Você está na página 1de 16

GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 24, pp.

109 - 123, 2008

OBSERVAÇÕES SOBRE O CONCEITO DE CIDADE E URBANO

Sandra Lencioni*

RESUMO:
Rigor e método são imprescindíveis na pesquisa e exigem o exercício permanente de se fazer
opções. Quando precisamos conceituar um fato, um fenômeno ou um processo muitas dúvidas
surgem. Esse texto apresenta algumas observações gerais sobre os conceitos que auxiliam na
discussão sobre os conceitos de cidade e urbano. Na medida em que os conceitos se expressam
por meio da linguagem, discute primeiramente, as palavras cidade e urbano na língua portuguesa.
Em seguida, indaga sobre a questão de desde quando podemos falar em urbano no Brasil desta-
cando que essa resposta se situa na interpretação que se assume acerca do desenvolvimento
brasileiro. Como conclusão afirma que os conceitos e teorias são imanentes uns aos outros.
PALAVRAS-CHAVE:
Conceito; Cidade; Urbano; Palavras.
ABSTRACT:
Rigor and method are indispensable in the research and require the permanent exercise of doing
options. When we needed to consider a fact, a phenomenon or a process many questions arise.
This paper presents some general observations on the concepts that give support to the discussion
of the city and urban concepts. Insofar as the concepts are expressed through the language, it
discusses firstly the words city and urban in the portuguese language. Afterwards, it investigates
on the subject of from when we can speak in urban in Brazil detaching that that answer locates in
the interpretation that is assumed concerning the Brazilian development. As conclusion affirms that
the concepts and theories are immanent each other.
KEY WORDS:
Concept; City; Urban; Words.

Introdução falsos problemas e superar equívocos requer


Pesquisar significa rigor nas escolhas e coragem, mas exige também, certa dose de
subsistir imerso com diligência minuciosa no prudência.
exercício de opções. Esse viver traz angústias, De certa maneira, a prática de pesquisa
pois o risco de opções equivocadas é uma se confunde com o exercício de opções. Significa,
realidade que não deixa traços indeléveis e também, a necessidade de se separar partes
exige correção de caminhos e rotas. Descrer das da totalidade para se proceder à análise e,
certezas para ir ao encontro de novas certezas posteriormente, à elaboração da reconstituição
fazem parte do percurso do conhecimento. da sí nte se constr uíd a pel o i nte lecto. Esse
Nesse percurso, enfrentar dificuldades, negar exercício pode conduzir a dilemas; ou seja, pode

*Professora Doutora do Departamento de Geografia da FFLCH/USP. E-mail: slencion@usp.br


110 - GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 24, 2008 LENCIONI, S.

vir acompanhado de insatisfação em relação ao 1. Sete observações sobre conceitos


que se está selecionando para a análise e de
As ob se r vações a se g ui r são
insegurança no momento de tecer relações
apresentadas de forma simples. O número sete
entre as partes decompostas na análise. Essa
é uma e scolha e be m p od er i a se r um a
insatisfação, longe de compromete r o
quantidade maior, bem como cada observação
avanço do conhecimento, é motivadora do
poderia se objeto de ampla discussão. Mas não
se u d e senv olv i m e nt o, poi s é e l a q ue nos
é o caso; o senti do dessas observações é
coloca desafios, já que as respostas que se
ape nas de al er tar p ar a o que j ul gamos
te m não pare cem sat isfatórias. Assim , os
fundamental na construção de conceitos.
di le mas são para o conhe ci me nt o como o
ritmo de um coração batendo é para a vida. Primeira observação: a construção de
Sem esse ritmo o coração perde o sopro da conceitos é um exercício do pensamento sobre o
vida, tanto quanto o conhecimento, sem os real e esse real existe independentemente de
dilemas, perde a capacidade de cr iar pensarmos sobre ele ou de termos conceitos
cam inhos que impulsiona ao seu acerca dos objetos do real.1
de se nv ol vi me nt o.
Essa observação diz claramente que não
Opções e dile mas, supe ração de há um a re l ação d e d ep endê nci a entr e a
obstáculos, desvendament o do fal so, existência de um objeto e a existência de um
neg ação d e e quí v ocos, p ara que ocor ram conceito a cerca desse objeto. E que os objetos
novos encontros e certezas são imanentes existem independentemente de termos um
à const rução do conhe cimento. São conceito sobre ele. Mais, precisamente, os
agudamente percebidos e vividos quando se fenômenos, os fatos, as coisas, os lugares os
trata de conceituar um objeto, um fato, um objetos, os processos, as leis, enfim, tudo que
processo ou um fenômeno. é objeto do conhecimento se coloca na esfera
do pensamento sobre o real e a existência do real
A d iscussão sobr e o conceito de
independe de pensarmos ou não sobre ele.
ci dad e e ur bano situa-se ne sse anfit eat ro
onde se digladiam muitas dúvidas e poucas Buscando tornar claro que os objetos
certezas. Afinal, o que é a cidade, o que é o existem independentemente de termos um
urbano? E, o que vem a ser a cidade e o conceito sobre ele, examinemos o conceito de
urbano no Brasil? Pode a cidade ser igual a número 4. Esse conceito nem sempre existiu,
urb ano? Se não, o que di fere ncia os mas isso não quer dizer que não se contasse e
conceitos de cidade e urbano? que as coisas não eram enumeradas. Vejamos
o se gui nte e xem plo. Em tem pos r emotos,
Ant es de avançar com essas
quando se perguntava a um homem quantos
consi d er açõe s é i m p or t ant e de i x ar clar o
cavalos ele possuía, ele respondia ter um cavalo
para que serve um conceito. Todo conceito
marron, um outro marron com manchas brancas
serve para se compreender a essência dos
no dorso, outro preto e outro malhado de cinza
objetos, dos fenômenos, das leis e , nesse
e preto. Ele contava os cavalos a seu jeito, à
senti d o, se const i tui num i nst rume nto d e
sua maneira.
conhecimento e pesquisa. Na primeira parte
desse texto fazemos algumas observ ações O f at o d e que nos p ri mór di os d a
acerca do uso d os conceit os. Na seg unda, civilização os homens não tivessem o conceito
enfocamos os termos cidade e urbano, como de número e por isso não podiam contar em
palavras e, na terceira, discutimos o conceito termos numéricos, não quer dizer que não
de cidade e urbano tendo como referência a tivessem a prática de contar. A construção do
realidade brasileira. conceito de número percorreu um longo caminho
na hi st ór ia d a hum anid ad e , enquanto um
Observações sobre os conceitos de cidade e urbano, pp. 109 - 123 111

