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AULA 2

CONTRATOS EMPRESARIAIS

Prof. Daniel Fernando Pastre


INTRODUÇÃO

Na aula anterior, demonstramos as diferenças entre os contratos


empresariais e os contratos vinculados a outros regimes jurídicos, como o
regime civil ou trabalhista. Com base nisso, podemos dizer que a compra e
venda empresarial igualmente têm um tratamento distinto, existindo modalidades
de contratos especificamente empregadas pelos empresários para o
desenvolvimento da empresa, essenciais para a busca do lucro, por vezes
restritas ao âmbito da atividade empresarial, como a compra e venda de quotas
ou ações, ou o trepasse (a aquisição de um estabelecimento empresarial). O
nosso objetivo, portanto, é avaliar o regime geral da compra e venda para, após
a fixação das premissas iniciais, empregá-las no círculo empresarial.

TEMA 1 – O CONTRATO DE COMPRA E VENDA EM GERAL: CLÁUSULAS


GERAIS E MODALIDADES ESPECIAIS

O contrato de compra e venda empresarial, como visto na aula anterior, é


espécie de negócio jurídico entabulado entre empresários. Para possibilitar a
análise dos contratos em espécie, inicialmente faremos uma revisão a respeito
do contrato de compra e venda em geral, suas cláusulas gerais e as
modalidades especiais de negociação, que podem ser empregadas no
desenvolvimento da atividade empresarial, como retrovenda, venda a contento
ou sujeita à prova, venda de preferência, venda com reserva de domínio, venda
sobre documentos e, por fim, por estimativa. As modalidades especiais não são
de uso obrigatório, por certo, mas têm a função principal de auxiliar e fixar, de
forma mais satisfatória, determinadas obrigações empresariais.
A compra e venda em geral, de acordo com Orlando Gomes, é um
contrato bilateral, consensual, oneroso, comutativo, ou aleatório, de execução
instantânea, ou diferida (Gomes, 2009, p. 266). Ela é caracterizada pela
obrigação de uma das partes em transferir o domínio de certo bem para outra
mediante o pagamento do preço. As obrigações principais do vendedor,
portanto, vinculam-se à entrega da coisa, chamada de tradição, e, as do
comprador, ao pagamento da quantia acordada. O contrato, nesse sentido,
considera-se perfeito e acabado quando as partes, de forma consensual,
chegam a um acordo sobre o objeto e o preço, como prediz os arts. 481 e 482
do Código Civil.
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O saudoso Caio Mário Pereira da Silva, cujas lições foram atualizadas por
Caitlin Mulholland, já pormenorizava os requisitos gerais da compra e venda,
estabelecendo, inicialmente, que a coisa deve existir ou ter potencial de
existência; deve ser individualizada, determinada ou determinável;
necessariamente deve estar disposta no mercado, sendo impossível a compra e
venda de bens inalienáveis, devendo ser possível ao vendedor transferi-la ao
comprador.
O preço, por outro lado, deve ser pago em dinheiro, ainda que se aceitem
títulos representativos, dizendo-se, portanto, que é dotado de pecuniariedade.
Ainda, o preço deve ser sério e determinado, o que implica traduzir efetivamente
o valor do bem, sob pena de transmutar-se em verdadeira simulação, valor este
que deve ser de conhecimento do devedor, a fim de tornar possível a quitação.
E, nada obstante possa existir modalidades de fixação de preço diversa, como
por índices ou à taxa de mercado ou bolsa, o valor deve ser traduzido e apurado
para a efetiva quitação. Por fim, o consenso é essencial e está intrinsecamente
conectado à capacidade das partes ou à ausência de incapacidades ou
impedimentos legais, podendo o mesmo ser maculado em casos de erro, dolo,
simulação, fraude ou coação (Pereira, 2017, p. 77-85), pontos já trabalhados na
aula anterior.
Para as condições especiais da compra e venda, a primeira a ser
estudada é a retrovenda. A cláusula de retrovenda, restrita aos contratos para
aquisição de bens imóveis, é caracterizada por ser uma venda em que fica
desde logo autorizada a recompra do imóvel, pelo prazo máximo de 03 (três)
anos, devolvendo-se o preço mais as despesas geradas com autorização ou
caracterizadas como necessárias à conservação do próprio bem. É bastante
utilizada pelos empresários quando da necessidade de levantamento de capital
de giro, tendo em vista que transforma um valor imobilizado em dinheiro apto a
fomentar a atividade de empresário.
Em caso de recusa ao cumprimento da cláusula, pode a parte depositar o
preço, exigindo-lhe a adjudicação compulsória. Note-se, ainda, que a cláusula
pode constar em contrato particular ou na escritura pública, que, em geral, é
exigida para a transferência da titularidade dos imóveis. E, mesmo que não
repetida a cláusula na escritura, ainda assim a mesma permanece em vigor,
considerando que a renúncia ao direito deve ser expresso, não se admitindo a
forma tácita pela simples ausência da referida escritura, conforme art. 472 do

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Código Civil. O seguinte julgado pormenoriza muito bem essa relação contratual,
como lançado em acórdão do Superior Tribunal de Justiça:

