;
XLIX – é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral; e por
fim,
L – às presidiárias serão asseguradas condições para que possam permanecer
com seus filhos durante o período de amamentação.
(...)

Na legislação infraconstitucional, na Lei de Execução Penal,


especificamente no art. 3o, encontramos:

Ao condenado e ao internado serão assegurados todos os direitos não


atingidos pela sentença ou pela lei.
Parágrafo único. Não haverá qualquer distinção de natureza racial,
social, religiosa ou política.

Entretanto, é comum que encontremos no discurso leigo e também no


discurso técnico-jurídico – perpetrado muitas vezes por pessoas que têm a
missão de defender a Constituição e seus postulados, tais como advogados,
promotores e juízes – severas críticas ao princípio da humanidade,
normalmente concretizadas por afirmações de que “os direitos humanos
devem ser para os humanos e não para os bandidos” e indagações tais como
“e os direitos humanos da vítima?”.
Tais críticas, embora compreensíveis quando partem dos leigos, não se
sustentam e tampouco devem ser acolhidas. É completamente compreensível
que um cidadão tenha raiva ou queira vingar-se de outras pessoas que
cometeram crimes que vitimaram sua família ou conhecidos, ou quando
recebe pela mídia notícias de crimes praticados com requintes de crueldade.
Todavia, o cidadão pode agir movido por paixões como raiva, ódio, dó,
comiseração, vingança etc. O que não se pode admitir é que o Estado –
representado por seus agentes – paute sua atuação política por sentimentos e
paixões inerentes ao cidadão, e não pela racionalidade. Entende-se que uma
vítima queira vingar-se de seu algoz, como, por exemplo, o pai que quer
matar o agente que tirou a vida de seu filho; o que não se entende e tampouco
se admite é que agentes estatais – policiais, juízes, promotores de justiça etc.
– queiram levar a cabo essa vingança, no papel de representantes do Estado,
deixando de lado as leis e a própria Constituição Federal.
O cidadão pode agir em desconformidade com as leis penais, mas toda
vez que o fizer, deve arcar com o peso da pena estatal. O Estado que se diz de
Direito, por sua vez, não pode agir, nunca, em desconformidade com a lei,
mas sim deve segui-la estritamente, sob pena de desnaturar-se e perder toda a
legitimidade de exigir de seus cidadãos o cumprimento desta.
Nesse sentido, Sérgio Salomão Shecaira, na sua obra, Teoria geral da
pena, aten-ta-se para um fato muito importante, ao ressalvar que o princípio
da humanização das penas: “não acarreta qualquer risco à segurança pública,
pois não deve ser interpretado como óbice à punição estatal certa e
rigorosa”.133 O que atenta contra a segurança pública é a ineficácia do Poder
Público em investir adequadamente seus recursos no sentido de garantir aos
cidadãos seus direitos fundamentais e sociais básicos para que efetivamente
alcancem a cidadania e não se enveredem pelo caminho da criminalidade.
Impõe, o princípio da humanidade, a obrigação ao Estado de tratar os
indivíduos, sempre e sempre (isso incluía as situações em que figuram como
suspeitos, réus e condenados), como pessoas – sujeitos de direitos – e nunca
como um simples objeto, disposto ao bel-prazer do Estado e de seus agentes
perniciosos.
Cabe aqui a sempre citada lição de Jescheck:

A consciência de uma corresponsabilidade de todos é, finalmente, decisiva


para a construção de medidas de assistência das quais hoje deve estar cercado
o tratamento penitenciário em liberdade e o retorno do preso liberado à
sociedade. Entretanto, não se podem desconhecer as dificuldades aqui
existentes. O Direito Penal não pode equiparar-se a um Direito de assistência
social. Serve, em um primeiro plano, à justiça distributiva e deve fazer valer a
responsabilidade do autor pela infração do Direito, de modo que aquele
experimente a resposta da comunidade jurídica ao fato por ele cometido. Por
isso não pode renunciar-se (sic) aos prejuízos e ao sofrimento, sobretudo no
caso da pena privativa de liberdade. Sem embargo, dentre desta última e
através dos limites marcados pela natureza de sua missão, todas as relações
humanas que representam um papel no Direito penal devem estar inspiradas
no princípio da humanidade.134

Aqueles que cometem delitos devem e precisam ser punidos, mas


sempre nos limites constitucionais, respeitando as conquistas alcançadas pela
cidadania ao longo dos dois últimos séculos, até porque já é mais do que
sabido que não é a gravidade da pena que impede o cometimento do crime
(se assim fosse, era só punir abstratamente todos os delitos com pena de
morte que a humanidade ver-se-ia livre da criminalidade, exceto por aquela
perpetrada pelos suicidas), mas sim a eficácia da punição.
1
QUEIROZ, Paulo. Direito Penal – Parte Geral. 5. ed. Lumen Iuris. Rio de Janeiro. 2009.
p. 42.
2
Sobre esse posicionamento majoritário da doutrina italiana, Marinucci e Dolcini
relacionam mais de 20 autores, que são alinhados por ordem cronológica de obras, como,
por exemplo, Gallo, Bricola, Musco, Mantovani, Fiandaca, Romano, Fiorella etc.
MARINUCCI, Giorgio; DOLCINI, Emilio. Op. cit. p. 312.
3
Idem, ibidem. p. 311-312.
4
FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Questões fundamentais do direito penal revisitadas. São
Paulo. Revista dos Tribunais. 1999. p. 66.
5
FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Op. cit. p. 67.
6
FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Op. cit. p. 77.
7
Ibidem. p. 78.
8
MIR PUIG, Santiago. Op. cit. p. 91.
9
MUÑOZ CONDE, Francisco; GARCÍA ARÁN, Mercedes. Op. cit. p. 88.
10
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 2.
ed. Coimbra. Almedina. 1998. p. 1272-1273.
11
Ibidem. p. 1276.
12
MARINUCCI, Giorgio; DOLCINI, Emilio. Corso de diritto penale. 2. ed. Milão.
Giuffrè. 1999. vol. 1.
13
No sentido do texto: Angione, Bricola, Fiandaca, Nuvolone, Musco, Pagliaro, todos
referidos e analisados por MARINUCCI, Giorgio; DOLCINI, Emilio. Op. cit. p. 344-356.
14
MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 6. ed. São Paulo. Atlas. 1999. p. 576.
15
Não obstante ter levado a cabo a referida fórmula, importante salientar que Feuerbach
não a utilizava como um princípio político limitador do arbítrio estatal, mas sim somente
de uma maneira científica, como consequência de sua teoria sobre a pena. Inclusive, tal fato
foi objeto de crítica realizada por Jimenez de Asúa ao ministro Francisco de Campos, que
na opinião do professor espanhol não havia percebido tal fato. In: HUNGRIA, Nelson.
Comentário ao Código Penal. Tomo I. 2. ed. Revista Forense. Rio de Janeiro. 1953. v. 1. p.
34 ss.
16
FLORÊNCIO FILHO, Marco A. A Tipicidade no Direito Penal: uma abordagem sobre
os seus diversos aspectos e sua importância a nível constitucional. Ciências Criminais no
Século XXI – Estudos em Homenagem aos 180 anos da Faculdade de Direito do Recife.
Editora Universitária UFPE. Recife. 2007. p. 374.
17
Texto original em inglês: “No free-man shall be saized, or imprisioned, or dispossessed,
ou outlawed, or in any way distroyed; nor will we condemn him, nor will commit him to
prision, excepting by the legal judment of his peers, or by the laws of the land”.
18
ASÚA, Luis Jiménez de. Tratado de Derecho Penal. Tomo II. Editorial Losada. Buenos
Aires. 1950. p. 385.
19
FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Direito Penal. Parte Geral. Coimbra Editora e Revista
dos Tribunais. São Paulo. 2007. p. 178.
20
Segundo Luiz Luisi, ainda hoje alguns Códigos não preveem o Princípio da Legalidade,
como o Código Penal da China, da Albânia e da Coreia do Norte, bem como da Dinamarca
e da Groenlândia, embora nestes últimos o princípio tenha vigência por força de decisões
judiciais. In: LUISI, Luiz. Os Princípios Constitucionais Penais. 2. ed. Sergio Antonio
Fabris Editor. Porto Alegre. 2003. p. 21.
21
JAKOBS, Günther. Tratado de Direito Penal. Tradução de Gercélia Batista de Oliveira
Mendes e Geraldo de Carvalho. Editora Del Rey. Belo Horizonte. 2009. p. 106.
22
FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão. 2. ed. Revista dos Tribunais. São Paulo. 2006. p.
93 ss.
23
FERRAJOLI, Luigi. Op. cit., p. 39.
24
Idem, ibidem.
25
MAGGIORE, Giuseppe. Derecho Penal. Editorial Temis. Bogotá. 2000. p. 139.
26
PRADO, Luiz R. Curso de Direito Penal Brasileiro. 7. ed. Editora Revista dos
Tribunais. 2007. v. 1. p. 134.
27
BUSATO, Paulo César; HUAPAYA, Sandro Montes. Introdução ao Direito Penal.
Lumen Juris. Rio de Janeiro. 2003. p. 159.
28
BUSATO, Paulo César; HUAPAYA, Sandro Montes. Introdução ao Direito Penal.
Lumen Juris. Rio de Janeiro. 2003. p. 159.
29
BRITO, Alexis A. C. Execução penal. São Paulo: Quartier Latin, 2006. p. 43.
30
Idem, p. 25.
31
Por todos JAKOBS, Günther. Tratado de Direito Penal. Tradução de Gercélia Batista de
Oliveira Mendes e Geraldo de Carvalho. Editora Del Rey. Belo Horizonte. 2009. p. 109 ss;
e ASSIS TOLE-DO, Francisco de. Princípios Fundamentais de Direito Penal. 4. ed.
Editora Saraiva. São Paulo. 1991. p. 20 ss.
32
MAURACH, Reinhart; ZIPF, Heinz. Derecho Penal – parte general. Buenos Aires.
Astrea. 1994.
33
LOPES, Maurício A. R. Princípio da Legalidade Penal. Revista dos Tribunais. 1994. p.
81.
34
LOPES, Maurício A. R. Princípio da legalidade penal. São Paulo: RT, 1994. p. 88.
35
ASSIS TOLEDO, Francisco de. Princípios Fundamentais de Direito Penal. 4. ed.
Editora Saraiva. São Paulo. 1991. p. 25.
36
BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal. 11. ed. Editora Revan. Rio de
Janeiro. 1990. p. 70.
37
Apenas para situar o leitor, no cenário nacional, por todos, Francisco de Assis Toledo In:
ASSIS TOLEDO, Francisco de. Princípios Fundamentais de Direito Penal. 4. ed. Editora
Saraiva. São Paulo. 1991. p. 25; e Nilo Batista in: BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao
Direito Penal. 11. ed. Editora Revan. Rio de Janeiro. 1990. p 71; Maurício Antonio Ribeiro
Lopes In: LOPES, Maurício A. R. Princípio da Legalidade Penal. Revista dos Tribunais.
1994. p 111; BRANDÃO, Cláudio. Introdução ao Direito Penal. Editora Forense. Rio de
Janeiro. 2002. p. 85. Entretanto, alguns autores não admitem essa possibilidade. Por todos,
Bettiol, ao escrever que: “Somos de opinião que não pode ser reconhecida nenhuma
eficácia ao desuetudine, porque até que um preceito ou uma sanção não sejam ab-rogados
expressa ou implicitamente por uma nova disposição legislativa, o que se pretende ab-
rogado ‘existe sempre, ao menos em potência; é uma energia não utilizada mas utilizável
quando diversos critérios políticos se substituam aos primeiros’. A indolência ou a incúria
dos magistrados na aplicação da lei não poderá justificar a afirmação de que caiu em
desuso, servindo apenas de indicação ao legislador de que uma lei não é mais sentida como
necessária pela coletividade, pra que providencie sua abrogação.” In: BETTIOL, Giuseppe.
Direito Penal. Tradução de Paulo José da Costa Junior e Alberto Silva Franco. 2. ed.
Revista dos Tribunais. São Paulo. 1977. v. I. p. 149.
38
“Embora expressiva corrente jurisprudencial sustente que a não reprovabilidade da
consciência popular não serve para excluir a criminalidade da norma penal, o que se vê, na
realidade, é que o efeito repressivo do ‘jogo do bicho’ perdeu sua objetividade e não mais
atende a necessidade social. Ao contrário, mostra-se até inconveniente sua observância,
mesmo porque tal prática constitui, hoje, considerável mercado de trabalho à disposição de
mão de obra não especializada” (RT 606/334) No mesmo sentido TACRSP; RT 605/331.
In: FABBRINI, Renato M; MIRABETE, Julio F. Código Penal Interpretado. 6. ed. Editora
Atlas. São Paulo. 2006. p. 111.
39
ASSIS TOLEDO, Francisco de. Princípios Fundamentais de Direito Penal. 4. ed.
Editora Saraiva. São Paulo. 1991. p. 25.
40
BRANDÃO, Cláudio. Introdução ao Direito Penal. Editora Forense. Rio de Janeiro.
2002. p. 85.
41
FRAGOSO, Heleno C. Op. cit., p. 114-115.
42
TOLEDO, Francisco de Assis. Op. cit., p. 29.
43
BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal. 11. ed. Editora Revan. Rio de
Janeiro. 1990. p. 82.
44
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Op. cit.
45
LUNA, Everardo da Cunha. Capítulos de direito penal. São Paulo: Saraiva, 1985. p. 32.
46
LUNA, Everardo da Cunha. Capítulos de Direito Penal. Editora Saraiva. São Paulo.
1985. p. 315.
47
BRANDÃO, Cláudio. Introdução ao Direito Penal. Editora Forense. Rio de Janeiro.
2002. p. 80 ss.
48
ENGISH, Karl. Introdução ao Pensamento Jurídico. 10. ed. Tradução J. Baptista
Machado. Fundação Calouste Gulbenkian. Lisboa. 2008. p. 279.
49
REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 27. ed. Saraiva. São Paulo. 2005. p.
296.
50
O exemplo é de Cláudio Brandão. In: BRANDÃO, Cláudio. Introdução ao Direito
Penal. Editora Forense. Rio de Janeiro. 2002. p. 75.
51
FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão. Revista dos Tribunais. 2. ed. 2006. São Paulo. p.
353.
52
Art. 122: “Os condenados que cumprem pena em regime semiaberto poderão obter
autorização para saída temporária do estabelecimento, sem vigilância direta, nos seguintes
casos: I – visita à família; II – frequência a curso supletivo profissionalizante, bem como de
instrução do 2o grau ou superior, na Comarca do Juízo da Execução; III – participação em
atividades que concorram para o retorno ao convívio social.”
53
Nesse sentido, a seguinte decisão do STJ: I – A norma do art. 126 da LEP, ao possibilitar
a abreviação da pena, tem por objetivo a ressocialização do condenado, sendo possível o
uso da analogia in bonam partem, que admita o benefício em comento, em razão de
atividades que não estejam expressas no texto legal. II – Dessa forma, a remição da pena
pode se dar também em decorrência da realização de atividade estudantil. A matéria,
inclusive, está cristalizada no enunciado da Súmula no 341 desta Corte: “A frequência a
curso de ensino formal é causa de remição de parte do tempo de execução de pena sob
regime fechado ou semiaberto”. Ordem concedida (HC 98700/SP. Rel. Ministro FELIX
FISCHER. 5a Turma. Julgado em 28/5/2008).
54
BETTIOL, Giuseppe. Direito Penal. Tradução de Paulo José da Costa Junior e Alberto
Silva Franco. 2. ed. Revista dos Tribunais. São Paulo. 1977. v. I. p. 167.
55
HUNGRIA, Nélson. Op. cit.
56
Idem, p. 83 ss.
57
LUNA, Everardo Cunha. Op. cit., p. 33.
58
HASSEMER, Winfried. História das ideias penais na Alemanha do pós-guerra. Revista
Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: RBCCRIM, ano 2, no 6, 1994. p. 53.
59
ROXIN, Claus. Introdução ao Direito Penal e ao Direito Processual Penal. Editora Del
Rey. Belo Horizonte. 2007. p. 8.
60
GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio. Derecho Penal. Parte General –
Fundamentos. Editorial Universitaria Rámon Areces e INPECCP. Lima. 2009. p. 509 e
510.
61
LUISI, Luiz. Os Princípios Constitucionais Penais. 2. ed. Sergio Antonio Fabris Editor.
Porto Alegre. 2003. p. 38.
62
GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio. Derecho Penal. Parte General –
Fundamentos. Editorial Universitaria Rámon Areces e INPECCP. Lima. 2009. p. 506.
63
BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal. 11. ed. Editora Revan. Rio de
Janeiro. 1990. p. 86; LUISI, Luiz. Os Princípios Constitucionais Penais. 2. ed. Sergio
Antonio Fabris Editor. Porto Alegre. 2003. p. 40.
64
GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio. Derecho Penal. Parte General –
Fundamentos. Editorial Universitaria Rámon Areces e INPECCP. Lima. 2009. p. 516.
65
GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio. Derecho Penal. Parte General –
Fundamentos. Editorial Universitaria Rámon Areces e INPECCP. Lima. 2009. p. 516.
66
Ao tratar do assunto, Claus Roxin nos apresenta o seguinte exemplo: “Na Alemanha, o
homossexualismo entre homens adultos era punido até 1969. Mencionava-se não raro a
‘estrutura heterossexual das relações sexuais’ como bem jurídico protegido. Não se pode
legitimar tal dispositivo penal desta maneira. É verdade que, de um lado, a finalidade da lei
– somente permitir relações heterossexuais – é acertadamente descrita. Mas deixa-se
justamente de dizer se a obtenção deste fim pertence aos pressupostos indispensáveis de
uma coexistência pacífica”. In: ROXIN, Claus. Estudos de Direito Penal. Tradução de Luis
Greco. 2. ed. Editora Renovar. 2008. p. 36.
67
URZÚA, Enrique C. Derecho Penal. Ediciones Universidad Católica de Chile. Santiago.
2005. p. 88.
68
HUNGRIA, Nelson. Op. cit., p. 172.
69
GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio. Derecho Penal. Parte General –
Fundamentos. Editorial Universitaria Rámon Areces e INPECCP. Lima. 2009. p. 512.
70
GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio. Op. cit., p. 512.
71
GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio. Derecho Penal. Parte General –
Fundamentos. Editorial Universitaria Rámon Areces e INPECCP. Lima. 2009. p. 512.
72
JAKOBS, Günther. Tratado de Direito Penal. Tradução de Gercélia Batista de Oliveira
Mendes e Geraldo de Carvalho. Editora Del Rey. Belo Horizonte. 2009. p. 82.
73
ESPINAR, Jose M. Z. Fundamentos de derecho penal. 2. ed. Granada:Universidade de
Granada, 1991. p. 165.
74
ESPINAR, Jose M. Z. Fundamentos de Derecho Penal. 2. ed. Universidade de Granada.
Granada. 1991. p. 165.
75
ROXIN, Claus. Estudos de Direito Penal. Tradução de Luis Greco. 2. ed. Editora
Renovar. Rio de Janeiro. 2008. p. 53.
76
GALVÃO, Fernando. Direito Penal. 2. ed. Editora Del Rey. Belo Horizonte. 2007. p. 76
e 77.
77
STF, HC 92. 463/RS, rel. Min. Celso de Mello, 2ª T., j. 16.10.2007, HC 92.961/SP, rel.
Min. Eros Grau, 2ª T., j. 11.12.2007; STJ, informativos 338, 348 e 387
78
LUISI, Luiz. Os Princípios Constitucionais Penais. 2. ed. Sergio Antonio Fabris Editor.
Porto Alegre. 2003. p. 40.
79
LUISI, Luiz. Os Princípios Constitucionais Penais. 2. ed. Sergio Antonio Fabris Editor.
Porto Alegre. 2003. p. 41 ss.
80
LUISI, Luiz. Os princípios constitucionais penais. 2. ed. Porto Alegre: Sergio Antonio
Fabris Ed., 2003. p. 44.
81
Marco Aurélio Florêncio Filho explica que: “A política criminal é desenvolvida pela
teoria da pena. Na teoria da pena, analisam-se as diversas funções da sanção penal. A
política criminal é mais abrangente que a política penal, visto que abarca outras formas
para solucionar o problema da criminalidade, como por exemplo, a adoção de políticas
públicas em um âmbito macro, ou seja, tenta-se solucionar a criminalidade através de
educação, saúde, lazer, entre outras formas de políticas públicas, diferentemente da política
penal que tenta resolver o problema da criminalidade através da finalidade da pena”. In:
FLORÊNCIO FILHO, Marco A. Abolicionismo × Direito Penal Mínimo: A Doutrina
Garantista Como Opção Para (RE)Legitimação do Sistema Penal. Revista Ideia Nova. Ano
5, no 3. Editora Nossa Livraria. Recife. 2007. p. 168.
82
FLORÊNCIO FILHO, Marco A. Abolicionismo × Direito Penal Mínimo: A Doutrina
Garantista Como Opção Para (RE)Legitimação do Sistema Penal. Revista Ideia Nova. Ano
5, no 3. Editora Nossa Livraria. Recife. 2007. p. 168.
83
ROBERTI, Maura. A Intervenção Mínima como Princípio no Direito Penal Brasileiro.
Sergio Antonio Fabris Editor. Porto Alegre. 2001. p. 137.
84
LUISI, Luiz. Os Princípios Constitucionais Penais. 2. ed. Sergio Antonio Fabris Editor.
Porto Alegre. 2003. p. 45.
85
PIERANGELI, José Henrique; ZAFFARONI, Eugenio Raul. Manual de Direito Penal.
– Parte Geral. 6. ed. Editora Revista dos Tribunais. São Paulo. 2006. v. 1. p. 308.
86
CERVINI, Raul. Os Processos de Descriminalização. Tradução de Luis Flavio Gomes.
Editora Revista dos Tribunais. São Paulo. 2002. p. 85.
87
Artigo 74, parágrafo único. Segundo esse benefício, se alguém comete um crime de
menor potencial ofensivo e se concilia com a vítima, ou seja, faz um acordo e a indeniza
dos prejuízos causados, extingue-se a punibilidade (o Estado não pode mais acusá-lo desse
crime) e o infrator não é processado.
88
Artigo 76. Segundo esse benefício, aquele que comete uma infração penal de menor
potencial ofensivo, desde que preenchidos alguns requisitos, não será processado se aceitar
cumprir, imediatamente, uma pena privativa de direito, tal como uma prestação de serviços
à comunidade, cestas básicas etc. Cumprida a pena restritiva de direito, extingue-se a
punibilidade
89
Artigo 89. Esse benefício não foi previsto apenas para os crimes de menor potencial
ofensivo, mas sim para todos aqueles cuja pena mínima não seja superior a um ano (por
exemplo: homicídio culposo, art. 121, § 4o; furto simples, art. 155, caput; estelionato, art.
171, caput). Segundo esse benefício, no momento do oferecimento da acusação, o
Promotor de Justiça, desde que preenchidos alguns requisitos, pode oferecer ao acusado
que o processo fique suspenso por um período de 2 a 4 anos, desde que ele cumpra algumas
condições. Se ao final do período estabelecido o acusado tiver cumprido todas as condições
impostas, a punibilidade é extinta sem que aja um processo e julgamento.
90
PIERANGELI, José Henrique; ZAFFARONI, Eugenio Raul. Manual de Direito Penal.
Parte Geral. 6. ed. Editora Revista dos Tribunais. São Paulo. 2006. v. 1. p. 308.
91
Art. 89. Nos crimes em que a pena mínima cominada for igual ou inferior a um ano,
abrangidas ou não por esta Lei, o Ministério Público, ao oferecer a denúncia, poderá propor
a suspensão do processo, por dois a quatro anos, desde que o acusado não esteja sendo
processado ou não tenha sido condenado por outro crime, presentes os demais requisitos
que autorizariam a suspensão condicional da pena (art. 77 do Código Penal). § 1o Aceita a
proposta pelo acusado e seu defensor, na presença do Juiz, este, recebendo a denúncia,
poderá suspender o processo, submetendo o acusado a período de prova, sob as seguintes
condições: I – reparação do dano, salvo impossibilidade de fazê-lo; II – proibição de
frequentar determinados lugares; III – proibição de ausentar-se da comarca onde reside,
sem autorização do Juiz; IV – comparecimento pessoal e obrigatório a juízo, mensalmente,
para informar e justificar suas atividades.
92
LISZT, Franz Von. Tratado de Derecho Penal. Traduzido por Quintiliano Saldaña.
Tomo II. 3. ed. Editorial Reus; Madrid. 1929. p. 387.
93
JESCHECK, Hans H. e WEIGEND, Thomas. Tratado de Derecho Penal. Tradução
Miguel Olmedo Cardenete. 5. ed. Comares Editorial. Granada. 2002. p. 24.
94
CORDOBA RODA, Juan. Culpabilidad y Pena. Bosch Editorial. Barcelona. 1977. p. 19.
95
Antigamente, no Exôdo, 21-28 e 29, encontramos: “Se um boi chifrar um homem ou
mulher e lhe causar a morte, o boi será apedrejado, e ninguém comerá da sua carne; o dono
do boi será absolvido. Se o boi já chifrava antes e o dono foi avisado e não o prendeu, o boi
será apedrejado, e o dono será morto.” No Levítico, 20-15 e 16, encontramos: “O homem
que tem relações sexuais com animal torna-se réu de morte, e o animal também deve ser
morto. Se uma mulher se oferece para ter relação sexual com animal, tanto ele como o
animal devem ser mortos: são réus de morte, e o sangue deles cairá sobre eles mesmos.” In:
Bíblia Sagrada. Editora Paulus. 1990. p. 94 e 137. Manzini relata muitos processos contra
animais na Idade Média e lembra dos seguintes casos: um processo contra um galo
condenado à morte por um jurado em Leeds, na Inglaterra, em 1864; um processo contra
uma macaca em Elmira, nos Estados Unidos, em 1894; e um processo contra um cachorro,
executado na cadeira elétrica, já no ano de 1926, em Pickeville, Estados Unidos.
96
Em Oração contra Aristóteles, de Demóstenes, encontramos: “Existe de outra parte, um
quarto tribunal, o do Pritaneo. E este o que é? Se uma pedra, um pedaço de pau, um pedaço
de ferro ou algo semelhante, caindo sobre alguém, machuca-o, e se desconhece quem
jogou-o e apenas se conhece e tem-se o objeto que causou o homicídio, ante esse tribunal
apresenta-se a querela judicial contra esses objetos”.
97
FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão. 2. ed. Revista dos Tribunais. São Paulo. 2006. p.
447.
98
Esses confusos modelos de responsabilidade objetiva, solidária, impessoal e desigual não
são encontrados no direito penal romano, no qual o Princípio da Culpabilidade foi previsto
por uma lei de Numa Pompílio e perdurou na doutrina e jurisprudência até a compilação de
Justiniano. Passando-se da tradição romana à cristã, o princípio foi teorizado pelo
pensamento penal iluminista, para depois ser reorganizado e lapidado pela dogmática do
século XIX e codificado em todos os ordenamentos modernos. In: FERRAJOLI, Luigi.
Direito e Razão. 2. ed. Revista dos Tribunais. São Paulo. 2006. p. 448.
99
BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal. 11. ed. Editora Revan. Rio de
Janeiro. 1990. p. 102.
100
BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal. 11. ed. Editora Revan. Rio de
Janeiro. 1990. p. 104.
101
FERRAJOLI, Luigi. Op. cit., p. 449.
102
GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio. Derecho Penal. Parte General –
Fundamentos. Editorial Universitaria Rámon Areces e INPECCP. Lima. 2009. p. 526.
103
MESSA, Ana F. Prisão e liberdade. São Paulo: Verbo Jurídico, 2009. p. 48.
104
ESPINAR, Jose M. Z. Op. cit., p. 168
105
PALLAZO, Francesco C. Valores Constitucionais e Direito Penal. Tradução de Gérson
P. dos Santos. Sergio Antonio Fabris Editor. Porto Alegre. 1989. p. 52.
106
PALLAZO, Francesco C. Valores Constitucionais e Direito Penal. Tradução de Gérson
P. dos Santos. Sergio Antonio Fabris Editor. Porto Alegre. 1989. p. 53.
107
PALLAZO, Francesco C. Valores Constitucionais e Direito Penal. Tradução de Gérson
P. dos Santos. Sergio Antonio Fabris Editor. Porto Alegre. 1989. p. 53.
108
PALLAZO, Francesco C. Valores Constitucionais e Direito Penal. Tradução de Gérson
P. dos Santos. Sergio Antonio Fabris Editor. Porto Alegre. 1989. p. 53 e 54.
109
JESCHECK, Hans H.; WEIGEND, Thomas. Tratado de Derecho Penal. Tradução
Miguel Olmedo Cardenete. 5. ed. Comares Editorial. Granada. 2002. p. 25.
110
ROXIN, Claus. Introdução ao Direito Penal e ao Direito Processual Penal. Editora
Del Rey. Belo Horizonte. 2007. p. 14.
111
CHERNICCHIARO, Luiz V.; COSTA JR., Paulo J. Direito Penal na Constituição. 3.
ed. Editora Revista dos Tribunais. São Paulo. 1995. p. 118.
112
MARQUES, José F. Curso de Direito Penal. Saraiva. São Paulo. 1956. v. 3. p. 235.
113
CORRÊA JUNIOR, Alceu; SHECAIRA, Sérgio S. Teoria da Pena. Editora Revista dos
Tribunais. São Paulo. 2002. p. 82.
114
Artigo 5o, XLVI – a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as
seguintes:
a) privação ou restrição da liberdade;
b) perda de bens;
c) multa;
d) prestação social alternativa;
e) suspensão ou interdição de direitos;
115
Artigo 5o, XLVII – não haverá penas: a) de morte, salvo em caso de guerra declarada,
nos termos do art. 84, XIX;
b) de caráter perpétuo;
c) de trabalhos forçados;
d) de banimento;
e) cruéis;
116
Art. 59. O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à
personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e consequências do crime, bem
como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para
reprovação e prevenção do crime:
I – as penas aplicáveis dentre as cominadas;
II – a quantidade de pena aplicável, dentro dos limites previstos;
III – o regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade;
IV – a substituição da pena privativa da liberdade aplicada, por outra espécie de pena, se
cabível.
117
Alguns tipos penais fazem uma previsão alternativa das espécies de pena (Art. 137.
Participar de rixa, salvo para separar os contendores: Pena – detenção, de 15 (quinze) dias a
2 (dois) meses, ou multa.), outros uma previsão cumulativa (Art. 138. Caluniar alguém,
imputando-lhe falsamente fato definido como crime: Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2
(dois) anos, e multa.).
118
Embora no Brasil haja a necessidade de que o legislador sempre preveja uma pena
mínima e uma pena máxima, para que possa o juiz fixar a pena dentro desses limites, há
ordenamentos que admitem algumas exceções, tais como o alemão, pois como apontam
JESCHECK e WEI-GEND: “A maioria das vezes para a individualização da pena no caso
concreto a lei deixa ao Tribunal um amplo espaço de jogo. Somente no assassinato (§ 211
I) e no genocídio (§ 220 a I num. 1) está prescrita a prisão perpétua de forma vinculante.
Normalmente, as distintas normas penais contêm simplesmente marcos punitivos que não
em poucas ocasiões vão desde a pena de multa até a pena de prisão por vários anos”. In:
JESCHECK, Hans H.; WEIGEND, Thomas. Tratado de Derecho Penal. Tradução Miguel
Olmedo Cardenete. 5. ed. Comares Editorial. Granada. 2002. p. 938.
119
LUISI, Luiz. Op. cit.
120
A Lei Brasileira de Execuções Penais prevê em seu artigo 5o: “Os condenados serão
classificados, segundo os seus antecedentes e personalidade, para orientar a
individualização da execução penal”.
121
MIRABETE, Julio F. Execução Penal. 11. ed. Editora Atlas. São Paulo. 2004. p. 48.
122
BRITO, Alexis A. C. Execução Penal. Editora Quartier Latin. São Paulo. 2006. p. 47.
123
CORRÊA JUNIOR, Alceu; SHECAIRA, Sérgio S. Teoria da Pena. Editora Revista dos
Tribunais. São Paulo. 2002. p. 79.
124
BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal. 11. ed. Editora Revan. Rio de
Janeiro. 1990. p. 80.
125
FERREIRA LIMA, Marco A. Acesso à Justiça penal no Estado Democrático de
Direito. Curitiba: Juruá, 2008. p. 99 ss.
126
LUISI, Luiz. Os Princípios Constitucionais Penais. 2. ed. Sergio Antonio Fabris Editor.
Porto Alegre. 2003. p. 47.
127
LUISI, Luiz. Os Princípios Constitucionais Penais. 2. ed. Sergio Antonio Fabris Editor.
Porto Alegre. 2003. p. 47.
128
JESCHECK, Hans H.; WEIGEND, Thomas. Tratado de Derecho Penal. Tradução de
Miguel Olmedo Cardenete. 5. ed. Comares Editorial. Granada. 2002. p. 30.
129
PIERANGELI, José Henrique; ZAFFARONI, Eugenio Raul. Manual de Direito Penal
– Parte Geral. 6. ed. Editora Revista dos Tribunais. São Paulo. 2006. v. 1. p. 154.
130
BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal. 11. ed. Editora Revan. Rio de
Janeiro. 1990. p. 100.
131
ESPINAR, Jose M. Z. Fundamentos de Derecho Penal. 2. ed. Universidade de
Granada. Granada. 1991. p. 172.
132
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. 11. ed. Saraiva. 2007. v. 1.
p. 17.
133
CORRÊA JUNIOR, Alceu; SHECAIRA, Sérgio S. Teoria da Pena. Editora Revista dos
Tribunais. São Paulo. 2002. p. 87.
134
JESCHECK, Hans H.; WEIGEND, Thomas. Tratado de Derecho Penal. Tradução de
Miguel Olmedo Cardenete. 5. ed. Comares Editorial. Granada. 2002. p. 30.
6.1 LEI PENAL NO TEMPO
A lei é o instrumento utilizado pelo Estado para exteriorizar sua vontade
e comu-nicá-la aos cidadãos. Entretanto, a vontade do Estado que determinou
a elaboração de uma específica lei altera-se com o passar do tempo, já que a
própria sociedade para quem as leis são elaboradas está num constante
processo de evolução e mutação, de forma que as leis precisam acompanhar
essas mudanças, sob pena de se tornarem obsoletas e inúteis.
Desse modo, a lei penal, como toda forma de manifestação da vida, não
consegue escapar à ação corrosiva e implacável do tempo, de modo que
também nasce, vive e morre.1
A lei penal, portanto, tem um “nascimento”, que se dá com sua
promulgação e publicação, e uma “morte”, que se dá quando outra lei penal a
sucede e de forma expressa ou tácita revoga parcial (derrogação) ou
totalmente (ab-rogação) seu conteúdo.
Podemos afirmar, portanto, que o “tempo de vida” da lei é o tempo
compreendido entre a sua promulgação e a sua revogação, ou seja, o tempo
de sua vigência.
À primeira vista, parece lógico que as condutas que forem praticadas na
vigência de determinada lei serão punidas exatamente como dispuser essa lei.
É o princípio tempus regit actum – a lei penal em vigor naquele momento
rege o ato praticado naquele momento.
Contudo, em sede de Direito Penal, a situação não é tão simples, pois
pode acontecer – e é muito comum que aconteça – um fenômeno que
chamamos de sucessão de leis penais, que nas palavras de F. Antolisei ocorre
quando “uma norma se extingue e é substituída por outra”.2
Ocorre que essa lei nova – novatio legis – pode regular o mesmo fato de
forma mais severa ou de forma mais branda que a lei anterior, ou ainda,
simplesmente deixar de considerar aquela conduta como criminosa.
Sintetizando, quando houver a sucessão de leis penais, poderemos nos
deparar com as seguintes situações: (a) abolitio criminis (quando a nova lei
descriminaliza uma determinada conduta); (b) novatio legis in mellius
(quando a nova lei prevê uma condição mais favorável ao réu); e (c) novatio
legis in pejus (quando a nova lei prevê uma situação desfavorável ao réu).
Nesse momento é imprescindível que resgatemos o princípio da
legalidade e todos os seus consectários, para resolver os conflitos decorrentes
da sucessão de leis penais.

