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R. J.

RUSHDOONY

AO SEU SERVIÇO:
O CHAMADO CRISTÃO À CARIDADE

Tradução
Fabrício Tavares de Moraes
Ao seu serviço:
o chamado cristão à caridade
R. J. Rushdoony
(publicado postumamente)
Copyright @ 2009, de Mark R. Rushdoony
Publicado originalmente em inglês sob o título
In His Service: The Christian Calling to Charity
pela Ross House Books
PO Box 158, Vallecito, CA, 95251, EUA.

Todos os direitos em língua portuguesa reservados por


Editora MonergismoSCRN 712/713, Bloco B, Loja 28 — Ed. Francisco Morato
Brasília, DF, Brasil — CEP 70.760-620
www.editoramonergismo.com.br

1ª edição, 2020

Tradução: Fabrício Tavares de Moraes


Revisão: Felipe Sabino de Araújo Neto
Capa: Chalcedon Foundation

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Todas as citações bíblicas foram extraídas


da versão Almeida Revista e Atualizada (ARA) salvo indicação em contrário.
Conteúdo
1. O LUGAR DA LEI BÍBLICA NA SOCIEDADE
2. O INIMIGO INVISÍVEL: O HUMANISMO SECULAR
3. A BATALHA POR UMA GERAÇÃO: O FOCO NA EDUCAÇÃO
4. A BATALHA PELA RETIDÃO: A APLICAÇÃO DA LEI BÍBLICA À
SOCIEDADE SECULAR
5. HUMANISMO E SUA INFLUÊNCIA SOBRE A FAMÍLIA
6. PODER E SERVIÇO
7. A IGREJA DA “SENSAÇÃO ACONCHEGANTE E CALOROSA” VERSUS
A IGREJA DE JESUS CRISTO
8. AS CÂMARAS DO PODER
9. ESPERANÇA E VITÓRIA
10. A COMUNIDADE DE CRISTO
11. CRISTIANISMO E CULTURA, PARTE 1
12. CRISTIANISMO E CULTURA, PARTE 2
13. A PULSÃO DE AUTONOMIA
14. GOVERNO E DOMÍNIO
15. O PROBLEMA DA POBREZA, PARTE 1
16. O PROBLEMA DA POBREZA, PARTE 2
17. COMPAIXÃO
18. SOLUÇÕES
19. VIÚVAS, ÓRFÃOS E POBRES
20. CARIDADE, PARTE 1
21. O DIACONATO, CARIDADE E ASSISTENCIALISMO
22. CARIDADE, PARTE 2
23. CARIDADE CRISTÃ
24. O JOÃO CALVINO DESCONHECIDO
25. GOVERNO E DIACONATO
26. CARIDADE E ESTADO
27. A REVOLUÇÃO HUMANISTA
28. TRABALHO E CARIDADE
29. JUSTIÇA E CARIDADE
30. “A RELIGIÃO PURA E IMACULADA”
31. ATOS DE CARIDADE
1. O LUGAR DA LEI BÍBLICA NA
SOCIEDADE

A pergunta acerca do lugar da lei bíblica na sociedade é


semelhante àquela sobre o lugar do sol e do oxigênio em nossa vida
material. Essa comparação, na verdade, sequer se aproxima da
necessidade da lei revelada de Deus em nossa ordem social.

O Breve catecismo de Westminster, na pergunta 14, diz-nos:


“Pecado é qualquer falta de conformidade com a lei de Deus, ou
qualquer transgressão desta lei”. Isso ecoa 1 João 3.4, onde está
escrito: “Todo aquele que pratica o pecado também transgride a lei,
porque o pecado é a transgressão da lei”. É-nos dito: “Mas o que
peca contra mim violenta a própria alma. Todos os que me
aborrecem amam a morte” (Provérbios 8.36). De igual modo,
“porque o salário do pecado é a morte, mas o dom gratuito de Deus
é a vida eterna em Cristo Jesus, nosso Senhor” (Romanos 6.23).

Paulo também nos ensina:


Porque pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós; é dom

de Deus; não de obras, para que ninguém se glorie. Pois somos feitura dele,

criados em Cristo Jesus para boas obras, as quais Deus de antemão

preparou para que andássemos nelas. (Ef. 2.8-10)

Somos salvos pela graça soberana de Deus por meio da fé; e


não fomos salvos para desprezar sua lei, sua justiça e retidão. Pelo
contrário, Paulo diz que Deus de antemão nos preparou e designou
nossa regeneração: “Pois somos feitura dele, criados em Cristo
Jesus para boas obras”. Crucificamos Cristo novamente quando
desprezamos sua lei.
Nas Escrituras, a palavra “justiça” tem o mesmo sentido de
retidão. Justiça ou retidão é uma ordem moral e portanto um fato
religioso. A lei expressa as perspectivas de justiça ou de ordem
moral, sendo, pois, uma instituição da religião. As leis não
estabelecem, per se, uma igreja, mas sim uma religião — e isto se
dá necessariamente. À vista disso, o único tipo de lei aceitável da
perspectiva bíblica é a lei de Deus: “Se o Senhor não edificar a
casa, em vão trabalham os que a edificam; se o Senhor não guardar
a cidade, em vão vigia a sentinela” (Salmos 127.1).
Como o Senhor constrói sua casa ou reino? Por muito tempo
buscamos estabelecer a ordem legal divina por meio do Estado ou
da igreja. Ambos são esferas necessárias mas limitadas, estando
sob a autoridade de Deus. A Escritura traça limites de modo
específico aos seus poderes. Assim, de acordo com Números
18.25-28, os sacerdotes, isto é, o santuário ou a igreja, recebiam um
décimo do dízimo. Sua porção incluía também uma parte de certos
sacrifícios, mas o restante do dízimo ia para os levitas, que eram,
dentre outras coisas, os instrutores de Israel (Deuteronômio 33.10).
Impedia-se, desse modo, que o domínio eclesiástico se tornasse um
centro de poder. O mesmo se aplicava ao governo civil ou Estado.
Este estava estritamente limitado em seus poderes, já que seu
tributo era simplesmente a metade de um siclo por ano, da parte de
todos os homens acima de vinte anos. Sabemos pela história que o
imposto da expiação (da cobertura ou proteção) de Êxodo 30.11-16
era o imposto civil de Israel, da Judéia e dos judeus, pelo menos até
a Idade Média.
A igreja e o Estado eram, desse modo, limitados
rigorosamente em seu escopo e poder. A lei de Deus se dirige
principalmente às famílias do pacto, ao povo de Israel. A ordem do
reino de Deus tem esta característica:
Porque esta é a aliança que firmarei com a casa de Israel, depois daqueles
dias, diz o Senhor: Na mente, lhes imprimirei as minhas leis, também no
coração lhas inscreverei; eu serei o seu Deus, e eles serão o meu povo.
(Jeremias 31.33)