RECURSO ESPECIAL. EMBARGOS DE DEVEDOR. EXECUÇÃO DE


TÍTULO EXTRAJUDICIAL. PROMESSA DE COMPRA E VENDA.
CLÁUSULA DE RETROVENDA NÃO REPETIDA NA ESCRITURA
PÚBLICA DO PACTO DEFINITIVO. NECESSÁRIA RENÚNCIA
EXPRESSA. MULTA POR EMBARGOS PROCRASTINATÓRIOS.
DESCABIMENTO. 1. A promessa de compra e venda de imóvel
consubstancia contrato preliminar bilateral, figura autônoma, que
materializa relação jurídica de natureza patrimonial, em que as partes
se obrigam a concluir certo conteúdo, pronto e acabado, qual seja o
fato de realização da compra e venda, mediante outorga da respectiva
escritura pública. 2. Tal pacto – perfectibilizado em instrumento público
ou particular, registrado ou não em cartório de imóveis – tem caráter
autônomo e vinculativo em relação às partes, que ficam, recíproca e
irretratavelmente, submetidas às obrigações e condições
expressamente estipuladas, salvo se prevista cláusula de
arrependimento do comprador ou se ocorrido posterior distrato
(resilição). 3. No momento em que ocorrido o acordo de vontades entre
o promitente vendedor e o promissário comprador, o contrato preliminar
passa a configurar ato jurídico perfeito, cuja validade, inclusive de suas
cláusulas, é aferida ao tempo de sua celebração. Desse modo, uma
vez constatada a capacidade das partes e a ausência de quaisquer
vícios ao tempo da exteriorização da manifestação de vontade, a
promessa de compra e venda e respectivas cláusulas remanescerão
válidas e eficazes, ainda que não sejam transcritas no pacto definitivo
objeto da escritura pública. 4. Diante da força obrigatória e
consequente eficácia vinculativa da promessa de compra e venda
válida, não se revela possível falar em renúncia tácita da cláusula de
retrovenda (a qual não se confunde com a cláusula de arrependimento)
que não fora repetida na escritura pública do contrato definitivo. 5. Isso
porque, uma vez exigida a manifestação expressa das partes para a
instituição de cláusulas especiais na compra e venda (direito de
retrovenda, entre outros), sua renúncia deve observar o mesmo rigor,
tendo em vista o princípio do paralelismo das formas encartado no
artigo 472 do Código Civil. Com efeito, o direito obrigacional,
titularizado pelo vendedor, enquanto não for suprimido, de comum
acordo, deverá ser observado por ambas as partes contratantes, ainda
que a escritura pública silencie a respeito. 6. No tocante ao tempo para
o exercício do direito potestativo da retrovenda, o caput do artigo 505
do Código Civil prevê o prazo decadencial "máximo" de três anos, o
que não impede que as partes convencionem período inferior, situação
que se configurou na hipótese dos autos. (Brasil, 2018)

A cláusula de perempção ou preferência estabelece a necessidade de o


comprador ofertar o bem objeto do contrato ao vendedor, para que seja possível
ao mesmo utilizar ou não do seu direito de prelação, como diz o art. 513 do
Código Civil. A preferência pode ser lançada no contrato com prazo de 180
(cento e oitenta) dias para bens móveis ou 02 (dois) anos para bens imóveis. O
comprador que não observar a preferência responderá com perdas e danos,
responsabilizando também o atual adquirente, caso tenha procedido de má-fé.

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No caso de contratos vinculados à atividade empresarial, essa
modalidade de contrato é importante porque ajusta a possibilidade de aquisição
preferencial de determinados bens, o que beneficia o exercício da empresa.
A compra e venda com reserva de domínio é utilizada em alienação de
bens móveis, oportunidade em que o vendedor reserva para si a propriedade até
que o preço seja integralmente pago, conforme art. 521 do Código Civil. Não
pago o preço total, deverá o vendedor notificar o comprador para constitui-lo em
mora, o que pode ser feito mediante o protesto do título no Cartório de Protestos
ou mesmo pela via judicial. O inadimplemento, uma vez comprovado, possibilita
ao vendedor o resgate da posse do bem ou a cobrança do débito vencido. A
cláusula, porque tem o condão de afetar o direito de terceiros, deve ser firmada
sempre por escrito e registrada no domicílio do comprador, sendo que, na
dúvida, beneficia-se o terceiro de boa-fé.
Neste ponto, deve ficar destacado que o registro é feito para que o
contrato possa ser oponível a terceiros, sendo desnecessário, via de
consequência, em eventual litígio apenas entre o vendedor e o comprador. Na
seara empresarial, essa modalidade de contrato ganha força também
garantidora ou assecuratório, já que, consoante art. 49, parágrafo 3º, da Lei de
Recuperação e Falências, os créditos vinculados à reserva de domínio não se
sujeitam aos efeitos da recuperação judicial, prevalecendo os direitos de
propriedade sobre a coisa e as condições contratuais; ou seja, mesmo em caso
de dificuldade financeira do empresário comprador, o bem pode ser resgatado
pelo vendedor. Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça:

RECURSO ESPECIAL. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. NEGATIVA DE


PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. INOCORRÊNCIA. COMPRA E
VENDA COM RESERVA DE DOMÍNIO. NÃO SUJEIÇÃO AOS
EFEITOS DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL DA COMPRADORA.
DESNECESSIDADE DE REGISTRO. [...] 4. Segundo o art. 49, § 3º, da
Lei 11.101/05, o crédito titularizado por proprietário em contrato de
venda com reserva de domínio não se submete aos efeitos da
recuperação judicial do comprador, prevalecendo os direitos de
propriedade sobre a coisa e as condições contratuais. 5. A manutenção
da propriedade do bem objeto do contrato com o vendedor até o
implemento da condição pactuada (pagamento integral do preço) não é
afetada pela ausência de registro perante a serventia extrajudicial. 6. O
dispositivo legal precitado exige, para não sujeição dos créditos detidos
pelo proprietário em contrato com reserva de domínio, apenas e tão
somente que ele ostente tal condição (de proprietário), o que decorre
da própria natureza do negócio jurídico. 7. O registro se impõe como
requisito tão somente para fins de publicidade, ou seja, para que a
reserva de domínio seja oponível a terceiros que possam ser
prejudicados diretamente pela ausência de conhecimento da existência
de tal cláusula. É o que pode ocorrer com aquele que venha a adquirir
o bem cujo domínio ficou reservado a outrem (venda a non domino);
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ou, ainda, com aqueles que pretendam a aplicação, em juízo, de
medidas constritivas sobre a coisa que serve de objeto ao contrato.
Todavia, a relação estabelecida entre o comprador – em recuperação
judicial – e seus credores versa sobre situação distinta, pois nada foi
estipulado entre eles acerca dos bens objeto do contrato em questão.
(Brasil, 2019)

A venda sobre documentos é modalidade específica, em que a tradição (a


entrega do bem, por exemplo) é substituída pela entrega de um título que o
representa, além de outros documentos exigidos pelo contrato, como reza o art.
529 do Código Civil. Uma vez estando em ordem a documentação, não pode o
comprador recursar o pagamento, devendo o pagamento ser feito na data e no
lugar da entrega dos documentos. Para a atividade empresarial, a venda sobre
documentos é essencial quando relacionada ao depósito de mercadorias nos
armazéns gerais, descritos no Decreto 1.102/1903. Nessa relação, a venda da
mercadoria depositada é feita pela transferência de documentos conhecidos
como conhecimento de depósito e warrant, que são títulos que podem ser
livremente negociados e que representam a mercadoria depositada nos referidos
armazéns gerais. A venda, assim, dá-se pela transferência do título, não pela
entrega direta da mercadoria nele descrita.
Por fim, o contrato estimatório, popularmente conhecido como
consignação, retrata uma relação em que uma parte, o consignante, entrega
bens móveis para a outra, o consignatário, que fica autorizada a vendê-los,
pagando o preço que anteriormente foi ajustado entre eles, ou ainda a devolvê-
los. A obrigação do consignatário de pagar o preço dos produtos não vendidos
não é prejudicada caso a restituição se torne impossível, mesmo que inexistente
a culpa do mesmo. O consignante, por sua vez, não pode alienar os bens antes
de devolvidos, enquanto ainda estão em poder do consignatário. Essa
modalidade contratual é usual em atividades menores, nas quais a pulverização
da oferta é uma necessidade para exortação da marca, ampliação do mercado
ou incremento do faturamento mensal.
Pelo exposto, o contrato de compra e venda em geral apresenta uma
modalidade utilizada no âmbito civil, mas que também é empregada pelos
empresários, podendo os mesmos, como vimos acima, valerem-se de cláusulas
ou modalidades especiais de negócio para o desenvolvimento da empresa.
Assim, o próximo passo é avaliar a compra e venda mercantil, que têm
particularidades, como a possibilidade de utilização de cláusulas pré-concebidas,

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que, advindo dos costumes, são amplamente aceitas nos negócios
internacionais.

TEMA 2 – O CONTRATO DE COMPRA E VENDA EMPRESARIAL

Uma vez lançadas as diretrizes gerais para os contratos de compra e


venda, o nosso objetivo passa a ser a avaliação da compra e venda restrita aos
empresários, bem como das suas características e diferenças fundamentais.
A compra e venda mercantil ou empresarial, como não poderia deixar de
ser, é um contrato consensual, bastando, portanto, para sua formação inicial, um
acordo de vontades entre o empresário vendedor e o empresário comprador,
especialmente no que diz respeito ao objeto e o preço. No que toca o último,
apesar de os contratos em geral vincularem os preços em moeda nacional,
algumas modalidades de contratos empresariais podem estipular o preço em
moeda estrangeira, como os contratos de importação ou exportação de
mercadorias, com ou sem garantias, os contratos de câmbio e as obrigações
cujo credor ou devedor resida no exterior, exceto os contratos de locação, como
lançado nos arts. 1º e 2º do Decreto 857/1969.
É de se notar que as compras e vendas empresariais, chegando as partes
a um acordo entre o objeto e o preço, não possuem requisitos formais para sua
validade, exceto em alguns poucos casos específicos, como o da compra e
venda de ações, que dependem de regras específicas, como a alteração de
contrato ou registro especial; a venda de títulos de crédito, que, por padrão, é
feita por endosso, segundo as diretrizes da Lei Uniforme de Genebra; ou ainda
as vendas de bens imóveis com valor superior a 30 (trinta) vezes o maior salário
mínimo vigente no país, que necessitam de escritura pública, consoante regra
prevista no art. 108 do Código Civil.
Outro ponto específico para os contratos empresariais pode ser visto
pelas Incoterms, que são cláusulas especiais que por si estipulam regras sobre a
compra e venda, transporte, seguro, entre outros pontos. A Câmara de Comércio
Internacional, visando dar segurança aos envolvidos, especialmente em
contratos empresariais entre empresários localizados em países distintos, que
tem, por certo, maior dificuldade para finalização de qualquer contrato,
estabeleceu cláusulas especiais, representadas por siglas, que são de uso
praticamente universal.