6.1.1 Novatio legis in pejus


O art. 1o do CP, conforme já visto, tem a seguinte redação: “Não há
crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação
legal”.
Daí, retiramos o princípio da irretroatividade da lei penal, segundo o
qual a lei penal não pode retroagir para prejudicar o réu, seja criminalizando
uma conduta que foi praticada quando não havia a proibição,3 seja para, de
qualquer forma, agravar a sua situação.
Assim, sempre que na sucessão de leis penais a lei posterior for
prejudicial ao réu (lex gravior), esta não será aplicada aos fatos ocorridos
antes da sua vigência, seja quando cria uma figura penal até então inexistente,
seja quando se limita a agravar as consequências jurídico-penais do fato.4
A lex gravior, portanto, será sempre irretroativa. Seus efeitos somente
terão aplicabilidade aos fatos praticados após a sua entrada em vigor e nunca
aos fatos praticados anteriormente.
Não se admite, em relação à irretroatividade da lex gravior, qualquer
exceção, tendo plena aplicabilidade o princípio do tempus regit actum.
Nélson Hungria explica:

A irretroatividade da lei penal menos favorável é um corolário do


nullum crimen, nulla poena sine lege. As mesmas razões que
fundamentam o veto à criação de crimes ou aplicações de penas à
margem da lei (pelo arbitrium judicis ou pela analogia) militam para
a interdição da lei penal ex post facto, quer no caso de novatio
criminis, quer no de acréscimo de punibilidade ou desfavor ao réu.
Em ambos os casos, a retroatividade encontra obstáculo de autêntico
direito adquirido na órbita da liberdade individual, isto é, o direito
que o indivíduo adquiriu, vigente na lei anterior, de não ser punido
ou ser punido menos severamente.5

6.1.2 Abolitio criminis


A abolitio criminis acontece quando uma lei penal posterior
descriminaliza uma conduta que era criminalizada pela lei anterior, ou seja, a
lei nova, simplesmente, realiza a abolição do crime.
Nessa hipótese, parte-se do pressuposto de que, por ser a lei nova mais
adequada do que a anterior, o Estado não mais tem interesse em punir os
autores daquelas condutas, que já não são mais consideradas criminosas. Se
não há mais interesse em puni-los, a nova lei deverá retroagir e afastar os
efeitos punitivos da lei anterior.
Assim, toda vez que se operar a abolição do crime, todos os efeitos
jurídico-penais decorrentes da prática daquela conduta, que não é mais
prevista como crime, devem desaparecer.
Desse modo, se há inquérito policial ou processo em andamento, estes
deverão ser trancados, e se já houve sentença condenatória, cessam a sua
execução e seus efeitos penais. O fato não mais pode figurar na vida
pregressa do réu, seu nome deve ser retirado do rol dos culpados e esse fato
não pode ser utilizado como critério de reincidência em um futuro processo
penal por outro crime.6
O caput do art. 2o do CP trata expressamente da abolitio criminis, tanto
em relação a sua retroatividade (primeira parte), quanto em relação à
cessação de todos os efeitos (segunda parte) punitivos decorrentes da conduta
não mais considerada criminosa, ao prever que: “Ninguém pode ser punido
por fato que lei posterior deixa de considerar crime, cessando em virtude dela
a execução e os efeitos penais da sentença condenatória”.
Observe-se, entretanto, que somente os efeitos penais é que cessarão,
visto que os demais efeitos (civis e administrativos), como, por exemplo, o
dever de reparar o dano, subsistirão.
Há, no nosso ordenamento jurídico, exemplo de abolitio criminis,
operado pela Lei 11.106/2005, que simplesmente aboliu o crime de adultério
que era previsto no art. 240 do CP.

6.1.3 Novatio legis in mellius


Ainda é possível, na hipótese de sucessão de leis penais, que a nova lei,
apesar de não abolir o crime, simplesmente opere uma melhora na situação
do réu, isto é, seja-lhe mais benéfica.
Nessas situações, chamamos a lei mais favorável de lex mitior.
Ao contrário da lei penal prejudicial (lex gravior), que nunca retroage, a
lei penal favorável sempre retroagirá para beneficiar o réu.
Podemos afirmar, portanto, que a lex mitior, assim como a abolitio
criminis, é dotada de retroatividade, o que significa que a lei penal que de
qualquer modo melhora a situação do réu não obedece ao princípio do tempus
regit actum, pois não tem aplicabilidade apenas aos atos praticados após a sua
vigência, mas aplica-se também aos atos praticados anteriormente.
É o que prevê, de forma expressa, o parágrafo único do art. 2o do CP: “A
lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos
anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em
julgado”.
Difícil, porém, é definir, entre duas leis que se sucedem, qual é a mais
favorável.
Segundo Battaglini,

para determinar qual a lei que contém disposições mais favoráveis ao réu,
mister se faz considerar tudo aquilo que pode ocasionar resultado menos
rigoroso, em virtude da aplicação de determinada lei, dentro da espécie a ser
decidida. Torna-se, assim, necessário examinar não somente a espécie e
quantidade da pena (o que constitui o caso mais fácil de resolver-se), como
também os requisitos do tipo legal, as condições de punibilidade, as penas
acessórias, os poderes discricionários do juiz etc.: em suma, todas as
disposições aplicáveis ao caso concreto, de acordo com o sistema de uma ou
outra legislação.7

Nélson Hungria, entretanto, apresenta-nos um critério um pouco mais


detalhado ao considerar mais favorável aquela lei que de qualquer modo
beneficia o réu, o que na opinião do referido autor ocorre quando:

a) a pena cominada atualmente ao crime é mais branda, quanto à sua


natureza, que a da lei anterior; b) a pena atual, embora da mesma natureza, é
menos rigorosa quanto ao modo de execução; c) o quantum da pena in
abstrato é reduzido ou, mantido esse quantum, o critério de sua medida in
concreto é menos rígido que o da lei anterior; d) são reconhecidas
circunstâncias que influem favoravelmente na gradação ou medida da pena
(atenuantes, causas de especial diminuição de pena ou condições de menor
punibilidade), alheias à lei anterior, ou suprime agravantes ou majorantes
(qualificativas, causas de especial aumento de pena ou condições de maior
punibilidade); e) institui benefícios (no sentido da eliminação, suspensão ab
initio ou interrupção da execução da pena) desconhecidos da lei pretérita, ou
facilita a sua obtenção; f) cria causas extintivas da punibilidade ou torna mais
fácil o seu advento; g) estabelece condições de processabilidade que a lei
anterior não exigia; h) acresce as causas de irresponsabilidade penal, de
isenção de pena, de exclusão de crime ou de culpabilidade; i) exclui ou
atenua as penas acessórias;8 e j) suprime a concessibilidade de extradição.9

Não obstante todos esses critérios, no caso concreto, não é fácil definir
qual lei é mais benéfica ao réu. Isso ocorre porque as novas leis penais não se
apresentam de forma simples ou modificam um único dispositivo, sendo que,
na maioria das vezes, são complexas e visam a alterar uma gama de artigos,
sendo que só excepcionalmente se apresentam favoráveis em todos os seus
aspectos, sendo mais frequente que se apresentem favoráveis em parte e em
parte não.10
Assim, é plenamente possível que a nova lei, por exemplo, aumente a
pena (no que seria desfavorável), mas crie benefícios inexistentes na lei
anterior (no que seria mais benéfica).
Para exemplificar, poderemos utilizar a atual lei de drogas, que embora
tenha aumentado a pena cominada para o tráfico de droga, que na lei antiga
era de 3 a 12 anos de reclusão e na nova de 5 a 15 anos de reclusão, fez
previsão de um benefício ao réu primário e de bons antecedentes e sem
envolvimento com organização criminosa, que terá a sua pena reduzida de
1/3 a 2/3, sendo que tal redução de pena não existia na lei anterior. Temos,
portanto, num mesmo diploma legal – Lei 11.343/2006, – uma situação que
agrava a do réu (pena mínima e máxima mais altas) e uma situação que
beneficia o réu (causa de diminuição de pena). O resultado é que, se
analisarmos a lei antiga e a lei nova, de forma isolada e comparando-as (sem
que se opere a combinação entre elas), perceberemos que ao réu primário, de
bons antecedentes e que não pertença a uma organização criminosa, a lei
nova é mais benéfica, mas o mesmo não pode ser dito em relação ao réu que
não se enquadra na situação acima descrita, pois para este a lei será mais
grave, fato que por si só demonstra a dificuldade em se determinar quando
uma lei é mais benéfica ou mais severa ao réu.
Se no caso concreto, mesmo após profunda análise, subsistir a dúvida de
qual lei seria mais benéfica, nada impede que se consulte o próprio acusado,
sendo esse o maior interessado e o titular da garantia constitucional. Apesar
de não haver tal previsão no nosso ordenamento jurídico, o Código Penal
Espanhol, em seu art. 2o, no 2, prevê que: “no caso de dúvida sobre a
determinação da lei mais favorável, será ouvido o réu”.11 Hungria também
sustenta que apesar de não haver disposição expressa nesse sentido, não há
qualquer razão para recusá-lo.12
A título de exemplo, cumpre informar que há, no nosso ordenamento
jurídico exemplo de novatio legis in mellius, realizado pela Lei de Drogas
(Lei 11.343/2006), que alterou para melhor a situação do usuário de drogas.
A antiga lei de tóxicos – 6.368/1976 – cuidava do usuário em seu art. 16, que
contava com a seguinte redação:

Art. 16. Adquirir, guardar ou trazer consigo, para o uso próprio, substância
entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica, sem
autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:
Pena – Detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e pagamento de (vinte) a
50 (cinquenta) dias-multa.

Desse modo, aquele que fosse surpreendido pela polícia comprando,


guardando ou trazendo para uso próprio qualquer tipo de droga estava sujeito
a uma pena de detenção (privativa de liberdade) de seis meses a dois anos,
mais pagamento de multa. Entretanto, a atual Lei de Drogas – Lei no
11.343/2006 – trata do usuário no art. 28, que contém a seguinte redação:

Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer


consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo
com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:
I – advertência sobre os efeitos das drogas;
II – prestação de serviços à comunidade;
III – medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.
(...)

Percebe-se, portanto, que a Lei de Drogas não prevê mais para o usuário
pena privativa de liberdade e tampouco pena de multa, mas apenas penas de
advertência, prestação de serviços à comunidade e medida educativa, ou seja,
deu um tratamento mais brando ao usuário.
Apenas a título de esclarecimento, esse abrandamento ao tratamento
dado ao usuário é reflexo da alteração da política de combate às drogas,
efetivada pela atual lei, que não mais vê o usuário como um criminoso, mas
sim como portador de uma doença e uma pessoa que precisa de auxílio no
combate ao seu vício. O usuário não é mais visto como um problema de
polícia, mas sim como um problema de saúde pública.

6.1.4 Características das leis penais: retroatividade,


ultratividade e irretroatividade
De todo o exposto, podemos destacar que as leis penais, em relação aos
seus efeitos, podem ser retroativas – quando seus efeitos voltam no tempo e
aplicam-se a fatos praticados no passado, quando ainda não estava em vigor –
ou ultrativas – quando seus efeitos se prolongam no tempo, quando essa lei
não está mais em vigor.
Assim, a lei penal mais benéfica (lex mitior) – seja na hipótese de
abolitio criminis, seja na hipótese de novatio legis in mellius –, quando for
posterior, é dotada de retroatividade, pois seus efeitos regressam no tempo e
aplicam-se aos fatos praticados quando ainda não estava em vigor.
Entretanto, a lei penal mais benéfica também é dotada de ultratividade,
quando é anterior, pois mesmo após ser substituída por outra lei penal e não
estar mais em vigência, seus efeitos continuam a se prolongar no tempo, pois
a lei penal posterior mais grave não pode retroagir.13
Por fim, a lei penal prejudicial (lex gravior) não é dotada de
retroatividade, pois jamais poderá retroagir, tampouco de ultratividade, pois
sempre que substituída por lei penal mais benéfica perderá imediatamente
seus efeitos. A lei penal prejudicial, portanto, tem uma única característica: a
irretroatividade.

6.1.5 Lex tertia


Questão das mais tormentosas é saber se pode o magistrado, quando se
depara com duas leis penais, utilizar dispositivos de ambas, ou seja, aplicar a
lei anterior, naquilo que for mais benéfica ao réu, e aplicar a lei posterior,
naquilo que for mais benéfica ao réu, de forma simultânea.
Na nossa doutrina, Galdino Siqueira,14 Heleno Cláudio Fragoso,15
Aníbal Bruno16 e Nelson Hungria não admitem a combinação das leis, pois
conforme sustenta o último:

Cumpre advertir que não podem ser entrosados os dispositivos mais


favoráveis da lex nova com os da lei antiga, pois, de outro modo, estaria o
juiz, arvorado em legislador, formando uma terceira lei, dissonante, no seu
hibridismo, de qualquer das leis em jogo. Trata-se de um princípio pacífico
em doutrina: não pode haver aplicação combinada das duas leis.17

Entretanto, apesar da respeitável opinião de Hungria, a questão nunca


foi pacífica, pois já militavam a favor da combinação de leis Basileu Garcia,18
Celso Delmanto,19 Francisco de Assis Toledo20 e José Frederico Marques,
sendo que o último, em clara resposta à Hungria, afirmava que:

Dizer que o juiz está fazendo lei nova, ultrapassando assim suas funções
constitucionais, é argumento sem consistência, pois o julgador, em
obediência a princípios de equidade consagrados pela própria Constituição,
está apenas movimentando-se dentro dos quadros legais para uma tarefa de
integração perfeitamente legítima.21

Autores mais modernos, como Paulo Queiroz e Cláudio Brandão, com


quem concordamos, admitem a combinação de leis.
Queiroz sustenta que a questão está mal colocada e que não há que se
falar em combinação de leis, mas sim em “mera retroatividade parcial da lei”,
pois se a lei retroage quando é integralmente favorável ao réu, o mesmo
deverá ocorrer, com maior razão, quando for favorável apenas em parte, em
respeito ao princípio da retroatividade da lei benéfica, pouco importando
quanto de benefício encerre. Sustenta ainda o referido autor “que o parágrafo
único do artigo 2o prevê a retroatividade quando a lei posterior favorece o réu
de qualquer modo, isto é, incondicionalmente, sempre que a nova lei
acarretar alguma espécie de atenuação do castigo”.22
Brandão fundamenta a possibilidade de combinação no princípio
constitucional da dignidade da pessoa humana, sustentando que:

Não podemos esquecer que a sanção penal atinge direitos fundamentais


constitucionalmente assegurados. Destarte, se a combinação de leis promove
uma redução à lesão destes direitos fundamentais atingidos pela pena, não é
só por equidade que deve aplicar a combinação de lei, mas, sobretudo, porque
o respeito à dignidade da pessoa humana impõe a menor lesão possível dos
direitos fundamentais.23
Não obstante as posições doutrinárias apresentadas em favor da
combinação de leis, a jurisprudência majoritária não admite tal situação,
filiando-se à posição de Hungria.
Entretanto, apesar de, em decisões recentes, tanto o STJ24 quanto o STF
terem admitido a combinação de leis penais, especialmente no que se refere à
antiga lei de drogas – Lei no 6.368/1976 – e à Lei de Drogas – Lei no
11.343/2006, em 2013, no julgamento do RE 600.817, foi suscitada e aceita a
Repercussão Geral da matéria, sendo que o pleno do STF decidiu, por
maioria, não ser possível a combinação de leis.