exercício do pensamento sobre o real, o qual formulação e, nesse sentido, reflete certo grau
existe independentemente de pesarmos sobre de generalização. Assim, o conceito é sempre
ele. uma simplificação do real e ao mesmo tempo
uma generalização deste.
Segunda observação: o conceito é uma
forma de reflexo dos objetos. Para se construir essa generalização é
i mp re scind ív el p esq ui sar uma g rand e
O conceito não se confunde com o real, quantidade de objetos, compará-los e, ainda,
ele é um reflexo do real, uma representação do examinar os aspectos particulares e singulares
r eal. C om o el e é r ef le xo do r eal e um a que esses objetos apresentam. Esse é o ponto
representação desse, ele existe a posteriori dos de partida de qualquer conceituação. Dizendo
objetos que representa. Já os objetos do mundo de uma outra forma, verificar semelhanças,
real existem independentemente dos conceitos. d if er enças e p eculi ar id ade s do ob je to na
Mantendo o mesmo exemplo, o conceito formulação do conceito. Por exemplo, o conceito
de núm ero 4 é um a abstração e refl ete a de rua, ao qual já nos referimos, não nos remete
quantid ade d e cav alos que aquel e homem a nenhuma rua em particular, a indicar que um
possuía. conceito guarda certa independência em relação
àquilo que ele representa, dado o grau de
Terceira observação: os conceitos são ao generalização que ele requer.
mesmo tempo objetivos e subjetivos.
Isso não significa dizer que o particular
Os conceitos são objetivos pelo seu e o singul ar não são consid er ados. Pel o
conteúdo, pois estão relacionados ao real, contr ár io, a e ssênci a do ob je to se faz
r ef er id os ao r eal . Por i sso, q uanto m ai s representar no conceito e portanto, também se
conhecemos o real temos mais condições de faz presente no particular e no singular, com
formular um conceito. toda a riqueza que o particular e o singular
Mas os conceitos são, além de objetivos, possuem.
sub je ti vos p or que ex ist em no nosso Quinta observação: o conceito existe em
pensamento, na nossa consciência. O fato de movimento.
se situarem na consciência é que faz com que
os conceitos possuam uma realidade subjetiva. O conceito se modifica, se altera e se
r enov a. Para i nd icar que o conce it o te m
Quarta observação: não há identidade entre movimento e evolui, alguns autores usam mais
o conceito e o real ao qual ele se refere, porque o t er mo ‘ noção’ do q ue o pr óp ri o te rm o
nenhum conceito é capaz de conter toda a riqueza ‘conceito’, a indicar sua fluidez. O conceito tem
do real. movimento e por isso, um conceito construído
Quando conceituamos, por exemplo, rua, numa determinada época pode se alterar. Na
pensamos a rua não com todos os predicados medida em que o conceito é um reflexo do real
que ela possa ter: sinuosa, pavimentada, larga e esse real está em permanente mudança, é
ou estreita. Pensamos de maneira muito menos lógico que ele também se modifique.
rica, pensamos de um modo empobrecido perto Alg uns conce it os p od em , i nclusi ve ,
de qualquer rua que possamos descrever. derivar de outros conceitos. Esse é o caso do
Qualquer conceito reflete aquilo que é conceito atual de metrópole, que tem relação
essencial, os aspectos essenciais, as relações com o conceito de metrópole da antiguidade
essenciais, enfim, a essência do objeto, do clássica, mas que é diferente desse. Qualquer
f enôm eno ou do p roce sso. Port anto, a conceito tem, portanto, sua história. Conceitos
construção de um conceito exige um exercício novos são também formulados. Um exemplo é
d e capt ur a do que é esse nci al p ar a sua o conceito de informática. Esse conceito está
112 - GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 24, 2008 LENCIONI, S.

vinculado ao ramo do conhecimento dedicado À essa diferença entre as chamadas


ao tratamento da informação mediante o uso ciências duras e as ciências humanas se junta
de computadores e demais dispositivos de a observação de que os conceitos relativos às
processamento de dados e teve sua origem nos ciê ncias humanas t em v ar i açõe s e essas
anos 60 do século XX, quando se iniciou o v ar iações e stão re lacionadas às di st intas
d esenvolv i me nt o de comp ut adore s. O s referências teóricas nas quais os conceitos estão
conce it os são, p or t anto, conce bi dos e relacionados. O conceito de cidade e urbano,
renovados. obj et o de sse t ex to, vari a seg undo as
Sexta observação: o conceito se encontra re fer ências t eóricas; ou seja, apr ese nt am
sem pre, em nexo, em rel ação com out ros d ef inições d if er e nt es se gund o di f er ente s
conceitos. teorias. Por isso, se exige acurada clareza nos
conceitos utilizados nas ciências humanas,
Nenhum conceito é independente de justificativa dos sentidos empregados e das
outros conceitos. Seja ele oriundo de outro escolhas feitas, bem como coerência entre o
conceito ou um inteiramente novo, guarda conceito empregado e o referencial teórico de
sempre estreita relação com outros conceitos. análise Essa coerência é fundamental, pois não
O conceito de número 4, por exemplo, guarda se pode me sclar conce it os de r ef e rê ncias
relação com todos os outros números, tanto teórico-metodológicas distintas porque se torna
quanto o conceito de rua guarda relação com o praticamente impossível desvendar o real.
de estrada, praça, caminho, cidade, etc. Impossível porque o conceito é um instrumento
Sétima observação: o conceito não existe e como qualquer instrumento tem que ser
sem uma definição. adequado à função que deve desempenhar.

Para que exista um conceito é necessário Exemplificando, o conceito de totalidade,


defini-lo e, para isso, é necessário palavras e a como uma totalidade fechada e sistêmica, é
form a de l inguag em . No e nt anto, at ri buir próprio da lógica formal e do positivismo, sendo
identidade entre a palavra e o conceito se avesso ao conceito de totalidade na dialética.
constitui um equívoco. Uma grave incorreção, Pensar ou t er a inte nção de uti li zar o
pois se uma palavra pode ter vários significados, materialismo dialético na pesquisa e ao mesmo
um conceito, em tese, não. O conceito de t em po e mp re gar o conce it o de t ot al id ad e
atmosfera, por exemplo, diz respeito à camada fechada e centrar esforços na análise de causas
de gases que envolve um planeta e que é retida e efeitos se constitui num erro que pode resultar
pela atração gravitacional. Esse é a definição em graves conseqüências, já que fragiliza a
de atmosfera, tendo um único significado. arg um entação p el a inconsi st ênci a que
apresenta. Num equívoco porque a totalidade
Ta n t o n o e x e m p l o d a d o s o b r e o d ialé ti ca busca supe r ar os im p asse s das
conce i t o d e at m osf e r a, com o no caso d o análises que enfocam as causas e os efeitos
conceito de célula, dentre tantos exemplos (já que causas podem ser efeitos e efeitos,
q ue p od er í amos d ar, e sse s concei t os não causas) incorporando a lei de ação recíproca
variam e nem mudam de significados. Nas que não é considerada na lógica formal.
chamadas ci ênci as duras a força dos
conceit os se sit ua no âmbito da C om o di ssem os no i ní ci o de ssa
exp erim entação e dem onst ração. Mas, observação, os conceitos só existem a partir de
d i z e n d o r e sp e i t o às c i ê n ci as h u m a na s a uma definição e, portanto, não dispensam a
sustentação d e uma i déia ou da def inição linguagem. Essa observação justifica o que
de um conceito não provém, basicamente, vamos discutir a seguir. Antes de tratarmos
de expe riências e de monstrações, mas de especificamente do conceito de cidade e urbano
ar gume ntações convincente s. vamos examinar os sentidos dessas palavras
na lí ng ua p or t ug ue sa, com o um p onto d e
Observações sobre os conceitos de cidade e urbano, pp. 109 - 123 113