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As referidas cláusulas são disponibilizadas on-line (<https://iccwbo.org>) e
as mais comuns são a cláusula EXW (ex works), que significa que o vendedor se
responsabiliza pela disponibilização da mercadoria em determinada data,
oportunidade em que o comprador passará a responsabilizar-se pelo transporte,
assumindo eventuais riscos. A disponibilização, por exemplo, poderá ser
estipulada para uma indústria, em determinado dia e horário. A cláusula FCA
(free carrier), quando inserida em um contrato, significa que o vendedor
providenciará o desembaraço da mercadoria, comprometendo-se a entregá-la
em local indicado, oportunidade em que o comprador assumirá as demais
despesas necessárias. A cláusula FOB (free on board) estabelece que as
despesas com o embarque, o transporte e o desembaraço das mercadorias até
certo porto competirá ao vendedor, e as demais ao comprador. A cláusula CIF
(cost, insurance e freight) impõe ao vendedor todos os custos, na tradução
literal, de transporte e seguro, até o porto de destino. A totalidade das cláusulas
e suas significações pode ser encontrada on-line no site da Câmara,
anteriormente disponibilizado.
Por fim, quando diante de uma compra e venda empresarial, a insolvência
do comprador não acarreta o sobrestamento da entrega até que seja prestada
caução, como reza o art. 495 do Código Civil. Para Fábio Tokars, “essa norma
não se aplica aos contratos empresariais, na medida em que o reconhecimento
judicial da insolvência do empresário toma a forma de uma decretação de
falência” (Tokars, 2007, p. 245). A legislação falimentar, aplicável nesses casos,
autoriza a restituição do bem ou mesmo a solicitação para que o administrador
nomeado decida pela manutenção ou não do contrato, consoante regramento
próprio do art. 115 e seguintes da Lei 11.101/2005. A caução, por outro lado, fica
proibida, porque a disposição patrimonial do empresário falido, em casos tais,
acabaria por macular o concurso de credores.
Assim, a compra e venda restrita ao âmbito empresarial, ao mesmo tempo
em que possuem significativas facilidades, especialmente advindas da
consolidação dos costumes empresariais, também impõem um risco adicional
vinculado aos casos de insolvência do comprador e possibilidades de
perseguição do crédito vinculado ao negócio firmado.

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TEMA 3 – A COMPRA E VENDA EM MULTIPROPRIEDADE OU TIME-SHARE

O Código Civil recentemente regulamentou o regime de time-sharing ou


de multipropriedade, concedendo ao mercado imobiliário maior segurança no
desenvolvimento de empreendimentos que se utilizam dessa sistemática. A
regulamentação trouxe consigo um benefício aos empreendedores e ao público
em geral não só advindo da segurança de uma legislação específica, mas
também porque, por um lado, proporciona maior rentabilidade sob o ponto de
vista empresarial, além de tornar mais acessível a aquisição e manutenção de
propriedades de férias, veraneio ou equivalentes ao público em geral.
Para Gustavo Tepedino, principalmente quando relacionado à indústria
turístico-hoteleira, o regime de multipropriedade livra-a da “sazonalidade típica
desse segmento, preservando a atividade econômica da região de modo
contínuo ao longo do ano”. E, continua o mesmo autor,

a multipropriedade preserva a um só tempo a função social da


propriedade e do contrato, tendo em vista que fomenta a circulação de
bens e proporciona novos investimentos na área, além de evitar a sua
subutilização. (Tepedino, 2019, p. 11)

O art. 1.358-C do Código Civil estabelece que a multipropriedade é

o regime de condomínio em que cada um dos proprietários de um


mesmo imóvel é titular de uma fração de tempo, à qual corresponde a
faculdade de uso e gozo, com exclusividade, da totalidade do imóvel, a
ser exercida pelos proprietários de forma alternada.