6.1.6 Lei intermediária


Situação curiosa ocorre quando entre duas leis que se sucedem surge
uma intermediária mais benigna, que embora não seja a lei vigente no
momento da prática do crime e tampouco no momento do julgamento, é a
mais favorável ao réu.
Imagine-se que o réu pratique um crime sob a vigência da lei A, que o
pune com pena mínima de cinco anos. Posteriormente a essa lei, surge a lei
B, que prevê para o referido crime a pena mínima de três anos, entretanto,
essa lei tem um tempo de vida muito curto, apenas de alguns meses, de forma
que não ocorre o julgamento do processo durante sua vigência. Por fim, dias
antes do julgamento, surge a lei C, que novamente altera a pena mínima
daquele crime, mas agora para quatro anos.
Entende a doutrina que a decisão mais acertada é aplicação da lei mais
benéfica, mesmo que essa seja a lei intermediária.
Tecnicamente, não poderia ser diferente. Se a lei mais favorável sempre
retroage para beneficiar o réu, no momento em que a lei mais favorável entra
em vigor (Lei B), esta retroage e afasta os efeitos da lei anterior mais grave
(Lei A). Entretanto, posteriormente, quando a lei mais severa entra em vigor
(Lei C), esta não pode retroagir e afastar os efeitos da lei mais favorável (Lei
B), pois a lei penal desfavorável jamais retroage.
Nas palavras de Galdino Siqueira:

Não se pode aplicar a primeira, porque a segunda deve retroagir em favor do


acusado e não se pode aplicar a terceira, porque seria dar a esta um efeito
retroativo em prejuízo do acusado.25

Resgata, ainda, o referido autor, o seguinte trecho da exposição de


motivos do Código Penal:

Não havia necessidade de declarar expressamente que, no caso de sucessão


de várias leis, prevalece a mais benigna, pois é evidente que, aplicando-se ao
fato a lei posterior, somente quando favorece o agente, em caso algum se
poderá cogitar da aplicação de qualquer lei sucessiva mais rigorosa, porque
esta encontrará o agente já favorecido por lei intermediária mais benigna.26

6.1.7 Lei penal excepcional ou temporária


Vimos que como regra geral, a lei penal mais benéfica sempre retroage
para favorecer o réu, já que a lei mais severa não é dotada de ultratividade, ou
seja, após sua revogação, seus efeitos não se prolongam no tempo.
Entretanto, existe uma única exceção a essa regra da não ultratividade da
lex gravior, que ocorre nas hipóteses de leis penais excepcionais ou
temporárias, pois mesmo sendo mais severas, essas leis continuam a ser
aplicadas aos fatos cometidos durante a sua vigência, mesmo que já tenham
sido revogadas.
As leis excepcionais são aquelas criadas em virtude de necessidades
excepcionais e de circunstâncias de fato inteiramente especiais (guerra,
estado de sítio, terremoto etc.),27 sendo que no momento em que cessar a
situação especial que motivou a elaboração da lei, interrompe-se também a
vigência desta. Assim, se uma lei excepcional é feita para vigorar durante um
período de guerra, terminada esta, não há mais razão para a lei existir,
cessando seus efeitos.
Já as leis temporárias são aquelas em que aparece estabelecido um
término para sua duração, ou seja, as leis que deixam de ter vigor em uma
data prefixada, sem que seja preciso uma disposição nova que as declare
extinguidas.28 A lei temporária, portanto, nasce com prazo de validade.
O regime de exceção que concede ultratividade às leis excepcionais ou
temporárias tem por fim garantir eficácia a essas normas e evitar que fatos
cometidos às vésperas da extinção do termo ou da cessação do estado
excepcional que as determinou ficassem impunes.29
Cobo del Rosal e Quintanar Díez sustentam que a ultratividade é
necessária para a própria prevenção dos crimes objeto dessas leis, ao
afirmarem que “o congelamento de uma valoração jurídica efetuada no
transcurso de uma situação extraordinária serve para conservação dos efeitos
de prevenção geral deste tipo de leis”.30
Há, ainda, outro motivo, muito bem explicado por Fernando A. Pedroso:

Sendo a lei excepcional ou temporária, ante sua própria natureza, norma


fugaz, de curto período de duração, bastaria que o transgressor de tal lei
incriminadora, para subtrair-se à sua aplicação, procrastinasse por meios
protelatórios o desfecho do processo que fosse instaurado, retardando a
decisão, para que, jogando com o fator tempo, pudesse eventualmente obter a
sua impunidade ou inflição de reprimenda mais benevolente, burlando, dessa
forma, sempre, o domínio e poder da lei.31

No nosso Código Penal, a questão da ultratividade das leis temporárias


ou excepcionais é tratada de maneira expressa pelo art. 3o ao prever que:

A lei excepcional ou temporária, embora decorrido o período de sua duração


ou cessadas as circunstâncias que a determinaram, aplica-se ao fato praticado
durante sua vigência.
6.1.8 Lei penal em branco
A norma penal em branco é a lei penal que, para ser ter exato
conhecimento da proibição, necessita ser completada por outra norma.
Na norma penal em branco, o núcleo da conduta proibida, ou seja, o
verbo, encontra-se previamente determinado. Todavia, o complemento desse
verbo, sempre necessário para individualização da conduta incriminada, não é
previsto pela mesma norma, mas sim por outra diferente.32
Nas palavras de Luiz Régis Prado:

A lei penal em branco pode ser conceituada como aquela em que a descrição
da conduta punível se mostra incompleta ou lacunosa, necessitando de outro
dispositivo legal para sua integração ou complementação. Isso vale dizer: a
hipótese legal ou prótase é formulada de maneira genérica ou indeterminada,
devendo ser colmatada/determinada por ato normativo (legislativo ou
administrativo), em regra, de cunho extrapenal, que fica pertencendo, para
todos os efeitos, à lei penal. Utiliza-se assim do chamado procedimento de
remissão ou de reenvio a outra espécie normativa, sempre em obediência à
estrita necessidade.33

Assim, a norma penal em branco não é autoaplicável, pois sempre


precisará de outra norma – quase sempre estranha ao Direito Penal – para que
possa ter aplicabilidade, fato que fez com que Binding afirmasse que “a lei
penal em branco é um corpo errante em busca de sua alma”.34
A lei penal em branco, dependendo da natureza de seu complemento,
pode ser dividida em homogêneas (também chamadas de impróprias ou em
sentido amplo) e heterogêneas (também chamadas de próprias ou sentido
estrito).
Nas primeiras – homogêneas –, tanto o complemento, quanto o conteúdo
principal da norma derivam da mesma fonte, ou seja, da lei, podendo ser esta
penal ou extrapenal.
Nas segundas – heterogêneas –, a complementação deriva de fonte
diversa da que proveio o conteúdo principal da norma, ou seja, não deriva
propriamente da lei, mas sim de decretos, regulamentos, portarias etc.
Assim, constitui exemplo de lei penal em branco homogênea o art. 304
do CP, que se refere ao uso de documento falso. Apesar de proibir a
utilização dos documentos falsos, o referido tipo penal não diz quais são
esses documentos, fazendo apenas uma remissão aos arts. 297 a 302, do
próprio CP. Assim, o núcleo da proibição está previsto pelo próprio art. 304,
mas o complemento (quais seriam os documentos falsos) é dado por outras
normas do próprio Código Penal.
No art. 269 do CP encontramos o crime denominado omissão de
notificação de doença, que conta com a seguinte redação:

Deixar o médico de denunciar à autoridade pública doença cuja notificação é


compulsória:
Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.

Percebe-se, desde logo, que o núcleo da conduta proibida representado


pela expressão deixar de denunciar é prontamente entendido pelo intérprete
da lei, mas é impossível que se consiga individualizar imediatamente a
conduta, pois é preciso que outra norma complemente a principal ao definir
quais são as “doenças de notificação compulsória”, o que será feito pelo
Ministério da Saúde, por uma portaria.
Exemplo clássico de norma penal em branco própria ou homogênea é o
art. 33 da Lei no 11.343/2006, que prevê o crime de tráfico de drogas, que tem
a seguinte redação:

Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender,


expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar,
prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que
gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou
regulamentar.

O núcleo do tipo penal é a prática de qualquer um dos 18 verbos acima


citados, mas o artigo não define quais são as substâncias que são ou não
consideradas drogas para fins penais, o que será feito pelo Ministério da
Saúde, por meio de uma portaria.
Questão das mais controvertidas é saber se a norma penal em branco é
ou não dotada de retroatividade, especificamente no que se refere às
alterações de seu complemento, sendo a questão muito discutida e nada
pacífica na doutrina nacional, pois como assevera Paulo José da Costa Junior,
“alguns se manifestando pela irretroatividade de qualquer preceito extrapenal
que cubra os claros das leis penais em branco, outros admitindo a
retroatividade benéfica, e outros ainda assumindo posição intermediária
(...)”.35
Entretanto, parece-nos que tal indagação não comporta uma resposta
absoluta, pois a possibilidade de retroatividade da lei penal em branco vai
depender se estamos diante de uma lei penal em branco homogênea ou
heterogênea e, ainda, se o complemento tem um caráter definitivo, ou apenas
excepcional ou temporário.
Se a norma penal em branco for homogênea e o complemento é alterado
ou deixa de existir, certamente deverá haver a retroatividade para beneficiar o
réu. No caso do art. 304 do CP, imaginemos que o agente utilize-se do
documento falso previsto no art. 302 (atestado médico falso), mas depois do
cometimento do crime, o legislador revoga esse artigo. Não há dúvidas de
que nessa hipótese a nova legislação, que operou o abolitio criminis apenas
do complemento, deverá retroagir em benefício do réu.
Agora, se estivermos diante de uma norma penal em branco
heterogênea, ou propriamente dita, somente haverá retroatividade do
complemento se este não tiver um caráter excepcional ou temporário,
exatamente como ocorre com as normas excepcionais ou temporárias.
Exemplificando: se um médico deixa de notificar à autoridade
competente determinada doença de notificação compulsória, comete o crime
do art. 269 do CP. Porém, se durante o processo, o Ministério da Saúde altera
a portaria que define quais são as doenças de notificação compulsória,
retirando da lista justamente aquela que o médico deixou de notificar, deverá
a norma retroagir em benefício do réu.
Entretanto, se essa doença somente entrou no rol daquelas de notificação
compulsória em virtude de uma situação excepcional, como, por exemplo:
enchentes que favorecem a transmissão específica dessa doença pelo contato
com a água, sendo que assim que a situação de normalidade se restabelecer
não haverá mais necessidade de constar naquela portaria, gozará o
complemento de ultratividade, pelos mesmos fundamentos que explicam a
ultratividade das leis excepcionais ou temporárias.
Nesse sentido comenta Paulo Queiroz:

Com efeito, salvo a hipótese de a norma complementadora ter conteúdo


temporário ou excepcional, tal como nas situações já estudadas, e pelas
mesmas razões já estudadas, caso em que terá efeito ultrativo, a consequência
da revogação será como regra o retroativo. Assim, se essas normas não
tiverem tal caráter temporário ou excepcional, terão efeito retroativo sempre
que beneficiem o réu (v. g., caso a maconha – cannabis sativa – deixasse de
figurar no elenco das drogas ou se determinada doença deixasse de integrar o
rol das enfermidades cuja notificação fosse compulsória). Contrariamente,
tabelas de preço (em relação aos crimes contra a economia popular), mesmo
após a cessação de sua vigência, continuarão regendo as situações
consumadas durante a sua existência, em face do seu caráter temporário.36

6.2 TEMPO DO CRIME


Tão importante quanto saber qual lei deverá ser aplicada em
determinado momento é saber em que instante considera-se cometido o
delito.
Expliquemos com um exemplo: Imaginemos que Nelson, pretendendo
matar Benedito, efetua contra este alguns disparos de arma de fogo.
Entretanto, por ter sido socorrido, Benedito não morre no momento dos
disparos, mas somente alguns dias depois, no hospital. Qual seria o momento
do cometimento do crime? O momento em que houve os disparos ou o em
que a vítima veio a óbito?
É importante que se defina o momento do crime para saber, por
exemplo, qual lei será aplicável em um caso concreto.
Ainda com base no exemplo acima, imaginemos que a lei sobre
homicídio tenha sido alterada, exatamente naqueles dias em que Benedito
ficou no hospital entre a vida e a morte, e tenha majorado a pena do referido
crime.37 É essencial que se saiba qual foi o momento do crime para que se
possa saber qual das duas leis lhe seria aplicável. Se considerarmos o
momento do crime aquele dos disparos, aplicaremos a lei anterior. Se
considerarmos o momento do crime aquele da morte da vítima, aplicaremos a
lei posterior, ainda que mais grave.
O mesmo raciocínio serve, ainda com base no exemplo acima, se
imaginarmos que quando Nelson efetuou os disparos contava com 17 anos,
11 meses e 26 dias, e quando a vítima morreu, já tivesse completado 18 anos.
Mais uma vez, se considerarmos como momento do crime o dos disparos,
Nelson, por ser menor de idade, não será processado com base no Código
Penal, mas sim com base no ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente); já
se considerarmos o momento do crime o da morte da vítima, Nelson já será
considerado maior de idade e será processado com base no Código Penal.38
Durante a evolução do Direito Penal desenvolveram-se basicamente três
teorias sobre o tempo do crime: teoria da ação; teoria do resultado e teoria da
ubiquidade.
Segundo a teoria da ação, considera-se como momento do crime o da
ação ou omissão do agente, ou seja, o instante em que ele praticou a conduta
proibida (ação) ou o em que ele deveria ter agido e não agiu (omissão).
Segundo a teoria do resultado, considera-se como momento do crime
aquele em que sobreveio o resultado exigido pelo crime. No caso do
homicídio, por exemplo, seria o da morte da vítima.
Já a teoria da ubiquidade é uma mistura das duas teorias anteriores, pois
considera como momento do crime tanto o da ação ou omissão, quanto o do
resultado.
Embora nosso Código Penal seja de 1940, somente com a reforma da
Parte Geral, ocorrida em 1984, é que o legislador resolveu de vez a questão,
adotando expressamente no art. 4o a teoria da atividade, “espancando as
dúvidas doutrinárias”.39
De fato, o art. 4o do CP tem a seguinte redação: “Considera-se praticado
o crime no momento da ação ou omissão, ainda que outro seja o momento do
resultado”.
Pode-se dizer, portanto, que o legislador não só adotou a teoria da
atividade, como afastou expressamente a teoria do resultado.
Assim, no exemplo que apresentamos, o momento do crime é aquele em
que Nelson fez os disparos, de forma que na primeira hipótese seria
processado pela lei menos grave e na segunda seria processado pelo ECA.
Importante atentarmos que em relação ao instituto da prescrição,40 o
Código Penal transigiu com a teoria do resultado, posto que o prazo
prescricional somente tem seu início com a consumação do delito.41
Em relação ao tempo do crime, existem algumas questões que precisam
ser tratadas, especialmente no que se refere aos crimes permanentes e aos
crimes continuados.
Entende-se por crime permanente aquele que se prolonga no tempo, ou
seja, a consumação não é instantânea, mas perdura enquanto durar a ofensa
ao bem jurídico, como, por exemplo: os crimes de extorsão mediante
sequestro42 e cárcere privado,43 em que se considera que o crime está sendo
praticado enquanto houver a restrição da liberdade da vítima, podendo o
autor do crime ser preso em flagrante enquanto houver essa restrição.
Nessa hipótese, surge a seguinte dúvida: se um crime de extorsão
mediante sequestro se inicia na vigência de uma determinada lei penal, mas,
em virtude de durar alguns meses, entra em vigor outra lei penal, enquanto o
crime ainda está sendo praticado, qual lei deverá ser aplicada?
Entende-se que independentemente de a lei nova ser favorável ou
desfavorável ao réu, deverá ser aplicada ao crime em andamento, pois o fato
criminoso ainda está sendo executado, de forma que não se caracteriza uma
retroatividade da lei, pois, como já dito, o fato não está consumado, mas sim
sendo praticado.
Necessário destacar que o novo diploma legal, para ter aplicação
imediata, deve entrar em vigor durante a execução do crime permanente, de
forma que se este já estiver cessado, aplicar-se-ão os princípios já estudados,
tais como a irretroatividade da lei penal gravosa e a retroatividade da lei
penal benéfica.
Em relação aos crimes continuados é que a questão torna-se
controvertida.
O crime continuado, nos termos do art. 71 do CP,44 é aquele em que o
agente pratica várias condutas criminosas da mesma espécie, mas que por
serem praticadas nas mesmas circunstâncias de tempo, local, modo de
execução, ou outras semelhantes, as condutas subsequentes são entendidas
como continuação da primeira, de modo que o agente não responde por todos
os crimes praticados, mas apenas por um deles, com um aumento de pena em
virtude dos demais.
O conceito torna-se muito mais claro com um exemplo: imagine-se que
um caixa de supermercado, todos os dias, durante um mês, subtrai do seu
caixa a quantia de R$ 10,00, para não chamar a atenção de seus superiores.
Ao final de 30 dias, o caixa terá praticado 30 furtos de R$ 10,00 cada um.
Entretanto, por uma questão de política criminal, nos termos do art. 71 do CP,
por terem os 30 furtos sido praticados nas mesmas circunstâncias de tempo
(todo dia), local (supermercado), modo de execução (pegar R$ 10,00 do
caixa), faz-se uma ficção jurídica e não se considera que 30 crimes foram
praticados, mas apenas um, o primeiro, sendo que todos os 29 subsequentes
são considerados como mera continuação.
Assim, por meio dessa ficção jurídica, concede-se um tratamento
unitário a uma pluralidade de atos delitivos, determinando uma forma
especial de puni-los. Não se soma a pena de 30 crimes de furto, mas sim
aplica-se a pena de um único crime, aumentada de 1/6 até 2/3, em virtude das
condutas subsequentes.
A dúvida que daqui emana é a mesma em relação ao crime permanente,
qual seja: se durante a prática de uma série de crimes em continuidade
delitiva sobrevém uma nova lei penal, deverá esta ser aplicada ao crime
continuado?
Assim como em relação ao crime permanente, entendem a doutrina45 e a
jurisprudência majoritárias que a nova lei tem aplicação imediata, ainda que
mais gravosa, desde que não tenha sido ainda praticado o último ato dos
crimes em continuidade.
Tanto é assim que o STF editou a Súm. 711, que tem a seguinte redação:

A lei penal mais grave aplica-se ao crime continuado ou ao crime


permanente, se a sua vigência é anterior à cessação da continuidade
ou da permanência (g.n.).

Entretanto, não obstante ser essa a posição majoritária da doutrina e da


jurisprudência, há muitos autores, com os quais ousamos concordar, que
discordam de tal orientação.
Conforme apresentamos, nas hipóteses de crime continuado, nos exatos
termos do art. 71 do CP, “devem os subsequentes ser havidos como
continuação do primeiro”, de forma que por meio da referida “ficção
jurídica” há somente um crime, sendo que os crimes subsequentes somente
são levados em conta para individualização da pena.
Assim, se o agente somente responde pelo primeiro crime e não pelos
subsequentes (que somente são considerados para individualização da pena),
parece evidente que a lei posterior mais severa, que surge após o
cometimento do primeiro crime, não poderá alcançá-lo, porque se assim
ocorrer,

inverter-se-á o conceito legal de crime continuado lógica e cronologicamente:


os últimos crimes serão os primeiros, considerando-se a continuação do final
para o início, ou seja, os subsequentes prevalecerão sobre o primeiro e não o
contrário: o primeiro prevalecer sobre os subsequentes, como prevê a lei.46

O entendimento esposado pela referida súmula, além de ferir o princípio


da legalidade por conferir tratamento mais gravoso ao réu e ser cronológica e
logicamente insustentável,47 ainda é inconstitucional, pois viola o princípio da
irretroatividade da lei penal mais gravosa, pois permite a incidência de nova
lei prejudicial a fatos ocorridos antes da sua vigência.48

6.3 LEI PENAL NO ESPAÇO


Tão importante quanto definir os critérios para aplicação da lei penal no
tempo é definir os critérios para aplicação da lei penal no espaço.
Conforme disse Bettiol, a lei penal não foi feita para permanecer letra
morta, mas para ter eficácia em uma determinada parte da superfície terrestre,
de forma que estando a superfície terrestre sujeita à soberania de outros
Estados, cada um com uma legislação penal própria, surge o problema da
limitação territorial de eficácia de cada uma dessas legislações na hipótese
de um mesmo fato delituoso.49
Desse modo, pela existência de uma pluralidade de Estados Soberanos,
com suas respectivas legislações penais, não se admite a adoção do princípio
da universalidade, que permitiria que uma única legislação fosse aplicável de
maneira universal, fato que somente seria possível se houvesse um único
Estado (como no caso do Império Sacro-Romano, por exemplo).50
Assim, existem alguns critérios/princípios utilizados para determinar se
a lei de um ou outro país poderá ser aplicada a um fato criminoso praticado
nesse ou naquele território.
Segundo Nelson Hungria, são quatro os princípios relativos à eficácia da
lei penal no espaço: princípio da territorialidade; princípio da personalidade
ou nacionalidade; princípio real ou da defesa e princípio da universalidade do
direito penal ou da justiça penal cosmopolita.51
O princípio da territorialidade determina que a esfera de eficácia da lei
está delimitada pelo território do Estado que a ditou. Assim, todos aqueles
que se encontrem no território de determinado Estado, sejam eles nacionais,
estrangeiros ou apátridas, estão submetidos às leis penais desse mesmo
Estado.52
O princípio da personalidade ou nacionalidade entende que a lei do
Estado deve seguir o cidadão onde quer que ele se encontre, pois se baseia no
conceito de que o cidadão está sempre ligado à lei do seu país de origem e lhe
deve obediência, ainda que se encontre no exterior. Tal princípio divide-se
em personalidade ativa e passiva. Fala-se em personalidade ativa quando
importa em aplicar a lei nacional ao delinquente que comete crime no
estrangeiro, independentemente do bem jurídico lesionado pelo crime. Ainda
em relação aos crimes cometidos no exterior, se a lei nacional somente for
aplicável se o delito atinge bem jurídico do Estado ou de um de seus súditos,
chama-se de personalidade passiva.53
Segundo o princípio real, da defesa ou da proteção, a jurisdição penal do
Estado titular do bem jurídico estende-se para além dos seus limites
territoriais, fundamen-tando-se na nacionalidade do bem jurídico lesado,
independentemente do território em que foi cometido e da nacionalidade do
infrator. Busca-se, dessa forma, proteger determinados bens jurídicos que o
Estado tem como fundamentais.54
Por fim, segundo o princípio da universalidade, cosmopolita ou da
justiça universal, as leis penais devem ser aplicadas a todos os homens, onde
quer que eles se encontrem, independentemente da nacionalidade do agente,
da vítima ou do bem jurídico lesionado. Atualmente, esse princípio, que já
fora chamado por Nélson Hungria de “utópico”,55 tem ganhado um papel de
destaque com as Cooperações Penais Internacionais, ao permitir a punição,
por todos os Estados, daqueles crimes que forem objeto de tratados e
convenções internacionais.56 O fundamento, segundo João Mestieri, é de o
crime ser um mal universal, sendo que todos os Estados têm interesse em
coibir a sua prática.57

6.3.1 Legislação penal brasileira – Princípio da


territorialidade
Em relação à aplicação da lei penal no espaço, o Código Penal brasileiro
adotou como regra geral o princípio da territorialidade e como exceção os
princípios da personalidade ou nacionalidade, o real ou da defesa e o da
universalidade do Direito Penal ou da Justiça Penal Cosmopolita, todos com
caráter complementar e de extraterritorialidade.
O princípio da territorialidade foi consagrado no caput do art. 5o do CP,
que tem a seguinte redação: “Aplica-se a lei brasileira, sem prejuízo de
convenções, tratados e regras de direito internacional, ao crime cometido no
território nacional”.
Assim, todos os crimes que forem cometidos dentro do território
brasileiro serão julgados pela lei brasileira, independentemente de quaisquer
outras condições, como, por exemplo, a nacionalidade dos envolvidos.
Todavia, apesar de ter sido adotado como regra geral, o referido
princípio não foi adotado de maneira absoluta, pois o próprio caput do art. 5o
prevê que as “convenções, tratados ou regras de direito internacional” podem
tratar do assunto de maneira diversa. Desse modo, apenas a título de
exemplo, o Brasil pode assinar um tratado com o Canadá determinando que
os crimes cometidos por canadenses no território brasileiro serão julgados
pelo Estado Canadense.
Assim, diz-se que o Brasil adotou o princípio da territorialidade
temperada.
Importa-nos, nesse momento, compreender o conteúdo e a amplitude do
termo território nacional, em outras palavras, precisamos definir tudo aquilo
que é considerado como território nacional.

6.3.2 Conceito de território


Antes de tudo, cumpre-nos informar que o conceito de território
nacional utilizado para fins penais não coincide exatamente com o conceito
de território nacional utilizado pela geografia.
Nélson Hungria, citando Manzini, definiu território nacional da seguinte
maneira:

Todo espaço terrestre, marítimo ou aéreo, sujeito à soberania do Estado, quer


esteja compreendido entre os limites que o separam dos Estados vizinhos ou
do mar livre, quer esteja destacado do corpo territorial principal, ou não.58

No âmbito terrestre será considerado como território tanto o solo quanto


o subsolo correspondente, contínuo ou não (incluem-se aqui as ilhas) e as
águas interiores.
No âmbito marítimo, considera-se como parte do território o mar
territorial, compreendido como tal a faixa ao longo da costa, incluindo o leito
e subsolo correspondente, que se estende por 12 milhas marítimas em direção
ao alto-mar.59
Por sua vez, o espaço aéreo é compreendido por todo o espaço situado
acima do território brasileiro e do seu mar territorial.60
É esse, portanto, o conteúdo do termo território nacional para fins
penais definido no caput do art. 5o do CP.

6.3.3 Território nacional por extensão


Há, ainda, no § 1o61 do art. 5o do CP uma extensão do conceito do
território nacional, de forma que também integrarão o conceito de território
nacional as embarcações e aeronaves brasileiras, nas seguintes hipóteses: 1.
as embarcações e aeronaves brasileiras de natureza pública e as privadas
quando a serviço do governo brasileiro, onde quer que se encontrem; 2. as
embarcações e aeronaves brasileiras mercantes ou de propriedade privada,
que se encontrem em alto-mar ou no espaço aéreo correspondente.
Assim, se ocorrer um crime dentro de uma embarcação pública
brasileira que esteja em alto-mar ou em um porto de um país estrangeiro,
independentemente de quem seja o autor ou a vítima, considera-se que esse
crime foi cometido no território brasileiro, considerando-se o Brasil
competente para julgá-lo. O mesmo ocorre com uma aeronave mercante
(empresa aérea comercial) ou particular (um jatinho de um empresário)
brasileira, quando estiver sobrevoando o alto-mar.
O § 2o62 do art. 5o trata da lei penal brasileira em relação às embarcações
e aeronaves estrangeiras.
Quando as embarcações ou aeronaves estrangeiras de natureza privada
estiverem, respectivamente, em mar territorial ou portos brasileiros, bem
como no espaço aéreo correspondente ou aeroportos brasileiros, aplica-se
normalmente o princípio da territorialidade, pois, como vimos, esses locais
compreendem o território nacional, estando suscetíveis às leis penais
brasileiras.
Por sua vez, quando se tratar de embarcações ou aeronaves de natureza
pública estrangeiras, que se encontrem no território nacional ou espaço aéreo
correspondente, consideraremos estas como extensão do território da
bandeira a que pertencem, de forma que não será aplicável a lei penal
brasileira.
Desse modo, se ocorrer um crime no interior de uma aeronave
estrangeira particular que esteja sobrevoando o território brasileiro ou esteja
pousada em um aeroporto brasileiro, a lei penal brasileira será aplicável, vez
que o delito foi cometido no nosso território. Todavia, se essa aeronave
estrangeira for de natureza pública, não será aplicável a lei brasileira, pois
consideraremos essa aeronave como uma extensão do território a que
pertence, sendo aplicável ao fato a lei daquele país.

