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A reforma operática de Gluck

História da Música Ocidental IV


Professora Doutora Vanda de Sá
Departamento de Música
Universidade de Évora
2021/2022

Maria da Graça Oliveira Antunes

Nº 52570

1ºano licenciatura em Música, semestre par


1

Índice
Resumo ......................................................................................................................................... 2
Abstract ......................................................................................................................................... 2
Introdução .................................................................................................................................... 2
As influências de Gluck ................................................................................................................. 3
A tradição musical na infância e educação de Gluck............................................................... 3
Influência italiana em Gluck ..................................................................................................... 4
A ópera séria ......................................................................................................................... 4
Gluck e Viena ............................................................................................................................ 5
A produção de opéra comique de Gluck.................................................................................. 6
A ópera francesa e a sua resistência à influência italiana ...................................................... 6
A contribuição de Gluck na ópera francesa ............................................................................. 7
A reforma operática de Gluck ...................................................................................................... 8
Don Juan ................................................................................................................................... 8
A reforma como produto de vários agentes e fatores ............................................................ 8
Características da ópera reformada de Gluck e o prefácio de Alceste ................................... 9
As óperas reformadas ............................................................................................................ 10
Orpheu ed Euridice ............................................................................................................. 10
Alceste ................................................................................................................................. 10
Iphigénie en Aulide e Iphigénie en Tauride ....................................................................... 11
Armide................................................................................................................................. 11
Écho et Narcisse .................................................................................................................. 11
Conclusão .................................................................................................................................... 12
Bibliografia .................................................................................................................................. 13
Anexos......................................................................................................................................... 14
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Resumo
A reforma operática de Gluck é um ponto de viragem na história da música. Esta
mudança de paradigma conta com a contribuição significativa da opera seria italiana e
da tragédie lyrique, uma vez que, a ópera reformada nasce da fusão destas duas
correntes estilísticas. Quais são então, as propriedades de cada uma destas disciplinas
que se irão sobrepor e perpetuar dentro da nova reforma? E, apesar destas duas
correntes serem as mais evidentes patrocinadoras da reforma operática, que outros
fatores ou agentes contribuíram para a mesma? Quais são, então, as características
inovadoras desta reforma?
A discussão deste tema é especialmente relevante, uma vez que, esta reforma
possibilitou uma nova abordagem à ópera e esta foi extremamente influente em
compositores como Mozart e outros seus contemporâneos. É, ainda, responsável por
uma certa antecipação daquilo que viria a ser a reforma dramática de Wagner.
Palavras-chave: Reforma operática; opera seria; tragédie lyrique; Gluck.

Abstract
Gluck's operatic reform is a turning point in music's history. In this change of
scenery, the Italian opera seria and French Tragédie Lyrique are relevant elements since
the new and improved reformed opera is a consequence of their fusion. Bearing that in
mind, which characteristics do each of these disciplines force upon the new operatic
format? Even though these two are the most prominent sponsors of the opera reform,
what are other agents or factors that have contributed to this switch? And, what are the
innovative features presented in this reform?
The discussion of this topic is especially relevant because this reform allowed a
new approach to opera and it was extremely influential in composers such as Mozart
and other contemporaries. It is also responsible for a certain anticipation of what would
become Wagner's dramatic reform.
Key-words: Operatic reform; opera seria; tragédie lyrique; Gluck.

Introdução
O presente trabalho tem como objetivo principal expor as principais
características da reforma operática veiculada por Christoph Willibald Gluck. Para tal,
serão apresentadas as influências mais relevantes na vida e obra deste compositor cuja
acumulação e síntese irá contribuir para a supracitada mudança de paradigma. Os
eventos que desempenham papeis relevantes nesta restruturação da ópera serão,
ainda, contextualizados historicamente e surgirão, preferencialmente, por ordem
cronológica.
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As influências de Gluck
A tradição musical na infância e educação de Gluck