Portanto, a natureza jurídica dessa relação, não há mais dúvida, é de


direito real, não obrigacional, significando que cada proprietário poderá se utilizar
do bem como um todo, dentro de certo período de tempo e com absoluta
exclusividade. Assim, trata-se de divisão de uma propriedade imobiliária entre
vários proprietários, utilizando-se de regras específicas vinculadas ao
condomínio em multipropriedade.
É preciso lembrar que antes mesmo da promulgação da Lei 13.777/2018,
a jurisprudência já reconhecia a natureza de direito real da multipropriedade em
razão dos seus elos com o direito de propriedade em si, assim como, em
consequência da divisão de um bem imobiliário em unidades autônomas, a
impossibilidade de restringir-se a parcela de coproprietários por dívida de outros
cotitulares (como uma cobrança de imposto, por exemplo). Nesse sentido, em
julgado que foi verdadeiro divisor de águas, o Superior Tribunal de Justiça:

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PROCESSUAL CIVIL E CIVIL. RECURSO ESPECIAL. EMBARGOS
DE TERCEIRO. MULTIPROPRIEDADE IMOBILIÁRIA (TIME-
SHARING). NATUREZA JURÍDICA DE DIREITO REAL. UNIDADES
FIXAS DE TEMPO. USO EXCLUSIVO E PERPÉTUO DURANTE
CERTO PERÍODO ANUAL. PARTE IDEAL DO
MULTIPROPRIETÁRIO. PENHORA. INSUBSISTÊNCIA. RECURSO
ESPECIAL CONHECIDO E PROVIDO. 1. O sistema time-sharing ou
multipropriedade imobiliária, conforme ensina Gustavo Tepedino, é
uma espécie de condomínio relativo a locais de lazer no qual se divide
o aproveitamento econômico de bem imóvel (casa, chalé, apartamento)
entre os cotitulares em unidades fixas de tempo, assegurando-se a
cada um o uso exclusivo e perpétuo durante certo período do ano. 2.
Extremamente acobertada por princípios que encerram os direitos
reais, a multipropriedade imobiliária, nada obstante ter feição
obrigacional aferida por muitos, detém forte liame com o instituto da
propriedade, se não for sua própria expressão, como já vem
proclamando a doutrina contemporânea, inclusive num contexto de não
se reprimir a autonomia da vontade nem a liberdade contratual diante
da preponderância da tipicidade dos direitos reais e do sistema de
numerus clausus. 3. No contexto do Código Civil de 2002, não há óbice
a se dotar o instituto da multipropriedade imobiliária de caráter real,
especialmente sob a ótica da taxatividade e imutabilidade dos direitos
reais inscritos no art. 1.225. 4. O vigente diploma, seguindo os ditames
do estatuto civil anterior, não traz nenhuma vedação nem faz referência
à inviabilidade de consagrar novos direitos reais. Além disso, com os
atributos dos direitos reais se harmoniza o novel instituto, que,
circunscrito a um vínculo jurídico de aproveitamento econômico e de
imediata aderência ao imóvel, detém as faculdades de uso, gozo e
disposição sobre fração ideal do bem, ainda que objeto de
compartilhamento pelos multiproprietários de espaço e turnos fixos de
tempo. 5. A multipropriedade imobiliária, mesmo não efetivamente
codificada, possui natureza jurídica de direito real, harmonizando-se,
portanto, com os institutos constantes do rol previsto no art. 1.225 do
Código Civil; e o multiproprietário, no caso de penhora do imóvel objeto
de compartilhamento espaço-temporal (time-sharing), tem, nos
embargos de terceiro, o instrumento judicial protetivo de sua fração
ideal do bem objeto de constrição. 6. É insubsistente a penhora sobre a
integralidade do imóvel submetido ao regime de multipropriedade na
hipótese em que a parte embargante é titular de fração ideal por conta
de cessão de direitos em que figurou como cessionária. (Brasil, 2016)

O empresário que quiser se utilizar desse novo instituto em seus


empreendimentos deverá observar algumas regras. Preliminarmente, não há
qualquer impedimento para que a instituição da multipropriedade tenha de início
o mesmo titular ou que, de outro modo, o dono do bem dividido seja o mesmo,
considerando que o proprietário do bem pode institui-la para posterior venda a
terceiros. A divisão do bem, assim, torna-se pressuposto para sua venda
fracionada em unidades autônomas menores (e mais lucrativas). Para a
instituição da multipropriedade, então, basta o registro junto ao Cartório de
Registro de Imóveis competente, estabelecendo-se no instrumento as cláusulas
obrigatórias, nos termos do art. 1.358-G do Código Civil, quais sejam: poderes e
deveres dos multiproprietários, ocupação máxima do imóvel, nomeação e regras
de acesso ao administrador, criação do fundo de reserva, regras para a

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destruição total ou parcial do imóvel e indenizações, além das multas cabíveis
àqueles que descumprirem os seus deveres.
A transferência do direito de multipropriedade não depende de anuência
ou cientificação dos demais multiproprietários, inexistindo direito de preferência,
exceto quando o mesmo for estabelecido na instituição daquela ou em posterior
convenção de condomínio. O que, por padrão, é um facilitador para o
desenvolvimento desse tipo de empreendimento, já que dispensa formalidades,
especialmente no caso de existência de diversos multiproprietários com
residência em localidades variadas.
Por fim, nada impede que as convenções dos condomínios edilícios, os
memoriais de loteamentos e os instrumentos relacionados a sua venda proíbam
a instituição de multipropriedade; contudo, uma vez instituída, a revogação ou
alteração da vedação dependerá de votos da maioria absoluta dos condôminos.