6.4 LUGAR DO CRIME


Para a correta aplicação da Lei Penal no Espaço é preciso que se defina
exatamente qual o “lugar do crime”, isto é, onde consideraremos que este foi
praticado.
Dois exemplos de Nélson Hungria explicitam a necessidade de se
estabelecer seguramente qual foi o local do crime:

a) num comboio em marcha, do Rio Grande do Sul para o Uruguai, um


passageiro, ainda em território brasileiro, desfecha tiros contra outro, que é
atingido, mas só vem a morrer em território uruguaio; b) um indivíduo, que
se acha em Santana do Livramento (Brasil), dispara um tiro de fuzil contra
outro, que se encontra em Rivera (Uruguai), acontecendo que a vítima é
transportada para Buenos Aires (Argentina), onde vem a falecer.63

A pergunta que surge necessariamente é: qual dos países que o crime


tocou é competente para julgá-lo? Ou seja, em qual desses países considera-
se praticado o delito? Em outras palavras: qual foi o lugar do crime?
Muitas teorias foram debatidas ao longo do tempo para solucionar essa
questão, entretanto, apenas três delas merecem destaque por terem sido as
mais importantes: a teoria da atividade ou ação, a teoria do resultado e a
teoria da ubiquidade.
Segundo a teoria da atividade ou ação, o lugar do crime deve ser aquele
em que o agente praticou os atos executórios, isto é, a ação ou omissão.
Assim, nos exemplos acima, se todos os países envolvidos seguissem a
referida teoria, o Brasil seria considerado o local do crime tanto na hipótese
“a” (Rio Grande do Sul), quanto na hipótese “b” (Santana do Livramento), de
forma que os outros países teriam que se abster de punir o referido crime,
pois nenhum ato executivo foi praticado em seus territórios.
Segundo a teoria do resultado, será considerado lugar do crime não
aquele em que se deu a prática dos atos executórios – ação ou omissão –, mas
sim aquele em que aconteceu o resultado típico. Assim, nos exemplos acima,
com base nessa teoria, seriam considerados como lugar do crime o Uruguai
(exemplo “a”) e a Argentina (“b”), posto que apesar de a ação ter acontecido
em outros países, foi nestes que ocorreu o resultado, qual seja, a morte das
vítimas.
Por fim, existe a teoria da ubiquidade, que amplia as possibilidades do
lugar do crime, pois considera como tal tanto o lugar no qual se realizou a
ação ou omissão, quanto o lugar onde se realizou ou deveria ter sido
realizado o resultado.
A teoria da ubiquidade,64 também chamada de mista ou unitária, foi
expressamente adotada pelo Código Penal Brasileiro no art. 6o, que conta
com a seguinte redação: “Considera-se praticado o crime no lugar em que
ocorreu a ação ou omissão, no todo ou em parte, bem como onde se produziu
ou deveria produzir-se o resultado”.
É preciso, nesse momento, que desmembremos o artigo para melhor
analisá-lo. Primeiro estudaremos a questão referente à prática da ação ou
omissão e depois a questão referente ao resultado.
Ao utilizar-se da expressão “considera-se praticado o crime no lugar em
que ocorrer a ação ou omissão, no todo ou em parte”, basta que uma fração
da atividade executiva do agente tenha sido praticada no território nacional,
não necessitando que a ação tenha sido iniciada ou consumada no interior
deste.65
Imaginemos o seguinte exemplo: um boliviano deseja matar um
venezuelano e, para tanto, envia para este, pelos correios, uma caixa de doces
envenenados. Porém, por um erro dos correios bolivianos, o pacote mortífero
é enviado para o Brasil, mas nossos correios, ao perceberem o erro, enviam
para o destino correto, na Venezuela, sendo que o venezuelano os recebe, os
come e morre.
Nessa hipótese, considera-se que o crime também foi cometido no
Brasil, pois parte da sua ação desenvolveu-se no território brasileiro, embora
a conduta não tenha sido iniciada ou finalizada aqui, pois conforme assinalou
Nélson Hungria, é imprescindível que “o crime tenha tocado o território
nacional”.66
Importante assinalar, entretanto, que essa determinação somente alcança
os atos executórios e a consumação, sendo que os atos preparatórios (aqueles
praticados antes da execução do crime) e os praticados após a consumação do
delito não são considerados para determinação do lugar do crime. Assim, no
exemplo que tratamos acima, se o boliviano apenas compra os doces e o
veneno no Brasil e os manda da Bolívia diretamente para a Venezuela, sem
passar pelo Brasil, não se considera nosso país como local do crime, pois aqui
foram praticados apenas atos preparatórios, que não são puníveis.67
Passemos agora à segunda parte do art. 6o, representada pela expressão
“bem como onde produziu ou deveria produzir-se o resultado”.
Em relação ao lugar onde se produziu o resultado não há qualquer
dificuldade, pois nessas hipóteses houve a consumação do delito, logo, há um
resultado para ser analisado. Entretanto, segundo melhor doutrina, quando
prevê que “deveria produzir-se o resultado”, trata o art. 6o da hipótese da
tentativa.
Segundo Hungria e Aníbal Bruno, essa hipótese deve ser observada de
um ponto estritamente objetivo, ou seja, não importa a intenção do criminoso,
o lugar onde ele queria (aspecto subjetivo) que o resultado acontecesse, mas
sim onde teria ocorrido realmente a consumação, caso esta não houvesse sido
impedida.68
Ilustremos com um exemplo de Hungria:

Suponha-se que uma máquina infernal seja enviada, por via marítima, de
Cuba para a Argentina, com destino a pessoa que neste último país o agente
pretendia matar, e o navio é retido, além do tempo previsto, no cais do porto
do Rio, acontecendo que, aqui, antes de ocorrer a explosão, é descoberto e
destruído o mortífero engenho. O agente está sujeito à lei e jurisdição
brasileiras.69

Isso ocorrerá, pois, apesar de o agente ter a intenção de que o resultado


ocorra na Argentina, de forma objetiva, se não houvesse a descoberta e
destruição da máquina, o resultado ocorreria no Brasil, em virtude do atraso.
Complementa, ainda, Hungria:

Figure-se que a máquina infernal fosse despachada para o Brasil, mas que,
antes da partida do navio ou em alto-mar, tivesse sido descoberta e
inutilizada. Nada temos com o fato, pois se, subjetivamente, o resultado devia
produzir-se no Brasil, objetivamente nada ocorreu em nosso território. Não
nos atingiu de maneira alguma.70

6.5 EXTRATERRITORIALIDADE
Conforme vimos, a regra em relação à aplicação da lei penal no espaço é
a territorialidade, o que significa que geralmente a lei penal aplica-se aos
crimes praticados no território nacional, nos termos do art. 5o do CP.
Entretanto, como sói acontecer, existem algumas exceções a essa regra.
Essas exceções são as hipóteses de extraterritorialidade, em que a lei
penal brasileira tem eficácia e é aplicada aos crimes cometidos fora do seu
território nacional, isto é, em territórios estrangeiros.
Todas essas hipóteses estão previstas no art. 7o do CP e são divididas em
extraterritorialidade incondicionada e extraterritorialidade condicionada.

6.5.1 Hipóteses de extraterritorialidade incondicionada


São aquelas situações em que se aplicam as leis penais brasileiras aos
crimes cometidos no exterior, independentemente do preenchimento de
qualquer condição.
Não se exige, assim, que o fato também seja punível pela legislação do
Estado em que foi cometido, não importa a nacionalidade do agente que o
praticou, tampouco se este está ou não no território brasileiro ou se foi
condenado ou absolvido no estrangeiro, pois independentemente dessas
condições, estarão sujeitos à lei penal brasileira.71
Todas as hipóteses de extraterritorialidade incondicionada estão
previstas no art. 7o, I, a, b, c e d, do CP e são lastreadas em dois princípios: o
princípio da defesa ou real (art. 7o, I, a, b e c) e o princípio da justiça
universal ou cosmopolita (art. 7o, I, d).

6.5.1.1 Princípio da defesa ou real


Diferentemente do princípio da territorialidade, o princípio da defesa ou
real não considera o lugar do cometimento do crime para determinar a
aplicação da lei penal, mas sim a natureza do bem jurídico lesionado, que
normalmente se refere a interesses diretos do Estado e à sua soberania.
As hipóteses previstas no art. 7o, I, referentes a esse princípio são dos
crimes praticados contra: (a) a vida ou a liberdade do Presidente da
República; (b) o patrimônio ou a fé pública da União, do Distrito Federal, de
Estado, de Território, de Município, de empresa pública, sociedade de
economia mista, autarquia ou fundação instituída pelo Poder Público; (c) a
administração pública, por quem está a seu serviço.
Percebe-se, claramente, que se trata de situações em que se pretende
proteger os interesses vitais do Estado brasileiro, como a vida ou liberdade de
seu representante político seu patrimônio e seu regular funcionamento,
interesses esses que, pela patente importância, merecem proteção absoluta,
onde quer que se encontrem.

6.5.1.2 Princípio da justiça universal ou cosmopolita


O princípio da justiça universal justifica-se pela importância mundial da
repressão de determinados crimes.
Esse princípio originou-se das concepções jusnaturalistas dos teólogos e
juristas dos séculos XVI e XVII, que consideravam os crimes como violações
ao Direito Natural, que regia a sociedade humana. Com base nesse raciocínio,
nenhum Estado poderia permitir a impunidade. Atualmente, o fundamento
desse princípio não é a violação do Direito Natural, mas sim o interesse da
comunidade internacional em coibir e punir determinados crimes que violem
interesses reconhecidamente internacionais. Nesses casos, a repressão é feita
por qualquer país, pois todos são interessados nessa punição.72
No nosso ordenamento, tal princípio fundamenta duas hipóteses de
aplicação extraterritorial da lei penal brasileira, sendo uma delas
incondicionada.
Essa hipótese está prevista no art. 7o, l, d, do CP, que prevê a aplicação
da lei penal brasileira, embora cometido no estrangeiro, ao crime “de
genocídio, quando o agente for brasileiro ou domiciliado no Brasil”.
O genocídio é um crime contra a humanidade, originário do nazismo
alemão, que perpetrou o extermínio de grupos humanos (judeus, ciganos
etc.).
No ordenamento jurídico brasileiro, o crime de genocídio está previsto
no art. 1o da Lei no 2.889/1956, que conta com a seguinte redação:
Quem, com a intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo
nacional, étnico, racial ou religioso, como tal: (a) matar membros do
grupo; (b) causar lesão grave à integridade física ou mental de
membros do grupo; (c) submeter intencionalmente o grupo a
condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física
total ou parcial; (d) adotar medidas destinadas a impedir os
nascimentos no seio do grupo; (e) efetuar a transferência forçada de
crianças do grupo para outro grupo.

Assim, sempre que um brasileiro ou pessoa de qualquer outra nacionalidade


que for domiciliada no Brasil cometer um crime de genocídio no estrangeiro
estará sujeito às leis penais brasileiras.

6.5.2 Hipóteses de extraterritorialidade condicionada


Ainda em caráter excepcional, existem as possibilidades de aplicação da
lei penal aos crimes cometidos em territórios estrangeiros desde que
preenchidas algumas condições.
As hipóteses de extraterritorialidade condicionada estão previstas no art.
7o, II, a, b e c, e fundamentam-se, respectivamente, nos seguintes princípios:
da justiça penal universal ou cosmopolita; da nacionalidade ou pessoalidade e
do pavilhão ou da bandeira.
Em todas essas hipóteses, para que haja aplicação da lei penal brasileira,
é preciso que cumpram as seguintes condições, previstas no § 2o do art. 7o: (a)
entrar o agente no território nacional; (b) ser o fato punível também no país
em que foi praticado; (c) estar o crime incluído entre aqueles pelos quais a lei
brasileira autoriza a extradição; (d) não ter sido o agente absolvido no
estrangeiro ou não ter aí cumprido a pena; (e) não ter sido o agente perdoado
no estrangeiro ou, por outro motivo, não estar extinta a punibilidade, segundo
a lei mais favorável.
6.5.2.1 Princípio da justiça penal universal ou
cosmopolita
Conforme já salientado, esse princípio fundamenta duas hipóteses de
extraterritorialidade, uma incondicionada (hipótese do genocídio praticado
por brasileiro ou pessoa residente no Brasil) e uma condicionada, que é a
prevista na letra a, do inc. II do art. 7o.
Essa hipótese de extraterritorialidade condicionada com base no
princípio da justiça universal ou cosmopolita refere-se aos crimes “que, por
tratado ou convenção, o Brasil se obrigou a reprimir”.
Os tratados e convenções internacionais assinados pelo Presidente da
República e homologados pelo Congresso Nacional ganham status de lei
interna e são de aplicação obrigatória.73
Assim, sempre que o Brasil for signatário de um tratado ou convenção
internacional, de combate a determinado(s) crime(s), e um desses crimes
ocorrer em território estrangeiro, aplicar-se-á a lei penal brasileira, desde que
preenchidas as condições previstas no § 2o do art. 7o.

6.5.2.2 Princípio da nacionalidade ou pessoalidade


Segundo esse princípio, como já visto, a lei penal de um determinado
Estado segue o seu nacional, onde quer que ele esteja.
Esse princípio tem um caráter dúplice, pois pode ser determinado em
relação ao sujeito ativo ou passivo do crime, dividindo-se em nacionalidade
ativa e nacionalidade passiva, respectivamente.
Na nossa ordem jurídico-penal, o princípio manifesta-se em suas duas
modalidades.
O princípio da nacionalidade/pessoalidade ativa foi adotado também em
caráter excepcional e fundamenta a hipótese de extraterritorialidade
condicionada prevista no art. 7o, II, b, do CP, que prevê a aplicação da lei
penal brasileira aos crimes praticados no exterior quando “praticados por
brasileiros”.
Com base nesse dispositivo, que considera a nacionalidade do sujeito
ativo do crime, todos os crimes cometidos por brasileiros no exterior serão
punidos pela nossa lei penal, desde que preenchidas aquelas condições
previstas no § 2o do art. 7o.
A adoção desse princípio justifica-se para evitar a impunidade de
eventuais crimes praticados por brasileiros no exterior, já que a extradição de
brasileiros natos é expressamente proibida pela Constituição Federal de 1988
(art. 5o, LI), assim, se não fosse adotado esse instituto, qualquer brasileiro que
tivesse cometido um crime em território estrangeiro (que não fosse o de
genocídio ou que o Brasil tenha se comprometido a punir por meio de
tratados ou convenções), bastaria ingressar no território nacional para que
ficasse impune, posto que jamais poderia ser extraditado. Em março de 2017
a 1ª Turma do STF autorizou a extradição para os Estados Unidos da
América de uma brasileira nata que havia se naturalizado americana por
entender que com tal ato renunciou à nacionalidade brasileira, não estando
mais protegida pela proteção à extradição.
Adota-se o princípio da nacionalidade passiva no § 3o do art. 7o do CP,
que tem a seguinte redação: “A lei brasileira aplica-se também ao crime
cometido por estrangeiro contra brasileiro fora do Brasil, se, reunidas as
condições previstas no parágrafo anterior”.
Desse modo, desde que preenchidas as condições do § 2o do art. 7o do
CP, sempre que um brasileiro for vítima de um crime no exterior, praticado
por um estrangeiro, este último estará sujeito às leis penais brasileiras.
Entretanto, nessa hipótese, não basta o cumprimento das condições
previstas no § 2o do art. 7o, pois o § 3o do mesmo artigo, nas letras a e b,
exigiu mais duas condições, quais sejam: (a) não foi pedida ou foi negada a
extradição e (b) que tenha havido requisição do Ministro da Justiça.
Assim, para punição do agente que cometeu um crime contra um
brasileiro no exterior, é preciso também que a extradição do criminoso não
tenha sido pedida por outro país ao Brasil, ou, se pedida, tenha sido negada
pelo governo brasileiro e, ainda, que haja uma requisição, uma ordem, do
Ministro da Justiça, para que esse estrangeiro seja processado pelas leis
brasileiras.

6.5.2.3 Princípio do pavilhão ou da bandeira


O português Germano Marques da Silva diz que o princípio do pavilhão
ou da bandeira é irmão gêmeo do princípio da territorialidade e, segundo
aquele, o Estado em que está registrado navio ou aeronave pode sujeitar ao
seu poder punitivo as infrações cometidas a bordo, mesmo que o fato tenha
sido praticado por um estrangeiro, em território estrangeiro ou mesmo em
alto-mar.74
Jescheck e Weigend dizem que, legalmente, todo barco só pode ostentar
uma bandeira nacional e uma aeronave só pode estar registrada em um único
país, de modo que o princípio do pavilhão ou da bandeira conduz sempre ao
claro resultado de que o país de origem é o detentor do poder punitivo, seja
qual for o lugar em que se encontrava o navio ou aeronave no momento do
crime.75
No nosso ordenamento jurídico, tal princípio somente foi adotado de
forma subsidiária, pois somente tem aplicabilidade em relação às aeronaves e
embarcações privadas – vez que, quando públicas, constituem o próprio
conceito de território, ainda que por extensão – e quando se encontrem em
mar ou espaço aéreo territorial de outro país – já que se for em ou sobre
águas internacionais, também aplicam-se as leis brasileiras, pois também
serão consideradas como território nacional, também por extensão.
A previsão legal encontra-se no art. 7o, II, c, que prevê a aplicação da lei
penal brasileira, desde que preenchidas as condições do § 2o do mesmo
artigo, nas hipóteses de crimes “praticados em aeronaves ou embarcações
brasileiras, mercantes ou de propriedade privada, quando em território
estrangeiro e aí não sejam julgados”.

6.5.3 Princípio da extraterritorialidade e contravenção


penal
Em relação às contravenções penais, definidas no Dec.-lei no
3.688/1941, não há qualquer aplicabilidade do princípio da
extraterritorialidade.
Assim, no que tange às contravenções penais, somente haverá aplicação
da lei penal brasileira em relação àquelas que forem praticadas no território
nacional.
As contravenções penais praticadas em território estrangeiro estão
imunes à lei penal brasileira, mesmo quando forem praticadas por brasileiros.
O art. 2o da Lei de Contravenções Penais não deixa qualquer margem a
interpretações ao prever que: “A lei brasileira só é aplicável à contravenção
praticada no território nacional”.

6.6 PENA CUMPRIDA NO ESTRANGEIRO


Conforme já visto, nas hipóteses de aplicação da extraterritorialidade
incondicionada (art. 7o, I, a, b, c e d), a lei penal brasileira será aplicável ao
agente que praticou crime em território estrangeiro, independentemente de
qualquer condição, entre elas, que tenha sido condenado no exterior.
Dessa forma, pode acontecer de um agente cometer um crime no
exterior, sujeito à extraterritorialidade incondicionada – um crime contra a fé
pública da União, como a falsificação de um passaporte brasileiro, por
exemplo –, e ser julgado e condenado naquele país e, posteriormente,
também no Brasil.
A regra do non bis in idem, consistente na proibição da duplicidade de
punição, impede que condenado cumpra as duas penas, de modo que se já
houver cumprido a integralidade ou mesmo parte da pena na exterior, essa
fração deverá ser considerada no momento de cumprimento da pena aqui no
Brasil.
Essa é a redação do art. 8o do CP: “A pena cumprida no estrangeiro
atenua a pena imposta no Brasil pelo mesmo crime, quando diversas, ou nela
é computada, quando idênticas”.
Assim, é preciso que se faça uma análise da natureza das penas.
Se houver uma diferença qualitativa entre as penas fixadas no exterior e
no Brasil, como, por exemplo: lá ter sido fixada uma pena de prestação de
serviços à comunidade ou de multa e aqui uma pena privativa de liberdade
consistente em dois anos de prisão, a atenuação é obrigatória e sua medida é
deixada ao arbítrio do juiz, que deverá fazer uma ponderação em cada caso
concreto.
Entretanto, se a diferença for quantitativa, ou seja, as penas são de
mesma natureza, mas foram aplicadas em quantias diferentes (duas penas de
multa ou duas penas privativas de liberdade, por exemplo), resta ao juiz
apenas realizar o abatimento, se a pena imposta no Brasil for maior que a
pena já cumprida no estrangeiro.
Por outro lado, se a pena cumprida no estrangeiro for da mesma espécie
e maior que a aplicada no Brasil, não haverá pena a ser cumprida.

6.7 EFICÁCIA DA SENTENÇA PENAL


ESTRANGEIRA
Em virtude da soberania dos Estados, assim como as leis penais
estrangeiras não têm eficácia no território brasileiro, via de regra, as decisões
judiciais de outros Estados e, entre elas as sentenças penais, também não têm
eficácia em nosso país.
Entretanto, tal afirmação precisa ser examinada com cuidado, pois na
realidade, por força da própria lei penal, a sentença estrangeira produz alguns
efeitos no Brasil, independentemente de qualquer condição e de forma
automática, como ocorre no instituto da reincidência, que considera como
antecedente a condenação em país estrangeiro (art. 63 do CP),76 na detração
penal, que manda computar ao tempo de pena a ser cumprida o tempo de
prisão no exterior (art. 42 do CP),77 e nas condições de extraterritorialidade já
analisadas, bastando, nessas situações, uma prova documental idônea – uma
certidão devidamente traduzida – para que a sentença estrangeira produza
esses efeitos.78
Entretanto, excetuados esses efeitos secundários, a sentença penal não
tem natureza de título executivo, ou seja, não dispensa a existência de outro
processo, sobre os mesmos fatos, com as mesmas partes, desenvolvido sob a
jurisdição brasileira.
Porém, o art. 9o do CP cria uma exceção a essa regra de não eficácia da
sentença penal estrangeira ao permitir que esta produza determinados efeitos,
depois de preenchidas algumas condições.
O art. 9o tem a seguinte redação:

A sentença estrangeira, quando a aplicação da lei brasileira produz na espécie


as mesmas consequências, pode ser homologada no Brasil para:
I – obrigar o condenado à reparação do dano, a restituições e a outros efeitos
civis;
II – sujeitá-lo a medida de segurança.
Parágrafo único. A homologação depende:
a) para os efeitos previstos no inciso I, de pedido da parte interessada;
b) para os outros efeitos, da existência de tratado de extradição com o país de
cuja autoridade judiciária emanou a sentença, ou, na falta de tratado, de
requisição do Ministro da Justiça.

Da simples leitura do artigo já percebemos que os efeitos da sentença


penal condenatória estrangeira são limitados e somente podem obrigar o
condenado à reparação do dano, a restituições e a outros efeitos civis (inc. I) e
sujeitá-lo à medida de segurança (inc. I), mas desde que essa sentença
estrangeira seja homologada pelo STJ, nos termos do art. 105, I, i, da CF.
Entretanto, conforme previsão do parágrafo único do art. 9o, a
homologação somente poderá ocorrer, nas hipóteses de reparação civil,
restituição e outros efeitos civis, de pedido da parte interessada.
Assim, a sentença penal estrangeira somente terá efeito, para esses fins
civis, se o interessado, normalmente a vítima ou seus parentes, fizer um
pedido formal para homologação da sentença e, depois de homologada, ainda
precisará ingressar com uma ação de indenização ou restituição, que terá
como base a sentença homologada pelo STJ.
Já para a hipótese de aplicação da medida de segurança, em território
brasileiro, a quem tenha praticado fato típico e antijurídico no exterior, é
preciso que o Brasil tenha um tratado de extradição com aquele país ou, na
falta deste, que haja uma requisição do Ministro da Justiça.

6.8 CONTAGEM DE PRAZO PENAL


O prazo e a sua contagem são de suma importância em sede de Direito
Penal, vez que existem, nessa disciplina, diversos institutos que estão
condicionados ao decurso de determinado lapso temporal, como, por
exemplo: o cumprimento da pena, a prescrição, decadência, reabilitação,
livramento condicional, progressão de regime, reincidência etc.
O prazo nada mais é do que um espaço de tempo fixo e determinado
entre dois momentos, o momento inicial e o momento final.
Importante nesse momento, por uma questão de nomenclaturas, a
seguinte passagem de Damásio de Jesus:

São reguladas pelo prazo, espaço de tempo, fixo e determinado, entre dois
momentos: o inicial e o final. Termo é o instante determinado no tempo: fixa
o momento da prática de um ato, designando, também, a ocasião de início do
prazo. O prazo se desenvolve entre dois termos: o termo inicial (termo a quo,
dies a quo) e o termo final (termo ad quem, dies ad quem). Um prazo tem
início em certo dia porque nessa data ele tem o seu termo a quo; termina em
determinado dia porque aí está situado o seu termo ad quem. Assim, um
prazo que começa no dia 1o de janeiro e termina em 31 de dezembro tem
nesses extremos os termos a quo e ad quem.79
No nosso Código Penal, o artigo 10 é que estabelece as regras para contagem
do prazo ao prever que: “O dia do começo inclui-se no cômputo do prazo.
Contam--se os dias, os meses e os anos pelo calendário comum”.80

Segundo a redação desse artigo, o dia do começo sempre é computado


no início da contagem do prazo e como um dia inteiro, independentemente da
quantidade de horas que represente.
Se alguém, por exemplo, é condenado a uma pena de cinco dias e inicia
o seu cumprimento às 23 horas do dia 10, terá cumprido integralmente a sua
pena na primeira hora do dia 14. Isso ocorre, pois, mesmo que ele tenha
ficado preso apenas uma hora do primeiro dia, esse dia é considerado por
inteiro e incluído no prazo.
Ainda, nos termos do art. 10, os dias, meses e anos são contados pelo
calendário comum,81 que para nós é o calendário gregoriano, segundo o qual
o dia é o lapso entre meia-noite e meia-noite. Já o mês não é contado o
período sucessivo de 30 dias, mas sim de um determinado dia (5 de fevereiro,
por exemplo) ao mesmo dia do mês subsequente (5 de março),
independentemente se esse mês tem 28, 29, 30 ou 31 dias. A mesma lógica é
aplicada ao ano, que não é considerado como o período sucessivo de 365 dias
(ou 366, nos bissextos).
Em virtude disso, se o magistrado tiver que fixar uma pena em três
meses, não pode fixá-la em 90 dias; se tiver que fixar uma pena em dois anos,
não poderá fixá--la em 730 dias.
Utilizemos um exemplo de Hungria:

Suponha-se o prazo de um ano e seis meses, que tenha começado às 16 horas


de 7 de janeiro de determinado ano: terminará (...) à meia-noite de 6 de julho
do ano seguinte, pouco importando que um desses anos seja bissexto.82

O critério adotado poderá, algumas vezes, trazer uma situação de


desigualdade, posto que se tivermos dois réus condenados a uma mesma pena
de um mês, aquele que iniciar o cumprimento em fevereiro (que via de regra
tem 28 ou 29 dias) ficará preso menos dias do que aquele que iniciar o
cumprimento em março, por exemplo.
Mas, segundo Hungria, o legislador preferiu esse inconveniente à
confusão que resultaria da abstração do calendário comum.83

6.9 FRAÇÕES NÃO COMPUTÁVEIS DAS PENAS


Conforme vimos, as penas devem ser fixadas em anos, meses e dias.
As frações de anos devem ser reduzidas a meses (um ano e meio, por
exemplo, deverá ser fixado em um ano e seis meses) e as frações de meses
devem ser reduzidas a dias (um mês e meio, por exemplo, deverá ser fixado
em um mês e quinze dias).
Entretanto, em algumas situações, pode ser que no cálculo da pena
cheguemos a frações de dias. Imagine-se, por exemplo, que alguém cometa
um crime cuja pena de detenção seja de 15 dias a um mês. Por ser réu
primário e de bons antecedentes, o juiz fixa a pena no mínimo legal, qual
seja, 15 dias. Além disso, por ter sido o crime praticado na forma tentada, o
réu faz jus a uma redução de metade, o que lhe daria uma pena final de 7,5
dias. Nessas hipóteses, as frações de dias deverão ser completamente
desconsideradas, de forma que o réu somente deverá cumprir 7 dias de pena.
O mesmo ocorrerá com a pena de multa, de modo que se alguém for
condenado ao pagamento de R$ 30,50, deverá pagar somente R$ 30,00.
É o que diz expressamente o art. 11 do CP: “Desprezam-se, nas penas
privativas de liberdade e nas restritivas de direitos, as frações de dia, e, na
pena de multa, as frações de cruzeiro”.
Obviamente que devemos substituir a palavra cruzeiro por real, que é a
nossa moeda atual.

6.10 LEGISLAÇÃO ESPECIAL


O Código Penal não é toda legislação penal, pois conforme diversos
exemplos apresentados, existem crimes em diversas outras leis esparsas, tais
como Leis de Drogas, Estatuto do Desarmamento, Código de Defesa do
Consumidor, Estatuto do Idoso, Lei de Falências etc.
Chamamos essas leis, diferentes do Código Penal, de “Legislação Penal
Especial”.
Segundo Hungria, o Código é a lei penal fundamental, de modo que as
outras leis penais formam juntamente com ele um todo único, quer quando
definem novas infrações, quer quando, em casos particulares, adotam
critérios em divergência com as regras gerais do Código.
Duas situações podem surgir.
Primeira: a lei especial, ao incriminar um fato, dita regras particulares
para sua própria aplicação, contrariando alguns dos princípios gerais do
Código Penal. É o que ocorre, por exemplo, com a Lei de Contravenções
Penais (Lei 3.688/1941), que apesar de em seu art. 1o84 fazer previsão
expressa de que as regras gerais do Código Penal lhe são aplicáveis, cria
uma regra diversa da do Código Penal especificamente em relação ao
instituto da tentativa, que ao contrário do Código Penal, que a prevê como
uma regra geral aplicável a todos os seus crimes, não pune a tentativa de
nenhuma das contravenções penais, nos termos de seu art. 4o.85
Nessa hipótese, a Lei Penal Especial, por ser mais específica, sobrepõe-
se ao Código Penal.
Segunda: a lei especial simplesmente cria um novo tipo penal e não faz
qualquer consideração sobre a aplicação dos princípios gerais do Código
Penal, de forma que aqueles são também aplicáveis a esse crime. A Lei de
Drogas não faz qualquer previsão acerca da tentativa dos seus crimes, de
forma que a todos eles são aplicáveis o instituto da tentativa.
É o que se deduz da leitura do art. 12 do CP: “As regras gerais deste
Código aplicam--se aos fatos incriminados por lei especial, se esta não
dispuser de modo diverso”.
Importante salientar que as chamadas regras gerais do Código, que em
tese são aplicáveis a todas as demais legislações penais especiais – quando
estas não dispuserem de forma diversa –, são as normas não incriminadoras,
isto é, as normas que não preveem crimes.
Essas normas não incriminadoras são compostas por toda Parte Geral do
Código Penal (arts. 1o a 120) e também por alguns artigos previstos na Parte
Especial (arts. 121 a 359-H), como, por exemplo, o art. 327,86 que não prevê
nenhum crime, mas apenas delimita o conceito de funcionário público para
fins penais.