Christoph Willibald Gluck nasceu a dois de julho de 1714 em Erasbach,


Alemanha. Filho de Alexander Johannes Gluck e Maria Anna Bergin, no ceio de uma
família intrinsecamente associada à atividade silvicultora. Esta ocupação proporcionou
a que os Gluck assumissem um cargo de responsabilidade na propriedade rural da
família Lobkowitz, uma das famílias nobres mais antigas do reino da boémia para onde
se mudaram pouco antes de C. Gluck completar três anos de idade.
Pouca é a informação que subsistiu sobre a educação de Gluck. Contudo, Franz
Benda, um célebre violinista e compositor contemporâneo de Gluck, escreveu um livro
de memórias no qual consta alguma informação sobre a sua formação académica no
Reino da Boémia. Podemos, então, inferir que a instrução recebida por Franz Benda não
irá diferir em muito daquela adquirida por Gluck. Por analogia, concluímos que o
compositor aprendeu a ler e escrever nas escolas do reino e que nestas, assim como no
resto da região, existia uma forte tradição musical. Era nestes locais que os estudantes
aprendiam a cantar e contactavam com uma panóplia de outros instrumentos. Consta
que o próprio Gluck confessou, num estado mais avançado da sua vida, ao pintor
Christian von Mannlich o seguinte:
“In my homeland everyone is musical; music is taught in the schools, and in the
tiniest villages the peasants sing and play different instruments during High Mass in their
churches. As I was passionate about the art, I made rapid progress. I played several
instruments and the schoolmaster, singling me out from the other pupils, gave me
lessons at his house when he was off duty. I no longer thought and dreamt of anything
but music.”
(K. Charles; P. Raymond; P. Blaise, 1934)
Contudo, o reino da Boémia não era o paraíso musical que aparenta ser. Estava
condenado à submissão perante a Áustria, preso à ortodoxia religiosa forçada e
embebido numa depressão económica que motivava muitos músicos a procurar outros
lugares para prosperar.
Por volta do ano de 1727, Gluck fugiu de casa a fim de escapar ao destino imposto
pela sua família. Instalou-se em Praga, onde numa primeira fase passou algumas
dificuldades, mas serviu-se das suas capacidades musicais para as suplantar. Consta que,
inicialmente, se juntou a músicos ambulantes, mas que eventualmente substituiu esta
atividade pelas igrejas onde tocava violino, violoncelo e cantava, adicionalmente, Gluck
dava lições dos diversos instrumentos que dominava. Nestas atividades teve a
oportunidade de aprimorar as suas capacidades musicais que em muito se
desenvolveram neste período.
4

Hans Joachim Moser, autor da biografia de Christoph Willibald Gluck, atesta ter
encontrado documentos que comprovam a matrícula do famoso compositor na
universidade de Praga em 1731 no curso de matemática e filosofia, o qual não
completou presumivelmente a fim de dedicar uma maior porção do seu tempo à
atividade musical. Em 1734 instala-se em Viena onde é empregado pela supradita
família Lobkowitz como músico de câmara. Supõe-se que a família tenha sido o elo de
ligação entre o compositor e o Príncipe Antonio Maria Melzi e que este tenha sido o
responsável pela integração de Gluck na sua orquestra privada em Milão. É nesta
orquestra que Gluck contacta pela primeira vez com Sammartini, uma figura relevante
na música italiana.

Influência italiana em Gluck


Gluck encontrou em Sammartini um mentor, uma vez que a relação formal
aluno/professor não se encontra documentada. A influência das composições de
Sammartini em Gluck é bastante evidente. O tutelado estudou extensivamente o
trabalho do seu mestre e chegou a utilizar algum do seu material para as suas
composições. Nomeadamente na abertura de “Le nozze d’Ercole e d’Ebe” (1747) e na
sinfonia que introduz o segundo ato de “La contesa dei Numi” (1749).
A carreira de Christoph Gluck, enquanto compositor de ópera, teve início em
Itália no ano de 1741. Apesar de serem poucos os registos musicais que chegaram até à
atualidade referente a este período da vida do compositor, é notório o reconhecimento
que este alcançou num curto período de tempo. Inclusive na imprensa da época, mais
concretamente na “Gazzeta di Milano”, o músico é referido como “il noto Maestro di
Cappella”, ou seja, o conhecido maestro da capela.
Milão ostentava a cultura operática e Gluck rapidamente se associou ao Teatro
Regio Ducale. Foi nesta ópera que o compositor apresentou o seu primeiro trabalho
dentro do género: “Artaserse”, seguida de muitas outras. Esta obra é baseada no libreto
de Metastasio, um poeta e libretista de renome italiano responsável pelos principais
libretos de opera seria do classicismo. Muitas das óperas de Gluck remetentes a este
período da sua vida têm libretos deste poeta, apesar de o libretista não ser apreciador
do estilo de composição de Gluck.