TEMA 4 – A COMPRA E VENDA DE EMPRESAS

No círculo empresarial é bastante comum que empreendedores, titulares


de quotas ou ações de sociedades empresárias busquem satisfazer suas
necessidades pela aquisição ou participação em outras sociedades, na mesma
ou em diversa cadeia de produção ou distribuição, o que normalmente tem por
objetivo facilitar, consolidar ou ampliar a sua atuação no mercado.
Para Fábio Ulhoa Coelho, a compra e venda de empresas possui quatro
fases distintas. A primeira, a fase preliminar, é quando as partes envolvidas
prestam uma à outra informações genéricas e, em geral, públicas sobre o
potencial negócio, como a apresentação de demonstrações contáveis, dos atos
constitutivos, além de projeções genéricas de viabilidade e performance. Não há,
nessa etapa inicial, um pré-contrato ou uma proposta vinculativa, mas, em geral,
apenas um instrumento preliminar no qual consta uma cláusula de
confidencialidade e exclusividade temporária.
Na segunda fase, o comprador tem acesso a informações reservadas,
especialmente para que possa fazer uma auditoria, avaliando as contas, os
títulos de propriedade, os protestos (em Cartório de Protestos) e as ações
judiciais pendentes, os contratos, as obrigações fiscais, trabalhistas,
previdenciárias e outras, possibilitando uma visão geral de como se desenvolve
a atividade empresarial objeto do contrato. Essa etapa de auditoria é também
conhecida como due diligence.
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O resultado da auditoria é que conduzirá ao estabelecimento correto do
preço do negócio e potencialmente à aquisição do mesmo (ou à realização de
uma proposta ou pré-contrato), ou acarretará a desistência do comprador,
encerrando-se as tratativas. Na terceira fase, de negociação, o comprador
inicialmente apresenta uma proposta firme e, assim, vincula-se exatamente aos
termos nela lançados, como diz a art. 427 do Código Civil, podendo o negócio
concretizar-se se aceita a proposta pelo vendedor; ou seja, existindo um
encontro de vontades. Por último, temos a fase de fechamento do negócio,
realizando-se o contrato definitivo, com as modificações na estrutura societária
que, por certo, devem ser encaminhadas à Junta Comercial (Coelho, 2013, p.
100-110).
No contrato de compra e venda de empresas, além das cláusulas gerais
e/ou especiais antes estudadas, é imprescindível que as partes envolvidas
tomem algumas cautelas, como a avaliação de direitos de preferência, podendo
também inserir no mesmo contrato cláusulas especialíssimas, vinculadas ao
próprio risco da atividade empresarial, como a criação de uma escrow account
(uma espécie de conta em garantia) ou um carve-out agreement (um acordo
para manutenção da autonomia empresarial até avaliação da autoridade
competente).
A respeito das cautelas, enquanto nas sociedades por ações e, por
excelência, na sociedade anônima, em regra é livre a transferência das
participações em sociedades, em outros modelos societários existe a
possibilidade de restrições legais ou contratuais impedirem a alienação daquelas
participações. Na lição de José Edwaldo Tavares Borba, a transferência de
quotas ou ações implica a modificação no quadro societário, mas nenhuma
modificação em relação ao patrimonial empresarial; portanto, é em verdade um
negócio jurídico entabulado entre o sócio e um terceiro (ou outro sócio). Nada
obstante, nas sociedades de pessoas, naquelas em que vigora o intuitu
personae ou nas quais as características pessoais dos sócios têm fundamental
importância, é imprescindível a autorização dos sócios para que essa
transferência tenha efeito (Borba, 2010, p. 77-78). Há casos, também, em que
há preferência dos sócios na aquisição de participações societárias, como no
aumento do capital social das sociedades limitadas, consoante art. 1.081,
parágrafo 1º, do Código Civil.