part ida, pois as palavras, como vimos, se distintas de uma mesma cidade. Na frase: Eu
constituem na base sensorial dos conceitos. vou à cidade, o sentido é de núcleo original ou
principal de uma cidade onde se concentram as
mais importantes atividades administrativas,
2. As Palavras: cidade e urbano comerciais e financeiras. Todos esses exemplos
most ram out ros sentid os d eri vados q ue a
Por meio da fala os homens expressam palavra cidade pode ter.
suas idéias e os diferentes sentidos da palavra
cidade e urbano na língua portuguesa podem Quanto à palavra urbano, essa palavra
nos auxiliar na compreensão do conceito de é um adjetivo e serve, assim, para caracterizar
cid ad e e urb ano no Br asil . D e ante mão os se re s ou os obj et os nome ad os p el o
gostaríamos de lembrar que nossa intenção é substantivo; ou seja, serve para caracterizar o
discutir os conceitos de cidade e urbano tendo que foi nomeado. (Cunha, 1992: p.114 e 151).
com o re fe r ênci a a re ali dade b r asil ei ra. Quando d isse mos t ransport e ur bano e
Observamos, ainda, que as considerações feitas policiamento urbano, a palavra urbano qualifica
a seguir são auxiliares aos objetivos desse texto o tipo de transporte e o tipo de policiamento.
e não se situam no âmbito da lingüística, que Q uand o, p or ém , o adj et iv o que
poderia ser esperado. Acreditamos que mesmo caracteriza o substantivo se torna o termo
um a ab ord ag em si mp le s e d espr ete nsiosa principal, ele deixa de ser um adjetivo e passa
dessas palavras pode nos auxiliar na discussão a ser uma substantivação do adjetivo. É nessa
sobre os conceitos de cidade e urbano tendo condição, de substantivação do adjetivo, que a
como referência o Brasil. palavra urbano será aqui tratada. O exemplo a
Gramaticalmente a palavra cidade é um seguir pode ajudar a esclarecer.
substantivo, ou seja, uma palavra que serve Comparemos as seguintes frases: O
para nomear um objeto determinado e possui transporte urbano é caótico com a frase: O urbano
várias acepções na língua portuguesa. Pode é caótico. Na primeira frase, a palavra urbano
sig ni fi car “ ag lome ração hum ana d e ce rt a qualifica o transporte, sendo, portanto, um
importância, localizada numa área geográfica adjetivo. Porém, na segunda frase a palavra
cir cunscr i ta e q ue t e m nume rosas casas, urbano não qualifica nada, não sendo, assim,
próximas entre si, destinadas à moradia e/ou a um adjetivo. Ao contrário, a palavra urbano é
atividades culturais, mercantis, industriais, que recebe qualificação, a de caótico. Na frase
financeiras e a outras não relacionadas com a O urbano é caótico a palavra urbano se constitui
exploração direta do solo”. 2 como uma substantivação do adjetivo e é nessa
Além desse sentido o dicionário Houaiss condição que será considerada na discussão. 4
registra, também, derivações por metonímia da Em re lação à p al av ra ci dade as
palavra cidade, ou seja, decorrentes de outros metonímias não serão levadas em conta, tanto
sentidos que transcendem ao sentido semântico q uant o na p al avr a ur bano a cond ição d e
normal da palavra cidade. 3 Vejamos alguns adjetivo não foi considerado. O que importa para
exemplos de metonímia. Na frase: A cidade a discussão do conceito de cidade e urbano é o
apresenta-se segregada, o sentido é de que a sentido semântico normal da palavra cidade e
população da cidade se encontra segregada. a condição de substantivação do adjetivo na
Já na frase: A cidade reformulou seu IPTU, a palavra urbano.
palavra cidade assume o sentido de governo e
de ente da administração pública. Na frase: A Uma segunda consideração diz respeito
cidade baixa de Salvador passou por grandes à etimologia das palavras cidade e urbano na
transformações, enquanto a cidade alta se mantém língua portuguesa, que ao indicar o tempo de
a mesma, o sentido diz respeito às partes seu p ri me i ro uso, sug er e que e la e st á
114 - GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 24, 2008 LENCIONI, S.

relacionada a um fato ou fenômeno que se em muito, a palavra urbano, a indicar que a idéia
apresenta, nos auxiliando a situar no tempo o de cidade precede, historicamente, à idéia de
que a palavra busca representar. Por exemplo, urbano. Esse é o ponto a reter.
o uso da palavra chester para indicar uma
Tod as e ssas conside rações sobre as
espécie de galináceo, só surgiu em português
palavras cidade e urbano apenas situam o
quando a engenharia genética criou esse tipo
e scop o de m ui t as d iscussões p ossí ve is.
de ave . A et imologi a nos per mi te , assi m,
Registramos o sentido dessas palavras porque,
relacionar, historicamente, a palavra ao que ela
com o li ng uage m , el as consti tuem a b ase
se refere.
sensorial dos conceitos.
O dicionário da língua portuguesa e
latina, de 1712 registra vários sentidos para a
palavra cidade. No entanto, nenhum para a 3. O conceito cidade e urbano tendo
palavra urbano, o que significa dizer que a idéia como referência a realidade brasileira
d e ur bano não ex isti a at é e nt ão. Ne sse
A discussão do conceito de cidade nos
dicionário as acepções da palavra cidade são
conduz a pensar na discussão de um objeto que
as se guint es: a) d e m ul ti dão d e casas
evoca várias idéias. Pensamos, por exemplo, na
distribuídas em ruas e praças, cercadas de
cidade grega, na cidade comercial da Idade
muros e habitadas por homens que vivem em
Média que fazia parte da liga Hanseática, na
sociedade e subordinação; b) de cabeça de um
cidade colonial brasileira e porque não, na São
reino ou de uma província. Esse dicionário do
Paulo de hoje. Já ao refletirmos sobre o conceito
século XVI apresenta também, as acepções da
de urbano, esse é visto mais como um fenômeno
palavra cidade acrescidas de adjetivos: cidade
d o que como ob je to. Isso é comum aos
fronteira, cidade mercantil... Todos os verbetes
adjetivos que assumem o sentido gramatical de
são em português e em latim e é importante
substantivos, precedidos, em geral, de artigo,
registrar que quando apresenta o sentido de
como é o caso de: o rural, o agrário, o informal,
“conce rnente à cid ad e”, o corr espond ente
o social, o espacial ...
apresentado em latim é Urbanus, a, um.
Tanto a cidade, como objeto, como o
Segundo o dicionário Etimológico Nova
urbano, como fenômeno, se situam no âmbito
Fronteira da Língua Portuguesa, de autoria de
das reflexões sobre o espaço e a sociedade,
Cunha (1982), a data provável do vocábulo
p oi s são p rodutos d essa r el ação; m ai s
‘cidade’ data do século XIII, sendo originária da
precisamente, são produzidos por relações
palavra latina civitas-âtis. Embora esse dicionário
sociais determinadas historicamente. É nessa
não registre a palavra urbano, apresenta o
dete rminação que a d iscussão a segui r se
vocábulo urbe, que tem o sentido de cidade e
coloca, tendo como pano de fundo, mas não
se origina da palavra latina ubs, urbis, indicando
como central, a produção da cidade e do urbano
o século XX como datação para o uso da palavra
no Brasil.
urbe na língua portuguesa. Curioso é que a
palavra suburbano e a palavra urbanidade são
usadas na língua portuguesa desde o século
XVI e que a palavra urbanista tenha antecedido 3.1 O conceito de cidade
à p al av ra ur bani sm o, já q ue a pr im ei ra, Inicialmente queremos chamar atenção
urbanista, é de 1874, enquanto que urbanismo para o seguinte afirmação: a idéia de cidade é
é do século XX. (Cunha, 1982, p. 182 e 804) clara para todos, diferentemente da idéia de
Esse pe queno ar razoado acer ca d as urbano. No entanto, o conceito de cidade é
palavras cidade e urbano na língua portuguesa obscuro. Como um conceito pode açambarcar
permite notar que a palavra cidade antecede, desde cidades pequenas, de 2.000 habitantes,
até cidades que abrigam milhões e milhões de
Observações sobre os conceitos de cidade e urbano, pp. 109 - 123 115