A ópera séria
Na geração de Gluck, a ópera era o estilo musical mais popular conferindo
especial destaque para a opera seria. As monarquias absolutas predominavam e a alta
nobreza via na opera seria uma excelente oportunidade para celebrar os seus ideais e
valores.
Apesar de existirem alguns centros de resistência, nomeadamente em França, a
ópera séria italiana dominava. Itália valorizava a magnificência e a sumptuosidade. As
temáticas dos deuses e da Grécia antiga eram recorrentes e os personagens que
5

conduziam a história não dispunham de grande densidade psicológica, existindo uma


certa imutabilidade dos mesmos. Os libretos eram impreterivelmente previsíveis e
reiterados. Contudo, esta monotonia conferia a estas óperas sucesso fácil e garantido.
Existia, ainda, uma grande dicotomia entre os recitativos e as arias. Era nos
recitativos que a intriga progredia, mas, musicalmente, estes não suscitavam grande
interesse. Os recitativos eram da responsabilidade de solistas, embora se aproximassem
mais da declamação do que do canto propriamente dito. Eram acompanhados por um
baixo contínuo que frequentemente se resumia a um cravo que sustentava
harmonicamente o solo. Em contraste aos recitativos, as arias ostentavam o virtuosismo
dos cantores e era nestas que residia o verdadeiro interesse do público. Estas eram
frequentemente acompanhadas pela totalidade da orquestra e envolvidas em cenários
com um alto grau de elaboração. É, também, importante referir a forma predileta na
época: as árias Da Capo. Por outro lado, a ação nestes momentos permanecia estática.
O texto era simples, curto e, muitas vezes, uma repetição das ideias anteriormente
veiculadas.
Christoph Gluck apresentou ao público italiano uma série de óperas que seguiam
os princípios da opera seria: Demofonte (1742); Ipermestra (1744); Ippolito (1745)…
Contudo, Gluck nunca revelou ser um grande apologista dos excessos da opera seria,
servindo-se da ornamentação e do virtuosismo com moderação.

Gluck e Viena
De 1747 a 1750, Gluck associou-se a diversas companhias operáticas através das
quais teve a possibilidade de viajar por várias cidades europeias. Após este período de
tempo, Gluck fixa-se em Viena onde adquire, pela primeira vez, o estatuto de
reformador.
Foi nesta cidade que o compositor se casou com a herdeira de um abastado
mercador, Marianne Bergin. Graças à fortuna da esposa, Gluck adquiriu uma maior
independência na sua carreira. No entanto, foi no palácio do príncipe Joseph Friedrich
von Sachsen-Hildburghausen que o compositor se insere no competitivo mercado
musical de Viena. Torna-se diretor artístico, regente da orquestra do nobre e,
posteriormente, é condecorado com o cargo de mestre de capela.
Os motivos que levaram Gluck a procurar um novo local para prosperar são
ambíguos, mas muitos afirmam estar relacionado com a frustração do músico por falta
de influência nos músicos locais. De Viena, Gluck partiu para Paris onde esta
problemática desapareceu por completo. O compositor havia de voltar à cidade de
Viena, a fim de desfrutar dos últimos anos da sua vida.
6