Isso significa que a área central de ação se encontra na família


pactual e seus membros. A família é o berço da vida, a primeira
igreja, escola, governo e vocação do homem. A lei de Deus não nos
permite transferir nossos deveres para o Estado ou para a igreja.
Toda evasão semelhante do dever é desordem, de acordo com as
Escrituras; a começar com o cuidado em relação aos próprios pais.
Nosso Senhor declara:
Respondeu-lhes: Bem profetizou Isaías a respeito de vós, hipócritas, como
está escrito: Este povo honra-me com os lábios, mas o seu coração está
longe de mim. E em vão me adoram, ensinando doutrinas que são preceitos
de homens. Negligenciando o mandamento de Deus, guardais a tradição dos
homens. E disse-lhes ainda: Jeitosamente rejeitais o preceito de Deus para
guardardes a vossa própria tradição. Pois Moisés disse: Honra a teu pai e a
tua mãe; e: Quem maldisser a seu pai ou a sua mãe seja punido de morte.
Vós, porém, dizeis: Se um homem disser a seu pai ou a sua mãe: Aquilo que
poderias aproveitar de mim é Corbã, isto é, oferta para o Senhor, então, o
dispensais de fazer qualquer coisa em favor de seu pai ou de sua mãe,
invalidando a palavra de Deus pela vossa própria tradição, que vós mesmos
transmitistes; e fazeis muitas outras coisas semelhantes. (Marcos 7.6-13)

É preciso lembrar que, ao falar de tradição, nosso Senhor se


refere a leis criadas pelos homens.
O antropologista Marvin Harris, em sua obra Why Nothing
Works, The Anthropology of Daily Life [Por que nada funciona? A
antropologia da vida cotidiana], vai contra suas próprias visões
progressistas na medida em que nos narra o crescente colapso do
mundo moderno. O cerne do problema, diz-nos ele, é nosso
antinatalismo: somos anti-nascimento e portanto anti-vida. Mesmo
aqueles contrários ao aborto são por vezes marcados por uma
escassez de vida e fé. As crianças, de igual modo, são vistas por
muitos como um fardo, não uma bênção, uma herança do Senhor e
seu galardão (Salmos 127.3). Em razão desse anti-natalismo e de
nossa mesquinhez interna, todos os grupos anti-vida, como os
homossexuais e abortistas, saíram do armário, ao mesmo tempo em
que muitos cristãos se esconderam nele.
Essa mesquinhez da alma levou a igreja a uma retirada, a um
comportamento orientado pelo escape ou arrebatamento, e por
conseguinte a uma capitulação geral do mundo ao diabo e suas
forças.
A lei de Deus é um plano e prescrição para o domínio de tudo
na vida. É uma declaração dos meios para a vitória por parte do
povo da aliança de Cristo em suas vidas diárias, na educação,
família, escola, artes e ciência, em nossas vocações, igrejas, Estado
e em todas as demais instâncias, incluindo nossa própria saúde,
pois nos é dito que, se ouvirmos a lei do Senhor,
o Senhor afastará de ti toda enfermidade; sobre ti não porá nenhuma das
doenças malignas dos egípcios, que bem sabes; antes, as porá sobre todos
os que te odeiam. (Deuteronômio 7.15)

A lei do Senhor é, pois, uma escritura e uma constituição para


uma sociedade descentralizada, na qual os poderes fundamentais
de governo são exercidos pelo povo da aliança de Deus em seu
autogoverno em cada esfera — em suas famílias, vocações,
agências de dízimo que fundam para ministrar a uma variedade de
problemas e necessidades sociais, e assim por diante.
Jamais se pode enfatizar suficientemente que o financiamento
de serviços sociais é uma necessidade. Se o povo da aliança de
Deus não os fornecer, o Estado não só deve mas de fato os
fornecerá. O atual Estado de bem-estar procede em parte da
deserção dos cristãos, que relegaram a fé à vida interior do homem.
Nas culturas em que o Estado não financia serviços sociais, a
depredação e pilhagem proliferam-se rapidamente, conforme os
necessitados tomam aquilo de que precisam: a Inglaterra do século
XVIII, por exemplo, é uma evidência disso, e a pena de morte para
mais de duzentos tipos de crime não impedia que os famintos
roubassem.
Sempre que a comunidade cristã abandona sua tarefa
essencial de governo e ajuda, outras forças a assumem. Nosso
Senhor nos ensina algo que frequentemente optamos por não
lembrar, isto é, serviço é poder:
Então, Jesus, chamando-os, disse: Sabeis que os governadores dos povos
os dominam e que os maiorais exercem autoridade sobre eles. Não é assim
entre vós; pelo contrário, quem quiser tornar-se grande entre vós, será esse
o que vos sirva; e quem quiser ser o primeiro entre vós será vosso servo; tal
como o Filho do Homem, que não veio para ser servido, mas para servir e
dar a sua vida em resgate por muitos. (Mateus 20.25-28)