habitantes? Como pode se referir a um objeto A cidade, não importando sua dimensão
que se apr esenta com caracterí sticas bem ou característica, é um produto social que se
distintas e, que por isso, exige, frequentemente, insere no âmbito da “relação do homem com o
o complemento de um adjetivo, a exemplo de: meio” – referente mais clássico da geografia.
cid ad e de f r onte ir a, ci dade g re g a, cid ad e I sso não si gni fi ca d izer, t od av ia, que
colonial, cidade medieval, cidade portuária, estabelecida essa relação tenhamos cidades.
cidade turística, cidade mineradora, cidade Não importando as variações entre cidades,
industrial? Como pode se colocar como conceito, quer espaciais ou temporais há uma i déia
o que implica em ser reflexo de um objeto - comum a todas elas, que é a de aglomeração.
segunda observação - quando esse objeto se Não é à toa, então, que a idéia de aglomeração
apresenta múltiplo e variável? se faz presente na definição da palavra cidade.
Per ei ra (2 00 1) , a p ar ti r d e um a Mas, aglomeração do que? De homens e
perspectiva sociológica, pergunta por que a de habitações, diriam uns. Estar-se-ia, então,
palavra cidade teria atravessado séculos sem trazendo para a reflexão as tendas armadas
alterações, muito embora se refira a um objeto nos desertos, as feiras de mercados de escravos,
em perpétua mudança. A resposta inspira-se os assentamentos dos sem terra ao longo das
em Norberto Elias, reside no fato de que, muitas estradas.... e tanto as outras formas errantes
ve ze s, p or não conse guir mos ex pr essar o de agrupamentos? Não. É Ratzel que chama a
m ov im ento e as m ud anças constant es, atenção para a questão da sedentarização,
mantemos a palavra e acrescentamos uma outra indicando que à cidade corresponde, sim, a idéia
para precisar o que estamos tratando. Esse é o de aglomeração, mas a de aglomeração durável.
f at o: p or não conseg uir mos ex p re ssar as (Derruaux, 1964, p. 561).
transformações constantes de algo tão mutável,
temos mantido a palavra cidade e acrescentado O conteúdo do conceito de cidade já
a ela adjetivos. É isso que permite compreender ind ica, port anto, doi s ter mos p ara sua
a presença de tantas adjetivações para falar def inição: o de aglome ração e o de
de suas caracte rísticas, funções, par tes e sed entarism o. Mas el es se apr esentam
t ransform ações: ci dad e saté li t e, cid ad e ainda insuficientes, pois um simples exemplo
horizontal, cidade verticalizada, cidade mundial, mostra a necessidade de se buscar nov os
cidade moderna, cidade administrativa, cidade elementos para a apreensão da essência do
interiorana, cidade informal e tantos mais conteúdo do objeto a se conceituar, pois se
adjetivos que possamos agregar. assim não o fosse estaríamos considerando
m ui t as al de i as d os í ndi os d o Br asil com o
As angúst ias na d i scussão sobr e o ci dade s.
conceito de cidade diminuem quando lembramos
que embora o conceito seja um reflexo do real, Pereira (2001) ao discutir a palavra
ele é infinitamente mais pobre que o real - cidade lembra que essa palavra definida no
primeira observação - e que não há identidade Dicionário Auré lio r elaciona a i déia de
entre o conceito e o real -quarta observação – pop ulação que hab ita a cid ade à de
Convém recordar que o conceito deve refletir popul ação não agr ícol a. (Pe rei ra, 20 01 p.
aquilo que é essencial, os aspectos essenciais, 2 6 1 - 2 8 4 ) . M as, a d v e r t e q u e a i d é i a d e
as relações essenciais, enfim, a essência do cidade relacionada à idéia de população não
obj et o. N esse se nt id o, r e pe ti nd o o que agrícola é inconsistente, pois existem muitas
dissemos no início desse texto, a construção de cidades com uma porcentagem significativa
um conceito exige sempre um exercício de de população de dicad a às ati vidades
captura do que é essencial ao objeto que é agrícolas, como é o caso de muitas cidades
motivo da reflexão. brasileiras onde moram os trabalhadores do
campo, os chamados bóias-frias.
116 - GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 24, 2008 LENCIONI, S.