6.11 DO CONCURSO APARENTE DE NORMAS


Analisaremos o concurso aparente de normas e as possíveis soluções
para os problemas a serem enfrentados.
O que ocorre é que o sistema jurídico-penal, em alguns casos, tem duas
ou mais normas que poderiam ser aplicadas para determinado fato.
Entretanto, tal constatação não é real, pois somente uma dessas normas é
aplicável àquele fato, haja vista que a aplicação de todas as normas possíveis,
ou ainda, de apenas duas, desrespeitaria princípios básicos do Direito Penal,
especialmente a proporcionalidade, equidade e non bis in idem.
Segundo o jurista e Ministro da Suprema Corte Chilena Enrique Cury
Urzúa:

Hay un concurso aparente de leyes penales cuando un hecho parece satisfacer


las exigencias de dos o más tipos diversos, pero, en definitiva, sólo será
regulado por uno de ellos, en tanto que los demás resultarán desplazados por
causas lógicas o valorativas.87,88

O problema surge do fato de não haver uma fórmula legal para resolver
o problema, ou seja, o Código Penal não nos oferece qualquer instrumento
para definição da norma a ser aplicada.89
Assim, para solução de tais conflitos, a dogmática penal desenvolveu,
essencialmente, três princípios: especialidade, subsidiariedade e consunção.90

6.11.1 Princípio da especialidade (lex specialis derogat


generali)
O princípio da especialidade deverá ser aplicado quando um fato for
enquadrável em uma norma geral e também em uma norma especial. Nesse
caso, a norma especial será aplicada ao fato, sendo afastada a norma geral.
Diz-se que uma norma é especial em relação à outra (geral) quando
contém, além dos elementos daquela, outros que a especializam. Segundo o
princípio em tela, havendo essa relação de generalidade e especialidade, a
norma especial preferirá à geral.91
Por exemplo, o infanticídio (art. 123 do CP) é norma especial em
relação ao homicídio (art. 121 do CP); o peculato (art. 312 do CP) é norma
especial em relação à apropriação indébita (art. 168 do CP).

6.11.2 Princípio da subsidiariedade (lex primaria


derogat legi subsidiariae)
A relação de subsidiariedade, necessária para aplicação do princípio, se
dá entre os tipos penais quando estes visam proteger o mesmo bem jurídico92
e descrevem graus distintos de violação. Há, portanto, uma hierarquização
valorativa do mesmo bem jurídico, sendo que as normas menos protetivas
(subsidiárias) só terão aplicação se não for possível a aplicação da norma
principal. A norma que define crime menos grave (subsidiária) está abrangida
pela norma que define crime mais grave (principal).
A norma principal será aplicada ao fato, sendo afastada a norma
subsidiária, a menos que alguns dos elementos da norma principal não
estejam presentes no fato, quando será aplicada a norma subsidiária.
A subsidiariedade pode ser expressa ou tácita. Será expressa quando o
próprio tipo penal referir o seu caráter subsidiário, como, por exemplo, o
crime de falsa identidade (art. 307 do CP), em que o tipo refere à pena “se o
fato não constitui elemento de crime mais grave”, ou o crime de subtração de
incapaz (art. 249 do CP), quando o tipo refere à pena “se o fato não constitui
elemento de outro crime”.
A subsidiariedade tácita ocorrerá quando um crime é elemento de outro
crime. São exemplos de subsidiariedade tácita: os crimes de perigo em
relação aos de dano, prevalecendo estes últimos; os crimes culposos em
relação aos dolosos, também prevalecendo estes últimos; o crime de
constrangimento ilegal (art. 146 do CP) em relação ao roubo (art. 157 do CP)
e à extorsão (art. 158 do CP), igualmente prevalecendo estes últimos.93

6.11.3 Princípio da consunção (lex consumens derogat


legi consumptae)
O princípio da consunção, segundo Edgard Magalhães Noronha, ocorre

quando o fato previsto por uma norma está compreendido em outra de âmbito
maior e, portanto, só esta se aplica (...) Na consunção, o crime consuntivo é
como que o vértice da montanha que se alcança, passando pela encosta do
crime consumido.94

Nelson Hungria, ao comentar o referido princípio, faz as seguintes


afirmativas: “(...) uma norma se deve reconhecer consumida por outra quando
o crime previsto por aquela não passa de uma fase de realização do crime
previsto por esta (...)” e, ainda, “o crime previsto pela norma consuntiva
representa a etapa mais avançada na efetuação do malefício (...)”.95
Por sua vez, Heleno Fragoso aponta que “há consunção quando um
crime é meio necessário ou normal fase de preparação ou de execução de
outro crime”.96
Vale, então, a lição de Stevenson:

Pelo princípio da consunção, ou absorção, a norma definidora de um


crime, cuja execução atravessa fases em si representativas do delito
previsto em outra, exclui, por absorção, a aplicabilidade desta, bem
como de outras que incriminem fatos anteriores e posteriores do
agente, efetuados pelo mesmo fim prático.97

Conforme o exposto são as seguintes as hipóteses de aplicação da


consunção:
1. Quando houver a relação de crime-meio para crime-fim, por
exemplo, na falsidade de documento público ou particular para a prática de
estelionato. O crime de estelionato (art. 171 do CP) vai absorver o crime de
falsidade de documento público (art. 297 do CP) ou de falsidade de
documento particular (art. 298 do CP). Neste sentido, a Súm. 17 do STJ:
“Quando o falso se exaure no estelionato, sem mais potencialidade lesiva, é
por este absorvido”.
2. Quando ocorrer o chamado crime progressivo, ou seja, o agente,
pretendendo desde o início alcançar o resultado mais grave, pratica reiterados
atos, com crescentes violações ao bem jurídico. Por exemplo, várias lesões
corporais para consumar o homicídio da vítima. As lesões corporais (art. 129
do CP) serão consideradas os crimes de passagem e ficarão absorvidas pelo
homicídio (art. 121 do CP).
3. Quando ocorrer a progressão criminosa: o agente pretende
inicialmente um resultado e após alcançá-lo, decide prosseguir na ação ilícita,
iniciando outra conduta, produzindo um evento mais grave. Há alteração de
dolo, ou mais de um desígnio por parte do agente. Ex.: o agente pretende
sequestrar a vítima e depois do sequestro decide estuprá-la. O estupro (art.
213 do CP) vai consumir o sequestro (art. 148 do CP). A única questão a ser
verificada aqui é se as condutas não são autônomas no tempo, devendo ser
praticadas no mesmo contexto do fato, para a aplicação da consunção.
4. Quando ocorrerem fatos impuníveis, sejam antecedentes ou
consequentes ao crime principal. Por exemplo: (a) para furtar o dinheiro da
bolsa da vítima, o agente corta ou rasga a bolsa com um estilete. O crime de
furto (art. 155 do CP) absorve o fato anterior impunível que é o dano (art. 163
do CP). Aqui o dano à bolsa é a forma de execução do crime de furto,
caracterizando o ante factum impunível; (b) o agente após a falsificação de
um documento o utiliza. O agente deve responder apenas pelo delito de
falsificação de documento (arts. 297 ou 298 do CP), restando o crime de uso
de documento (art. 304 do CP) como fato posterior impunível. Nesse caso, o
uso do documento é mero exaurimento da sua falsificação.98

1
BITENCOURT, Cezar R. Tratado de Direito Penal. 11. ed. Editora Revista dos
Tribunais. São Paulo. 2007. p. 160.
2
ANTOLISEI, Francesco. Manual de Derecho Penal. Tradução de Juan del Rosal e Angel
Torio. Editora U.T.E.H.A. Buenos Aires. 1960. p. 83.
3
Antolisei explica que: “toda conduta não proibida deve considerar-se juridicamente
lícita”. In: ANTOLISEI, Francesco. Manual de Derecho Penal. Tradução de Juan del Rosal
e Angel Torio. Editora U.T.E.H.A. Buenos Aires. 1960. p. 83.
4
ASSIS TOLEDO, Francisco de. Princípios de Direito Penal. 4. ed. Editora Saraiva. São
Paulo. 1991. p. 31.
5
HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. 2. ed. Tomo 1. Editora Forense. Rio
de Janeiro, 1953. v. 1. p. 100.
6
HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. 2. ed. Tomo 1. Editora Forense. Rio
de Janeiro. 1953. v. 1. p. 107.
7
BATTLAGINI, Giulio. Direito penal. Trad. de Paulo José da Costa Júnior; Arminda
Bergamini Miotto; Adda Pellegrini Grinover e Euclides Custódio da Silveira. São Paulo:
Saraiva, 1973. vol. 1. p. 85.
8
Importante informar que com a reforma da Parte Geral do Código Penal, efetuada em
1984, não mais existem penas acessórias no nosso ordenamento penal.
9
HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. 2. ed. Tomo 1. Editora Forense. Rio
de Janeiro. 1953. v. 1. p. 106.
10
SIQUEIRA, Galdino. Tratado de Direito Penal. Parte Geral. Tomo I. 2. ed. 1950. José
Konfino Editor. Rio de Janeiro. p. 163.
11
QUEIROZ, Paulo de S. Direito Penal. 5. ed. Editora Lumen Juris. Rio de Janeiro. 2009.
p. 118.
12
HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. 2. ed. Tomo 1. Editora Forense. Rio
de Janeiro. 1953. v. 1. p. 118.
13
MARQUES, José F. Curso de Direito Penal. Editora Saraiva. São Paulo. 1954. v. 1. p.
188.
14
SIQUEIRA, Galdino. Tratado de Direito Penal. Parte Geral. Tomo I. 2. ed. 1950. José
Konfino Editor. Rio de Janeiro. p. 163.
15
FRAGOSO, Heleno C. Lições de Direito Penal. Parte Geral. 16. ed. Editora Forense.
Rio de Janeiro. 2003. p. 126.
16
BRUNO, Anibal. Direito Penal. Tomo I. Editora Forense. Rio de Janeiro. 1967. p. 270.
17
HUNGRIA, Nelson. Op. cit.
18
GARCIA, Basileu. Instituições de Direito Penal. Tomo I. 4. ed. Editor Max Limonad.
São Paulo. v. 1. p. 150. Frise-se, entretanto, que esse autor admite a combinação com
reservas.
19
DELMANTO, Celso; DELMANTO, Fábio M. de A.; DELMANTO, Roberto;
DELMANTO JU-NIOR, Roberto. Código Penal Comentado. 6. ed. Editora Renovar. Rio
de Janeiro. 2002. p. 6.
20
ASSIS TOLEDO, Francisco de. Princípios de Direito Penal. 4. ed. Editora Saraiva. São
Paulo. 1991. p. 37.
21
MARQUES, José F. Curso de Direito Penal. Editora Saraiva. São Paulo. 1954. v. 1. p.
192.
22
QUEIROZ, Paulo de S. Direito Penal. 5. ed. Editora Lumen Juris. Rio de Janeiro. 2009.
p. 118.
23
BRANDÃO, Cláudio. Curso de direito penal. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 71.
24
Habeas Corpus no 85229/SP. Rel. Maria Thereza de Assis Moura. 6ª Turma. Julgado em
20/11/2008.
PENAL. PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE
ENTORPECENTES. 1. SUBSTITUIÇÃO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE.
INCONSTITUCIONALIDADE DO § 1o DO ARTIGO 2oDA LEI 8.072/90.
POSSIBILIDADE. FATO OCORRIDO ANTES DA LEI 11.343/06. 2. REGIME INICIAL
ABERTO. PENA-BASE FIXADA NO MÍNIMO LEGAL. POSSIBILIDADE. 3.
REDUÇÃO DA PENA. COMBINAÇÃO DE DISPOSIÇÕES DE DUAS LEIS.
CRIAÇÃO DE TERCEIRA NORMA. ENTENDIMENTO MAJORITÁRIO DA TURMA.
VIABILIDADE. 4. APLICAÇÃO DA LEI PENAL POSTERIOR MAIS GRAVOSA.
IMPOSSIBILIDADE. 5. ORDEM CONCEDIDA EM PARTE.
1. Presentes os requisitos do artigo 44 do Código Penal, é possível a substituição da pena
privativa de liberdade por restritiva de direitos, mesmo em crime de tráfico de
entorpecentes, diante da inconstitucionalidade do § 1o do artigo 2o da Lei no 8.072/90. Fato
anterior à Lei no 11.343/2006.
2. Diante da fixação da pena-base no mínimo legal, sendo o réu primário, é possível a
fixação do regime inicial aberto para condenações pela prática do crime de tráfico de
entorpecentes, perpetrado anteriormente à Lei no 11.343/2006.
3. Entende a colenda Sexta Turma do egrégio Superior Tribunal de Justiça, de forma
majoritária, ser viável a combinação de disposições favoráveis de distintas leis a fim de
beneficiar o réu (preceito sancionador do art. 12 da Lei 6.368/76 com a causa de
diminuição do § 4o do art. 33 da Lei 11.343/06).
4. Na espécie, foi aplicado o preceito sancionador da lei nova, sobre a qual incidiu a causa
de diminuição do parágrafo quarto do art. 33. In casu, o Tribunal a quo promoveu a
diminuição de pena. Contudo, fê-lo não com base na pena da lei antiga, mas servindo do
preceito sancionador da lei nova, ou seja, elevou-se a pena-base para cinco anos. Logo, de
rigor é a correção do campo de incidência da causa de diminuição, que deve ser a pena de
três anos, sanção mínima, fixada na sentença. Como a causa de diminuição fora aquilatada
pelo Tribunal a quo em 5/12, a pena deve ser redimensionada para um ano e nove meses de
reclusão.
5. Ordem concedida para diminuir a pena para um ano e nove meses de reclusão, modificar
o regime inicial de cumprimento de pena, do fechado para o aberto e substituir a pena
privativa de liberdade por duas restritivas de direito, sendo uma de prestação de serviços à
comunidade e uma prestação pecuniária, com base no tempo de pena que ainda resta a ser
cumprido, já que presentes os requisitos para tanto, devendo o juízo das execuções
criminais, nos termos do artigo 147 e seguintes da Lei 7.210/84, promover a sua execução.
No mesmo sentido: HC no 105.905-SP.
25
SIQUEIRA, Galdino. Tratado de direito penal. Parte Geral. 2. ed. Rio de Janeiro: José
Konfino Ed., 1950. t. I. p. 162.
26
Idem.
27
BATTLAGINI, Giulio. Direito Penal. Tradução de Paulo José da Costa Junior; Arminda
Bergamini Miotto; Adda Pellegrini Grinover e Euclides Custódio da Silveira. Editora
Saraiva. São Paulo. 1973. v. 1. p. 83.
28
ANTOLISEI, Francesco. Manual de Derecho Penal. Tradução de Juan del Rosal e
Angel Torio. Editora U.T.E.H.A. Buenos Aires. 1960. p. 90.
29
BRUNO, Anibal. Direito Penal. Tomo I. Editora Forense. Rio de Janeiro. 1967. p. 272.
30
COBO DEL ROSAL, Manuel; QUINTANAR DÍEZ, Manuel. Instituciones de Derecho
Penal Español. Parte General. Ediciones CEJEG. Madrid. 2004. p. 99.
31
PEDROSO, Fernando de A. Direito penal. 4. ed. São Paulo: Método, 2008. vol. 1. p. 42.
32
BRANDÃO, Cláudio. Curso de Direito Penal. Editora Forense. Rio de Janeiro. 2008. p.
74.
33
PRADO, Luiz R. Curso de Direito Penal Brasileiro. 7. ed. Editora Revista dos
Tribunais. São Paulo. 2007. v. 1. p. 179.
34
BITENCOURT, Cezar R. Tratado de Direito Penal. 11. ed. Editora Revista dos
Tribunais. São Paulo. 2007. p. 170.
35
COSTA JÚNIOR, Paulo J. Curso de direito penal. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1992. vol.
1. p. 34.
36
QUEIROZ, Paulo de S. Direito Penal. 5. ed. Editora Lumen Juris. Rio de Janeiro. 2009.
p. 74.
37
Atente-se ao fato de que se a lei fosse alterada em benefício do réu, o exemplo não
serviria, posto que retroagiria para beneficiar o réu.
38
Nos termos da legislação brasileira, os menores de 18 anos são penalmente inimputáveis,
o que significa que não cometem crimes, mas sim atos infracionais. Isso significa que os
menores de idade não estão sujeitos ao Código Penal, mas sim ao Estatuto da Criança e do
Adolescente. Os menores de 18 anos jamais recebem pena, mas sim medida
socioeducativa. Tais diferenciações decorrem diretamente do artigo 228 da Constituição
Federal, que tem a seguinte redação: “São penalmente inimputáveis os menores de dezoito
anos, sujeitos às normas da legislação especial.” A “legislação especial” a que se refere o
artigo é exatamente o ECA.
39
COSTA JUNIOR, Paulo J. Curso de Direito Penal. 2. ed. Editora Saraiva. São Paulo.
1992. v. 1. p. 34.
40
A prescrição nada mais é do que a perda do direito do Estado de punir o criminoso em
virtude do decurso de certo lapso temporal.
41
“Art. 111. A prescrição, antes de transitar em julgado a sentença final, começa a correr: I
– do dia em que o crime se consumou.”
42
“Art. 159. Sequestrar pessoa com o fim de obter, para si ou para outrem, qualquer
vantagem, como condição ou preço do resgate: Pena – reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze)
anos.”
43
“Art. 148. Privar alguém de sua liberdade, mediante sequestro ou cárcere privado: Pena
– reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos.”
44
“Art. 71. Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais
crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras
semelhantes, devem os subsequentes ser havidos como continuação do primeiro, aplica-se-
lhe a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em
qualquer caso, de um sexto a dois terços.”
45
Por todos, Cláudio Brandão, Curso de Direito Penal. Editora Forense. Rio de Janeiro.
2008. p. 71, e José Frederico Marques, Curso de Direito Penal. Editora Saraiva. São Paulo.
1954. v. 1. p. 192.
46
QUEIROZ, Paulo de S. Direito Penal. 5. ed. Editora Lumen Juris. Rio de Janeiro. 2009.
p. 127.
47
QUEIROZ, Paulo de S. Direito Penal. 5. ed. Editora Lumen Juris. Rio de Janeiro. 2009.
p. 127.
48
BITENCOURT, Cezar R. Tratado de Direito Penal. 11. ed. Editora Revista dos
Tribunais. São Paulo. 2007. p. 173.
49
BETTIOL, Giuseppe. Direito Penal. Tradução de Paulo José da Costa Junior e Alberto
Silva Franco. 2. ed. São Paulo. Revista dos Tribunais. 1977. v. 1. p. 188.
50
NUVOLONE, Pietro. O Sistema do Direito Penal. Tradução de Ada Pellegrini Grinover
e René Ariel Dotti. São Paulo. Revista dos Tribunais. 1981. v. 1. p. 61.
51
HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. 2. ed. Tomo 1. Editora Forense. Rio
de Janeiro. 1953. v. 1. p. 138.
52
ANTOLISEI, Francesco. Manual de Derecho Penal. Tradução de Juan del Rosal e
Angel Torio. Editora U.T.E.H.A. Buenos Aires. 1960. p. 93.
53
HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. 2. ed. Tomo 1. Editora Forense. Rio
de Janeiro. 1953. v. 1. p. 139.
54
BITENCOURT, Cezar R. Tratado de Direito Penal. 11. ed. Editora Revista dos
Tribunais. São Paulo. 2007. p. 175.
55
HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. 2. ed. Tomo 1. Editora Forense. Rio
de Janeiro. 1953. v. 1. p. 140.
56
BITENCOURT, Cezar R. Tratado de Direito Penal. 11. ed. Editora Revista dos
Tribunais. São Paulo. 2007. p. 176.
57
MESTIERI, João. Teoria Elementar do Direito Penal. Edição do Autor. Rio de Janeiro.
1990. p. 117.
58
HUNGRIA, Nelson. Op. cit., p. 150.
59
Assim define o artigo 1o da Lei 8.617, de 1993: “O mar territorial brasileiro compreende
uma faixa de doze milhas marítimas de largura, medidas a partir da linha de baixa-mar do
litoral continental e insular brasileiro, tal como indicada nas cartas náuticas de grande
escala, reconhecidas oficialmente pelo Brasil.”
60
A Lei 7.565/86, Código Aeronáutico Brasileiro, traz no artigo 11 a seguinte redação: “O
Brasil exerce completa e exclusiva soberania sobre o espaço aéreo acima de seu território e
mar territorial”.
61
Artigo 5o, § 1o: “Para os efeitos penais, consideram-se como extensão do território
nacional as embarcações e aeronaves brasileiras, de natureza pública ou a serviço do
governo brasileiro onde quer que se encontrem, bem como as aeronaves e as embarcações
brasileiras, mercantes ou de propriedade privada, que se achem, respectivamente, no espaço
aéreo correspondente ou em alto-mar”.
62
Artigo 5o, § 2o: “É também aplicável a lei brasileira aos crimes praticados a bordo de
aeronaves ou embarcações estrangeiras de propriedade privada, achando-se aquelas em
pouso no território nacional ou em voo no espaço aéreo correspondente, e estas em porto
ou mar territorial do Brasil”.
63
HUNGRIA, Nélson. Op. cit., p. 144.
64
Segundo Cláudio Brandão, quase todos os ordenamentos jurídicos ocidentais adotam
essa teoria para determinação do lugar do crime. In: BRANDÃO, Cláudio. Curso de
Direito Penal. Editora Forense. Rio de Janeiro. 2008. p. 83.
65
BRUNO, Anibal. Direito Penal. Tomo I. Editora Forense. Rio de Janeiro. 1967. p. 240.
66
HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. 2. ed. Tomo 1. Editora Forense. Rio
de Janeiro. 1953. v. 1. p. 148.
67
Artigo 14, II, do Código Penal: “Diz-se o crime: II – tentado, quando, iniciada a
execução, não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente.” (g.n.)
68
HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. 2. ed. Tomo 1. Editora Forense. Rio
de Janeiro. 1953. v. 1. p. 148, e BRUNO, Anibal. Direito Penal. Tomo I. Editora Forense.
Rio de Janeiro. 1967. p. 240.
69
Idem.
70
Idem.
71
BRUNO, Anibal. Direito Penal. Tomo I. Editora Forense. Rio de Janeiro. 1967. p. 242.
72
BRANDÃO, Cláudio. Curso de Direito Penal. Editora Gen-Forense. Rio de Janeiro.
2008. p. 8.
73
BITENCOURT, Cezar R. Tratado de Direito Penal. 11. ed. Editora Revista dos
Tribunais. São Paulo. 2007. p. 180.
74
MARQUES DA SILVA, Germano. Direito Penal Português. Editorial Verbo. Lisboa.
1997. v. 1. p. 283.
75
JESCHECK, Hans H.; WEIGEND, Thomas. Tratado de Derecho Penal. Tradução de
Miguel Olmedo Cardenete. 5. ed. Comares Editorial. Granada. 2002. p. 180.
76
“Art. 63. Verifica-se a reincidência quando o agente comete novo crime, depois de
transitar em julgado a sentença que, no País ou no estrangeiro, o tenha condenado por
crime anterior.” (g.n.)
77
“Art. 42. Computam-se, na pena privativa de liberdade e na medida de segurança, o
tempo de prisão provisória, no Brasil ou no estrangeiro, o de prisão administrativa e o de
internação em qualquer dos estabelecimentos referidos no artigo anterior.” (g.n.)
78
MIRABETE, Julio F. Código Penal Interpretado. 6. ed. Editora Atlas. São Paulo. 2007.
p. 136.
79
JESUS, Damásio de. Direito Penal. 23. ed. Editora Saraiva. São Paulo. 1999. v. 1. p.
143.
80
JESUS, Damásio Evangelista de. Op. cit.
81
O ano e mês civis foram definidos pela Lei 810, de 1949:
“Art. 1o Considera-se ano o período de doze meses contado do dia do início ao dia e mês
correspondentes do ano seguinte.
Art. 2o Considera-se mês o período de tempo contado do dia do início ao dia
correspondente do mês seguinte.