A expressão “o que vos sirva” (v. 26) é, no original, diáconos,


servo; por sua vez, no versículo 27, o termo “servo” é a tradução de
doulos, escravo, serviçal. Nosso Senhor é enfático: serviço é poder,
e os gentios falham em reconhecer isso e por isso substituem o
serviço pelo exercício da força bruta. Hoje em dia, contudo, os
ímpios tomaram de empréstimo elementos da igreja que ela própria
abandonou, a saber, o fato de que serviço é poder. A partir disso, o
Estado moderno criou uma forma sem precedentes de poder, ao
assumir para si os serviços diaconais da igreja. Roma oferecia pão e
circo para manter a turba longe de revoltas. O Estado moderno vê
seus serviços de assistência social como meios de criar um paraíso
na terra, a Grande Comunidade ou a Grande Sociedade. O
equívoco nesse plano é a impossibilidade de se criar, a despeito das
grandes somas de dinheiro, um novo mundo a partir do homem
pecaminoso: o Estado somente agrava e aumenta o pecado do ser
humano ao ensiná-lo que seu meio — e não sua própria natureza —
encontra-se caído e num estado pecaminoso.
O cristão deve reconhecer que: em primeiro lugar, o homem
deve nascer de novo, e que, para o reino de Deus, não há outro
caminho senão Jesus Cristo (João 3.3). Em segundo lugar, os vivos
agem. William Booth acusava as igrejas de mumificar seus
convertidos — acusava-as de produzir múmias cristãs que se
assentavam nos bancos da igreja e cuja ação era pouco mais do
que um simples estender da mão à carteira. Quando a Bíblia nos
convoca a ouvir a palavra do Senhor, a força deste verbo se traduz
tanto em ouvir quanto obedecer, em agir segundo as ordens de
Deus.
Toda palavra das Escrituras é lei de Deus. Tendo em vista que
nosso Senhor é Deus, e que não há outro, cada palavra das
Escrituras é compulsória, uma palavra de ordem, que nos exige a
atenção e obediência. Que não ousemos reduzir a fé a uma efusão
carola, nem a adoração a uma experiência estética! O propósito dos
serviços da igreja não é um impressionante deleite musical ou
litúrgico, mas sim fornecer ordens de marcha para os soldados de
Cristo.
À lei e ao testemunho! Se eles não falarem desta maneira, jamais verão a
alva (Isaías 8.20)
1
2. O INIMIGO INVISÍVEL: O HUMANISMO
SECULAR

O humanismo é a segunda religião mais antiga conhecida pelo


homem. Remonta ao Jardim do Éden e ao credo do tentador
conforme expresso em Gênesis 3.1-5. Seu primeiro artigo de fé é a
crença de que todas as coisas, incluindo cada palavra de Deus,
deve ser testada pela razão e experiência do homem: “É assim que
Deus disse: Não comereis de toda árvore do jardim?”. Tomar, pela
fé, qualquer palavra de Deus é tido como irracionalismo e como
religiosidade nociva. Nos Estados Unidos de 1987, um livro de
Osborn Segerberg Jr., um unitarista, adota uma posição muito mais
favorável para com Jesus do que é comum entre unitaristas
americanos. Em The Riddles of Jesus and the Answers of Science
[Os enigmas de Jesus e as respostas da ciência], o autor se depara,
segundo crê, com a “verificação moderna de sua sabedoria e como
ela pode te auxiliar” (subtítulo do livro). Segerberg demonstra uma
visão crítica para com os críticos acadêmicos da Bíblia como
Reimarus, Strauss, Bauer, Weiss e Schweitzer. A ciência, afirma o
autor, tem confirmado muitas das percepções de Jesus, “um gênio”,
e “na ressurreição estava a promessa do destino de todos os seres
humanos”. Segerberg não vê Jesus como o Filho de Deus, como
nossa expiação, nem como Senhor, mas sim como uma evidência
da potencialidade humana: Segerberg é um humanista. Um
humanista pode por vezes crer em Deus em certa medida, mas crê
nele essencialmente como um recurso para o homem, em vez de
como Senhor ou Soberano. Muitos líderes eclesiásticos que
professam crer na Bíblia de capa a capa são humanistas que vieram
ao cristianismo, não para serem usados pelo Senhor, e sim para
usá-lo. Na época da Guerra de Independência americana, Samuel
Hopkins viu o humanismo crescente da igreja, com Deus sendo
antes o grande recurso do que o Senhor. Hopkins desenvolveu uma
questão examinadora para os membros e possíveis membros:
“Estais dispostos a serem condenados para a glória de Deus?”. Ele
não estava exigindo que as pessoas agissem hipocritamente; com
isso queria somente fazê-las perceber que devemos buscar primeiro
o Reino de Deus e sua retidão ou justiça (Mateus 6.33). Somos
salvos para servir a Deus e sua glória, e isto pode implicar a perda
de muitas coisas. Significa, nas palavras de Lutero em um de seus
hinos:
Se temos de perder
Família, bens, poder
E, embora a vida vá,
Por nós Jesus está
E dar-nos-á seu reino.
Esta atitude de “É assim que Deus disse?” tolera apenas uma
palavra positiva da parte de Deus ao homem. Entende que o fim
principal de Deus é o serviço ao homem, a fim de que este possa
gozar a si mesmo para sempre. O humanismo na igreja vê Cristo
como nosso grande agente dos seguros de vida e de incêndio, não
como o Senhor.
O segundo artigo de fé do humanismo é este: “É certo que não
morrereis”. Esse artigo pressupõe a possibilidade de a ciência
humana superar, caso lhe seja dado tempo suficiente, os problemas
da morte, juntamente com todos os outros problemas sociais. Essa
visão separa a morte do pecado, ao passo que as Escrituras são
enfáticas na ligação entre ambos: por meio do pecado do homem
veio a morte, e somente pela morte e ressurreição de Cristo a
expiação e ressurreição podem vir ao homem (1 Coríntios 15.21 ss).
Para o cristão, a ligação entre pecado e morte é incontornável, tanto
para os seres humanos quanto para as nações. Ademais, para nós,
a morte não é um fato natural. Deus fez todas as coisas muito boas
(Gênesis 1.31), mas o pecado do homem o separou de Deus e
portanto da vida. O pecado é a fonte da morte, e esta, por sua vez,
é um fato sobrenatural de julgamento por parte do Todo-Poderoso.
Enquanto concebermos a morte isoladamente do pecado, e como
se fosse um fato natural, estaremos inclinados ao humanismo.
Em terceiro lugar, para o tentador e para o humanismo (sua
religião), segue-se que a desobediência a Deus é o princípio da
sabedoria: “no dia em que dele comerdes se vos abrirão os olhos”.
Ele diz, com isso, que, enquanto, em fé, crermos e obedecermos a
cada palavra que procede da boca de Deus (Mateus 4.4), nossos
olhos não serão abertos, de modo que permanecemos cegos. Para
o humanismo, a fé no Senhor é o princípio da ignorância, e a
desobediência, por seu turno, abre nossos olhos e torna-nos sábios.
É-nos dito:
Vendo a mulher que a árvore era boa para se comer, agradável aos olhos e
árvore desejável para dar entendimento, tomou-lhe do fruto e comeu e deu
também ao marido, e ele comeu. (Gênesis 3.6)

O conselho do tentador era: Sejam sábios, apostatem!


