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106 O desenvolvimento do poder local em África: O caso dos municípios em Moçambique
titucionalidade, pelo que se optou por fazer uma revisão da Constituição (lei 9/96
de 22 de novembro). A emenda constitucional introduziu o título “Poder Local”,
que previa a existência de autarquias locais, visando a participação dos cidadãos
na solução dos problemas da sua comunidade, a promoção do desenvolvimento
local e o aprofundamento da democracia, no quadro da unidade do Estado mo-
çambicano (Trindade, 2003, p. 120).
Assim, em 1997, foi publicada nova lei (2/97, de 18 de fevereiro), que serviu
de quadro normativo às primeiras eleições municipais em 1998, feitas em 33 con-
celhos. Embora a lei fosse igualmente matéria de discórdia e de debate político-
partidário, à semelhança da lei 3/94, foi, finalmente, aprovada pela Frelimo e pela
União Democrática (UD). A Renamo e quase todos os restantes partidos de opo-
sição recusaram-se a participar nas primeiras eleições autárquicas de 1998, por
discordarem da forma como o processo de descentralização estava a ser condu-
zido pelo governo. Essa rejeição deu origem a uma elevada taxa de abstenção de
85,42%. Na maioria dos municípios em disputa, o partido no poder concorreu
sozinho às eleições. Ainda assim, nas duas maiores cidades do país, Maputo e
Beira, as associações de cidadãos – Juntos pela Cidade e Grupo de Reflexão e
Mudança – obtiveram resultados relevantes, atingindo, respetivamente, 25,58%
e 39,85% dos votos e elegendo, no primeiro caso, 15 e, no segundo, 17 membros
para as Assembleias Municipais (Trindade, 2003, pp. 118-125).
A nova legislação introduziu a uma mudança significativa na filosofia subja-
cente à mencionada lei 3/94, conforme o Quadro 1. Para muitos autores, houve
uma clara regressão sob o ponto de vista do aprofundamento do processo de-
mocrático. As maiores críticas dirigem-se, por um lado, ao facto de a lei 2/97 se
aplicar a um número restrito de cidades e vilas, e, por outro lado, não contemplar
as comunidades e não promover o envolvimento das autoridades tradicionais
(Trindade, 2003, p. 120). O Quadro 1 mostra claramente as diferenças entre as
duas conceções de poder local, já que na primeira lei, a 3/94, é manifesta a impor-
tância concedida às Autoridades Tradicionais, consideradas um poder de facto.
Existiriam, assim, poderes legitimados pelo voto popular e poderes tradicionais,
que não são eleitos.
Esta dualidade levantava um problema constitucional que a lei 2/97, de
18 de fevereiro, tentou resolver, introduzindo o conceito de legitimação das
Autoridades Tradicionais (AT), por parte do poder central. Todavia, este procedi-
mento não retira às AT o seu papel de mediadores entre o poder central, herdeiro
do poder colonial, e a população. Na verdade, esta absorve a lei, conforme ela é
lida pelos líderes locais.
Quadro 1: Principais diferenças entre a lei 3/94 e a lei 2/97 sobre o poder local
Enumeração clara das funções e As funções dos governos locais são reduzidas
serviços dos governos locais (inclui em questões essenciais (como o uso da terra) e
segurança pública, uso da terra, condicionadas à existência de recursos financeiros
abastecimento de água, entre outros). locais.
Tutela legal e financeira dos Tutela legal e financeira dos municípios por parte
municípios por parte do Ministério do MAE e do MPF, respetivamente. A lei da tutela
do Plano e Finanças (MAE), administrativa do Estado sobre as autarquias locais
respetivamente. (elaborada, discutida e aprovada posteriormente)
determina que a tutela pode ser delegada aos
governos provinciais.