Art. 3o Quando no ano ou mês do vencimento não houver o dia correspondente ao do início
do prazo, êste findará no primeiro dia subsequente.”
82
HUNGRIA, Nélson. Op. cit.
83
HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. 2. ed. Tomo 1. Editora Forense. Rio
de Janeiro. 1953. v. 1. p. 194.
84
Art. 1o: “Aplicam-se as contravenções às regras gerais do Código Penal, sempre que a
presente lei não disponha de modo diverso”.
85
Art. 4o: “Não é punível a tentativa de contravenção”.
86
Art. 327. “Considera-se funcionário público, para os efeitos penais, quem, embora
transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública.
§ 1o Equipara-se a funcionário público quem exerce cargo, emprego ou função em entidade
paraestatal, e quem trabalha para empresa prestadora de serviço contratada ou conveniada
para a execução de atividade típica da Administração Pública.
§ 2o A pena será aumentada da terça parte quando os autores dos crimes previstos neste
Capítulo forem ocupantes de cargos em comissão ou de função de direção ou
assessoramento de órgão da administração direta, sociedade de economia mista, empresa
pública ou fundação instituída pelo poder público.”
87
URZÚA, Enrique Cury. Derecho Penal – Parte General. 8. ed. Santiago, Chile.
Ediciones Universidad Católica de Chile. 2005. p. 667.
88
Surge, desde já, um problema terminológico. Percebe-se que o referido autor não
utilizou-se da expressão conflito, mas sim concurso, e agiu com acerto, pois nesses casos
não há que se falar em conflito, sequer aparente, “uma vez que um sistema jurídico é um
todo unitariamente ordenado, onde um contraste entre duas disposições se presume
inadmissível”. BRUNO, Anibal. Direito Penal. Parte Geral. Tomo I. 3. ed. Rio de Janeiro.
Forense. 1967. p. 274.
89
O anteprojeto de Nelson Hungria de 1963 previa em seu artigo 5o forma de solução do
conflito.
90
A Doutrina está longe de chegar a um consenso sobre quantos e quais seriam os
princípios solucionadores do conflito aparente de normas, conforme se depreende do
seguinte trecho de Oscar Stevenson, que apesar de datar de 1968, continua refletindo o
panorama doutrinário atual: “São eles em número de quatro: da especialidade, da
subsidiariedade, da consunção e da alternatividade [...] FROSALI reduz as regras a duas: a
da especialidade e a da subsidiariedade. HAF-TER, às da especialidade e consumação.
SAUER tem por supérflua a da alternatividade. SOLER distingue três modos de
relacionarem as figuras penais em presença, isto é, por subsidiariedade, especialidade e
exclusividade, ocorrendo esta por via alternativa ou consultiva. Essas opiniões permitem
aquilatar as divergências que ao propósito reina entre os penalistas. É que no tema, sem
embargo dos estudos e debates, ainda não se chegou a postulados pacíficos e indubitáveis.”
In: STEVENSON, Oscar. Estudos de Direito e Processo Penal em Homenagem a Nelson
Hungria. Rio de Janeiro. Forense. 1962. p. 37.
91
QUEIROZ, Paulo. Direito Penal – Parte Geral. 3. ed. São Paulo. Ed. Saraiva. 2006. p.
79.
92
Nesse sentido, Bacigalupo: “Tal situación (subsidiariedade) es de apreciar cuando uno de
los tipos penales no implique sino una ampliación de la protección penal de un bien
jurídico a estadios previos respecto de la lesión del mismo bien jurídico”. In:
BACIGALUPO, Enrique. Manual de Derecho Penal – Parte General. Bogotá. Editorial
Temis. 1984. p. 241.
93
QUEIROZ, Paulo. Direito Penal – Parte Geral. – 3. ed. Saraiva. São Paulo. 2006. p. 80.
94
NORONHA, Edgard Magalhães. Direito Penal. 10. ed. Saraiva. São Paulo. 1973. v. 1. p.
273.
95
HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. Tomo I. 2. ed. Revista Forense. Rio
de Janeiro. 1953. v. 1. p. 132.
96
FRAGOSO, Heleno Claudio. Lições de Direito Penal. Forense. Rio de Janeiro. 1993. p.
359.
97
STEVENSON, Oscar. Estudos de direito e processo penal em homenagem a Nelson
Hungria. Rio de Janeiro: Forense, 1962. p. 40.
98
Informativo 452 do STJ, HC 107.103/GO, Rel. Min. Og Fernandes, 6ª T., j. 19.10.2010.
INTRODUÇÃO À TEORIA GERAL DO CRIME

Quando se fala em direito penal, a primeira coisa que vem à mente é o


crime.
No sentido leigo, o crime é facilmente identificado como uma infração à
lei penal que tem como consequência uma pena. Porém, no sentido técnico-
jurídico, o conceito de crime é bem mais elaborado e complexo.
Formalmente, para que haja um crime, é necessária a constatação de uma
série de elementos, comuns a todos os crimes, para que se possa atribuir a
alguém a responsabilidade penal e, consequentemente, impor-lhe uma pena.
A sistematização teórico-dogmática sobre os elementos comuns e
indispensáveis a todos os crimes forma a chamada teoria do crime, que
segundo Santiago Mir Puig

é obra da doutrina jurídico-penal e constitui a manifestação mais


característica e elaborada da dogmática do Direito penal. Esta tem como
objetivo teórico mais elevado a busca dos princípios básicos do Direito penal
positivo e sua articulação em um sistema unitário.1

Entretanto, não se pode pretender que a teoria do crime seja uma mera
junção de elementos teóricos sem qualquer sentido político. Isso porque é a
teoria geral do crime que vai estabelecer critérios delimitadores do poder
punitivo estatal, tendo por finalidade a proteção das pessoas e a manutenção
do Estado Democrático do Direito.2
Nas exatas palavras de Juarez Tavares:

Em um Estado democrático, a aplicação das normas jurídicas deve estar


orientada para a proteção dos cidadãos, e não da política estatal. Essa
assertiva é relevante porque interfere diretamente na caracterização do delito
a partir de uma lesão de direito subjetivo ou um bem jurídico vinculado à
pessoa, e não de um bem jurídico normatizado, que passe a ser constituído
como um interesse puramente estatal.

O direito penal praticado no âmbito do Estado Democrático de Direito


não pode servir a outro fim que não a proteção dos direitos e garantias
fundamentais, servindo de limite à intervenção do poder punitivo estatal na
esfera de liberdade dos cidadãos. Por isso, concordamos com Juarez Tavares
quando sustenta que, sob uma perspectiva crítica, somente poderá haver uma
teoria do crime verdadeiramente democrática se for capaz de cumprir as
seguintes tarefas: a) verificar os pontos de intersecção entre norma penal e
norma constitucional; b) elucidar os princípios constitucionais, tomados
como elementos delimitadores do poder de punir; c) identificar o objeto da
lesão jurídica, como pressuposto da incriminação; d) confrontar os elementos
normativos com os dados da realidade empírica para impedir a formação de
uma estrutura puramente normativa e deformada do delito; e) inserir como
pressuposto de qualquer atuação jurídica um conceito de sujeito capaz de
abarcar vários contextos do mundo da vida nos quais ele possa se manifestar
com liberdade; f) definir os fundamentos pelos quais possam ser excluídos da
atuação punitiva os fatos penalmente irrelevantes; g) disciplinar as etapas da
caracterização da conduta, de modo a poder confrontá-la em sua
manifestação concreta com as comunicações expressas nas normas
criminalizadoras; h) empreender o processo de interpretação da norma como
elemento protetor da liberdade; i) proceder ao exame dos preceitos
permissivos ou liberadores da conduta em contraste prevalente às proibições
e comandos; j) subordinar o princípio da responsabilidade individual aos
enunciados de subsidiariedade e de uma culpabilidade redutora de poder.3

7.1 SÍNTESE EVOLUTIVA DA TEORIA DO


CRIME
A pretensão de se desenvolver uma teoria geral do crime pressupõe uma
definição de seu objeto, ou seja, uma definição do crime, a partir da qual será
possível analisar todos os elementos que a compõem. As definições de crime
são as mais variadas possíveis, dependendo do prisma sob o qual é analisado.
Assim, pode-se falar em um conceito formal de crime que seria simplesmente
a violação da lei penal, ou um conceito material que poderia ser a lesão ou o
perigo de lesão aos bens jurídicos penalmente protegidos. Porém, a partir
desses conceitos, não é possível estabelecer uma teoria geral, pois essas
conceituações não estabelecem os componentes/elementos essenciais ao
crime, o que somente é feito pelo conceito analítico ou operacional4 de
crime.
Segundo o conceito analítico ou operacional, o crime pode ser definido
como uma conduta típica, ilícita e culpável, sendo certo que a conduta é o
pressuposto para existência do crime, mas para que seja assim considerada,
precisa ser dotada de tipicidade, ilicitude e culpabilidade, sendo que na
ausência de qualquer um desses elementos, não haverá crime.
Conforme destaca Claus Roxin:

Na moderna dogmática de Direito penal existe um substancial acordo de que


toda conduta punível pressupõe uma ação típica, antijurídica e culpável (...).
Portanto, toda conduta punível apresenta quatro elementos comuns (ação,
tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade).5
Essa concepção do crime que enxerga a conduta como o substantivo que
para ser considerado crime precisa ser adjetivada de típica, ilícita e culpável é
conhecida como teoria tripartida do crime. Porém, apesar deste “acordo” da
doutrina internacional, existem posicionamentos divergentes que adotam o
conceito bipartido (conduta típica e ilícita) ou quadripartido (conduta típica,
ilícita, culpável e punível) para o crime, que apesar de serem minoritários,
também são importantes.6
Adotamos o sistema tripartido do crime, não pelo simples fato de ser o
mais aceito pela dogmática moderna, mas por acreditarmos ser o mais
adequado e lógico.
Definidos estes parâmetros, é possível passarmos à análise da evolução
histórica do conceito analítico de crime, na qual encontraremos os seguintes
modelos: clássico, neoclássico, finalista e funcionalista.
Essa evolução epistemológica do direito penal é bem resumida por
Carlos Martínez-Buján Pérez7 quando escreve:

Como é sabido, sempre foi característica da chamada Ciência penal elaborar


os fundamentos e as categorias do Sistema penal a partir das premissas
proporcionadas pelas diferentes construções filosóficas predominantes ao
longo das diversas fases do desenvolvimento histórico do Direito penal.
Assim, a concepção clássica do delito estava fundamentada no pensamento
jurídico do positivismo científico; a concepção neoclássica do delito se
alicerçava na teoria do conhecimento do neokantismo (de Stammler, Rickert
e Lask); o sistema finalistas do delito se apoiou nas contribuições filosóficas
de Welzel, quem, por seu turno, inspirou-se fundamentalmente na ontologia
crítica de N. Hartmann; por fim, os modernos sistemas de orientação
funcionalista acham seu fundamento no funcionalismo estrutural de Parsons
(que dá lugar no âmbito do Direito penal ao chamado funcionalismo
teleológico, valorativo ou “moderado”) ou no funcionalismo sistêmico de
Luhmann (que no terreno penal origina o funcionalismo estratégico,
normativista ou “radical”).
Analisaremos, de forma sucinta, cada uma das fases epistemológicas do
direito penal.

7.1.1 Modelo clássico


O modelo clássico, conhecido como modelo Liszt/Beling, tem origem
na filosofia naturalista típica do século XIX, que intentava afastar do direito
qualquer influência filosófica, psicológica e sociológica.
Assim, o modelo clássico do delito intenta aplicar ao direito penal a
lógica característica das ciências duras – natural causal –, limitando-se a
explicar o fenômeno criminal como uma simples relação de causa e efeito.
Para o modelo clássico, portanto, a ação (conduta) não é mais que um
movimento corporal voluntário que causa um resultado no mundo exterior; a
tipicidade é a descrição objetiva do crime na lei penal; a antijuridicidade é
um juízo também objetivo sobre a proibição ou permissão do fato em relação
ao ordenamento jurídico; e a culpabilidade é um conceito psicológico, que se
apresenta sobre a forma de dolo ou culpa, no qual estão localizados todos os
elementos subjetivos do fato.

7.1.2 Modelo neoclássico


O modelo neoclássico, por sua vez, é fruto da filosofia neokantiana que
influencia o campo jurídico, especialmente o direito penal, destacando o
aspecto normativo e axiológico, ao contrário do modelo clássico que era
meramente descritivo-causal.
Assim, se no modelo clássico a metodologia científico-naturalística
pautava-se pela observação e descrição, no modelo neoclássico, a
metodologia é típica das ciências do espírito, ou seja, caracteriza-se por
compreender e valorar. Ocorre com a evolução para o modelo neoclássico
uma reorganização teleológica dos elementos do conceito analítico de crime,
isto é, de acordo com os fins e valores do Direito Penal. A ação (conduta)
deixa de ser naturalista e assume um caráter valorativo, passando a ser
definida como comportamento humano voluntário; a tipicidade abandona a
natureza puramente descritiva e livre de qualquer valoração para admitir
elementos normativos (documento, funcionário público, sem justa causa,
indevidamente etc.) e subjetivo (intenção de ter para si ou para outrem, para
obter vantagem, para satisfazer lascívia própria ou de outrem); a
antijuridicidade deixa de constituir uma análise formal em relação à infração
ao ordenamento jurídico e passa a ter um significado material de danosidade
social que pode ser graduada conforme a gravidade do interesse lesionado; a
culpabilidade que era puramente psicológica passa a ter também um caráter
normativo representado pela reprovação do autor por ter agido de maneira
contrária ao direito.

7.1.3 Modelo finalista


Por fim, o modelo finalista desenvolvido por Hans Welzel na primeira
metade do século XX revolucionou o conceito de crime ao considerar a ação
como elemento central sobre o qual se apoiarão todos os demais elementos
do crime.
Welzel abandona o raciocínio logicista e abstrato das concepções
anteriores e dedica especial atenção à intencionalidade do autor, ou seja, ao
aspecto ontológico da ação humana. Sem alterar a estrutura básica do
conceito analítico de crime (para este autor, crime continua sendo uma
conduta típica, ilícita e culpável) Welzel reorganiza o conteúdo dos
elementos. A alteração mais marcante, sem dúvida, é o deslocamento da
carga subjetiva da culpabilidade – dolo e culpa – para a ação. O aspecto
subjetivo do crime que antes se localizava exclusivamente na culpabilidade é
transferido para a ação (conduta). O dolo e a culpa deixam de ser
modalidades da culpabilidade e passam a caracterizar a própria conduta, o
que dará ensejo aos tipos penais dolosos ou culposos. A ação (conduta) é
para Welzel o exercício de uma atividade final, a realização de um propósito,
motivo pelo qual sua teoria recebeu o nome de finalista.
O modelo finalista é o que encontrou mais acolhida na doutrina e
jurisprudência no Brasil, principalmente após a reforma da Parte Geral do
nosso Código Penal efetivada em 1984. Entretanto, inegável que a chegada
do finalismo no Brasil foi tardia, posto que na década de 1980 já havia sido
abandonada na maioria dos países europeus. Tal “atraso” decorre, sem
sombra de dúvidas, do período da ditadura civil-militar, que em virtude do
estado de exceção imposto, especialmente por Atos Institucionais, não
permitiu que o direito penal evoluísse como ciência e acompanhasse a
dogmática internacional.

7.1.4 Modelo funcionalista (pós-finalismo)


Atualmente são duas as principais concepções funcionalistas: o
funcionalismo teleológico (ou político criminal) de Claus Roxin; e o
funcionalismo sistêmico (ou radical) de Günther Jakobs.
Embora ambas as concepções partam de pressupostos normativos para o
funcionamento do direito penal (em oposição à concepção ontologista do
finalismo), elas se diferem, principalmente, no que se refere à limitação do
próprio normativismo. Enquanto Claus Roxin defende um funcionalismo
teleológico que tem sua aplicação limitada pela função de proteção
subsidiária de bens jurídicos atribuída ao direito penal, Jakobs parte de uma
concepção normativa radical que não encontra limites na aplicação do direito
penal que tem por função a proteção da vigência da própria norma.
A síntese de Cezar Roberto Bitencourt8 que opera uma distinção entre
ambas as concepções funcionalistas merece ser transcrita:

Trata-se, como é fácil perceber, de um movimento com dois vértices: o


primeiro, de natureza moderada – sustentado por Roxin – que procura
fundamentar o sistema penal de caracteres teleológicos e axiológicos
(normativismo funcional teleológico); o segundo, mais radical – defendido
por Jakobs – que postula a total renormativizaçao do sistema penal, com
fundamento sistêmico (normativismo sistêmico). Distinguem-se,
basicamente, a partir da renormativização total do sistema e suas categorias e
no grau de relativização (ou absolutização) do aspecto metodológico
funcionalista. A diferença, mais significativa, no entanto, reside nas
referências funcionais através das quais atribuem conteúdo aos conceitos. O
normativismo teleológico preocupa-se com os fins do direito penal, ao passo
que o normativismo sistêmico se satisfaz com os fins da pena, isto é, com as
consequências do direito penal. Em síntese, a orientação teleológica funcional
orienta-se por finalidades político-criminais, priorizando valores e princípios
garantistas; a orientação funcionalista-sistêmica leva em consideração
somente as necessidades sistêmicas e o direito penal é que deve ajustar-se a
elas.

Demonstrados os principais modelos da teoria do crime, passemos à


análise do conceito analítico de crime que adotaremos na presente obra.

7.2 O CONCEITO DE CRIME


Embora as concepções filosóficas que iluminaram as diferentes fases da
teoria do delito tratadas supra tenham sofrido importantes alterações, a
estrutura do conceito analítico de crime é a mesma desde o século XIX,
sendo o crime, tradicionalmente, concebido como uma conduta típica, ilícita
e culpável.
Essa concepção tripartida, porém, não é a única. Muitos autores têm
adotado uma concepção bipartida, segundo a qual o crime seria definido
como uma ação injusta e culpável. O injusto penal (ou tipo de injusto) seria,
grosso modo, um elemento único composto pela ação, tipicidade e
antijuridicidade que, em vez de serem tratadas como elementos distintos e
incomunicáveis, fariam parte de um todo unitário. A culpabilidade, por sua
vez, seria o juízo de reprovação que poderia recair sobre o autor do injusto.
Juarez Tavares,9 adepto da concepção bipartida de crime, assim o explica:

O delito estaria, assim, estruturado sobre dois fundamentos: o injusto e a


culpabilidade. Tendo em conta, porém, a necessidade de melhor expressar a
definição de delito segundo uma perspectiva da realidade empírica e
normativa, pode-se compreendê-lo como uma ação injusta e culpável.
Parece óbvio, mas convém ressaltar que a expressão “injusto” não tem aqui
qualquer vinculação com a ideia de justiça ou injustiça; constitui apenas uma
qualidade da conduta criminosa de ser típica e antijurídica.

Juarez Cirino dos Santos também adota o modelo bipartido, com


pequenas divergências com Juarez Tavares.
Adotaremos nesta obra o conceito tripartido, segundo o qual o delito
pode ser definido como conduta típica, ilícita e culpável.
De forma bem simples, e com o único intuito de propiciar ao leitor
noções básicas sobre cada um dos componentes do conceito analítico de
crime, apresentaremos neste momento uma visão panorâmica e limitada de
cada um dos elementos do conceito tripartido que serão tratados de forma
mais profunda em capítulos específicos.

• Ação (conduta): a conduta é pressuposto de todo e qualquer


crime. Não existe crime sem conduta. A conduta pode ser
positiva (fazer algo, por exemplo, matar, subtrair, constranger
etc.) ou negativa (deixar de fazer algo, por exemplo, não
socorrer, deixar de notificar etc.). A conduta será sempre
identifica por um verbo.
• Tipicidade: a tipicidade nada mais é do que a concretização do
princípio da legalidade insculpido no art. 1o do CP. É a simples
previsão de uma conduta na lei penal com a consequente
previsão de uma pena para quem praticála. A conduta típica,
portanto, nada mais é do que a conduta prevista pelo legislador
na lei penal, como ocorre, por exemplo, com o homicídio (matar
alguém). Quando determinada conduta não está prevista na lei
penal, diz-se que ela é atípica.
• Ilicitude/antijuridicidade: a ilicitude é a proibição legal de uma
conduta, ou seja, a conduta ilícita é aquela que não é
permitida/admitida pelo ordenamento jurídico. Toda conduta
típica muito provavelmente será ilícita (quando uma pessoa
matar alguém, possivelmente o estará fazendo de forma ilícita),
mas excepcionalmente pode ser que uma conduta típica seja
lícita, isto é, permitida pelo ordenamento jurídico (ocorrerá
quando uma pessoa matar alguém em legítima defesa, por
exemplo). De forma pouco científica, mas pragmática, podemos
dizer que a conduta típica sempre será ilícita, exceto quando
ocorrer uma das causas de exclusão de ilicitude do art. 23 do CP
(estado de necessidade, legítima defesa, estrito cumprimento do
dever legal e exercício regular de direito).
• Culpabilidade: a culpabilidade, atualmente, pode ser definida
como “reprovação social do comportamento do autor”. Sempre
que um autor for culpável, significa dizer que seu
comportamento foi reprovável, censurável do ponto de vista
social. A culpabilidade é composta por três elementos
obrigatórios: imputabilidade, potencial consciência da ilicitude e
exigibilidade de conduta conforme o direito. A imputabilidade é
a capacidade de ser culpável, ou seja, é a possibilidade que uma
pessoa tem de ser penalmente responsabilizada por seus atos.
Quem não é imputável não pode ser criminalmente
responsabilizado, como ocorre com os menores de idade e
alienados mentais, por exemplo. A potencial consciência da
ilicitude é a possibilidade que o autor tem, pela sua experiência
de vida, de saber que determinado comportamento é proibido
pelo direito. Ora, só se pode reprovar/censurar aquele que faz
uma coisa proibida se esta pessoa tem consciência da proibição.
Por fim, só é possível fazer um juízo de censura sobre aquele
autor que poderia agir de acordo com o direito, mas resolveu
agir de forma contrária, ou seja, desrespeitando a lei. Por isso,
só haverá culpabilidade se além da imputabilidade e da
potencial consciência da ilicitude estiver presente também a
exigibilidade de conduta conforme o direito.

O conceito analítico de crime assim organizado – conduta típica, ilícita


e culpável – tem a pretensão de trazer ao estudo do crime um método
cientificamente seguro para análise das condutas no sentido de efetivar um
julgamento se estas caracterizam ou não crime. Assim, para saber se estamos
diante de um crime, primeiramente, é preciso observar se há ou não uma
conduta. Havendo conduta, o próximo passo é verificar se ela é típica, ou
seja, se está prevista na lei penal. Sendo típica, a próxima etapa consiste em
verificar se estamos diante de uma causa de exclusão de ilicitude (estado de
necessidade, legítima defesa, estrito cumprimento do dever legal e exercício
regular de direito). Não havendo nenhuma destas hipóteses, passa-se para
análise do último elemento, isto é, se a conduta típica e ilícita (injusto penal)
é também culpável. Somente se for constatada a culpabilidade
(imputabilidade + potencial consciência da ilicitude + exigibilidade de
conduta conforme o direito) é que estaremos diante de um crime.
Assim, os elementos se organizam numa ordem lógica, funcionando um
como pressuposto de existência do seguinte. Só tem sentido analisar a
tipicidade se houver uma conduta; só tem sentido analisar a ilicitude se
houver uma conduta típica; e só tem sentido analisar a culpabilidade se
houver uma conduta típica e ilícita. Faltando qualquer um desses elementos,
não há crime.
Entretanto, nada impede que essa ordem lógica, em determinadas
situações, seja invertida para adequar-se à realidade empírica que se impõe.
Nesse sentido, essencial o alerta de Juarez Tavares10 ao escrever que:

A separação analítica dos elementos do delito tem por objetivo facilitar seu
exame, sob o panorama de uma sequência lógica, mas linear, a partir de uma
dicotomia inicial do objetivo e do subjetivo. A doutrina penal positivista
sempre se pautou por essa concepção analítica, que não é despropositada,
mas é, muitas vezes, inflexível para compreender as necessidades práticas da
ordem jurídica e da realidade empírica. Isso quer dizer que a antecipação de
alguns de seus elementos, ainda que antagônicos, como ocorre com a
oposição entre ação típica e ação justificada (por exemplo, alguém mata
outrem, mas em legítima defesa), não desnatura essa unidade. Justamente a
unidade dos contrários é que sedimenta o sistema do delito, porque está de
conformidade com a estrutura da ordem jurídica e da realidade empírica.

De fato, impossível negar que o autor tenha razão ao afirmar que a


ordem lógica de análise dos elementos que compõem o conceito analítico de
crime (conduta, tipicidade, ilicitude e culpabilidade) pode levar a paradoxos
insuperáveis. Um exemplo desses paradoxos, muito bem trabalhado pelo
autor, refere-se ao fato de a doutrina tradicionalmente analisar a
imputabilidade do agente apenas quando da análise da culpabilidade, e, para
tanto, tem que admitir que uma pessoa inimputável (sem qualquer capacidade
de entendimento e autodeterminação comm relação à norma penal) seja capaz
de atuar dolosamente ou se orientar pelos deveres de cuidado objetivo. Para
contornar esse incontornável paradoxo, a doutrina simplesmente presume a
atuação dolosa ou culposa do inimputável. Muito mais lógico e racional seria
antecipar, nesses casos, o juízo da imputabilidade para a estrutura da ação, de
modo a considerar que o inimputável não pratica ação penalmente relevante.
Desta forma, “mediante esta reformulação, o sujeito passa a ser um fator de
contenção do poder punitivo, e não simples objeto de imputação de
responsabilidade”.11
Passemos agora à análise pormenorizada de cada um dos componentes
do conceito analítico de crime.

1
PUIG, Santiago M. Derecho penal. Parte General. 8. ed. Montevideo-Buenos Aires:
BdeF, 2009. p. 136.
2
TAVARES, Juarez. Fundamentos de teoria do delito. Florianópolis: Tirant lo Blanch,
2018. p. 27 e ss.
3
TAVARES, Juarez. Fundamentos de teoria do delito. Florianópolis: Tirant lo Blanch,
2018. p. 30.
4
SANTOS, Juarez C. dos. Direito penal. Parte Geral. 3. ed. Curitiba: ICPC, Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 74.
5
ROXIN, Claus. Derecho penal. Parte General. Fundamentos. La estructura del delito. 2.
ed. Trad. Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente
Remesal. Madrid: Civitas, 2008. t. I. p. 193.
6
Para uma lista generosa dos autores brasileiros que se filiam a uma ou outra concepção,
verificar: BRANDÃO, Cláudio. Teoria jurídica do crime. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p.
13 e ss.
7
MARTÍNEZ-BUJÁN, Carlos P. A concepção significativa da ação de T.S. Vives e sua
correspondência sistemática com as concepções teleológico-funcionais do delito. Tradução
de Paulo César Busato. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 1.
8
BITENCOURT, Cezar Roberto. Teoria geral do delito: uma visão panorâmica da
dogmática penal brasileira. Coimbra: Almedina, 2007. p. 47.
9
TAVARES, Juarez. Fundamentos de teoria do delito. Florianópolis: Tirant lo Blanch,
2018. p. 104 e ss.
10
TAVARES, Juarez. Fundamentos de teoria do delito. Florianópolis: Tirant lo Blanch,
2018. p. 111.
11
TAVARES, Juarez. Fundamentos de teoria do delito. Florianópolis: Tirant lo Blanch,
2018, p. 110.
Conforme já destacado, a conduta é a pedra fundamental para o conceito
analítico de crime, pois é sobre ela que serão erigidos os demais elementos
necessários para a conformação de um crime. Tanto é assim, que no direito
penal existe uma garantia jurídica da necessidade da conduta representada
pelo princípio nullum crimen sine conducta. Essa garantia não tem caráter
apenas jurídico, mas também político, pois caso a conduta fosse
desnecessária para existência do crime, seria possível considerar como crime
qualquer coisa, como, por exemplo: o pensamento, a forma de ser, as
características pessoais etc. A exigência de uma conduta, portanto, é
necessária para se estruturar um direito penal do fato e repelir o odioso direito
penal do autor.
Nesse sentido, Zaffaroni e Pierangeli destacam que

Quem quiser defender a vigência de um direito penal que reconheça um


mínimo de respeito à dignidade humana, não pode deixar de reafirmar que a
base do delito – como iniludível caráter genérico – é a conduta, identificada
em sua estrutura ôntico-ontológica. Se esta estrutura é desconhecida, corre-se
o risco de salvar a forma, mas evitar o conteúdo, porque no lugar de uma
conduta humana se colocará outra coisa.1
Apesar da atual obviedade da necessidade de uma conduta para a teoria
do crime, tal fato significa uma grande conquista do direito penal liberal,
voltado à proteção dos bens jurídicos essenciais, pois em tempos mais
remotos o direito penal prescindiu do conceito de conduta, chegando ao
absurdo de condenar estátuas e animais como autores de crime.2

8.1 TEORIAS DA AÇÃO (OU DA CONDUTA)


Apesar da imprescindibilidade da conduta para a existência do crime,
certo é que este conceito não foi unânime na evolução dogmática do direito
penal, sendo possível destacar uma pluralidade de conceitos de ação
derivados das mais diversas teorias sobre a conduta, tais como a teoria
causalista; teoria finalista; teoria social e teoria pessoal, as quais passamos
a analisar.