Em quarto lugar, essa sabedoria significa “fazer papel de
deus”: “como Deus, sereis conhecedores do bem e do mal”.
Conhecer, aqui, tem o sentido de determinar: determinareis para vós
mesmos o que se constitui como bem e mal; todo homem será sua
própria fonte de lei e moralidade. Ao invés de permitir que Deus lhes
providencie todas suas leis, os seres humanos tornar-se-ão eles
seus próprios legisladores. É digno de nota que, durante a era da
Comunidade da Inglaterra (Commonwealth), o missionário da Nova
Inglaterra, John Eliot, converteu e organizou os nativos em vilas
autogovernadas, todas regidas pela lei de Deus. Na subida de
Carlos II ao trono, em 1660, os ministros da coroa estabeleceram
que, pelo contrário, a lei real, e não a lei de Deus, deveria reger
essas vilas. As comunidades se desfizeram, e ordenou-se que todas
as cópias do livro de Eliot, The Christian Commonwealth [A
comunidade cristã], fossem queimadas pelo verdugo oficial. Apenas
duas cópias restaram.
A premissa da cultura moderna ao redor de todo o mundo é
Gênesis 3.5, cada homem como seu próprio deus e legislador. A
sentença de morte pronunciada para Adão se aplica a todas as
nações, porque chamam bons a males tais como o aborto,
homossexualidade e eutanásia e, ao bem, chamam mal.
O humanismo é comumente chamado de humanismo secular.
A palavra secular tem muitos sentidos; o que nos interessa é o
relacionado ao leigo ou a algo pertence ao laicato. O humanismo
secular é, apenas em raros casos, uma religião do Estado
oficialmente reconhecida e/ou abertamente declarada. Mais
frequentemente, é a fé praticada por muitos homens na igreja e fora
dela, nos corredores e cortes do Estado, e na vida cotidiana. Sob a
superfície do cristianismo estabelecido, o humanismo secular é
amplamente difundido e em geral predomina.
Por conseguinte, estamos numa revolução cultural. É uma
revolução do novo homem, Jesus Cristo, para o velho homem, Adão
— do homem sobrenatural para o homem caído. Essa é a cultura do
iluminismo, do romantismo e da revolução, de Rousseau e de nossa
época.
É comum em nossa cultura a opinião de que o homem caído,
tal como é, é bom e necessita exprimir-se e gratificar-se a si mesmo.
Nossa rebelião contra Cristo revela-se na idealização comum dos
povos primitivos. Os melanésios eram canibais. Travestis e
homossexuais eram comuns entre eles. Suas mulheres
amamentavam leitõezinhos com seus próprios seios. Olhando para
essas pessoas, certo naturalista disse: “É errado forçar as pessoas
a mudarem”. Nós, ele declara, não podemos ensinar essas pessoas
o caminho da felicidade. Eles poderiam ser nossos mestres no
tocante a “estar em paz com nós mesmos e com nosso ambiente”, e
“suas casas são santuários de humanidade”.[1]
Nessa linha, vemos também a tendência de agentes estatais
nos Estados Unidos em ver a Bíblia como um “manual de abuso
infantil”, porque ela exige disciplina e castigo para crianças
indisciplinadas. Essa atitude é ainda mais evidente na Suécia. A
criança é inocente, imaculada e sacrossanta, e a Bíblia, por sua vez,
é vista como maligna e inadequada como um guia para a vida
familiar.
Herman Hoeksema afirmou vigorosamente a diferença entre a
fé do homem caído e a fé do redimido:
O homem natural jamais daria a resposta que o Catecismo de Heidelberg
coloca na boca de seu aprendiz em relação à quinta pergunta: “sou inclinado
a odiar a Deus e a meu próximo”. Ele chega mesmo a ofender-se com essa
verdade. Ele prefere de longe sua própria filosofia. O homem pode falhar
ocasionalmente. Pode errar. É possível que haja alguns que pequem
habitualmente. Mas é inerentemente bom e ama exaltar suas próprias
virtudes e louvar suas boas ações em público. No entanto, deve-se entender
que essa mentira relativamente a si mesmo, esse fechamento de seus
próprios olhos para o julgamento reto de Deus, não é devido a nenhuma
ausência de luz natural. A mentira é um erro ético, não um erro intelectual,
de julgamento. Assim como o “tolo diz em seu coração” que não há Deus,
assim ele convence a si próprio de sua bondade. O homem vive na esfera da
mentira, tanto com relação a Deus quanto com respeito a si mesmo.[2]

Há um aspecto do humanismo, e de todo anticristianismo, que


jamais devemos nos esquecer: é suicida. Nosso Senhor é o
caminho, a verdade, e a vida: estar fora dele é separar-se da vida e
dirigir-se para a morte. A Sabedoria diz-nos:
Porque o que me acha acha a vida e alcança favor do Senhor. Mas o que
peca contra mim violenta a própria alma. Todos os que me aborrecem amam
a morte. (Pv. 8.35-36)