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É importante lembrar, a respeito do tema, que a saída do sócio não o
isenta automaticamente de eventuais obrigações sociais anteriormente
contraídas, como diz, por exemplo, o art. 1.032 do Código Civil, que trata da
responsabilização do ex-sócio pelo prazo de 02 (dois) anos após a averbação da
alteração contratual.
A escrow account, por outro lado, é uma espécie de conta vinculada ou
em garantia, em que as partes em geral depositam recursos em uma instituição
financeira de sua escolha, prestando a última os serviços de controle de valores
e ativos, assim como de gerenciamento e controle do fluxo de pagamento de
determinadas obrigações contratualmente previstas. A instituição é, portanto, um
agente neutro e imparcial, que assegurará a transferência dos recursos e o
pagamento das operações mencionadas no contrato (Bhagat; Klasa; Litov, 2014,
p. 1-48).
É comum a utilização dessa modalidade quando, no procedimento due
diligence, forem encontradas potenciais dívidas em valores ainda incertos, como
decorrentes de ações cíveis ou trabalhistas que dependam de liquidação, por
exemplo. A maioria dos bancos fornece esses serviços de administração de
contas vinculadas ou garantias, cada qual com seus custos e seus benefícios
específicos, devendo as partes envolvidas consultar as regras próprias de cada
instituição.
O carve-out agreement está vinculado à ideia de que, em uma compra e
venda de empresas com efeitos globais, seria possível separar os envolvidos e
restringir os efeitos da aquisição a determinados países até que a autoridade
competente finalize os procedimentos de autorização; ou seja, busca-se evitar,
em última análise, a concretização antecipada de atos de concentração, que é
conhecida como gun-jumping (Martins, 2012, p. 57-79). Essa modalidade não é
bem vista em razão de ser difícil para os envolvidos comprovar a não integração
empresarial apenas em determinados países quando, para o bem da verdade, a
integração empresarial é global. A título de exemplo, podemos citar o julgamento
da Apuração de Ato de Concentração 08700.011836/2015-49 (Brasil, 2015).
Não custa lembrarmos de que, no Brasil, alguns contratos de compra e
venda ou de aquisição de empresas, ou ainda de grupos empresariais, devem
ser previamente submetidos ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica
(CADE), como previsto no art. 88, I e II, da Lei 12.529/2011, sendo imperativo
que os sujeitos envolvidos na aquisição não consumem a operação e

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mantenham preservadas a sua autonomia e, portanto, as condições de
concorrência, sob pena de aplicação de pesadas multas pela autoridade
administrativa, o que está previsto nos parágrafos 3º e 4º do artigo antes
mencionado.
A conclusão antecipada (sem autorização) é o que se denomina gun-
jumping. Caso as partes não possam esperar a decisão da autoridade, que, por
vezes, pode levar vários meses, o art. 155 do Regimento Interno do Conselho
estabelece que elas podem “solicitar no momento da notificação ou após a
impugnação pela Superintendência-Geral, autorização precária e liminar para a
realização do ato de concentração econômica”.
Desse modo, a compra e venda em multiproriedade ou em time-share
acaba sendo uma excelente alternativa para os empresários do setor imobiliário,
com possibilidade de alavancar o potencial lucrativo dos seus negócios na
medida em que fraciona o bem em unidades mais rentáveis.

TEMA 5 – O CONTRATO DE TRESPASSE

O contrato de trespasse tem como objeto a compra e venda de um


estabelecimento empresarial. A avaliação dessa espécie de contrato depende de
um estudo preliminar sobre o conceito de estabelecimento. No art. 1.142 temos
que o estabelecimento é caracterizado pelo complexo de bens organizado para
o exercício da empresa (da atividade empresarial, portanto) por um empresário
ou por uma sociedade empresária, conceitos já declinados anteriormente. É,
assim, um bem do empresário formado por um conjunto, uma universalidade,
nos termos dos arts. 90 e 91 do Código Civil.
Para Fábio Tokars, não se pode confundir o estabelecimento com o
ponto, o local onde se desenvolvem os atividades dos empresários; ao revés, o
estabelecimento é formado por bens corpóreos e incorpóreos, podendo ser
citados, por exemplo: os equipamentos, os móveis, o estoque, o ponto e o
próprio imóvel (quando obviamente de propriedade do empresário), o título de
estabelecimento (que não pode ser confundido com o nome empresarial), a
gama de contratos vinculados à atividade desenvolvida (não estão incluídos,
portanto, os contratos personalíssimos), os direitos vinculados à propriedade
industrial (patentes, modelos de utilidade, desenho industrial e marca), além de
todas as dívidas contabilizadas.

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Integram o estabelecimento, desse modo, todos os bens utilizados pelos
empresários e que podem ser por ele disponibilizados ou transferidos a
terceiros. Por essa lógica, a clientela não faz parte do estabelecimento
empresarial, ainda que a compra e venda e o estabelecimento do preço possam
vincular-se, no plano da negociação, à transferência da carteira de clientes
(Tokars, 2007, p. 28-29).
O contrato de trespasse segue os requisitos gerais de todos os contratos
de compra e venda que estudamos antes, estando perfeito e acabado se as
partes envolvidas consentirem em dois pontos principais: o objeto e o preço. O
fato é que, ainda que perfeito e acabado em relação aos empresários
envolvidos, os seus efeitos perante terceiros dependem da realização de duas
providências, previstas no art. 1.144 do Código Civil: a primeira é que o contrato
seja averbado à margem da inscrição do empresário ou da sociedade
empresário na Junta Comercial competente; a segunda é que o ato seja
publicado na imprensa oficial. O contrato somente tem a aptidão de gerar efeitos
para todos, partes e terceiros, quando finalizadas as referidas obrigações.
No caso de insuficiência de bens, como a compra e venda do único
estabelecimento empresarial para outro empresário, a eficácia da alienação
dependerá do pagamento ou do consentimento dos credores, que deverão ser
notificados para manifestação no prazo de 30 (trinta) dias, como aponta o art.
1.145 do Código Civil. Se concordarem de forma expressa ou tácita, a eficácia
da alienação é plena; se discordarem, deverão ser pagos, já que o objetivo da
regra é proteger os credores dos empresários contra a transferência indevida de
seus bens, especialmente quando verificado que a intenção é esquivar-se do
pagamento de débito.
Por óbvio que se o empresário possuir outros bens, como outros
estabelecimentos, é desnecessária a notificação e/ou concordância dos
credores, já que eventuais pendências estarão garantidas pelos bens
remanescentes. Há casos, ainda, em que existe dúvida sobre o legítimo titular
do crédito, em que os credores não são localizados ou mesmo recusam-se a
receber o valor devido, ou, o que é ainda pior, cobram para fornecer o aceite ou
quitação. Nessas situações, a saída legalmente utilizada deve ser a
consignação, mediante depósito judicial ou em estabelecimento bancário, como
autorizam os arts. 334 e 335 do Código Civil, seguindo o rito do art. 539 e
seguintes do Código de Processo Civil.