A produção de opéra comique de Gluck


A opéra comique é um estilo operático francês cujo nome é cunhado no século
XVIII. A opéra comique aborda temas do quotidiano frequentemente em tom de crítica
social através da alternância de cenas cantadas com diálogo falado.
“The nature of Gluck's involvement with French opéra comique changed several
times during his decade as musical director of the French theatre in Vienna. Although at
first he was required by Durazzo merely to supervise the arrangement of imported
Parisian works, contribute replacement ariettes and lead performances, in 1758 he
began composing complete original scores in the genre. His first opéras comiques were
seen as curiosities, for while the relatively new genre was popular throughout Europe,
few original works were then being written outside Paris. Initially, Gluck's resettings of
Parisian texts suffered from court-imposed censorship, and in the pasticcio Le diable à
quatre (1759) his anonymous ‘airs nouveaux’ still rubbed shoulders with parodied
Italian ariettes. But soon his works were competing successfully on the stage of the
Vienna Burgtheater with the most recent operas by Duni, Monsigny and Philidor. Gluck
did not seriously envisage having his opéras comiques staged in Paris, although
performances of two of his works in the genre were an incidental result of his visits to
France in the 1770s. This was due in part to the prejudice in France against resettings of
operas by living composers; those of Gluck's comic operas that were given there had
started as vaudeville comedies. The unavailability in Vienna of original opéra
comique texts was a serious handicap; La rencontre imprévue (1764, originally called Les
pèlerins de la Mecque), the one work for which a professional librettist (Dancourt) was
on hand, was a revision of a 1726 text chosen in consideration of the poet's old-
fashioned tastes. Still, in L'ivrogne corrigé (1760) Gluck was able to insist on
improvements in the Parisian libretto by Anseaume (originally set by J.-L. Laruette) and
thereby to create a mock-hell scene of impressive musical architecture. The skills that
he developed in writing this comic opera were of much help to Gluck in the composition
of Orfeo ed Euridice in 1762.”
(Sadie, S., & In Grove, G. (1980). The New Grove Dictionary of Music and Musicians)
A produção de opéra comique deste período da vida de Gluck acaba por ser
revisitada frequentemente pelo próprio compositor. Gluck reutiliza algum deste
material nos divertimentos e tragedies lyriques, tendo tido especial expressão na ópera
“Armide” (1777).

A ópera francesa e a sua resistência à influência italiana


França revelou bastante inércia em relação aos exageros da ópera séria italiana
cunhados no barroco, optando por uma alternativa mais elementar e clássica. Surge,
assim, o termo tragédie lyrique cuja autoria é atribuída ao compositor Jean-Baptiste
Lully e ao libretista Philippe Quinault. Os autores pretendiam afastar-se da ópera
italiana e ambicionavam um género tão prestigiado quanto a tragédia clássica.
7

A tragédie lyrique, regra geral, compreendia as seguintes características: uma


abertura instrumental; um prólogo introdutório; cinco atos que se serviam dos solistas,
coros e instrumentos e, ainda, uma ária instrumental conclusiva.
Este género procurava um equilíbrio entre os diversos elementos que o
compunham: o texto, o guarda-roupa, o cenário, a iluminação… Todos estes
constituintes deveriam ser detentores de papeis de igual relevância.
Após a morte de Luís XIV, um grande apreciador e impulsionador da tragédie
lyrique, o género começou a entrar em decadência. Foi já Rameau, compositor de
grande importância para o período, que o voltou a trazer a palco. Sendo extremamente
influenciado pelo trabalho de Lully, Rameau não foi um instrumento passivo no
ressuscitar do género. O compositor insistiu e reforçou a simplicidade e naturalidade do
mesmo. Este seu trabalho foi extremamente criticado pelos seus contemporâneos que
consideravam o género antiquado e esteve na origem da questão fundadora da
“Querelle des Bouffons”. Esta foi uma controvérsia parisiense que opunha os apoiantes
da música francesa, representados por Rameau, aos apologistas da italianização da
ópera francesa.
A tragédie lyrique teve grande influência em Gluck. A duração destas árias era,
por comparação ao que se praticava em Itália, menor e nelas os cantores encontravam
uma maior liberdade e abertura perante o contexto dramático. Gluck inclui estas
características nos seus trabalhos adaptados ao gosto francês. O compositor utiliza,
ainda, a orquestra como instrumento criador de atmosferas e aprofunda a densidade
psicológica dos personagens.

A contribuição de Gluck na ópera francesa


Enquanto a popularidade da tragédie lyrique diminuía, o fascínio pela ópera
italiana ia ganhando terreno em Paris. Existia, no entanto, o desejo de manter a
estrutura francesa, que se concretizava na língua, coros com presença dramática, no
destaque do poeta e compositor sobre o cantor… acrescentando um novo idioma
musical, ou seja, italiano. Christoph Gluck não foi o primeiro compositor a tentar tal
proeza, mas foi o primeiro a conseguir realiza-la com sucesso. O êxito das suas óperas
reformadas contribui para o rápido declínio do repertório francês cunhado por Lully e
Rameau.
Gluck foi o principal responsável pela paixão da rainha Marie Antoinette pela
música, uma vez que, este havia sido seu tutor. A confiança e patrocínio da rainha no
compositor permitiram que este apresentasse o seu trabalho nos teatros e óperas mais
prestigiadas de Paris. O músico assinou, inclusive, um contrato de seis obras com a ópera
de Paris. O primeiro trabalho de Gluck apresentado ao público sob este contrato foi a
ópera Iphigénie en Aulide (abril, 1774). A estreia da peça despoletou uma grande
controvérsia entre os apoiantes de Gluck e do seu estilo de composição e aqueles que
defendiam uma abordagem mais italianizada da ópera. Contudo, a controvérsia
referente ao estilo e reforma de Gluck veio a diluir-se com os trabalhos que o compositor
8

foi apresentando. Orpheu ed Euridice, por exemplo, foi muito bem recebida pelo público
parisiense.