A cultura do humanismo está, pois, condenada. O Senhor


declara: “Retirai-vos dela, povo meu, para não serdes cúmplices em
seus pecados e para não participardes dos seus flagelos”
(Apocalipse 18.4). O humanismo que nos cerca inteiramente está
consumindo o capital cristão do mundo ocidental e descendo
aceleradamente rumo ao desastre e morte. Nossa cultura humanista
se assemelha à pequena república de Nauru, uma ilha no Pacífico,
com 3600 milionários. Nauru exporta anualmente 2 milhões de
toneladas de fosfato, o que significa que a ilha está desaparecendo
em ritmo acelerado. Por volta de 1976, três quartos da terra haviam
desaparecido, e estimou-se que, em 1990, só restará rocha nua e
nenhum solo. O povo rico de Nauru, nesse ínterim, mostra o mais
alto nível de consumo alcóolico no Pacífico, e suas 15 milhas de
autoestradas estão repletas de automóveis carros.[3]
O capital cristão do Ocidente está desaparecendo
rapidamente. A menos que seja reabastecido, o Ocidente não tem
futuro e nada a oferecer às demais nações, senão morte. Roma caiu
porque estava morta interiormente. Sêneca, um filósofo “moral”,
conduzia outros à imoralidade. Foi o preceptor de Nero tanto no
vício quanto na filosofia. Nos quatro anos mais frutíferos de suas
associações com o poder, acumulou uma fortuna de US$
15.000.000, segundo o valor do dólar no século passado. A soma da
sabedoria de Sêneca era simplesmente isto: “O objetivo de toda a
filosofia é desprezar a vida”.[4] Em nossa época, igualmente, várias
filosofias apresentam uma tônica semelhante. Ao nível da prática,
vemos a predominância do motivo antivida: aborto,
homossexualidade, eutanásia, dentre outros. A fertilidade é vista
como um problema por pessoas que odeiam a vida. Outra
manifestação semelhante é o ódio contra a justiça e contra o
inocente. Lorde Diplock, da Câmara dos Lordes britânica, referiu-se
alguns anos atrás às normas americanas da lei criminal [penal],
assim como à supressão da evidência em virtude dessas normas,
como uma visão da “irrelevância da culpa”. Macklin Fleming, um juiz
californiano, dedicou um capítulo de seu estudo The Price of Perfect
Justice [O preço da justiça perfeita] à “irrelevância da culpa”.[5] Isto
não deveria nos surpreender: num mundo em guerra contra nosso
Senhor — um mundo que diz: “É assim que Deus disse?” —, a
culpa tem um status privilegiado entre os homens que são eles
próprios culpados perante Deus. Num número cada vez maior de
países, as pessoas são proibidas de tratar acerca de fatos sobre
grupos ou classes criminosas, já que estes últimos são mais
protegidos pela lei que o cidadão de bem. Ouvi professores e
estudantes declararem que os povos cristãos e brancos do mundo
são a maior força para o mal conhecida pela história. Os culpados
processam os inocentes, e os anticristãos insistem que Cristo e a
Bíblia são a raiz de todos os males. Nos Estados Unidos, a filha de
uma das famílias mais proeminentes da América criou um serviço
de garotas de programa, um sistema de prostituição para homens
ricos, usando jovens universitárias. Ela se justificou declarando que
estava oferecendo um serviço social e definindo a moralidade como
hipocrisia.[6] Essas atitudes são crescentemente comuns e, com
uma frequência ainda maior, afirmadas de modo agressivo.
Observou-se corretamente que, conforme os homossexuais saíram
do armário, os cristãos nele se esconderam.
O Senhor exige que sejamos homens de domínio. A Grande
Comissão é um mandato para discipular todas as nações,
ensinando-os toda a palavra de Deus (Mateus 28.18-20). É
chamada a Grande Comissão porque é um somatório da comissão
dada a Josué, agora expandida, em seu escopo, da Palestina para
todo o mundo. A comissão declara em parte:
Todo lugar que pisar a planta do vosso pé, vo-lo tenho dado, como eu
prometi a Moisés... Ninguém te poderá resistir todos os dias da tua vida;
como fui com Moisés, assim serei contigo; não te deixarei, nem te
desampararei. Sê forte e corajoso, porque tu farás este povo herdar a terra
que, sob juramento, prometi dar a seus pais. Tão somente sê forte e mui
corajoso para teres o cuidado de fazer segundo toda a lei que meu servo
Moisés te ordenou; dela não te desvies, nem para a direita nem para a
esquerda, para que sejas bem-sucedido por onde quer que andares. Não
cesses de falar deste Livro da Lei; antes, medita nele dia e noite, para que
tenhas cuidado de fazer segundo tudo quanto nele está escrito; então, farás
prosperar o teu caminho e serás bem-sucedido. Não to mandei eu? Sê forte
e corajoso; não temas, nem te espantes, porque o Senhor, teu Deus, é
contigo por onde quer que andares. (Josué 1.3, 5-9)
1
3. A BATALHA POR UMA GERAÇÃO: O
FOCO NA EDUCAÇÃO