Nos idos dos anos 60 do século XX, Max cidade a população de 2.000 habitantes, esse
Derruaux considerava que embora possa haver núm er o pode ri a de f inir cid ad es em
casos de cidades com população voltada para d et er mi nados l ug ar es e num mome nt o
as atividades agrícolas, a exemplo de várias determinado, mas em outro lugar e tempo, não.
aglomerações mediterrâneas, como Mesina, Ou seja, poderia expressar aglomerações em
Palermo ou Murcia, essas apresentam aspectos relação à população total de um país ou nação,
próprios das cidades, como mercado (local de m as p od er ia não ex pr essar a i dé ia d e
trocas) e administração pública. E, para reforçar agl om er ad o em out r os l ug ar es. Um a
sua argumentação, acrescenta que uma fábrica aglomeração de 2.000 habitantes na Holanda
com alg um as casas ao seu re dor, ond e a não tem o mesmo sentido que na Índia ou na
atividade é distante de ser agrícola, nem por C hi na, paí se s com m ai s de 1 bi lhão d e
isso constitui uma cidade. habitantes.
Por tant o, o fato da agl ome ração Na conceituação de cidade, excluindo-
sedentária conter população voltada para as se, por tanto, a idéi a que neg a a
atividades do campo não compromete o sentido incorporação da população voltada às lides
d e ci dade q ue pode e st ar pr esente no d o c am p o , b e m c o m o a d e t a m a nh o d a
aglomerado. E, indica, mais uma vez, que uma pop ulação, m antém -se as id éias de
definição da palavra originária de um dicionário agl omer ado, sed entar ismo, me rcad o e
não se confunde com o seu conceito científico, adm inist ração púb lica, que pare cem
pois é usual nos dicionários a definição de cidade constit uir r efer ências im portantes na
e st ar r el aci onad a estr it ame nt e a um a conce i tuação d e ci d ad e . A e ssas id é i as é
população não agrícola. fundamental recuperar a observação Pereira
(2001) quando diz cl aramente que muitas
Uma segunda observação de Pereira
das dificuldades na compreensão do que vem
(2001) diz respeito ao tamanho da aglomeração
a ser cidade decorre do f ato d ela ser
q ue “ pare ce ocor re r com o se dução e
e nf ocada de um a p e rspe cti v a a-hi st ór i ca.
obscure ci me nt o m ai or q uando se fala d e
Menciona que a cidade depende de formas
grandes concentrações demográficas, porque
políticas e sociais e que essas são produto
nessa maneira de falar se desconsidera que o
de determinações sociais. São essas forças
tamanho da população não desvenda fenômeno
que a caract erizam e que lhe dão
nenhum e muito menos o “gigantismo” de sua
ind ivid ualid ade. Esse aut or compar a a
complexidade social”. (Pereira: 2001, p. 269).
p al av r a ci d ad e com a p al av r a p oço p ar a
Outros autores, dentre os quais Pierre George,
ilustrar que enquanto a cidade apresenta-
Max D err uaux e M anuel Castel ls, t amb ém
se agudamente variada, segundo lugares e
desconsideram o tamanho da população na
o m omento histór ico, o poço – grande
d ef inição d e ci dade . C aste ll s r ep or ta-se
bur aco, geralmente ci rcul ar e murado,
explicitamente à Pierre George dizendo que esse
cavado na terra a fim de atingir um lençol
geógrafo mostrou as contradições insuperáveis
de água subterrâneo5 - não se altera nem
d e se d ef i ni r o ur b ano pe lo em pi ri sm o
a o l o ng o d a h i s t ó r i a e n e m s e g u n d o o s
estatístico. (Castells, 2000, p. 40).
lugare s.
Q ualq ue r cri té ri o d e tam anho d a
Isso posto, a discussão sobre o conceito
p op ul ação na conce it uação d e cid ad e nos
d e ci dade , p ar a fugi r d o pe ri g o de m ai s
p ar ece pouco f rutí fe r o. A r el ação entr e o
obscurecer do que esclarecer, requer um situar
tamanho do aglomerado não se desvincula do
na história. No caso desse trabalho, requer a
tempo histórico e dos lugares e não tem sentido
incorporação da perspectiva histórica no exame
em si mesmo como definidor de cidade. Se
do conceito de cidade referido a uma sociedade
definíssemos como condição para se conceituar
e a um território específico: o Brasil.
Observações sobre os conceitos de cidade e urbano, pp. 109 - 123 117

Recuperando elementos da essência do de viajantes, de núcleos de pescadores, de


conte úd o do concei to: agl om er ação, estabelecimentos industriais, de seringais, de
sedentarismo, mercado e administração pública, vendas de beira de estradas, de ancoradouros
vamos, a seguir, enfatizar a referência duas ás margens dos rios, de pontos de passagens
idéias: a de aglomeração e a de sedentarismo. em cursos d’ água, de estações ferroviárias e
de postos de parada rodoviária, dentre tantas
Tanto a i dé ia d e agl om eração e d e
origens7 (AZEVEDO, 1957, p. 36).
sed entari smo acomp anha duas palavr as:
povoado e povoação que têm o mesmo sentido As cond i ções de agl ome ração
no Brasil . 6 São sinônimos, mas são mui to sedentária, acrescida da função de troca e da
diferentes segundo as regiões do país, embora de administração pública é que fizeram com que
guardem alguns traços comuns, apresentados alguns pov oados se desenvolv essem como
a seguir. Povoado e povoação se caracterizam, cidades. Alguns, porém, já se instituem como
segundo do Dicionário Houaiss: cid ad es, não p or que f osse m m ai or es ou
difer entes dos povoados que haviam , mas
a) pe la p r esença d e hab it açõe s
porque foram concebidos como sede do poder
modestas - quer construídas de tábuas, barrote,
metropolitano, sede do poder lusitano. Esse é
tijolo ou, até mesmo, palhoças;
o caso de São Vicente, fundado como Vila,
b) por uma população reduzida; p or tant o, como r ep r esentação d o pode r
lusitano, em 1532. Esse aspecto, o de local de
c) pelo predomínio de uma só rua ou
poder, é fundamental na conceituação de cidade
caminho, podendo apresentar, no entanto, duas
no Br asil . Sozinho, de fi ne um a ci dade ,
ou mais ruas e até um esboço de largo, com
i nd ep ende nt e dos out ros el em entos
capelinha ou igrejinha;
mencionados.
d) pela presença de poucas casas de
Ao falarmos em cidade no Brasil estamos
com ér ci o: v end as, ar mari nhos e ar ti gos
nos referindo a um aglomerado sedentário que
domésticos;
se caracteriza pela presença de mercado (troca)
e) por vida modorrenta e tranqüila; e q ue p ossui uma adm i ni st ração p úb li ca.
L em br ando as set e ob se rv ações sob re os
f ) por uma vida vibrante nos dias de conceitos, vemos, claramente, que o conceito
festas, feiras, eleições.... d e ci dade no Brasi l é p oste ri or à pr óp ri a
Dessas características cabe comentar a constituição da cidade (primeira observação),
menção ao aspecto de que os povoados e as que esse conceito busca refletir o real (segunda
povoações tem: o de vida morrenta e tranqüila. observação) sendo ao mesmo tempo objetivo
Essas car act er ísti cas, no e nt ant o, não se e subjetivo; ou seja, relativo a um conteúdo do
apl icam aos p ov oad os d as zonas d e r eal, m as tamb ém subj et iv o, porq ue se
garimpagem. Ao contrário, nessas zonas os relaciona ao pensamento sobre ele (terceira
povoados são locais bastante turbulentos. observação). Ainda, o conceito de cidade é
infinitamente mais pobre que o real ao qual ele
Pode mos af irmar, seguramente, que se refere (quarta observação) e existe em
muitos povoados no Brasil deram origem às movimento (quinta observação), ou seja, se
cidades. Mas cabe refletir um pouco sobre a altera segundo referências e segundo o tempo
questão: da onde surgiram os povoados? Muitos histórico. E, podemos perceber também que o
deles se originaram de locais fortificados e conce it o d e ci dad e se r e laci ona a out ros
postos militares, de aldeias e aldeamentos conceitos (sexta observação) e só existe se for
i nd íg enas, d e ar raiai s, d e corr ute las, d e definido enquanto tal (sétima observação)
engenhos e usinas, de fazendas e bairros rurais,
de patrimônios e núcleos coloniais, de pousos
118 - GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 24, 2008 LENCIONI, S.

