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A teoria austríaca dos ciclos econômicos

e as causas da Grande Depressão

Em junho de 1931, o economista britânico Lionel Robbins escreveu


um prefácio para o novo livro do economista austríaco Friedrich A.
Hayek, Prices and Production. O professor Robbins explicou o
"maravilhoso renascimento" que a escola austríaca de pensamento
econômico havia vivenciado desde o fim da Primeira Guerra
Mundial sob a liderança de economistas como Ludwig von
Mises. Dentre as mais importantes contribuições recentes da
escola austríaca, disse ele, estava a teoria dos ciclos econômicos,
cujo referido livro de Hayek tinha a intenção de apresentar para o
mundo anglófono. Observou o professor Robbins:
A maioria dos teóricos monetários parece ter falhado completamente
em apreender corretamente a natureza das forças operantes nos EUA
antes do evento da grande depressão, aparentemente pensando que a
relativa estabilidade do nível de preços indicava um estado de coisas
necessariamente livre de nocivas influências monetárias. A teoria
austríaca, da qual o doutor Hayek é tão ilustre expoente, pode reclamar
ao menos esse mérito, que ninguém que realmente entendeu suas
principais doutrinas poderia ter nutrido por algum momento tão vãs
ilusões.
Eventos históricos nunca são o resultado de um fator influente,
mesmo que este seja fortemente dominante. E isso não é menos
verdadeiro para o caso das influências políticas e econômicas que
atuaram antes do início da Grande Depressão em 1929. A Primeira
Guerra Mundial havia desorganizado todas as relações políticas e
econômicas normais ao redor do globo. Enormes quantidades de
capital físico e mão-de-obra humana haviam sido consumidas e
destruídas durante os quatro anos da guerra. As inflações que
ocorreram durante a guerra e principalmente no período posterior
à guerra rasgaram o tecido social e cultural dos principais países da
Europa, especialmente Alemanha e Áustria. As instituições da
sociedade civil e liberal foram severamente enfraquecidas e
substituídas por regimes políticos intervencionistas e socialistas
que limitaram ou aboliram as liberdades civis e econômicas.

Novas nações surgiram na Europa Central e no Leste Europeu com


o colapso dos impérios alemão, austríaco e russo. Todas elas,
embora com intensidades distintas, seguiram o caminho do
nacionalismo econômico — impondo tarifas protecionistas,
subsidiando a agricultura e várias indústrias privilegiadas,
nacionalizando setores inteiros da economia, instituindo controles
de capital e taxas de câmbio artificiais, estabelecendo programas
assistencialistas.

Os pagamentos de reparação impostos sobre a Alemanha


representaram uma espécie peculiar de "dança das cadeiras", um
mecanismo financeiro artificioso por meio do qual os EUA
emprestavam dinheiro para os alemães para que estes pudessem
quitar seus pagamentos para com as forças aliadas, dentre as quis
os próprios EUA — as barreiras comerciais impostas por
americanos e europeus praticamente impossibilitaram a Alemanha
de obter, por meio de suas exportações, a soma necessária de
moeda estrangeira com a qual cumprir todas as suas obrigações
financeiras sob os termos impostos pelo tratado de paz que pôs fim
à guerra.

O sistema monetário mundial — o padrão-ouro internacional —


foi fatalmente enfraquecido pelas políticas inflacionárias adotadas
pelos governos durante e após a guerra. Não obstante todas as
debilidades do modelo de padrão-ouro que foi adotado — um
padrão-ouro em que havia reservas fracionárias —, e apesar de
todos os abusos impostos a esse padrão-ouro pelos governos que o
gerenciaram nas décadas anteriores a 1914, é notório que tal
sistema logrou trazer um alto grau de estabilidade monetária,
criando um ambiente econômico global propício à poupança, ao
investimento, ao comércio internacional e à formação de
capital. Na década de 1920, entretanto, os sistemas monetários das
principais nações da Europa já eram formados por moedas
fiduciárias mais diretamente controladas e manipuladas pelos seus
respectivos governos, ainda que tais moedas continuassem
nominalmente "atreladas" ao ouro.

Nos Estados Unidos, a criação do Federal Reserve System, o banco


central americano, em 1913, criou uma nova e centralizada
máquina de expansão monetária. Dentro desse arranjo, o banco
central americano colocou em prática seu experimento de tentar,
por meio de manipulações na oferta monetária, estabilizar o nível
de preços da economia americana.

Na década de 1920, Ludwig von Mises demonstrou a fundamental


incapacidade de todas as tentativas de estabilizar uma economia
por meio de políticas monetárias que visam à estabilização do nível
de preços, explicando o problema da inerente não-neutralidade da
moeda. Mudanças na oferta monetária necessariamente ocorrem
por meio da injeção de quantias novas de dinheiro em alguns
pontos específicos do mercado. Essas adições de dinheiro novo à
oferta monetária afetam o resto da economia através de um
processo temporal e sequencial, em que o novo dinheiro criado é
utilizado por cada indivíduo e por cada grupo de ofertantes e
demandantes que vão recebendo esse novo dinheiro ao longo do
tempo.