Numa entrevista concedida pouco antes de sua morte, o


diretor cinematográfico John Huston expressou sua perspectiva
pessimista da vida. Muitos de seus filmes apresentam essa visão, e
Michael J. Bandler descreve os heróis de Houston como
“perdedores, todos eles”. O próprio Huston disse: “Somos todos
perdedores. Não que avalio a morte como uma perda total, mas
todos nós vamos morrer”.[7] Nos Estados Unidos, escolas estatais
incluem em seu currículo uma ênfase sobre “o esclarecimento de
valores” que torna estes e a moralidade numa preocupação
subjetiva, e não um padrão objetivo; incluem, também, uma
“educação sobre a morte”. Uma das consequências é a alta taxa de
suicídio.[8]
Nada disso deveria nos surpreender. Em qualquer cultura, há
duas coisas que revelam, da maneira mais clara possível, a religião
dessa sociedade, a saber, a educação e a lei. Todo sistema jurídico
é uma institucionalização da religião, e a educação, por sua vez,
transmite a fé e a habilidade de uma cultura a suas crianças. As
instituições religiosas, isto é, igrejas, sinagogas, templos ou
santuários, amiúde oferecem uma fé do passado. Em razão do
conservadorismo institucional das organizações religiosas, os ritos e
formas permanecem quando a fé já se foi. O batismo, confirmação e
comunhão continuam tal qual antes, quando a realidade, na
verdade, já se tornou humanista. Por outro lado, igrejas divergentes
frequentemente enfatizam um aspecto limitado da antiga fé: as
formas do governo eclesiástico, um foco particular na doutrina, ou
um destaque na experiência religiosa. Perde-se assim a
integralidade, e a nova igreja se contenta em ser um acorde menor
na cultura, em vez de apresentar-se como um acorde maior por
meio da palavra e pelo Espírito de Deus.
Nos Estados Unidos, o desastre em relação à integralidade da
fé bíblica adveio com a ascensão, no início dos anos 1800, da
“religião do coração”, com sua ênfase na experiência em lugar de
uma fé que rege o mundo e a vida. De acordo com James Turner, a
“religião do coração” tinha quatro elementos e/ou consequências
específicas, todas com raízes no domínio setecentista do
pensamento inglês. Em primeiro lugar, havia “a suposição de que o
conhecimento se tornava confiável somente quando verificado na
experiência”.[9] Essa perspectiva implicava que a revelação tinha de
ser testada pela experiência. Também fez da experiência o padrão
nos vários domínios em que uma grande medida de aprendizagem e
conhecimento são necessários. Desse modo, solapou a autoridade,
bem como a sabedoria tradicional. O antigo uso de provérbios, a
cristalização da sabedoria dos séculos, começou a desvanecer
acentuadamente. A Bíblia enquanto revelação começou a dar lugar
à Bíblia como manual para a religião experimental. A fé tornou-se,
pois, privada, e os credos foram engavetados.
Assim, em segundo lugar, nas palavras esclarecedoras de
Turner,
Essa rejeição da autoridade em favor das verdades validadas na experiência
apresentava uma segunda característica: a ideia de que as verdades
empíricas eram mais confiáveis que aquelas que transcendiam a realidade
física.[10]
Portanto, a experiência e o aqui e agora foram priorizados em
relação à autoridade da revelação. Um conhecimento sólido e
profundo das (assim como a fé nas) Escrituras foi condenado como
“religião da cabeça”, ao mesmo tempo em que a “religião do
coração” foi vista como a única aceitável. Essa visão concede mais
autoridade a sentimentos presentes do que à milenar revelação.
Tornou-se rotina dizer às pessoas que “o conhecimento cerebral” e a
“fé cerebral” são inúteis e o que é necessário para a salvação é uma
forma particular e dramática de “experiência do coração”. Em virtude
dessa perspectiva, escolas cristãs nos Estados Unidos foram
denegridas e amiúde hostilizadas.
Em terceiro lugar, a maior consequência desse pensamento foi
separar da religião o raciocínio preciso, lógico e exato e relegá-lo a
uma esfera secular.[11] A religião, portanto, se transformou no reino
do sentimento e da efusão carola, ao passo que a ciência se tornou
a esfera da inteligência e do conhecimento. Em vez de a teologia
ser a rainha das ciências, ela deixou até mesmo de ser ciência. Em
lugar de ordenar a perspectiva do mundo e da vida em cada esfera,
o cristianismo se tornou uma parte menor da ordem social, e, ao
invés de moldar a cultura, foi sendo cada vez mais moldada por ela.
Não mais sendo uma fé católica ou universal, o cristianismo tornou-
se uma fé inferior e local.
Em quarto lugar, passou-se a afirmar, por conseguinte, que “o
conhecimento evoluía historicamente”.[12] Anselmo afirmava: “Creio
para que possa compreender”. Essa formulação mostra-se hoje
esfacelada, tendo sido substituída por outras duas: na igreja, “eu
experimento, a fim de que possa crer”; e nas ciências, “eu testo,
para que possa compreender”. Ambas as abordagens são
experienciais; ambas rejeitam a autoridade primordial da revelação.
Ambas sustentam que todas as coisas devem ser trazidas ao
coração ou mente do homem para um teste e aprovação
experienciais.
Ao mesmo tempo, porém, dentro do âmbito do Estado, certos
desenvolvimentos paralelos estavam em formação. Primeiramente,
o Estado passou a ver a educação em termos messiânicos. A
salvação da sociedade foi vista com base na educação, não na
regeneração. Em vez de entender a salvação relativamente ao novo
Adão, Jesus Cristo, os educadores estatistas viam-na segundo o
ensino ministrado ao homem “natural”, o velho Adão e sua
humanidade. A chave para a salvação era, portanto, a educação,
não a regeneração. Por meio da transmissão de habilidades e
ensino a pessoas irregeneradas, o Estado aumentou — ao invés de
refrear — o poder e potencialidade destas para o pecado. Um
homem depravado com uma metralhadora é muito mais perigoso
que um munido de arco e flecha. A norma na educação tem sido a
aquisição de dados per se, não uma pessoa com fé que tem tanto
conhecimento quanto sabedoria.
Em segundo lugar, por esses meios a integralidade do homem
se desfez. Em lugar de um homem redimido perfeitamente
habilitado com conhecimento e sabedoria, a educação passa agora
a atuar na produção de um homem capacitado com um ensino e
dados especializados, cujo caráter, porém, pouco interessa aos
educadores. Como resultado, temos monstros doutos e formados.
Ora, essencial à educação piedosa é a consciência do homem
enquanto ser criado à imagem de Deus. O Breve catecismo de
Westminster declara: “Deus criou o homem macho e fêmea,
conforme a sua própria imagem, em conhecimento, retidão e
santidade com domínio sobre as criaturas” (Gênesis 1.27-28;
Colossenses 3.10; Efésios 4.24).
Se falharmos em educar com base no homem integral,
deformaremos o homem e a sociedade. A educação moderna,
humanista, desconsidera patentemente a santidade. Sua doutrina
da retidão ou da justiça é humanista e anticristã, tal como é seu
conceito de conhecimento. No que toca ao domínio, o objetivo não é
o reino de Deus, mas o do homem — e isto também é mau.
Em terceiro lugar, o padrão para todos os homens nas
Escrituras é o novo homem, Jesus Cristo. São Paulo diz-nos:
Porquanto aos que de antemão conheceu, também os predestinou para
serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito
entre muitos irmãos. E aos que predestinou, a esses também chamou; e aos
que chamou, a esses também justificou; e aos que justificou, a esses
também glorificou. (Romanos 8.29-30)