3.2. O conceito de urbano d iscussão, d esde os anos 19 7 0. Emb or a


bastante distintos, ambos olham o mundo a
Hoje vivemos num mundo novo onde as partir da perspectiva na qual se inserem, a da
redes e os fluxos tecem conexões entre os cultura ocidental e da sociedade européia.
lugares e alteram a idéia de próximo e distante.
Esse é um dos aspectos do mundo atual que A perspectiva de Léfèbvre e Castells
indica o desenvolvimento de uma sociedade relaciona diretamente o conceito de urbano à
pós-industrial, ou seja, de uma sociedade que soci ed ad e capi tali st a indust ri al . E é esse
“nasce da industrialização e a sucede”, como paradigma que vamos tomar, o da sociedade
diz Léfèbvre e que ele denomina de sociedade capitalista industrial para pensar o urbano no
urbana e, de maneira sintética, de urbano. Brasil. Portanto, o ponto de vista adotado
(Léfèbvre, 1999, p. 16 e 28). Foi no idos de 1970 sit ua-se nessas re fe r ênci as: L éf èb vr e e
que Léfèbvre fez essa consideração, indicando Castells. Poderia, no entanto, não o ser. Trata-
que o urbano de então não se constituía numa se de uma opção.
realidade acabada, mas num processo de vir a Par a al g uns autor es a soci ed ad e
ser que se apresentava, ainda, naqueles anos, cap ital ista industrial no Brasil em erge no
de forma virtual, devendo, no entanto, se momento em que a reprodução ampliada do
apresentar como real no futuro. (Léfèbvre, capital passa a ser comandada pela atividade
1999,p. 15). industrial. Segundo Tavares (1972) e Melo
Lé fè bv re sit ua, assi m, o urb ano no ( 19 84 ), de nt re outr os, só a part i r de sse
âmbito da industrialização, mas não considera m om ento é que pode mos f al ar em
q ue o urb ano sej a um subp roduto d a industrialização, muito embora a atividade
industrialização. As justificativas relativas a i nd ustr ial já ex isti sse. Só a p ar ti r de sse
necessidade de superar esse reducionismo - momento, quando a reprodução ampliada do
que coloca o urbano como derivação de um capital passa a ser comandada pela atividade
processo deixando p ouca margem para se industrial, é que há uma emancipação do capital
perceber o seu próprio conteúdo - são objeto industrial da atividade primário-exportadora,
de atenção preciosa de Martins (1999) que precisamente, da cafeicultura. A partir de então
sal ie nt a q ue nessa re dução se re str inge , o capital industrial passa a gerar seu próprio
também, as dimensões do urbano, tornando crescimento industrial. Dessa forma, para esses
impossível compreender o que ele é em si autores, só em 1930 é que estão constituídas
mesmo e, assim, tornando extremamente difícil p le name nt e as base s de um a soci ed ad e
a compreensão de que o urbano é um lugar de industrial.
enfrentamentos e confrontações, uma unidade Essa abordagem nos conduz a situar o
de contradições. (Martins, 1999, p. 10). urbano a partir dos anos 30 do século XX, já
Como Léfèbvre, diversos autores na que a premissa desses autores se funda no
discussão sobre o urbano fazem a relação entre conceito de urbano relacionado à sociedade
urbano e industrialização, por assim dizer, entre capitalista industrial.
urbano e sociedade industrial capitalista, uns Já para Mart ins ( 19 79 ) a
caindo no reducionismo criticado por Léfèbvre, industrialização brasileira não se situa apenas
outros, não. O que importa é que a idéia de nas oscilações da cafeicultura, ou seja, seu
urbano aparece, na maioria das vezes, vinculada d esenvolv im e nt o não e st á some nt e
à d e cap it al i nd ust ri al e à de soci ed ad e relaci onado às crises do setor expor tador
capitalista industrial. Castells é um dos autores cafeeiro, que fazem fluir os investimentos para
que compartilha dessa visão. Citamos apenas out ros se tore s e conômi cos, incl usiv e o
esse autor ao lado de Léfèbvre porque são industrial, ou relacionada às fases de auge da
e sses d oi s aut or es p aradi gm át i cos ne ssa cafeicultura, que induz à diversificação dos
Observações sobre os conceitos de cidade e urbano, pp. 109 - 123 119

investimentos em outras esferas da atividade processo de acumulação capitalista industrial


econômica e, mais uma vez, no setor industrial. porque o capital cafeeiro não se constituiu como
Par a Mar ti ns ( 19 7 9) a g ê ne se da um si mp le s cap it al me rcanti l , dada as
industrialização brasileira está relacionada à metamorfoses pelas quais se transfigurava: ora
dinâmica do complexo cafeeiro que faz com que como capital industrial, ora como estoque de um
a industrialização se desenvolva nos interstícios comerciante, ora como renda do Estado, ora
da cafeicultura, idéia mais ampla do que a de como recurso financeiro de um banqueiro, ora
oscilação da economia cafeeira. Dinâmica essa como em investimento para a construção de
que teve a capacidade de gerar um processo estradas de ferro ....
dinâmico de acumulação capitalista, até mesmo
não assentado em relações sociais de produção O cap it al caf ee ir o se de se nv ol ve u
capitalista. constituindo um complexo de relações que
conduzi u a um gr ande d ese nv ol vi me nt o
A partir dessa última compreensão da econômico. E, curiosamente, ele se desenvolveu
acumulação capitalista e da constituição da assentado em relações não capitalistas de
socie dade cap i tali st a indust r ial no Brasi l pr od ução – o colonato - , que ao pe rm it ir
podemos deslocar o momento em que podemos combinar a produção da mercadoria café com a
falar de urbano no Brasil para os fins do século produção dos meios de vida do trabalhador
XIX. encontrou a chave de ouro para a acumulação
Interpretações diferentes, periodização de riqueza. Já não se fazia mais necessário
divergente. Isso quer dizer que segundo as d isponi b il izar r e cursos para a comp ra d e
interpretações que se tem e os parâmetros que escravos indispensáveis à fazenda de café. O
se adota podemos nos referir ao conceito de trabalho era livre e os subsídios relativos à
urbano de diferentes maneiras. No exemplo imigração garantiam mão de obra abundante,
dado, as interpretações de Tavares (1972) e num contexto em que a terra já não era mais
Melo (1984) nos conduzem para um período, livre (desde 1850) e era monopólio de poucos.
enquanto a de Martins (1979) para outro. E isso, A produção de subsist ência do colono,
tendo como referência a relação entre o conceito que era fundament al para sua reprodução,
d e ur bano e soci ed ad e cap it al i st a. Se a livrava o fazendeiro de dispêndios maiores
referência se altera e outras interpretações são com o colono e esse via nessa possibilidade
l ev ad as e m conta, por ex e mp lo, que não de produção, um t rabalho para si mesmo.
relacionam o urbano à sociedade capitalista, No ent ant o, esse t r abalho se const it uía,
podemos situar o urbano em outros períodos. t ambém, numa exploração, muit o embora a
Mantendo-se a referência em Léfèbvre part ir dele o colono pudesse auferir algum
e Castells, a essência do fenômeno urbano ex cedent e que podi a ser v endi do no
reside na idéia de capital. Portanto, nessa mercado.
referência não há nenhum equívoco em se O que se f azia necessár io er a a
conceituar o urbano em relação à indústria e ao const rução de estradas de ferro para garantir
capital, mas advertimos, há um grande equívoco o escoament o da produção que adent rava o
se não se pr ocur ar de sv e nd ar as território paulista e para isso era imprescindível
particularidades históricas dessa relação, por o desenvolviment o de serr arias e de
assim dizer, da relação entre urbano e capital. metalúrgicas para os dormentes e trilhos dos
Vale a pena acompanhar o raciocínio de t rens. Do mesmo modo era essencial o
M ar ti ns ( 19 7 9) sob re a gê ne se da aparelhament o do port o de Sant os, o
industrialização brasileira, que está relacionada desenvolvimento de instituição voltada para o
ao complexo cafeeiro. Esse complexo, é bom mercado de ações do café e o desenvolvimento
lembrar, apresentou capacidade de gerar um dos negócios financeiros e jurídicos.
120 - GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 24, 2008 LENCIONI, S.