O resultado final é uma mudança no poder de compra geral, isto é,


no valor do dinheiro. Porém, durante esse processo de mudança no
poder de compra do dinheiro, a estrutura de preços relativos,
salários e renda, bem como a alocação de recursos por toda a
economia, também são modificados. Mais ainda: se as injeções
monetárias ocorrem através do sistema bancário, as taxas de juros
são alteradas, e isso pode gerar um ciclo econômico.

Porém, foi o jovem colega austríaco de Mises, Friedrich A. Hayek,


quem detalhou por que as tentativas de estabilizar o nível de preços
podem distorcer a estrutura dos preços relativos da economia de tal
maneira que um ciclo econômico provavelmente será gerado. Em
seu livro Monetary Theory and the Trade Cycle (1929), Hayek
argumentou que a função da taxa de juros em uma economia de
mercado é assegurar que a quantidade de investimentos e os
horizontes temporais desses investimentos se deem de acordo com
a quantidade de poupança disponível na economia, que é o que
permite esses investimentos. Quando a taxa de juros não sofre
intervenções e é livremente formada de acordo com as forças
concorrenciais do mercado, poupança e investimento permanecem
em equilíbrio. Porém, quando as taxas de juros são manipuladas —
como quando há um banco central —, poupança e investimento
podem ficar em desequilíbrio, gerando assim os ciclos econômicos.

Uma economia que está vivenciando aumentos na produtividade e


na formação de capital, apresentará maiores eficiência de custo e
capacidade produtiva de suas várias indústrias. Isso, com o tempo,
irá pressionar para baixo os preços, justamente por causa da maior
oferta de bens oferecidos aos consumidores no mercado. O preço
de cada um desses bens será reduzido até o ponto em que o mercado
em que cada bem é vendido chegue ao seu novo equilíbrio. Nos
mercados em que a demanda dos consumidores reage mais
sensivelmente a esse aumento na oferta de bens — isto é, em que a
demanda aumenta por causa da maior oferta —, os preços
individuais de cada bem irão se reduzir apenas
moderadamente. Em outros mercados, em que a demanda dos
consumidores seja notadamente menos sensível a esse aumento na
oferta de bens, os preços individuais de cada bem teriam de cair
com maior intensidade para fazer com que essa maior oferta fique
equilibrada com a demanda, cuja alteração foi pequena.

Com o passar do tempo, o nível médio de preços mensurado por


alguma estatística de índice de preços iria apontar a ocorrência de
uma "deflação". Porém, tal deflação de preços não apenas não
seria ruim para a economia, como na verdade seria essencial para
fazer com que a estrutura do mercado equilibrasse os preços
relativos, mantendo a oferta e a demanda de cada bem equilibradas
entre si ao longo do tempo.

No caso específico dos EUA durante a década de 1920, a economia


do país estava passando por rápidas transformações tecnológicas,
o que gerou grande aumento na produtividade e,
consequentemente, pressões baixistas nos preços dos bens e
serviços. Porém, em vez de permitir que essa tendência baixista
nos preços ocorresse naturalmente, o Fed estimulou o aumento da
oferta de dinheiro na economia americana com o intuito de
neutralizar esse processo normal de deflação de preços. Em termos
agregados, a quantidade de dinheiro na economia foi aumentada de
tal forma que fez com que a demanda por bens e serviços
aumentasse o suficiente para igualar o aumento ocorrido na
quantidade de bens e serviços oferecidos no mercado. Essa
equivalência de aumento da demanda com aumento da oferta fez
com que o nível de preços se mantivesse praticamente "estável" ao
longo de grande parte da década de 1920.
Ou seja, não havia nenhum sinal aparente da tradicional inflação de
preços nos EUA durante a década de 1920.

Porém, como argumentou Hayek em Monetary Theory and the Trade


Cycle,

A taxa de juros que equilibra a oferta de poupança real com a demanda


por capital não pode ser também uma taxa de juros que impeça
mudanças no nível de preços. Neste caso, a estabilidade do nível de
preços pressupõe mudanças na oferta monetária.... A taxa de juros sob
a qual, em uma economia em crescimento, a quantidade de dinheiro
que entra em circulação na economia é apenas suficiente para manter
o nível de preços estável, sempre será menor do que a taxa que faria com
que a quantidade de capital disponível para empréstimos seja igual à
quantidade simultaneamente poupada pelo público. Assim, apesar da
estabilidade do nível de preços, essa taxa de juros artificial possibilita
que haja um afastamento da posição de equilíbrio.
Aumentos na oferta monetária, institucionalmente, são feitas na
forma de um aumento das reservas do sistema bancário, aumentos
esses feito pelo Banco Central, que cria moeda do nada e com ela
compra títulos em posse do sistema bancário. É sobre essas novas
reservas bancárias que novos empréstimos são concedidos pelo
sistema bancário. Porém, a única maneira de os bancos poderem
induzir potenciais tomadores de empréstimo a aceitarem novas
quantias é diminuindo a taxa de juros que os eles cobram sobre
esses empréstimos.