O objetivo é ser conformado a Jesus Cristo, e esta é a vontade


decretada de Deus para nós. Os humanistas ridicularizam essa
conformidade em prol de sua própria, uma doutrina igualitarista que
reduz o homem a mínimo denominador comum, em vez de elevá-lo
ao nível do Senhor da Glória, Jesus Cristo. Na obra Facial Justice
[Justiça facial], de L. P. Hartley, publicada em 1960, descreve-se um
mundo em que a religião da igualdade chegou à sua conclusão
lógica. Todos os homens tinham de ter vestimentas e faces
padronizadas. A despersonalização era a lei.[13] Vemos já passos
sendo dados nessa direção em leis que penalizam qualquer relato
fatual de diferenças entre grupos religiosos e étnicos. Na sociedade
humanista, a demanda social denigre o ser humano à imagem do
homem caído, em igualdade para com todos, em vez de discipulá-lo
pautado em Cristo.
Em quarto lugar, uma vez que a educação humanista vê o
homem “natural” ou caído como o padrão, ela não pode suportar
uma lei de ordenamento moral acima e sobre o homem. Pode
tolerar a leitura da Bíblia e outras práticas na escola, mas seu
ensino essencial é de que todos os homens devem escolher ou criar
seus próprios valores e padrões morais. A moralidade é vista como
uma norma subjetiva, não uma objetiva. Nossos valores devem
servir-nos, e não nós, ao Senhor. Por conseguinte, os pecados dos
homens tornam-se seus valores e seus padrões.
Isso significa, em quinto lugar, que o pecado se torna um
direito, e a educação humanista afirma o “direito” do homem em
fazer o que lhe agrada, contanto que não se pratique violência física
a outro indivíduo, embora mesmo esta limitação esteja atualmente
desaparecendo. A entronização do pecado como direito se faz
bastante presente entre nós nestes dias em formas como aborto,
homossexualidade e eutanásia; e suas raízes se encontram todas
no romantismo, com sua ênfase na primazia do sentimento, e na era
da Revolução Francesa, com sua crença de que todas as coisas
associadas à antiga ordem devem ser destruídas. E o cristianismo,
por sua vez, é visto como o epítome da antiga ordem. Deparamo-
nos com um exemplo da visão moderna sobre os direitos nos
Estados Unidos na cidade de Boston, em 1827. De acordo com
William E. Nelson,
o contágio da liberdade levou mesmo a reivindicações de permissão para
imoralidade, quando um frequentador do “a Colina” em Boston “argumentou
que tinha o direito de visitar todos os lupanares...”[14]

Na educação atual, defrontamo-nos com duas cosmovisões


hostis: cristianismo versus humanismo. Os humanistas são
claramente mais hábeis que os filhos da luz: eles sabem que o
controle do futuro exige o controle sobre as crianças e sobre a
educação.
A fé bíblica nos é clara e resumidamente apresentada em
Salmos 127.3-5:
Herança do Senhor são os filhos; o fruto do ventre, seu galardão. Como
flechas na mão do guerreiro, assim os filhos da mocidade. Feliz o homem
que enche deles a sua aljava; não será envergonhado, quando pleitear com
os inimigos à porta.

A palavra traduzida como “pleitear” é traduzida, em Salmos


18.47, por submeter ou destruir: “o Deus que por mim tomou
vingança e me submeteu povos”. As crianças são um encargo que
nos é dado pelo Senhor. Devemos todos dizer, juntamente com Ana,
a mãe de Samuel:
Era este menino que eu pedia, e o Senhor concedeu-me o pedido. Por isso,
agora, eu o dedico (ou retorno) ao Senhor. Por toda a sua vida será
dedicado (ou retornado) ao Senhor. E ali adorou o Senhor. (1 Samuel 1.27-
28)

Os filhos são uma herança do Senhor para nossa conquista do


mundo para Cristo. Elas são os meios de subjugar a terra e exercer
domínio sob o Senhor. Se damos nossos filhos ao Estado ou a
escolas privadas que não são sistematicamente cristãs em todo seu
currículo, então estamos dando o futuro para os inimigos de Deus, e
ele nos terá por responsáveis por dissiparmos nossa herança.
Devemos, pois, ter escolas cristãs e ensino domiciliar cristão para
as crianças do Senhor. Somos ordenados: “criem-nos segundo a
instrução e o conselho do Senhor” (Efésios 6.4). Trata-se de um
passo necessário para a grande consumação da vontade de Deus,
que nos foi de antemão anunciada em Apocalipse 11.15:
O reino do mundo se tornou de nosso Senhor e do seu Cristo, e ele reinará
pelos séculos dos séculos.
1
4. A BATALHA PELA RETIDÃO: A
APLICAÇÃO DA LEI BÍBLICA À
SOCIEDADE SECULAR

A batalha pela retidão ou justiça deve ser de interesse para


todos os cristãos. Ademais, o único padrão, fonte ou lei de justiça
possíveis é a palavra-lei de Deus. Defrontamo-nos com uma
sociedade secular. É secular no sentido de que não é regida por
sacerdotes ou cleros, mas por leigos, e também é secular na
medida em que se encontra fora do reino de Deus e busca um reino
independente em relação ao Senhor.
Ao considerar-se a aplicação da lei de Deus para essa
sociedade, enfrentamos dois problemas. Primeiramente, o mundo
está em revolta contra Deus e sua lei. Salmos 2.1-3 descreve a
conspiração deste mundo contra Deus:
Por que se enfurecem (ou, se reúnem tumultuosamente, ou conspiram) os
gentios e os povos imaginam coisas vãs? Os reis da terra se levantam, e os
príncipes conspiram contra o Senhor e contra o seu Ungido, dizendo:
Rompamos os seus laços e sacudamos de nós as suas algemas.