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O empresário que vende o seu estabelecimento, mesmo que cumpra com
os requisitos legais e todas as obrigações anteriores lançadas, ainda assim não
fica isento de qualquer responsabilidade. Na transferência do estabelecimento
permanece o alienante solidariamente responsável pelo prazo de um ano,
contabilizado da publicação em relação aos débitos vencidos e do vencimento
quanto aos demais; ou seja, a mudança de titularidade do bem, o
estabelecimento, não exonera automaticamente o empresário dos débitos
contabilizados, permanecendo o mesmo como principal devedor.
É comum, para evitar esse tipo de responsabilidade, que os contratos de
trespasse incluam uma cláusula de não responsabilidade, uma cláusula em que
o vendedor e comprador estabelecem que todas as dívidas, contabilizadas ou
não, não poderão ser cobradas do alienante. Parece claro que a referida
cláusula não pode ser oposta a terceiros que com ela não expressamente
concordem, considerando que não é possível a afetação de seus créditos e
débitos, ou a modificação de contratos anteriormente firmados sem a anuência
dos mesmos. Para o bem da verdade, referidas cláusulas têm validade
exclusivamente para os signatários, o empresário vendedor e o comprador,
servindo essencialmente como uma divisão de responsabilidades internas,
possibilitando àquele que pagou pelo outro o ajuizamento de ação de regresso.
A alienação do estabelecimento acarreta, salvo disposição contratual em
sentido contrário, a transferência direta e imediata, mediante sub-rogação
(alteração do polo da relação contratual), de todos os contratos vinculados ao
desenvolvimento da atividade empresarial, sendo vedado aos terceiros a
rescisão de eventuais contratos com o novo empresário, exceto se presente uma
justa causa e dentro do prazo de 90 (noventa) dias, contados da publicação da
transferência, como consta no art. 1.148 do Código Civil. A justa causa, para
esses casos, é conceito aberto, devendo ser interpretada como uma lesão aos
negócios capaz de inviabilizar a manutenção do contrato. Não se trata, portanto,
de rescisão imotivada pela simples substituição do polo contratual. Ao mesmo
tempo, pode a alienação acarretar a cessão dos créditos vinculados ao
estabelecimento, produzindo efeitos perante terceiros a partir da publicação.
Para o caso, não é necessária a notificação pessoal dos devedores sobre
a cessão, desconsiderando-se a previsão geral do art. 290 do Código Civil, que
estabelece a ausência de eficácia da cessão sem prévia notificação, em
benefício da regra própria atrelada ao contrato de trespasse.

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Por fim, temos que o contrato de trespasse automaticamente implica em
um dever de não concorrência entre o alienante e o adquirente, dever implícito e
que tem prazo mínimo de 05 (cinco) anos. As partes podem, querendo, ampliar
esse prazo ou inserir regras específicas. Uma das regras mais importantes diz
respeito ao que é efetivamente concorrer contra o alienante, qual é o mercado,
aqui considerado o espaço de concorrência direta entre produtos ou serviços, ou
o espaço geográfico. Na antiga lição de George Stigler e Robert Sherwin, que
revisaram conceitos que são empregados pela doutrina nacional, existe uma
divisão entre o mercado do produto, que diz respeito basicamente à fungibilidade
dos produtos ou à capacidade de produção de similares, e o mercado
geográfico, o espaço geográfico apto a afetar de maneira direta a produção ou
circulação de bens ou serviços (Stigler; Sherwin, 1985, p. 555-585). A extensão
da não concorrência, portanto, nada definindo o contrato, deve ser pautada em
quão próximos são os produtos ou serviços, o quão intercambiáveis podem ser,
assim como em qual local são ofertados. Existindo potencial de afetação (de
mudança dentro de um mesmo espaço), há concorrência vedada de forma
implícita, que significa independente de cláusula específica, ou expressa, com
cláusula que possa regrar o tratamento entre as partes.
Desse modo, o trespasse é um contrato firmado entre empresários com
altíssimo risco, especialmente em razão das formalidades, que nem sempre são
conhecidas ou observadas pelas partes, o que pode gerar prejuízo ao contrato,
aos bens adquiridos ou ao desenvolvimento do negócio, ou ainda porque tem o
potencial de gerar a responsabilização solidária do adquirente pelos débitos
contabilizados do vendedor, o que incrementa a importância do estudo do tema.

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REFERÊNCIAS

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