8.1.1 Teoria causalista da ação


Pode-se afirmar que o causalismo fundou-se em duas bases filosóficas
distintas que se sucederam cronologicamente. Em sua origem (sistema Liszt-
Beling), o causalismo apoiou-se no positivismo mecanicista herdado da
Ilustração e tributário das concepções físicas de Newton, segundo as quais o
universo é um enorme mecanismo no qual todas as relações obedecem às
regras de “causa e efeito”. A conduta humana, como parte integrante do
universo, também não passa de uma sucessão de causas e efeitos.3
Nas palavras de Liszt, a ação limitava-se a um movimento corporal
voluntário que causava uma modificação no mundo exterior. Não havia
nenhuma preocupação com a intencionalidade (qual era o seu propósito ao
praticar a ação) do agente, bastando que a ação fosse voluntária, isso é, livre
de qualquer coação física.
A estrutura do crime, por sua vez, foi definida como ação típica,
antijurídica e culpável. Também era possível fazer uma divisão do conceito
de crime em duas grandes partes: objetiva, formada pela ação, tipicidade e
antijuridicidade; e subjetiva, composta pela culpabilidade (a culpabilidade
poderia ser dolosa ou culposa).
Ao comentar o assunto Cirino dos Santos explica que

O modelo causal de ação possui estrutura exclusivamente objetiva: a ação


humana, mutilada da vontade consciente do autor, determinaria o resultado
como uma forma sem conteúdo, ou um fantasma sem sangue, conforme a
expressão do próprio Beling; a voluntariedade da ação indicaria, apenas,
ausência de coação física absoluta; o resultado de modificação no mundo
exterior seria elemento constitutivo do conceito – e, assim, não existiria ação
sem resultado.4

O segundo momento filosófico da teoria causal da ação surge quando a


filosofia positivista é substituída pelo neokantismo de Baden, que tem seu
principal expoente em Mezger. A principal modificação é que a ação deixa de
ter um caráter puramente causal/natural e reorganiza-se de acordo com os fins
e valores do Direito Penal, ou seja, passa a ter um caráter teleológico e
axiológico, mas sem alterar a estrutura do crime definida por Liszt e Beling.
De fato, a abordagem positivista era incompleta, pois o delito não é somente
um fenômeno da natureza, mas uma realidade social. Em virtude disso, “na
teoria do crime, devem haver momentos valorativos”.5 O sistema neoclássico
não altera a estrutura do crime criada por Liszt e Beling – ação, tipicidade,
antijuridicidade e culpabilidade – e, inclusive, continua a dividi-lo em duas
partes: parte objetiva (ação, tipicidade e antijuridicidade) e parte subjetiva
(culpabilidade).
A principal crítica realizada à teoria causalista da ação é a pouca
importância dada à intencionalidade do agente, que somente tem alguma
importância na análise da culpabilidade. Assim, o crime é explicado
basicamente como uma relação natural de causa e efeito, desconsiderando-se
que por trás do crime há uma deliberação e vontade humana.

8.1.2 Teoria finalista da ação


A teoria finalista da ação surge na primeira metade do século XX e tem
como idealizador Hans Welzel.
A teoria finalista surge em oposição à explicação meramente causalista
empregada pela teoria anterior para explicar o crime. O cerne do finalismo
reside no fato de não aceitar que a ação humana é uma mera atividade causal,
mas sim o resultado de uma deliberação inteligente e intencional do ser
humano. Para o finalismo, o ser humano nunca pratica uma ação meramente
causal, pois em virtude da inteligência e de experiências anteriores, as
pessoas podem prever as consequências de seus atos e, quando decidem
praticar uma determinada ação, é porque buscam atingir um fim determinado.
O próprio Welzel explica que

Atividade final é uma atividade dirigida conscientemente em função do fim,


enquanto o acontecer causal não está dirigido em função do fim, mas é a
resultante causal da constelação de causas existentes em cada momento. A
finalidade é, por isso – dito em forma gráfica – “vidente”, a causalidade,
“cega”.

Para explicitar a diferença entre uma ação causal e uma ação final,
Welzel utiliza-se do exemplo de um raio mortal e de um homicídio. Enquanto
a morte causada pelo raio é o resultado de uma série de relações meramente
causais, a morte causada pelo homicídio é resultado de uma série de atos
dirigidos a um fim predeterminado: a compra da arma, a observação da
vítima, o apontar da arma, o apertar o gatilho etc.6
A ação finalista desenvolve-se em duas fases que se entrecruzam: 1. a
primeira transcorre integralmente na esfera do pensamento e começa com: (a)
antecipação do fim que o autor quer realizar; (b) a seleção dos meios
necessários para a realização do fim; c) os efeitos concomitantes
(secundários) necessários para a execução; 2. a segunda ocorre no mundo real
quando o autor leva a cabo sua ação, ou seja, põe em movimento, conforme
seu plano, os meios da ação anteriormente escolhidos, cujo resultado é o fim
proposto, juntamente com os efeitos concomitantes (secundários) que foram
incluídos no plano global.7
Welzel utiliza-se de dois exemplos para explicar a importante diferença
entre a voluntariedade e a intencionalidade, conceitos importantes para
entender sua teoria: a enfermeira que aplica uma injeção, sem suspeitar que a
dose de morfina contida na seringa é mortal, realiza uma ação final de injetar,
mas não uma ação final de matar; o atirador que para treinar sua mira dispara
contra uma árvore sem saber que atrás dela se esconde um homem que é
atingido fatalmente, pratica, sem dúvida, um disparo final de treinamento,
mas não realiza uma ação final de matar. Nas duas hipóteses, a consequência
posterior, não querida (a morte), foi produzida de um modo causal, cego, pela
ação final.
A finalidade, explica, não deve ser confundida com a mera
voluntariedade. A voluntariedade significa que um movimento corporal e
suas consequências podem ser reconduzidos a algum ato voluntário, sendo
indiferente que consequências pretendia produzir o autor dos atos. Assim,
tanto a enfermeira quanto o atirador, se desconsiderarmos suas vontades,
realizam “atos voluntários”. Porém, se se quer compreender a ação para além
de suas características de mera voluntariedade, isto é, em sua forma essencial,
concreta, determinada em seu conteúdo, somente será possível mediante a
referência a um determinado resultado querido/desejado pelo autor. Assim,
voltando aos exemplos, o ato voluntário da enfermeira só será final em
relação à injeção e o do atirador em relação a acertar a árvore, mas em
nenhuma das hipóteses em relação à morte provocada. Para a finalidade, é
essencial a referência a determinadas consequências queridas/desejadas, pois
sem elas fica impossível caracterizar uma ação com conteúdo determinado.8
Percebe-se que, diferentemente da ação causalista, a ação finalista
preocupa-se com a intencionalidade do autor, ou seja, preocupa-se com fim
pretendido. Essa situação vai resultar num rearranjo do conteúdo dos
elementos constitutivos do conceito analítico de crime. A ordem dos
elementos do conceito analítico de crime continua a mesma – ação,
tipicidade, ilicitude e culpabilidade –, porém, o dolo e a culpa que no
causalismo integravam a culpabilidade, no finalismo são deslocados para a
conduta. Para o finalismo, somente interessam ao direito penal as ações
humanas com um conteúdo subjetivo, isto é, as ações humanas dolosas ou
culposas.

8.1.3 Teoria social da ação


A teoria social da ação tem seus principais representantes em Schmidt,
Jescheck, Weigend e Wessels, e adota uma posição conciliatória entre os
modelos causalista e finalista, com uma inspiração valorativa sobre a
“relevância social da ação”, motivo pelo qual tal teoria encontra certa
dificuldade conceitual, ora pendendo para o causalismo, ora para o finalismo.
De forma bem simples, pode-se afirmar que a ideia central da teoria
social é sintetizar a relação entre o “comportamento humano com seu
entorno”, sendo considerado como ação “um comportamento humano com
transcendência social”.9
Jescheck e Weigend10 explicam que “comportamento” significa toda
resposta pessoal a uma situação reconhecida, ou pelo menos reconhecível,
por meio da realização de uma possibilidade de reação que lhe é apresentada
para aquela situação. Assim, o comportamento pode consistir no exercício da
atividade final (finalidade), mas também pode limitar-se à causação de
consequências não intencionais na medida em que o acontecimento pode ser
dirigido com a intervenção da finalidade (imprudência, por exemplo), ou
pode expressar-se por meio da inatividade (omissão) perante uma
determinada expectativa de ação.
Ainda, explicam que o requisito do comportamento “humano” indica
que para atuar em sentido jurídico-penal somente se considera
comportamentos de pessoas “individuais”, e não atos de grupos de pessoas.
Logo, uma conduta tem “transcendência social” exclusivamente quando se
refere à relação do indivíduo com seu entorno e afeta ao mesmo com seus
efeitos.
O conceito social de ação pretende englobar todas as modalidades de
conduta necessárias para o juízo penal. Além disso, encerra os contornos de
uma definição que não apenas descreve a ação abstratamente, como também
a descreve em sua essência material e concreta. Por fim, o conceito social de
ação exclui todos os comportamentos que não podem ter significado algum
desde uma perspectiva penal.11

8.1.4 Teoria pessoal da ação


O conceito pessoal de ação é típico do sistema de imputação objetiva
desenvolvida por Claus Roxin, segundo quem “um conceito de ação ajustado
a sua função se produz quando se entende a ação como ‘manifestação da
personalidade’”.
Para Roxin, a ação como “manifestação da personalidade” significa que
é ação tudo que se pode atribuir a um ser humano como centro anímico-
espiritual de ação, e isso falta nos casos de efeitos que partem unicamente da
esfera corporal (somática) do homem, ou “do âmbito material, vital e animal
do ser”, sem estarem submetidos ao controle do “eu”, da instância condutora
anímico-espiritual do ser humano. Por exemplo; se um sujeito é empurrado
com força irresistível contra uma janela, ou se durante o sono, num delírio ou
ataque convulsivo, golpeia ao seu redor, ou reage de forma puramente
reflexa, todas essas manifestações não são dominadas ou domináveis pela
vontade e pela consciência e, portanto, não podem ser qualificadas como
manifestações da personalidade, nem atribuídas à parte anímico-espiritual da
“pessoa”.12
Da mesma forma, para Roxin, é evidente que os pensamentos e os
impulsos da vontade pertencem à esfera espiritual-anímica da pessoa, motivo
pelo qual permanecem somente no âmbito interno e não se relacionam com
os eventos do mundo exterior e, portanto, não são manifestações da
personalidade, logo, não são ações.

8.1.5 Teoria significativa da ação


A teoria significativa da ação tem seu precursor no catedrático da
Universidade de Valência, o Professor Tomás S. Vives Antón.
Em sua obra Fundamentos del Sistema Penal, Vives Antón propõe uma
nova abordagem da ação, fundamentada no contexto da filosofia da
linguagem. Assim, como pressuposto de sua concepção teórica, Vives Antón
abandona o ideal aristotélico/ cartesiano dualista que concebe a mente como
uma substância autônoma e separada do corpo, adotando as recentes teorias
da neurociência, segundo as quais mente e cérebro formam uma identidade.13
Explica o autor:

As “Teorias da identidade” postulam que a mente é um nível de descrição do


cérebro, motivo pelo qual os estados mentais são idênticos a estados do
cérebro. Segundo essa identidade se ajuste a regularidades, conforme as quais
cada classe de estados mentais corresponda a um determinado estado do
cérebro, ou não se ajuste a elas, de modo que se limite a afirmar que a cada
estado mental individual corresponde outro cerebral, fala-se de “identidade
como tipo” ou de “identidade como instância”.14

Essas concepções contemporâneas das teorias da identidade entre mente


e cérebro são muito bem desenvolvidas por John R. Sarle, que é um dos
autores utilizados por Vives Antón. Apenas a título de ilustração, trazemos
trecho da obra Liberdade e Neurobiologia, de Sarle, em que escreve:
(...) A própria consciência do cérebro pode ter efeitos no plano neuronal,
embora o cérebro não seja constituído apenas de neurônios (com as células
neurogliais, os neurotransmissores, o fluxo sanguíneo etc.). Da mesma forma
que o comportamento das moléculas é causalmente constitutivo da solidez, o
comportamento dos neurônios é causalmente constitutivo da consciência.
Quando afirmamos que a consciência pode agir sobre o corpo, nós
sustentamos que as estruturas neuronais agem sobre o corpo. A maneira
como essas estruturas agem sobre meu corpo está ligada ao estado de
consciência delas. A consciência é uma característica do cérebro da mesma
forma que a solidez é uma característica da roda.15

A partir desses pressupostos, Vives Antón conclui que não se pode mais
conceber a tradicional doutrina da ação de fundamentação cartesiana segundo
a qual “a ação vinha sendo concebida como um fato composto, como a
reunião de um fato físico (o movimento corporal) e outro mental (a volição)”.
Neste esquema tradicional, a diferença entre as ações e os demais fatos
traçava-se ontologicamente, a partir da contribuição da mente.16
Sendo assim, partindo de contexto comunicacional, Vives Antón
diferencia as ações dos demais fatos a partir das normas, que emprestam
sentido às primeiras. Sustenta Vives que:

A ação não é, pois, um fato específico, nem pode definir-se como substrato
da imputação jurídico-penal, pois definir não é, ainda, julgar. (...) a ação é
um processo simbólico regido por normas, como o significado social da
conduta. Proponho-me, em consequência, conceber as ações como
interpretações que, segundo os distintos tipos de regras sociais, se podem dar
ao comportamento humano. Definirei, pois, a ação, não como substrato
comportamental suscetível de receber um sentido, mas sim como sentido que,
conforme um sistema de normas, se pode atribuir a determinados
comportamentos humanos. Opera-se, assim, um giro copernicano na teoria
da ação: já não é o substrato de um sentido; mas o inverso, o sentido de um
substrato.17

Em continuação, traça a diferença entre ações e fatos nos seguintes


termos:

Os fatos acontecem, as ações têm sentido (isto é, significam); os fatos podem


ser descritos; as ações devem ser entendidas; os fatos se explicam mediante
leis físicas, químicas, biológicas etc.; as ações se interpretam mediante regras
gramaticais.18

Trabalha ainda Vives Antón com o conceito de liberdade como


pressuposto da ação. Assim, aquelas pessoas que não são livres para atuar de
outro modo (os chamados inimputáveis, por exemplo) não podem ser autores
de ações. Translada-se, portanto, a questão da imputabilidade da
culpabilidade para a própria ação. Sobre isso, afirma Vives Antón: “(...) sem
liberdade não há ação, nem razões, nem maneira alguma de conceber o
mundo: ou não há linguagem, nem regras, nem significado, nem ação”.19

8.1.6 Teoria da ação adotada pelo Código Penal


Brasileiro
Muitos autores brasileiros consideram que com a reforma da parte geral
do Código Penal, ocorrida em 1984, adotou-se em nosso país a teoria finalista
da ação, sendo que a maioria dos institutos penais acabou por serem
desenvolvidos, tanto pela doutrina quanto pela jurisprudência, por um viés
finalista.
Entretanto, atualmente, há diversos autores brasileiros que apresentam a
teoria geral do delito sob perspectivas diferentes, tais como a teoria da
imputação objetiva de Claus Roxin e a teoria significativa da ação de Vives
Antón, mostrando que a dogmática penal vem evoluindo também no Brasil.
8.2 CONDUTA HUMANA: AÇÃO E OMISSÃO
Nos termos já apresentados por Welzel “a ação humana é o exercício de
uma atividade final”. E atividade final é uma “atividade dirigida
conscientemente em função de um fim”. Logo, a conduta (ou ação) será
sempre um comportamento humano.
A conduta (ou ação) manifesta-se em duas formas básicas de
comportamento humano: a comissão (ação em sentido estrito) e a omissão.
A comissão (ação em sentido estrito) aparecerá quando o sujeito pratica
um ato, faz alguma coisa, age, atua positivamente, como quando dispara uma
arma, subtrai determinada mercadoria ou desfere um soco em alguém. A
omissão, por sua vez, surgirá quando o sujeito deixa de praticar um ato, não
faz alguma coisa que deveria fazer, atua negativamente, como quando deixa
de socorrer alguém em perigo, não declara valores que recebeu para não
pagar impostos etc.
Dentro da teoria do crime, a comissão (ação em sentido estrito) e
omissão sempre terão um caráter normativo, ou seja, para sabermos se
alguém praticou uma ação ou uma omissão penalmente relevante é necessário
analisar este comportamento humano à luz do que dispõe lei penal. Por isso
diz-se que as normas penais incriminam tanto ações quanto omissões. As
normas penais que incriminam ações são chamadas de proibitivas e as que
incriminam omissões são chamadas de imperativas ou preceptivas.20
A comissão (ação em sentido estrito) ocorrerá quando o sujeito praticar
a conduta prevista (e proibida) pela lei penal. Assim, quem disparar
fatalmente uma arma de fogo contra outra pessoa estará praticando a conduta
comissiva de matar alguém, o que se amolda ao tipo penal de homicídio (art.
121 do CP). Trata-se de uma conduta comissiva, pois o autor agiu de forma
positiva, fez alguma coisa, praticou um ato contrário à norma penal.
Por sua vez, a omissão ocorrerá quando o autor deixar de cumprir o
comando da lei penal que impõe (imperativa) a prática de uma conduta. Deste
modo quem, podendo fazê-lo sem risco pessoal, deixar de socorrer pessoa
que se encontra em perigo, estará praticando uma conduta omissiva prevista
no tipo penal de omissão de socorro (art. 135 do CP). Diz-se que a conduta é
omissiva porque o sujeito agiu de forma negativa, deixou de fazer alguma
coisa, não se comportou de acordo com a norma penal.
Com base nestas duas formas de comportamento humano, os crimes são
classificados em comissivos e omissivos. A maioria dos crimes é prevista na
forma comissiva, ou seja, necessita que o autor pratique uma conduta
positiva, aja, faça algo, como, por exemplo: homicídio, lesão corporal, furto,
estupro, estelionato, roubo etc. Porém, existem os crimes omissivos, que são
aqueles que exigem para sua ocorrência o descumprimento da ordem legal,
ou seja, que o sujeito pratique uma conduta negativa, não faça aquilo que a
lei manda, não atue, não aja, como ocorre, por exemplo, com a omissão de
socorro, omissão de notificação de doença compulsória, sonegação fiscal etc.
Existem alguns crimes que em regra são comissivos, já que previstos por
leis penais proibitivas, mas excepcionalmente poderão ser praticados na
forma omissiva, desde que o sujeito ativo tenha por lei o dever de evitar que
o resultado do crime ocorra. Esses crimes, quando praticados na forma
omissiva, são chamados de comissivos por omissão ou de omissivos
impróprios.
O tipo penal de homicídio nos fornece um excelente exemplo de crime
comissivo por omissão. Em regra, o homicídio é praticado na forma
comissiva sempre que uma pessoa mata outra por meio de uma ação positiva
(tiro, facada, veneno, atropelamento etc.). Porém, é possível que o crime de
homicídio seja também praticado na forma omissiva, desde que o sujeito
ativo do crime tenha o dever legal de evitar que o resultado ocorra, isto é, que
a morte de determinada pessoa aconteça, mas não faz nada para evitá-la,
como se dá no caso de um pai ou mãe que deixam de alimentar seu filho
menor até a morte; ou do médico que não dá atenção devida ao seu paciente
que vai a óbito etc.
Os crimes comissivos por omissão estão tratados no Código Penal no §
o
2 do art. 13, que será analisado mais adiante.
8.3 AUSÊNCIA DE CONDUTA
Em hipótese alguma o Direito Penal Liberal permite a punição de uma
mera vontade criminosa que não chega a ser exteriorizada mediante uma
conduta, pois se assim fosse, o simples pensamento criminoso seria passível
de punição.
Por outro lado, também não será punível a mera modificação no mundo
exterior quando não motivada pela consciência e vontade individual. Assim,
como a conduta é um conceito técnico-jurídico que representa a “vontade
humana dirigida a um fim”, quando faltarem os elementos “vontade” e/ou
“consciência, ainda que haja um movimento corporal, não haverá conduta.
Logo, não se pode falar em conduta diante das seguintes situações:

a) Coação física irresistível (vis absoluta);


Estar-se-á diante da coação física irresistível quando alguém realizar um
movimento corporal em decorrência de uma força física que atua sobre seu
corpo. Assim, se uma pessoa é empurrada sobre outra, ou se tem seu braço
movimentado por alguém mais forte, apesar de estar se movimentando, não
estará praticando uma conduta, pois esse movimento não é fruto de sua
vontade livre, mas sim fruto da coação física irresistível.
Caso desse movimento corporal resulte um resultado típico, como uma
lesão corporal, por exemplo, o resultado não será imputado ao coagido, mas
somente ao coator, nos termos do art. 22 do CP.21

b) Movimentos reflexos;
Os movimentos reflexos são aqueles que não decorrem da vontade, mas
sim de estímulos externos respondidos diretamente pelo sistema nervoso
central, como ocorre no caso de um choque elétrico, de um ataque epilético,
de convulsões, de sustos, de espirros etc.
Por não haver, nestas hipóteses, a intervenção da vontade, não se podem
caracterizar esses movimentos como condutas. Assim, se em virtude de uma
convulsão, o agente acaba por lesionar uma pessoa que o tenta socorrer, não
poderá ser responsabilizado por este resultado, pois não praticou nenhuma
conduta, já que o movimento corporal foi involuntário

c) Estados de inconsciência
Por fim, atuam como hipóteses de ausência de conduta os estados de
inconsciência, que são situações nas quais o agente não está consciente de
suas ações, pois suas funções mentais não funcionam adequadamente. A
doutrina aponta como hipóteses de estado de inconsciência o sonambulismo e
a hipnose.
A embriaguez letárgica involuntária, apesar de ser considerada pela
maioria da doutrina como hipóteses de inimputabilidade, é apontada por
alguns como hipótese de estado de inconsciência, posição com a qual
concordamos.

1
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José H. Manual de direito penal brasileiro.
Parte geral. 10. ed. São Paulo: RT, 2013. vol. 1, p. 371.
2
BRANDÃO, Cláudio. Teoria jurídica do crime, cit., p. 20.
3
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José H. Op. cit., p. 382.
4
SANTOS, Juarez C. dos. Op. cit., p. 84.
5
FERRÉ OLIVÉ, Juan Carlos; et al. Direito penal brasileiro. Parte Geral. Princípios
fundamentais e sistema. São Paulo: RT, 2001. p. 224 e ss.
6
WELZEL, Hans. El nuevo sistema del derecho penal: una introducción a la doctrina de la
acción finalista. Trad. José Cerezo Mir. Montevideo-Buenos Aires: BdeF, 2006. p. 41 e ss.
7
Idem, p. 42 e ss.
8
Idem, p. 45 e ss.
9
JESCHECK, Hans-H; WEIGEND, Thomas. Tratado de derecho penal. Parte General. 5.
ed. Trad. Miguel Olmedo Cardenete. Granada: Comares, 2002. p. 239 e ss.
10
JESCHECK, Hans-H; WEIGEND, Thomas. Tratado de derecho penal. Parte General. 5.
ed. Trad. Miguel Olmedo Cardenete. Granada: Comares, 2002. p. 238 e ss.
11
Idem, p. 240.
12
ROXIN, Claus. Derecho penal. Parte General. Fundamentos cit., p. 252.
13
VIVES ANTÓN, Tomás S. Fundamentos del sistema penal. Valencia. Tirant lo Blanch.
1996. p. 145 e ss.
14
VIVES ANTÓN, Tomás S. Fundamentos del sistema penal. Valencia. Tirant lo Blanch.
1996. p. 197.
15
SEARLE, John R. Liberdade e neurobiologia: reflexões sobre o livre-arbítrio, a
linguagem e o poder político. Tradução de Constancia Maria Egrejas Morel. São Paulo. Ed.
Unesp, 2007. p. 27.
16
VIVES ANTÓN, Tomás S. Fundamentos del sistema penal. Valencia. Tirant lo Blanch,
1996. p. 145 e ss.
17
VIVES ANTÓN, Tomás S. Fundamentos del sistema penal. Valencia. Tirant lo Blanch,
1996. p. 205 e ss.
18
VIVES ANTÓN, Tomás S. Fundamentos del sistema penal. Valencia. Tirant lo Blanch,
1996. p. 205 e ss.
19
VIVES ANTÓN, Tomás S. Fundamentos del sistema penal. Valencia. Tirant lo Blanch,
1996. p. 320.
20
BRANDÃO, Cláudio. Curso de direito penal... cit., p. 132 e ss.
21
A coação moral irresistível não exclui a conduta/ação, mas sim a culpabilidade, tal como
a demência, pois não se podia exigir do agente conduta diversa.
TIPICIDADE OBJETIVA:

RESULTADO E NEXO DE CAUSALIDADE

9.1 DO RESULTADO
É preciso atentar para o fato de que existem duas principais teorias sobre
o resultado que o compreendem e explicam a partir de perspectivas
diferentes:

• a normativa;
• a naturalística.

9.1.1 Teoria normativa do resultado


A teoria normativa (ou jurídica) não compreende o resultado como um
fato natural, mas sim como um fato jurídico, decorrente da previsão legal do
resultado no próprio tipo penal.
Assim, para a teoria normativa, o resultado nada mais é que a lesão ou
perigo de lesão ao bem jurídico, pouco importando se esse resultado causa
qualquer modificação no mundo natural.
Deste modo, para essa teoria, todo crime necessariamente tem um
resultado, que é a lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico. No homicídio
(art. 121 do Código Penal), por exemplo, o resultado é a lesão ao bem
jurídico vida; na injúria (art. 140 do Código Penal), o resultado é a lesão ao
bem jurídico honra; no furto (art. 155 do Código Penal), o resultado é a lesão
ao bem patrimônio; na corrupção passiva (art. 317 do Código Penal), o
resultado é a lesão ao bem jurídico administração pública etc.
Para a teoria normativa, todo crime tem um resultado, pois todo crime,
obrigatoriamente, causa uma lesão ou um perigo de lesão a um bem jurídico.

9.1.2 Teoria naturalística do resultado


Por sua vez, a teoria naturalística, que mantém suas raízes no modelo
causal--naturalístico, o resultado é a modificação sensível (constatável pelos
nossos sentidos) causada pela conduta no mundo exterior.
Assim, o resultado naturalístico é uma modificação que podemos ver,
sentir, pois ocorre no mundo natural (físico) e não no âmbito jurídico.
Há, neste caso, uma relação direta de causa e efeito entre a conduta e o
resultado, isto é, o resultado só existe em razão da prática da conduta. O
resultado pode ser qualquer modificação no mundo exterior, como por
exemplo, a morte (art. 121 do CP), a destruição de um objeto (art. 163 do
CP), a transferência da posse/diminuição patrimonial (art. 155 do CP), a
falsificação de um documento (art. 297 e 298 do CP) etc.
Entretanto, sendo certo que para a teoria naturalística o resultado sempre
será uma modificação no mundo exterior, tem-se que admitir que nem todas
as condutas causarão uma modificação no mundo exterior. No crime de
injúria (art. 140 do CP), por exemplo, no qual uma pessoa ofende a outra por
meio de palavras, não há qualquer modificação no mundo exterior, como
também não há na posse ilegal de arma de fogo de uso permitido (art. 12 da
Lei no 10.826/2013).
Deste modo, segundo a teoria naturalística do resultado, existem crimes
com resultado (aqueles nos quais da conduta deriva uma modificação no
mundo exterior) e crimes sem resultado (aqueles nos quais da conduta não
deriva qualquer modificação no mundo exterior).
A teoria sobre o resultado admitida pela doutrina brasileira é a
naturalística.

9.1.3 Classificação dos tipos penais quanto ao


resultado
Tendo em conta o resultado, a doutrina costuma classificar os tipos
penais em:

• materiais;
• formais;
• mera conduta.

9.1.3.1 Tipos penais materiais


Os tipos penais materiais são aqueles em que o próprio tipo penal
descreve um resultado naturalístico e este resultado é necessário para que o
crime ocorra na forma consumada. São exemplos de tipos penais materiais: o
homicídio e o furto. No caso do homicídio (art. 121, caput, do CP), cujo tipo
penal é “matar alguém”, o resultado descrito é a morte, sendo esta
absolutamente necessária para que o homicídio se consume. No furto (art.
155, caput, do CP), cujo tipo penal é “subtrair para si ou para outrem coisa
alheia móvel” o resultado é a subtração, ou seja, a coisa alheia móvel objeto
do furto tem que sair do domínio da vítima e passar para o domínio do autor,
sendo que a consumação somente ocorre com essa inversão da posse.