A reforma operática de Gluck


Don Juan
Um ano antes da estreia da revolucionária ópera Orpheu ed Euridice, Gluck
inaugurou um dos bailados mais influentes da sua época: Don Juan. Dois nomes
importantes a mencionar aquando da discussão deste bailado são os de Calzabigi
(libretista) e Angiolini (coreógrafo). A música que Gluck compôs para este bailado teve
tamanha influência que o mesmo e muitos outros compositores a utilizaram noutros
contextos. Como exemplo, temos a “Danse des Furies” da ópera Orphée et Eurydice do
próprio, mas temos ainda o Fandango de Mozart pertencente às Bodas de Fígaro que
tem por base a quinta peça (Moderato) da suite do bailado.
O sucesso do bailado foi tal que muitos historiadores comparam a importância
que este tem para a dança com a que Orpheu detém para com a ópera reformada. Don
Juan apresenta uma história bem desenvolvida com consistência dramática e
personagens com densidade psicológica, características inovadoras dentro do género.
Gluck e Calzabigi com este bailado estavam, inconscientemente, a dar o primeiro passo
na direção de um projeto de reforma das artes do espetáculo cujo evento mais
expressivo desta colaboração pode ser considerado a ópera “Orfeo ed Euridice”(1762).

A reforma como produto de vários agentes e fatores


Christoph Gluck não foi o único agente ativo na reforma operática. Os progressos
que Gluck efetuou em muito se devem aos seus percussores que, de forma consciente
ou não, também trabalharam no sentido de uma nova reforma operática. Contudo, não
podemos retirar ao compositor o mérito que lhe é devido, pois a sua produtividade e
dinamismo conferem-lhe um papel de protagonismo.
Uma grande porção dos novos conceitos que Gluck apresentou advêm da
tragédia ou ópera cómica francesa e ainda da corrente iluminista que veiculava. O
iluminismo questionava o poder soberano da monarquia, a atitude dogmática com que
se enfrentava a religião e defendia ideais de tolerância e simplicidade sendo ainda
apologista do reducionismo. Apesar do movimento começar no berço dos filósofos,
rapidamente contagiou outras áreas como a política e, evidentemente, a música. No
iluminismo, os princípios de igualdade, fraternidade e liberdade conjugam com a
universalidade ambicionada. São estes gostos e princípios éticos que se querem comuns
a todos. Facilmente nos apercebemos das características iluministas na reforma de
Gluck quando este se despe dos exageros da ópera séria italiana e opta por vias mais
despretensiosas.
9