I gual me nt e, er a im pr e scindí ve l a Relembrando o que dissemos em relação


ind ustr iali zação de bens de consumo p ara à palavra urbano, de que essa palavra não se
satisfazer as necessidades de reprodução dos constitua em termo da língua portuguesa no
colonos, que não eram garantidas pelo próprio século XIX, isso não compromete em nada a
trabalho excedente, bem como da população que interpretação da constituição do urbano no
v iv ia nas ci dade s. Ao m esmo te mp o er a Brasil porque, como dissemos, o conceito existe
indispensável a produção dos instrumentos a posteriori dos objetos ou fenômenos que
necessários ao trabalho nos cafezais e roças representam (segunda observação).
(instrumentos, equipamentos e maquinas), bem
com o a pr odução de m áquinas de De forma sintética podemos dizer que as
beneficiamento de café.. Também era imperioso posições de Maria Conceição Tavares (1972) e
o desenvolvimento da capacidade energética, João Manoel Cardoso de Melo (1979), de um
quer para as atividades produtivas, quer para lado, e, de outros, de José de Souza Martins
as cidades que se desenvolviam. (1979) nos inspiram a conceituar o urbano no
Brasil de forma diferente. Tendo como referência
As cidades materializavam as condições os primeiros, o urbano se constitui no Brasil a
ger ais d a produção cafe eira, garantind o o p ar ti r dos anos 19 30 , enq uant o que a
comércio e os serviços necessár ios, o que interpretação de Martins nos conduz a situá-lo
redundou no desenvolvimento de uma extensa a partir de 1870.
rede urbana no interior paulista. Rede urbana
que se fez obrigatória porque a principal parcela Pode ter sido alongada essa discussão,
do capital da fazenda de café era produzida na mas o sentido foi de mostrar que os conceitos
formação de fazendas de café estendendo os existem em relação a um corpo teórico e que o
caf ezai s pe l o te rr it ór io ad entr o que e nt endi me nto d e quand o se consti tui a
necessi tavam d e ci dade s p ar a pr ov er as sociedade industrial capitalista no Brasil é que
condições gerais da cafeicultura. Enquanto isso conduz à compreensão de quando podemos falar
a cidade de São Paulo se metamorfoseava, em urbano no Brasil. Claro, lembrando mais
passando de simples vila a cidade em acelerado uma vez, fundada na premissa da existência da
cre scim ento com cham inés de f áb ri cas e relação entre urbano e industrialização.
população operária. O que se procurou com essa discussão
As plantações de café conformaram um é mostrar que os conceitos se fundam em teorias
complexo econômico, denominado de complexo e que segundo essas os conceitos se alteram.
cafeeiro. E é no seu interior que situamos a Como dissemos na Introdução, a pesquisa exige,
capacidade de geração de um processo dinâmico p er mane nt e me nt e, e scolhas e pe sq ui sar
d e acum ulação cap it al ist a, q ue i nduzi u à significa viver opções.
industrialização e à constituição do urbano. Essa Assim posto, embora tenhamos cidades
é uma interpretação que conduz à compreensão no Brasil desde a colônia, a constituição do
de que, podemos falar em urbano no Brasil a urbano, a partir das referências examinadas, lhe
partir da constituição do complexo cafeeiro que é p oste ri or. Est á se consid erand o que é
se mostra, nitidamente visível, a partir de 1870. i mane nt e ao concei to d e urb ano, o d e
Essa compreensão não considera o urbano industrialização moderna e o de sociedade
como um subproduto da industrialização, mas industrial.
como produto de determinadas relações sociais
e de determinados condicionantes próprios do Fizemos uma escolha, de relacionar o
complexo do cafeeiro. Desloca-se, assim, a conce ito de urbano à soci edade industri al
relação industrialização e urbano. Afrouxa-se cap it al ist a no Brasi l e che gam os a d uas
e ssa re l ação f ace às par ti culari d ad es d a periodizações. Poderíamos ter assumido outro
sociedade brasileira. caminho, como o apontado por Remy e Voye
Observações sobre os conceitos de cidade e urbano, pp. 109 - 123 121

( 19 76 ) que e nt ende m q ue o ur bano e st á Relativo ao conceito de urbano vimos


relacionado ao processo de urbanização que se q ue s e g u nd o o e nt e n d i m e n t o d e u r b an o
constitui como um processo de transformação podemos falar em urbano no Brasil a partir
estrutural específico da sociedade capitalista e de vários marcos históricos.
que impulsiona essa sociedade para adiante,
que r em suas contrad ições, que r em suas O que é importante no conhecimento
explicitações. (Remy, Voye, 1976, p. 82). Essa é a coerência com as referências assumidas.
compreensão não vincula, portanto, o urbano à S e r i a u m e r r o g r o s se i r o e x p r i m i r q u e o
sociedade capitalista industrial. Se tomarmos urbano se relaciona à sociedade capitalista
como referência essa compreensão de urbano, i nd ust r ial e , ao m e sm o t e mp o, d iscut i r o
por certo podemos falar em urbano no Brasil u r b a n o n o s é c u l o X V I I I a o s e f al a r d a s
desde os primórdios da colonização já que essa cidades da mineração: Ouro Preto, Mariana
nasce sob a égide da sociedade capitalista, na e Sabará, por exemplo. Como também seria
sua fase mercantil, que se expande pelos quatro falta grave falar em urbano no Brasil no final
cantos do mundo, por “mares nunca antes do século XIX se a compreensão do urbano
navegados”. se assenta na idéia de sociedade capitalista
i nd us t r i a l e n t e n d i d a c om o s e n d o a q u e l a
O conceito de urbano se relaciona a um sociedade cujo fundamento da r eprodução
processo histórico e dependendo da referência ampliada do capital se encontra na atividade
t eóri ca f al are mos de urb ano d esde os industrial.
primórdios da colonização brasileira ou segundo
outros períodos. C on ce i t os e t e o r i as são , p o r t an t o,
im anent es uns aos outros. Essa é a i dé ia
f und am e nt a l d e ss e t e x t o q ue b usca, p or
Considerações Finais m e i o d a d iscussão sob r e os conce i t os d e
cidade e urbano contribuir para a discussão
Essas observações sobre os conceitos sobre o que é cidade e o que é urbano no
de cidade e urbano tiveram o objetivo não só Br asi l . L o ng e d e r e sp ost a s si m p l e s e d e
de discutir esses conceitos, mas sobretudo de certezas esse texto buscou transmitir a idéia
alertar para o fato de que os conceitos se d e q ue a s ce r t e z as f ác e i s e os m od e l os
constituem ele elementos fundamentais para a exp licat ivos usad os se m a refle xão
interpretação da realidade. Por meio deles necessár ia não tê m nenhum poder de
buscamos compreender o real. Longe de serem de sv end ar os p rocessos q ue ex am inamos.
únicos e verdades, os conceitos devem ser Em geral, não desvendam nada ficando na
vistos em sua com as referências teóricas. r e p r o d u çã o d e i d é i a s e d e p r e ss up os t o s
entendidos como fé.
No caso do conceito de cidade, tendo
como referência o contexto brasileiro, podemos, O cam i nho d o con he c i m e nt o e x i g e
como vimos, considerar a população dedicada rigor e método. Muitas certezas se tornam
ao trabalho no campo, não aprisionando o i nce r t e zas d ur a nt e o p e r cur so, e nq uant o
conceito ao se considerar apenas como cidades que out ras encontram soluções; o que
as ag lome raçõe s se de nt ári as q ue se i m p o r t a é q u e p or m e i o d a con si st ê nc i a
car acte ri zam p el a pr e se nça de população t e ór i ca e conce i t ual é possí ve l cont r i bui r
voltada exclusivamente para as atividades para a compreensão do real.
urbanas.
122 - GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 24, 2008 LENCIONI, S.