9.1.3.2 Tipos penais formais


Os tipos penais formais são aqueles em que apesar do tipo penal
descrever um resultado naturalístico, este não é necessário para a
consumação, que ocorre com a simples prática da conduta. Exemplo de tipo
penal formal é o de corrupção passiva previsto no artigo 333, caput, do
Código Penal:

Corrupção ativa
Art. 333. Oferecer ou prometer vantagem indevida a funcionário público,
para determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício:
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa.
(...)

Há um resultado naturalístico previsto no tipo penal representado pela


obtenção da vantagem, isto é, um ganho indevido pelo funcionário público.
Entretanto, para que o crime de corrupção passiva se consume, basta que o
funcionário público solicite a vantagem indevida, independentemente de
recebê-la ou não.

9.1.3.3 Tipos penais de mera conduta


Os tipos penais de mera conduta são aqueles cujo tipo penal não faz
previsão de qualquer resultado naturalístico, limitando-se a descrever uma
conduta e a simples prática dessa conduta consuma o delito.
O tipo penal de porte ilegal de arma de fogo previsto no art. 14, caput,
da Lei no 10.826/2003 é considerado um crime de mera conduta, pois
descreve somente uma conduta, sem mencionar qualquer resultado
naturalístico, tendo a seguinte redação:

Porte ilegal de arma de fogo de uso permitido


Art. 14. Portar, deter, adquirir, fornecer, receber, ter em depósito, transportar,
ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob
guarda ou ocultar arma de fogo, acessório ou munição, de uso permitido, sem
autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar:
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.
(...)

9.2 NEXO DE CAUSALIDADE


Em relação aos tipos penais materiais, somente será possível imputar o
resultado descrito no tipo penal ao autor da conduta quando houver um nexo
de causalidade entre esta e o resultado.
Assim, é preciso compreender quais são os critérios para se definir
quando uma determinada conduta poderá ser reconhecida como causa de um
resultado, para que assim seja possível imputar este resultado ao autor da
conduta.
Várias são as teorias existentes para se estabelecer o nexo de
causalidade, porém, o Código Penal brasileiro adotou expressamente a
chamada teoria da conditio sine qua non, ou teoria da equivalência dos
antecedentes.

9.2.1 Teoria da conditio sine qua non


Tendo em vista que se adotou, no Brasil, em relação ao resultado a
teoria naturalística, é correto afirmar que poderemos ter crimes com resultado
(aqueles que, na forma consumada, causam uma modificação no mundo
exterior como o homicídio, por exemplo) e crimes sem resultado (aqueles
que, mesmo na forma consumada, não causam qualquer modificação no
mundo exterior, como a injúria ou a embriaguez ao volante, por exemplo).
Entretanto, sempre que estivermos diante de um crime material na forma
consumada, será preciso, para responsabilizar criminalmente o autor, que se
comprove a existência da prática de uma conduta típica e a ocorrência de um
resultado típico, mas também que há um nexo de causalidade entre eles, ou
seja, que o resultado só existiu em virtude da prática da conduta, ou, em
outras palavras, que a conduta é a causa do resultado.
Para estabelecer o nexo de causalidade entre conduta e resultado, ou
seja, para definir qual ou quais condutas podem ser consideradas como causa
(ou causas) de um determinado resultado, o legislador penal brasileiro optou
expressamente pela teoria da conditio sine qua non, expressa no art. 13,
caput, do CP, que estabelece:

Art. 13. O resultado, de que depende a existência do crime, somente é


imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão sem a
qual o resultado não teria ocorrido.

Sendo assim, nos termos do art. 13, caput, do CP, o resultado de um


determinado crime somente poderá ser atribuído a quem lhe deu causa, sendo
assim considerada a conduta (seja comissiva ou omissiva) sem a qual o
resultado não existiria.
Em outras palavras: o resultado de um crime somente pode ser atribuído
ao autor da conduta da qual o resultado derivou.
Utilizando-se um homicídio consumado como exemplo, o resultado
morte da vítima somente poderá ser atribuído a quem mediante uma conduta
comissiva (disparo de arma de fogo, golpes de faca, atropelamento de
automóvel) ou omissiva (salva-vidas que não socorre criança que se afoga,
pais que deixam a janela aberta e o filho pequeno cai de um andar alto) lhe
deu causa.
Nos crimes materiais, portanto, para poder responsabilizar o autor
sempre será necessário estabelecer um nexo de causalidade entre a conduta
por ele praticada e o resultado obtido.
A doutrina aponta que a forma mais segura de se verificar se uma
determinada conduta é ou não causa de um determinado resultado é a
aplicação do método de eliminação hipotética. Segundo este método, para
saber se uma determinada conduta é ou não causa de um determinado
resultado, basta eliminar hipoteticamente (mentalmente) a conduta e verificar
se o resultado continua a existir. Se o resultado desaparecer após a eliminação
hipotética da conduta, significa que foi essa conduta que o causou, havendo
nexo de causalidade entre eles. Porém, se mesmo após a eliminação
hipotética da conduta o resultado continuar a existir, significa que não foi ela
que o causou e não há nexo de causalidade entre eles.
Não havendo nexo de causalidade entre determinada conduta e
determinado resultado, obviamente, este resultado não pode ser imputado
(atribuído) ao autor dessa dita conduta.
Pensemos em um exemplo simples: A resolve matar B. Porém, A não
possui arma de fogo e solicita que C lhe empreste uma. C empresta a arma de
fogo, mas, sem munição. D, outro amigo de A, empresta-lhe as munições. E,
quando perguntado por A, informa o paradeiro de B. Antes que A
encontrasse B, para diante de uma lanchonete e F lhe vende um lanche e um
refresco. Após saciar sua fome, A vai ao encontro de B e dispara a arma de
fogo matando-o. Para verificar a quem se pode imputar o resultado morte de
B, é preciso verificar com quais condutas o resultado tem nexo de
causalidade. Para tanto, elimina-se hipoteticamente cada uma das condutas
praticadas por A, C, D, E e F e verifica-se se o resultado morte de B
desaparece ou continua a existir. Eliminando a conduta de A que atira em B,
o resultado morte desaparece, logo, a conduta de A tem nexo de causalidade
com a morte de B. O mesmo ocorre com C, D e E. Porém, com F a situação é
diferente, pois ao eliminar hipoteticamente a conduta de F de vender um
lanche e um refresco, o resultado morte de B continua a existir. Logo, não há
qualquer relação de causalidade entre a conduta de F (vender lanche e
refresco) e a morte de B. O resultado morte de B, portanto, somente poderá
ser imputado a A, C, D e E, mas não a F.
Porém, importante ressaltar que o simples fato de se poder imputar um
resultado típico ao autor de uma conduta típica não é suficiente para afirmar
que houve um crime, pois conforme já afirmado, somente será considerado
como crime a conduta típica, ilícita e culpável. É possível que um sujeito
atire e cause a morte de alguém sem que isso seja crime, se o fizer em
legítima defesa, por exemplo.

9.2.1.1 Limitações à teoria da conditio sine qua non


A teoria da conditio sine qua non precisa encontrar alguns limites de
imputação, pois do contrário regressaria ao infinito, criando situações
absolutamente absurdas, como a possibilidade de se imputar o resultado não
só ao atirador que leva outra pessoa à morte, mas também aos seus pais que o
conceberam e ao fabricante da arma de fogo, pois levando ao extremo, se
estes pais não tivessem concebido o atirador e se o fabricante não tivesse
fabricado a arma de fogo, a vítima não estaria morta.
Sendo assim, é possível destacar dois limites à teoria da conditio sine
qua non:

• o dolo e a culpa no tipo penal;


• a superveniência de causa relativamente independente.

9.2.1.1.1 Dolo e culpa no tipo penal


Segundo a teoria finalista da ação, somente terá relevância para o direito
penal as condutas que forem orientadas pelo dolo ou pela culpa, pois se o
sujeito pratica a ação sem dolo e sem culpa, essa ação é irrelevante para o
direito penal, pois atípica.
Deste modo, ainda que haja nexo de causalidade decorrente da teoria da
conditio sine qua non entre a conduta dos pais do atirador e a morte da vítima
ou da conduta do fabricante da arma e a morte da vítima, nem os pais do
atirador e nem o fabricante agiram com dolo ou culpa em relação à morte da
vítima, não podendo, assim, terem, este resultado, a eles imputados, pois
somente têm relevância penal as condutas praticadas com dolo ou culpa.

9.2.1.1.2 Superveniência de causa relativamente


independente
A outra limitação decorre expressamente do § 1o do art. 13 do CP que
tem a seguinte redação:

Superveniência de causa independente


§ 1o A superveniência de causa relativamente independente exclui a
imputação quando, por si só, produziu o resultado; os fatos anteriores,
entretanto, impu-tam-se a quem os praticou.

Segundo este comando normativo, sempre que uma causa superveniente


e relativamente independente em relação à conduta do autor causar por si só o
resultado, este não poderá ser imputado ao autor. Porém, apesar de não
responder pelo resultado causado pela causa superveniente relativamente
independente, o autor da conduta originária continuará responsável pelos atos
praticados até o surgimento da causa relativamente independente.
Um exemplo ajuda a explicar essa questão: Imagine-se que A, querendo
lesionar B, desfere-lhe um soco no rosto, causando um pequeno corte. Em
virtude da pequena lesão, B vai até o Pronto-Socorro de um hospital para dar
um ponto no pequeno corte. Porém, no hospital, um dos enfermeiros acaba
por injetar em B um medicamento equivocado, que lhe causa a morte. Nos
termos do § 1o do art. 13 do CP, o resultado morte de B não poderá ser
imputado a A, pois o verdadeiro causador do resultado foi o enfermeiro,
devendo este responder pela morte de B. Porém, A continuará responsável
pelas lesões causadas em B, pois são fatos anteriores ao surgimento da causa
relativamente independente.

9.2.2 Relevância causal da omissão


Nos crimes omissivos impróprios (ou comissivos por omissão), por
serem tipos penais materiais, a relação de causalidade também é importante,
mas sua análise é feita por outro ângulo.
Se nos tipos penais materiais, praticados por meio de conduta comissiva,
é necessário verificar se há nexo de causalidade entre a comissão e o
resultado, nos crimes omissivos impróprios (ou comissivos por omissão), é
mister examinar se há um nexo de causalidade entre a omissão e o resultado.
Os crimes comissivos por omissão estão tratados no art. 13, § 2o, do CP
que conta com a seguinte redação:

§ 2o A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir


para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem:
a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância;
b) de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado;
c) com seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado.

Quem está numa dessas três situações enquadra-se naquilo que a


doutrina chama de posição de garante, ou simplesmente garantidor, pois tem
o dever de proteger a vítima e impedir que o resultado se concretize.
É possível afirmar que somente poderá ser responsabilizado por um
crime comissivo por omissão aquele sujeito que tem uma relação especial
com a vítima, isto é, aquele que tem o dever legal de proteger a vítima
(qualquer das hipóteses do art. 13, § 2o, do CP), mas, podendo evitar que o
resultado acontecesse, omitiu-se.
Analisemos cada uma das hipóteses do § 2o do art. 13 do CP:

a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância;


Essa hipótese refere-se àquelas pessoas que legalmente são responsáveis
pelo cuidado, proteção e vigilância de outras, como ocorre com os pais em
relação aos filhos, o carcereiro em relação ao preso, o médico em relação ao
paciente etc.
É importante frisar que para incorrer nesta hipótese é preciso que o
dever de evitar o resultado esteja determinado pela lei, ou seja, a função de
garantidor decorre diretamente do texto legal.

b) de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado;


Trata-se de hipótese mais ampla, que abarca qualquer situação em que
uma pessoa tenha, voluntariamente, assumido a responsabilidade de impedir
o resultado.
A assunção da responsabilidade pode decorrer de um contrato, por
exemplo, mas também de uma situação menos formal, como a de uma
vizinha que aceita vigiar a criança da casa ao lado para que a mãe vá ao
supermercado.

c) com seu comportamento anterior, criou o risco de ocorrência do


resultado
Por esta hipótese, a pessoa que com seu comportamento anterior cria
uma situação de perigo, isto é, um risco ao bem jurídico alheio, tem que
evitar que o perigo se concretize numa lesão, pois se isso ocorrer, responderá
pela lesão.
Assim, quem coloca fogo num terreno baldio, cria o risco de o fogo
alastrar-se até as casas vizinhas; quem empurra uma pessoa em uma piscina,
cria o risco dela se afogar; quem entrega veículo à pessoa inabilitada ou
visivelmente embriagada, cria o risco de ocorrer um acidente etc. Em todas
essas hipóteses, caso o risco se concretize na lesão ao bem jurídico (incêndio
nas casas vizinhas ou morte pelo fogo, morte por afogamento ou por acidente
automobilístico), o criador do risco responderá pelo resultado, pois era seu
dever evitá-lo.
Lembrando que nos crimes omissivos impróprios, há sempre uma
relação especial entre autor e vítima (posição de garantidor), nos termos do
art. 13, § 2o, do CP, para se verificar a relação de causalidade entre o
resultado e a omissão é preciso constatar se o autor da omissão tinha o dever
legal de agir (posição de garante) e a possibilidade fática de agir e, ainda, se
caso ele não tivesse se omitido, se o resultado ocorreria ou não. Desta forma,
não poderá ser imputado o resultado típico àquele que não tinha o dever de
agir ou não tinha a possibilidade fática de agir ou que mesmo agindo, o
resultado não seria evitado.
Sendo assim, o pai que intencionalmente se omite de alimentar o filho
recémnascido, causando-lhe a morte, terá o resultado imputado a ele e poderá
responder pelo crime de homicídio na forma omissiva imprópria (art. 121,
caput, combinado com art. 13, § 2o, a, ambos do CP). Entretanto, um
desconhecido que não assumiu qualquer responsabilidade perante o recém-
nascido não pode ter o resultado morte imputado a ele, ainda que se omita em
relação a sua alimentação, pois não ocupa a função de garantidor e não tem o
dever legal de agir para evitar esse resultado. Por fim, um pai, ainda que
tenha o dever legal de evitar o resultado morte do filho (posição de
garantidor), não poderá ter esse resultado imputado a ele se não tiver, no caso
concreto, possibilidade fática de alimentar o filho, por encontrar-se preso ou
em condição de miserabilidade, por exemplo.

9.3 TEORIA DA IMPUTAÇÃO OBJETIVA DO


RESULTADO
A teoria da imputação objetiva vem sendo desenvolvida há muito tempo
pela doutrina, porém, foi especialmente com a retomada do tema por Claus
Roxin, na década de 1970, que ganhou os contornos atuais.
O sistema jurídico-penal causalista, desenvolvido por Liszt e Beling no
final do século XIX, fundamentava o tipo penal exclusivamente no conceito
de causalidade.
Assim, considerava-se realizado o tipo penal sempre que alguém
praticava uma condição para ocorrência do resultado nele previsto, isto é,
sempre que alguém dava causa ao resultado, nos termos da teoria da
equivalência dos antecedentes. Nestes termos, o tipo penal tinha uma
abrangência muito grande, pois

praticou uma ação de matar não só aquele que disparou o tiro mortífero, mas
todos os que contribuíram para o resultado com uma conditio sin qua non: o
fabricante e o vendedor do revólver e da munição, aqueles que ocasionaram a
desavença da qual resultou o tiro, até mesmo os pais e outros ascendentes do
criminoso.

Era o problema do regresso ao infinito, de modo que qualquer restrição à


responsabilidade penal deveria ser operacionalizada em outros níveis do
conceito analítico de crime: antijuridicidade ou, primordialmente, na
culpabilidade, em que estavam todos os elementos subjetivos do tipo (dolo e
culpa).1
Por volta de 1930, no sentido de superar o sistema causalista, surge a
teoria finalista, tendo em Hans Welzel seu principal expoente, “que vê a
essência da ação humana não no puro fenômeno natural da causação, e sim
no direcionamento, guiado pela vontade humana, de um curso causal no
sentido de um determinado fim antes tomado em vista”.
A compreensão da conduta como um ato finalístico impede
consideravelmente o regresso ao infinito da teoria causalista, pois localiza o
dolo no âmbito do tipo.2
Porém, conforme Roxin,3 o “grande progresso que trouxe a teoria
finalista da ação limita-se, porém, ao tipo subjetivo. Para a realização do tipo
objetivo, considera ela suficiente a mera relação de causalidade, no sentido da
teoria da equivalência. Com isso, o tipo continua demasiado extenso”.
Assim, conforme reconhecido pelo próprio Claus Roxin, a teoria da
imputação objetiva do resultado presta-se a resolver determinados problemas
de imputação que as teorias tradicionais – entre elas da conditio sine qua non
– não resolvem adequadamente. Sinteticamente: “a teoria da imputação
objetiva desenvolve-se como um progresso das teorias causais que tentavam
restringir os excessos da teoria da equivalência das condições”.4
Para demonstrar seu pensamento, Claus Roxin5 apresenta três grupos de
casos nos quais, segundo ele, a teoria da imputação objetiva do resultado
apresentaria solução mais adequada que a da conditio sine qua non:

1. Consideremos, agora, que A deseje provocar a morte de B! A o aconselha


a fazer uma viagem à Flórida, pois leu que lá, ultimamente, vários turistas
têm sido assassinados; A planeja que também B tenha esse destino. B, que
nada ouviu dos casos de assassinato na Flórida, faz a viagem de férias, e de
fato é vítima de um delito de homicídio. Deve A ser punido por homicídio
doloso? Se reduzirmos o tipo objetivo ao nexo de causalidade, esta seria a
conclusão. Afinal, A causou, através de seu conselho, a morte de B, e
almejava esse resultado.
Ou pensemos no caso do homem de aparência suspeita que vai comprar um
punhal afiado em uma loja! O vendedor (V) pensa consigo: “Talvez ele
queira matar alguém com o punhal. Mas isto deve ser-me indiferente”. Tem
V de ser punido por homicídio praticado com dolo eventual, na hipótese de o
comprador, realmente apunhalar alguém? Objetivamente, V constituiu uma
causa para a morte da vítima, e subjetivamente assumiu o risco de que tal
resultado ocorresse.
2. Problemas similares ocorrem nas hipóteses de grande relevância prática
que são as de desvios na causalidade. Limito-me ao conhecido exemplo
escolar, em que A atira em B com intenção de matá-lo, mas somente o fere. O
ferido é levado por uma ambulância a uma clínica; mas ocorre um acidente
de trânsito, vindo B a falecer. Cometeu A um delito consumado de
homicídio? Ele certamente causou a morte de B no sentido da teoria da
equivalência, e também a almejou. Se ainda assim não deve haver um delito
consumado de homicídio, isto é difícil de fundamentar do ponto de vista de
uma compreensão causal do tipo objetivo.
3. Como exemplo do terceiro grupo de casos quero lembrar a hipótese
extraordinariamente comum da entrega de tóxicos. Imaginemos que A venda
heroína a B! Os dois sabem que a injeção de certa quantidade de tóxico gera
perigo de vida, mas assumem o risco de que a morte ocorra; A o faz, porque
o que lhe interessa é principalmente o dinheiro, e B, por considerar a sua vida
já estragada e só suportável sob estado de entorpecimento. Deve A ser punido
por homicídio cometido com dolo eventual, na hipótese de B realmente
injetar em si o tóxico e, em decorrência disso, morrer? A causalidade de A
para a morte de B, bem como seu dolo eventual encontram-se fora de dúvida.
Se considerarmos a causalidade suficiente para a realização do tipo objetivo,
teremos que concluir pela punição.6

Para resolução destes casos e de outros mais complexos, a teoria da


imputação objetiva de Claus Roxin propõe que “um resultado causado pelo
agente só deve ser imputado como sua obra e preenche o tipo objetivo
unicamente quando o comportamento do autor cria um risco não permitido
para o objeto da ação (1), quando o risco se realiza no resultado concreto (2)
e este resultado se encontra dentro do alcance do tipo (3)”7 (g.n).
Analisemos cada uma das soluções propostas por Claus Roxin aos
grupos de casos acima mencionados, que acabam por configurar os principais
critérios para imputação objetiva:

9.3.1 Critérios para imputação objetiva


9.3.1.1 Criação de um risco não permitido
O primeiro critério, proposto por Claus Roxin, para se poder realizar a
imputação objetiva de um determinado resultado é verificar se o autor, com
sua conduta criou, um risco não permitido ao bem jurídico. Isto porque, em
algumas hipóteses, haverá uma relação de causalidade entre o resultado e a
conduta do autor, mas não será adequado simplesmente imputar este
resultado ao autor, pois seu comportamento não criou ou aumentou o risco de
lesão ao bem jurídico.
É o que acontece no primeiro grupo de casos apresentados acima.
O fato de se instigar alguém a viajar para a Flórida, ainda que em seu
aspecto objetivo seja esta a causa da morte da vítima, e do aspecto subjetivo
seja esta a intenção do autor, não se pode considerar tal fato uma ação de
homicídio, “porque tal conduta não criou um perigo de morte juridicamente
relevante e não elevou de modo mensurável o risco geral de vida”.8 Já no
caso do punhal a uma pessoa suspeita, há de fato algum risco, mas este risco
é permitido.

Afinal, uma vida ordenada em sociedade só é possível se o indivíduo, em


princípio, puder confiar em que as pessoas com quem interage não cometerão
delitos dolosos. Do contrário, além de punhais, igualmente não seriam
vendidos ou emprestados materiais inflamáveis, fósforos, machados,
enxadas.9

Assim, em ambas hipóteses, apesar de haver uma relação causal entre a


conduta do agente e o resultado, bem como estar presente o elemento
subjetivo (dolo direto e dolo eventual, respectivamente), segundo a teoria da
imputação objetiva de Claus Roxin, não é possível imputar as mortes aos
agentes, posto que em nenhuma das hipóteses houve a criação de um risco
não permitido (viajar para Flórida e vender um punhal são condutas
permitidas pelo ordenamento jurídico).
No mesmo sentido, se a conduta praticada pelo agente diminui um risco
já existente, também não poderá haver imputação do resultado, como ocorre
com o médico que por meio do tratamento prolonga a vida da vítima.

9.3.1.2 A realização do risco não permitido


Segundo Roxin, não basta que haja a criação de um risco não permitido,
é necessário que este risco se concretize em um resultado.
No segundo grupo de casos em que um sujeito atira contra o outro com a
intenção de matá-lo, mas consegue apenas feri-lo, e sendo a vítima socorrida
pela ambulância, esta se envolve em acidente de trânsito fatal, o resultado
morte não poderá ser imputado ao atirador.

É verdade que, através do tiro, criou o autor um perigo imediato de vida, o


que é suficiente para a punição por tentativa. Mas este perigo não permitido
não se realizou, pois a vítima não morreu em razão dos ferimentos, e sim de
um acidente de trânsito. O risco de morrer em um acidente não foi elevado
pelo transporte na ambulância; ele não é maior do que o risco de acidentar-se
quando se passeia a pé, ou com o próprio automóvel. Falta, portanto, a
realização do risco criado pelo tiro, de modo que o resultado morte não pode
ser imputado àquele que efetuou o disparo como sua obra. Ele não cometeu
uma ação de homicídio, mas somente uma ação de tentativa de homicídio.10

Porém, como afirma Roxin,11 o raciocínio inverso também é verdadeiro,


ou seja, são desprezíveis os desvios causais e deve-se imputar o resultado se a
ação de tentativa aumentou o perigo do curso causal subsequente de modo
juridicamente relevante e, portanto, o resultado é uma realização adequada do
risco criado pela tentativa. É o famoso exemplo em que um sujeito, com a
intenção de matar a vítima, atira-a do alto de uma ponte para que morra
afogada, pois não sabe nadar. Porém, antes de alcançar a água, a vítima se
choca com o pilar da ponte, e morre.
Este perigo estava de antemão unido à caída da ponte; e portanto o resultado
não é casual e em que pese o desvio causal deve ser imputado ao autor como
ação de homicídio consumada.12

9.3.1.3 O alcance do tipo e o princípio da


autorresponsabilidade
Para imputação objetiva do resultado, não bastam os dois requisitos
anteriores, ou seja, a criação de um risco não permitido e a concretização do
risco no resultado, pois ainda se faz necessário que este resultado esteja no
âmbito de alcance do tipo penal em análise.
É o que ocorre no terceiro grupo de casos apresentado por Roxin, no
qual há a entrega da heroína para o usuário e este tem uma overdose fatal. O
ato de entregar a heroína constitui a criação de um risco não permitido
(inclusive é crime de tráfico de entorpecentes) e o risco não permitido se
concretizou, pois a vítima morreu em decorrência da injeção da heroína.

E, ainda assim, a causação de uma morte com dolo eventual – que é o que
podemos constatar no traficante – não é uma ação de homicídio. Afinal, de
acordo com o direito alemão, sequer a participação dolosa em um suicídio, ou
seja, no ato doloso de matar-se a si próprio, é punível. Um simples
argumentum a maiore ad minus chega ao resultado de que também não
poderá ser punível a participação em uma autocolocação em perigo, quando
houver por parte da vítima uma completa visão do risco, como no nosso caso,
em que existe um suicídio praticado com dolo eventual. O alcance do tipo
(Reichweite des Tatbestands) não abrange esta hipótese; pois, como
demonstra a impunidade da participação em suicídio, o efeito protetivo da
norma encontra seu limite na autorresponsabilidade da vítima.13

O exemplo utilizado por Claus Roxin, neste caso, não seria aplicável ao
direito brasileiro, posto que em nosso ordenamento jurídico, diferentemente
do alemão, há o tipo penal de induzimento, instigação e auxílio ao suicídio
(art. 122 do CP), de modo que aquele que entregasse a heroína com dolo
eventual de que a vítima a utilizasse e morresse, incidiria neste tipo penal.
Conforme destacam Ferré Olivé et al.:14

Os principais âmbitos nos quais o tipo penal não pode alcançar o resultado e,
portanto, não haverá imputação são, para Roxin: a autocolocação da vítima
em risco, a heterocolocação consentida e a imputação ao âmbito de
responsabilidade de terceiros.

Assim, segundo estes autores, não haverá imputação quando a vítima


imputável negar-se a fazer transfusão de sangue e vier a óbito, bem como de
quem aceita participar de “racha” de motos em via pública e o concorrente
vem a óbito. Ainda, os mesmo argumentos não permitiriam a imputação em
uma heterocolocação consentida, que ocorre quando a vítima permite
conscientemente que terceiro a coloque em situação de risco, como ocorre
quando o passageiro de táxi oferece dinheiro ao motorista para que faça
ultrapassagem perigosa da qual resulta acidente e consequente lesão; ou o
passageiro que pega carona com motorista visivelmente embriagado e que
causa acidente.15

1
ROXIN, Claus. Estudos de direito penal. 2. ed. Trad. Luís Greco. Rio de Janeiro:
Renovar, 2008. p. 101.
2
Idem, p. 102.
3
Idem, ibidem.
4
FERRÉ OLIVÉ, Juan Carlos; et al. Op. cit., p. 224 e ss.
5
ROXIN, Claus. Estudos de direito penal, cit., p. 102 e ss.
6
Idem, p. 102 e ss.
7
Idem, p. 102.
8
Idem, p. 104.
9
Idem, p. 105.
10
Idem, p. 106.
11
Idem, ibidem.
12
ROXIN, Claus. Derecho penal. Parte General. Fundamentos... cit., p. 374.
13
ROXIN, Claus. Estudos de direito penal, cit., p. 108.
14
FERRÉ OLIVÉ. Juan Carlos et al. Op. cit., p. 288.
15
Idem, p. 289.

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