Características da ópera reformada de Gluck e o prefácio de Alceste


Apesar de não ser a primeira ópera reformada de Gluck, Alceste possui um papel
de especial importância no conjunto da obra do compositor. Isto porque, no prefácio 1
que foi adicionado à obra para a sua estreia em Viena dois anos após a estreia global em
1767, são pela primeira vez apresentados de forma clara os ideias da reforma operática.
A autoria deste prefácio é atribuída à colaboração entre Calzabigi, um poeta e libretista
italiano, e o próprio Gluck.
“Procurei confinar a música à sua verdadeira função de servir a poesia,
exprimindo os sentimentos e as situações do enredo sem interromper e esfriar a ação
com ornamentos inúteis e supérfluos. Cheguei à conclusão de que a música deve
acrescentar à poesia aquilo que o brilho das cores e a boa distribuição da luz e das
sombras trazem a um desenho correto e bem concebido (…) Cheguei também à
conclusão de que a minha tarefa consistia principalmente em procurar uma beleza
simples e evitei todo o excesso de dificuldade que pudesse comprometer a clareza (…)”
(Grout e Palisca, 1988)
Podemos, então, através deste prefácio inferir que os reformadores pretendiam
simplificar o género, estreitando a relação entre o texto e a música. Em conformidade
com estes ideais, grandes melismas são suprimidos das apresentações, assim como os
excessos virtuosísticos veiculados pelos cantores que pretendiam exibir e ostentar as
suas capacidades vocais sem contexto dramático. As arias da capo são eliminadas e o
texto revela-se menos repetitivo. As melodias são mais silábicas e simples contribuindo
para uma maior inteligibilidade do público. São, também, abolidos os recitativos secos
(onde os cantores eram apenas acompanhados por um cravo) em prol dos recitativos
acompanhados que se revelam mais dinâmicos e que se relacionam com as respetivas
arias que precedem através de semelhanças rítmicas, de tonalidade e instrumentais.
Quer isto dizer que, a distinção entre recitativo e aria é atenuada, encaminhando a
ópera reformada na direção da prosa musical. Outra característica distintiva da reforma
prende-se com a importância conferida aos coros que ganham peso significativo na
condução da trama, assim como os bailados que acrescentam sentido dramático e
acabam muitas vezes por enquadrar a dor humana. Como exemplo disto, temos a aria
Deh placatevi con me2 da ópera Orfeo ed Euridice. Estruturas previsíveis
(recitativo/aria/recitativo/…) são evitadas e a abertura tem de preparar o drama que se
irá desenvolver ao longo da ópera. A orquestra é frequentemente utilizada como meio
para representação de ambientes ou emoções, ou seja, esta ganha sentido dramático e
há um maior cuidado na apresentação e representação dos sentimentos que se querem
o mais naturais e realistas possível.
Os títulos destas obras encontram-se em francês e dá-se a retoma aos temas
mitológicos. A ópera reformada é uma ópera de grande investimento que pretendia
atingir um estatuto tão relevante quanto o da ópera seria.

1-Apresentada no anexo A
2-Apresentado no anexo B
10

As óperas reformadas
Orpheu ed Euridice
Em colaboração com Gasparo Angiolini (coreógrafo), Giovanni Maria Quaglio
(cenógrafo) e o supracitado Calzabigi (libretista), Gluck apresentou a público a sua
primeira ópera reformada em outubro de 1762 nos festejos de homenagem ao
imperador Francisco I. O libretista confessou ter-se inspirado no teatro clássico para a
sua escrita e sobre a obra disse: “Reduzido à forma da tragédia grega, o drama tem o
poder de despertar a piedade e o terror e atuar sobre a alma da mesma forma que as
tragédias faladas”. Esta sua versão distanciava-se das restantes anteriormente
realizadas pois, aquando do início da ópera, Euridice já se encontrava morta. Outro fator
que vai de encontro aos ideais defendidos pela reforma operática depreende-se com o
número de personagens em palco, reduzido a três.
Em 1774, Gluck estreou a versão francesa da ópera intitulada “Orphée et
Eurydice” no Palais Royal com o libreto de Pierre Louis Moline. Para além da mudança
no nome, o compositor teve de realizar algumas outras alterações a fim de agradar ao
público francês. Na versão italiana da ópera, o papel de Orpheu foi atribuído a Gaetano
Guadagni, um castrato. Já na versão francesa, tal papel teve de ser adaptado para a voz
de um tenor com registo de falsetto (haute-contre) que ia de encontro ao papel de herói
característico da ópera francesa. Houve, ainda, modificações na orquestração e
acréscimo de algumas árias e cenas de dança, nomeadamente uma dança retirada do
supracitado bailado “Don Juan” (1761, Gluck). Estes esforços revelaram-se bastante
proveitosos, uma vez que, a ópera foi muito bem recebida pela crítica parisiense.

Alceste
A acrescentar ao famoso prefácio desta obra, a esta também lhe deve ser
atribuída mérito pela sua abertura sinfónica. Isto porque, é a primeira abertura que se
apresenta como premonição da história que se irá desenrolar em palco. As personagens
desta ópera são donas de uma grande densidade psicológica por comparação ao que
era habitual nas óperas anteriormente apresentadas. Alceste aproxima-se de Orpheu ed
Euridice, uma vez que, também nesta obra existe um grande sacrifício que deve ser
exercido a fim de salvar alguém amado.
“Indeed, to an extent far greater even than in Orfeo, chorus and solo song are
intermingled in Alceste. There was precedent in French tragédie lyrique for the manner
in which Gluck knitted together the various tableaux in Alceste, with choral refrains
returning in subsequent scenes, after intervening material (whether sung or danced).
But as Petrobelli (G1987) has noted, Gluck himself was responsible for many subtle but
telling musical and rhetorical changes (affecting the structure of Calzabigi's original
libretto), which helped forestall tedium and permitted him to extend his scene
complexes to unheard-of lengths. In these large musical edifices the solo interjections
of the two confidants, Ismene and Evander, provided worthy musical occupation for a
type of character all too often employed for amorous intrigues in Metastasian dramas.”
11