Notas
1
Sobre a origem dos povoados no Brasil o texto de 6
No caso da palavra urbano se apresentar como
Aroldo de Azevedo, de 1957, intitulado Embriões adjetivo, que busca caracterizar os seres ou
de Cidades é referência obrigatória. objetos, os sentidos que podemos encontrar
2 para a palavra urbano são os de qualificar o
Definição presente no Dicionário Houaiss.
que é dotado de urbanidade ou o que é afável,
3
Em Portugal, povoado significa aldeia, lugarejo ou civilizado ou cortês. Esse é o caso da seguinte
pequena localidade com pessoas, enquanto que frase: Hoje em dia os costumes urbanos estão
povoação se refere a lugar povoado, que pode corrompidos. Mas, também a palavra urbano
se referir a pequenos agregados rurais e até às po de e st ar r efe rida a o qu e é r elat iv o ou
maiores aglomerações. pertencente à cidade, ou, ainda, ao que é
4
p r ó p r io à c id a d e , c o m o n a e x p r e s s ã o
Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa, saneamento urbano. E, pode, também,
re fer ido ne sse te xto sim ple sme nte co mo expressar o caráter de cidade, como na frase:
Dicionário Houaiss. Ontem houve um grande conflito urbano.
5
Além das derivações por metonímia, o dicionário 7
Em função dos objetivos que se quer, que é de
registra regionalismo, a exemplo da palavra discutir o conceito de cidade e urbano, trataremos
urbano ser usada no Estado de São Paulo com o da relação entre o conceito e o objeto. A idéia de
sentido de soldado de polícia. Mas, não nos objeto assume os sentidos de fato, fenômeno e
ateremos a discussão de regionalismos relativos processo em função da fluência do texto, já que
às palavras em exame. O dicionário Houaiss para a discussão em pauta o assolamento das
registra também, a etimologia da palavra cidade diferenças não compromete o que se intenta.
e da palavra urbano, que será a posteriori.

Bibliografia
ACHER, F. Les nouveaux príncipes de l´urbanisme. CLAVEL, M. Sociologie de l ’ urbain. Paris:
La fins des villes n´esta pas à l´ordre du jour. Anthropos, 2004.
Paris: Éditons de l´Aube, 2001.
CUNHA, A. G. da. Dicionário etmológico Nova
AZEVEDO, A. de. Aldeias e aldeamentos de Fronteira da língua portuguesa. Rio de Janeiro:
índios. Boletim Paulista de Geografia. São Paulo: Nova Fronteira, 1982.
AGB/São Paulo, n. 33, p. 23-77, 1959.
CUNHA, C. F. de. Gramática de Base. 4ª ed. Rio
AZEVEDO, A. de. Arraiais e corrutelas. Boletim de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura,
Paulista de Geografia. São Paulo: AGB/São Paulo Fundação de Assistência ao Estudante, 1985.
n. 27, p. 3-26, 1957.
DERRUAU, M. Tratado de geografia humana.
AZEVEDO , A. de . Em b ri õe s d e ci dade s Barcelona: Editorial Vicens-Vives, Barcelona,
brasileiras. Boletim Paulista de Geografia. São 1964.
Paulo: AGB/São Paulo, n. 25 , p. 31- 69, 1957.
HOUAISS, A. Dicionário Eletrônico Houaiss da
BLUTEAU, R. Vocabulário Portugguez e Latino.. Língua Portuguesa. São Paulo: Ed. Objetiva,
UERJ. Estado do Rio de Janeiro.CD-ROM. s/d 2001. CD-ROM.
(Original: Coimbra, No Collegio das Artes da
Companhia de Jesu Anno de 1712). KOPNIN, P. V. Lógica dialética. México: Ed.
Grijalbo S/A, 1996.
CASTELLS, M. A questão urbana. São Paulo: Paz
e Terra. 2000. LEFEBVRE, H. A revolução urbana. Belo Horizonte:
Ed. UFMG, 1999.
Observações sobre os conceitos de cidade e urbano, pp. 109 - 123 123

MARTINS, J. de S. O Cativeiro da Terra. São Paulo: REMY, J. & VOYE, I. La ciudad y la urbanizacion.
Liv. Ed. Ciências Humanas, 1979. Madri: Instituto de Estudios de Administración
Local, 1976.
MARTINS, S. Prefácio. In: A revolução urbana. Belo
Horizonte: Ed. UFMG, 1999, p. 7-13 RENAUDIE, S. Sur l´urbain. In: Lefebvre, Henri,
Groupe de Navarrenx. Du contrat de citoyenneté.
MELLO , J. M. C. de. O capitalismo tardio. 3ª ed.
Paris: Ed. Syllepse, 1990, p. 186-196.
São Paulo. Ed. Brasiliense, 1984.
SAUSSER, I. (ed) La Sociologia Urbana de Manuel
PEREIRA, P. C. X. P. Cidade: sobre a importância
Castells. Alianza Editorial, 2001.
de novos modos de falar e pensar as cidades.
In: Bresciani, Maria Stella. Palavras da Cidade. TAVARES, M. da C. Da substituição de importações
Porto Alegre; UFRGS, 2001, p. 261-284. ao capital financeiro. Rio de Janeiro, Zahar, 1972.

Trabalho enviado em agosto de 2008

Trabalho aceito em setembro de 2008

Você também pode gostar