Uma taxa de juros mais baixa diminui o custo do empréstimo em


relação à taxa de retorno esperada de vários projetos de
investimento. Porém, a taxa de juros não é apenas uma medida do
custo dos empréstimos; ela é também o fator por meio do qual o
valor esperado de um investimento é capitalizado em termos de seu
valor presente — isto é, ela permite que se estime a rentabilidade
de um projeto de longo prazo. Uma taxa de juros mais baixa,
portanto, também age como um estímulo para se incorrer em
projetos de investimento de prazos mais longos, com horizontes
temporais maiores, visando a um futuro mais distante. Caso não
tivesse havido esse aumento na oferta monetária, as taxas de juros
para o mercado de empréstimos não teriam sofrido essa redução
temporária. Consequentemente, tais investimentos de longo prazo
não teriam se tornado repentinamente atraentes e, portanto, não
teriam sido iniciados.
Assim, na década de 1920 nos EUA, sob a aparente calma criada por
um nível de preços estável, a política monetária expansionista
adotada pelo Fed estava criando uma estrutura de preços e lucros
deturpada, que induziu um grande número de investimentos de
longo prazo, investimentos esses para os quais não havia uma
poupança real disponível para sustentá-los no longo prazo.

E por que eles eram insustentáveis no longo prazo? Porque, à


medida que o novo dinheiro criado ia sendo gasto em novos e
alargados projetos de investimento, esse dinheiro adicional, com
tempo, chegava às mãos dos fatores de produção (isto é, a mão-de-
obra) que foram atraídos para esses empregos por causa dos
maiores salários. À medida que esses maiores salários eram, por
sua vez, gastos no mercado, as demandas por bens de consumo
eram estimuladas, fazendo com que houvesse contrapeso: os
recursos que haviam sido desviados para os investimentos de longo
prazo passavam a ser novamente trazidos para a produção de bens
de consumo e para projetos de investimento com horizontes
temporais menores.

Nesse cenário, a tendência seria a de que houvesse um aumento das


taxas de juros mercado, pois empréstimos estavam sendo
demandados por todos os lados. Entretanto, para evitar essa
subida nos juros, o Fed seguiu injetando dinheiro no sistema
bancário. Somente assim ele foi capaz de impedir que os juros de
mercado se mantivessem abaixo de seus níveis adequados de
equilíbrio, o que possibilitou que a lucratividade dos investimentos
de longo prazo se mantivesse temporariamente alta —
investimentos esses que foram gerados justamente pela tentativa
de se manter o nível de preços estável.

Finalmente, em 1928, sob a pressão dessa expansão monetária, o


nível de preços da economia americana começou a subir. O Fed,
receoso de provocar um descontrole absoluto nos preços, reduziu
acentuadamente o ritmo de crescimento da oferta
monetária. Porém, com o fim da expansão monetária, as taxas de
juros começaram subir para seus níveis de equilíbrio de
mercado. Alguns dos investimentos de longo prazo — tanto
aqueles que já haviam sido finalizados como aqueles que ainda
estavam em progresso — revelaram-se não lucrativos sob as novas
e maiores taxas de juros. O "boom" dos investimentos chegou ao
fim e o início de seu colapso foi sinalizado pelo crash da bolsa de
valores em outubro de 1929.
Em 1932, em um artigo intitulado "The Fate of the Gold Standard"
(O Destino do Padrão-Ouro), Hayek resumiu aquela que ele
considerava ser a lição da década de 1920:

Ao invés de permitir que os preços pudessem cair lentamente —


resultado inevitável de uma economia em crescimento —, um volume
tão grande de crédito adicional foi colocado em circulação, que o nível
de preços se manteve praticamente estável... Se tal inflação monetária
irá servir apenas para manter os preços estáveis, ou se ela levará a um
aumento dos preços, é algo de importância secundária. A experiência
agora confirmou aquilo que a teoria já predizia: que tal inflação
também pode fazer com que a produção seja direcionada para
investimentos insustentáveis, fazendo com que, no final, um colapso na
forma de crise econômica se torne inevitável. Isso, entretanto, também
comprova a impossibilidade de alcançar, na prática, a manutenção
absoluta do nível de preços em uma economia dinâmica.
Tão logo a expansão monetária foi interrompida (em 1928-1929),
as forças corretivas do mercado entraram em cena. Porém, a
intensidade e a duração da Grande Depressão acabaram sendo
maiores e mais longas do que o normalmente necessário para um
equilíbrio econômico ser restaurado. Os motivos da severidade da
Grande Depressão não podem ser encontrados em qualquer defeito
inerente à economia de mercado, mas, sim, nas ideologias políticas
e nas medidas governamentais da década de 1930.

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