(Sadie, S., & In Grove, G. (1980). The New Grove Dictionary of Music and Musicians)
Um ano após a sua estreia em Viena, também Alceste foi adaptada para os palcos
franceses. Apesar de atualmente ser uma ópera bastante aclamada pela crítica, obra é
“musicalmente mais rica, mais flexível, dramaticamente mais persuasiva e mais
profunda no tratamento das emoções dos protagonistas” (Sadie, S & In Grove, G.
(1980). The New Grove Dictionary of Music and Musicians). Contudo, a receção à
mesma nem sempre foi tão aprazível mas após algumas sessões da mesma o génio de
Gluck teve a capacidade de alterar a opinião do público.

Iphigénie en Aulide e Iphigénie en Tauride


Iphigénie en Aulide estreou em Paris no ano de 1774. Ao contrário das óperas a
cima mencionadas, esta não é baseada num libreto de Calzabigi mas sim de François-
Louis du Roullet. A grande inovação que acompanha esta ópera é o facto da mesma
conter dois grandes monólogos, recurso nunca antes utilizado.
Iphigénie en Tauride é a continuação de Iphigénie en Aulide. Estreou em maio de
1779 e é por muitos considerada o culminar dos esforços da reforma operística. O libreto
francês é de autoria de Nicolas-François Guillard mas a ópera chegou a ser traduzida
tanto para italiano como para alemão. Um elemento caracterizador desta obra é o facto
de a mesma não possuir uma abertura definida, mas sim uma introdução informal que
dirige o espetador diretamente à primeira cena.

Armide
No que se depreende como um esforço para homenagear Lully, a ópera Armide
reutiliza o libreto de Philippe Quinault. Contudo, esta nova adaptação apenas veio
evidenciar os contrastes entre a nova corrente de Gluck e aquela que se praticava
anteriormente. Por este motivo, uma grande polémica surgiu seguida à estreia desta
mesma ópera. Na obra, o compositor confessa o desejo pela criação de música
supranacional. Evidentemente, esta sua vontade não foi muito bem aceite pelo público
francês que sempre se havia revelado extremamente patriota.

Écho et Narcisse
Écho et Narcisse, com libreto de Louis-Théodore de Tschudi, foi a sexta e última
ópera escrita por Gluck para os palcos franceses. Esta obra aproxima-se dos ideais
pastorais e pode ser considerada um verdadeiro fiasco, uma vez que, após doze
apresentações a público esta foi descontinuada. Motivado pelo insucesso da mesma e
entristecido pela morte da sobrinha que havia adotado, Gluck viajou para Vienna no ano
de 1776 para nunca regressar a Paris.
12

Conclusão
Em suma, Gluck não só é o principal agente naquela que atualmente
denominamos de reforma operática como acaba mesmo por se aproximar do estatuto
de reformador da opera seria e da tragédie lyrique. Na primeira, introduz coros e ballet
conservando o melodismo italiano. Já na segunda, é acrescentado um novo idioma
musical (o italiano) preservando o estilo declamatório francês. No fundo, Gluck alcança
a unificação e fusão de ambas correntes, algo bastante ambicionado por seus
antecessores, mas cuja execução exímia apenas é atingida por este compositor.
Podemos, ainda, inferir que a sua educação e o meio onde o compositor estava inserido
foram importantes fatores dentro da temática.
Por fim, é possível apresentar a música reformada de Gluck como uma reação
adversa aos excessos do barroco que pretendia uma maior aproximação ao real através
da simplicidade e naturalidade.
13

Bibliografia
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Gluck. The Journal of Musicology, 6(4), 510–527. https://doi.org/10.2307/763744
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Sadie, S., & In Grove, G. (1980). The New Grove Dictionary of Music and Musicians
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Anexos
A- Prefácio de Alceste
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Anexo B- Excerto Musical nº1 Gluck, Orfeo ed Euridice, aria Deh Placatevi com me
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