Niassa Lichinga Lichinga (Iº) - C e Cuamba (Iº)- D Metangula (Iº), Marrupa (IIº) 5
e Mandimba (IIIº)
Nampula Nampula Nampula (Iº),- B Angoche (Iº)- C, Monapo (Iº), Ribáuè (IIº) e 7
Ilha de Moçambique (Iº) - C e Malema (IIIº)
Nacala (Porto) - (Iº)- C
Zambézia Quelimane Quelimane (Iº)- C, Gúrué (Iº)- D e Milange (Iº), Alto Molócuè 6
Mocuba (Iº)- D (IIº), Maganja da Costa (IIIº)
Manica Chimoio Chimoio (Iº)- C e Manica (Iº)- D Catandica (Iº), Gondola (IIº) e 5
Sassundenga (IIIº)
Inhambane Inhambane Inhambane (Iº)- C e Maxixe (Iº)- D Vilankulo (Iº), Massinga (IIº) 5
e Quissico (Zavala). (IIIº)
Gaza Xai-Xai Xai-Xai (Iº)- C, Chibuto (Iº)- D e Mandlakazi (Iº), Macia (IIº) e 6
Chókwè (Iº)- D Praia do Bilene (IIIº)
Total 53
Municípios
Povoações
Governo Distrital
Subordinado ao
Governo Provincial
Chefe da Localidade
(nomeado pelo
governador
provincial)
Autoridades Tradicionais
Como notou Santos (2003), o tema das Autoridades Tradicionais (AT) tem pro-
vocado um grande debate no continente africano, merecendo, por si só, uma re-
flexão sociológica:
os temas da discussão são muitos e entre eles são de salientar os seguintes: as auto-
ridades tradicionais enquanto poder e administração local; a regulação do acesso à
terra; o direito costumeiro e a justiça tradicional; as mulheres e o poder tradicional;
a feitiçaria; a medicina tradicional; a compatibilidade entre os direitos costumeiros
e o direito oficial e, em especial, a constituição (p. 74).
ADMINISTRAÇÃO CENTRAL
ACTIVIDADES
CENTRAIS
DIRECTAS GOVERNO
PROVINCIAL AUTARQUIAS
EX. REGISTO E
NOTARIADO
ACTIVIDADES
CENTRAIS ACTIVIDADES DE
DELEGADAS NO GP OBJECTIVOS NACIONAIS INTERESSE
ATRIBUÍDOS AOS GP PROVINCIAL
EX. EDUCAÇÃO
SECUNDÁRIA EX. EDUCAÇÃO
PRÉ-PRIMÁRIA
REPRODUÇÃO DE SEMENTES
EXTENSÃO
ESTADO
Segurança Social
Autoridades Tradicionais
(AT);
Posto Posto
Líderes Comunitários;
Administrativo Administrativo
Médicos Tradicionais;
(Povoação) Organizações Não (Povoação)
Governamentais (ONG); e
outras Organizações sem
Fim Lucrativos.
Localidade Bairro
Unidades Quarteirão
Comunais
Governação do passado 3 1
Defensores do passado 3 1
Concordo 276 59
O grupo de participantes que discorda ou nem quer ouvir falar dessa articula-
ção é apenas de 5,1%. A resposta sugere, portanto, que o número de cidadãos que
rejeita o papel das AT é diminuto, o que pode ser traduzido no interesse crescente
2
Em Moçambique, chamaram-se Grupos Dinamizadores às organizações de base da sociedade, durante a luta
pela independência de Moçambique. Trata-se de células criadas pelo partido de base da Frelimo, organização que
assumiu o poder político após a independência.
pelas autoridades tradicionais e a sua relação com o Estado, enquanto tema cen-
tral ao debate político no mapa do continente africano.
Em relação à articulação entre o Conselho Municipal (incluindo autoridades
distritais) e os Chefes Tradicionais, o Quadro 7 mostra que 50,8% de pessoas
discorda totalmente ou nem quer ouvir da questão, enquanto 23% concorda ou
concorda muito com essa articulação. Estas respostas parecem mostrar que é per-
cebido pela população um antagonismo entre as Autoridades Tradicionais e o
Conselho Municipal, considerando o papel histórico das AT quer no regime colo-
nial, quer a sua experiência no regime socialista do pós-independência.
Concordo 89 19,1
Concordo 7 1,4
Concordo 11 2,3
Conclusão
Do confronto da teoria prismática com a análise do desenvolvimento admi-
nistrativo em Moçambique e com a análise dos dados empíricos, verifica-se que
a cultura e a estrutura política tradicionais têm uma importância central. Desse
modo, a administração local não se esgota nas leis que traduzem modelos im-
portados, mas tem que ser lida nas práticas administrativas e no comportamento
dos habitantes.
A observação destas distorções ou refrações obriga, necessariamente, a um
outro tipo de estudo mais em profundidade, de confronto entre o papel das auto-
ridades administrativas formais e das autoridades tradicionais.
Na nossa opinião, as práticas e as rotinas administrativas não são uma fo-
tocópia das intenções do legislador, nem pura e simplesmente a tradução do
pensamento tradicional. A análise empírica não explica completamente a teoria
prismática, mas confirma que tal teoria constitui uma aproximação explicativa da
formação do poder local em Moçambique.
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