Em segundo lugar, a igreja também está em revolta contra a lei


de Deus e rejeita-a em larga medida. Amiúde, líderes eclesiásticos
estão dispostos a ouvir descrições horríveis e equivocadas da lei de
Deus e a aceitá-las. A lei de Deus é vista como dura, opressiva e
propícia à tirania.
Contudo, o fato é que o número total de leis nas Escrituras são
apenas umas centenas. Todo o restante das Escrituras é, em certa
medida, um comentário sobre essas leis; e, de todo modo, a Bíblia
toda não compõe um volume muito grande. As leis das nações, e
mesmo as das cidades, ocupam bibliotecas e aumentam ano a ano
— e não raro dia a dia. Assim, são poucas as leis de Deus, e estas
nos proporcionam uma sociedade livre e piedosa. Mas isso não é
tudo. Muitas das leis de Deus estão isentas de penalidades por
parte do homem, Estado ou igreja. Um exemplo disso é o dízimo.
Em Malaquias 3.8-12, nos é dito que Deus impõe penalidades para
aquele que falha em dizimar e concede bênçãos pela fidelidade;
mas, nesse caso como nos demais, os homens não podem fazer o
papel de Deus e impor sanções.
O propósito da lei de Deus é oferecer o governo sob a
autoridade de Deus, não sob a do homem, nem a da igreja, nem
ainda a do Estado. A lei divina é o meio para uma comunidade livre
e piedosa. Ao examinar a lei bíblica, devemos primeiro reconhecer
sua premissa. O homem caído é capaz de criar somente uma
sociedade pecaminosa e tirânica. O objetivo do homem
irregenerado é uma nova Torre de Babel, a Grande Babilônia.
Significa brincar de Deus e controlar todas as coisas. O objetivo do
homem regenerado, por sua vez, é o reino de Deus e a Nova
Jerusalém, um reino em que a retidão ou justiça habita (2 Pedro
3.13). O homem caído não pode construir uma ordem social justa
porque se encontra num estado de revolta contra o Deus de toda
justiça ou retidão e sua lei, que é justa. A lei divina é “a lei perfeita,
lei da liberdade” (Tiago 1.25), sendo pois odiada por todos aqueles
que estão em pecado, que é escravidão (João 8.31-36).
Em segundo lugar, para que o governo e lei de Deus atuem,
precisamos dizimar. O dízimo é o tributo de Deus, para seu governo.
Dá-se, em seguida, a décima parte desse dízimo à adoração
(Números 18.25-28), de modo que o santuário recebe um por cento
do incremento de um homem. Visto que o governo civil recebe
apenas metade de um siclo por ano da parte de todos os indivíduos
do sexo masculino acima de vinte anos, ele também,
semelhantemente à igreja, é limitado. O resto do dízimo, assim
como o dízimo dos pobres, vai para uma miríade de funções
governamentais, incluindo a educação, a saúde e o bem-estar. A
Igreja Primitiva oferecia tribunais (com base em 1 Coríntios 6.1 ss),
hospedagens para viajantes cristãos, lares para os necessitados e
idosos, hospitais, casas e escolas para crianças desabrigadas,
resgate para cativos, dentre outras coisas. Ao longo de toda a
Bíblia, o teste de fé inclui a ministração a pessoas em situações de
angústia e dificuldades. Nosso Senhor declara: “Ele responderá:
‘Digo a verdade: O que vocês deixaram de fazer a alguns destes
mais pequeninos, também a mim deixaram de fazê-lo’” (Mateus
25.45).
Em terceiro lugar, a instituição fundamental nas Escrituras não
é a igreja nem o Estado, mas sim a família. Uma vez que a família é
a instituição fundamental estabelecida por Deus, é também a mais
protegida pela lei divina. A ofensa da lei bíblica aos olhos de muitos
é sua rigorosa legislação para proteger a família, já que a traição no
cenário do homem, segundo as Escrituras, é uma traição à família,
não ao Estado. O conceito moderno de traição não existe na Bíblia.
Ora, visto que a família é a ordem fundamental da vida, a lei de
Deus guarda a vida da família, que por sua vez é o primeiro e
fundamental governo, igreja, escola e vocação. Antropologistas e
sociólogos reconhecem a centralidade da família na história. C. C.
Zimmerman, em Family and Civilization [Família e civilização]
(1947), classificou as famílias como administradoras, domésticas ou
atomistas. A família administradora é fundamental à ordem social; a
família doméstica ainda é forte, mas é o Estado que recebe a
primazia; a família atomista marca a morte de uma sociedade. A lei
de Deus exige uma família administradora. A lei é endereçada à
família pactual, como descrito em Deuteronômio ou Provérbios. Ela
exige que o povo da aliança de Deus estabeleça a ordem Deus,
começando em suas famílias.
Em quarto lugar, uma vez que a ordem de Deus deve ser justa
ou reta, seu povo deve ter tribunais de justiça. À vista disso, em 1
Coríntios 6.1 ss, ordena-se que os cristãos estabeleçam esses
tribunais. Eles o fizeram, e em pouco tempo ofereciam justiça com
base na lei de Deus, tanto para crentes quanto para descrentes, ao
longo de vários séculos. Nos Estados Unidos, Laurence Eck
reestabeleceu os tribunais cristãos, e os resultados têm-se mostrado
excelentes.[15] A definição de justiça num tribunal humanista não há
de coadunar-se com a lei e justiça de Deus. À vista disso, numa
sociedade humanista, um sistema tribunal separado torna-se uma
necessidade, e, para esse sistema, a Bíblia torna-se o livro da lei.
Em quinto lugar, de acordo com as Escrituras, a penalidade
para o crime é essencialmente a restituição. Em ofensas menores,
indica-se punição corporal de um tipo bastante limitado; nas ofensas
capitais, exige-se a pena de morte. De acordo com Êxodo 22.1-17, a
restituição pode ser o dobro ou mesmo o quíntuplo, a depender da
natureza da ofensa. O perdão, nas Escrituras, significa que as
acusações são retiradas porque a satisfação foi feita; ou que as
acusações foram por ora suspendidas (Lucas 23.34). A restituição
significa, portanto, que deve haver uma restauração da ordem de
Deus. Se os homens não aplicam a lei de Deus enquanto nação,
Deus aplicá-las-á contra eles.
Em sexto lugar, um aspecto essencial da lei de Deus é sua
preocupação para com a terra. A terra também deve ter seus
Sabbaths; a guerra não pode ser usada como uma desculpa para
destruir árvores frutíferas e videiras; exige-se que haja saneamento
e muito mais. Paulo diz-nos a finalidade para a criação no plano
redentor de Deus:
A ardente expectativa da criação aguarda a revelação dos filhos de Deus.
Pois a criação está sujeita à vaidade, não voluntariamente, mas por causa
daquele que a sujeitou, na esperança de que a própria criação será redimida
do cativeiro da corrupção, para a liberdade da glória dos filhos de Deus.
Porque sabemos que toda a criação, a um só tempo, geme e suporta
angústias até agora. E não somente ela, mas também nós, que temos as
primícias do Espírito, igualmente gememos em nosso íntimo, aguardando a
adoção de filhos, a redenção do nosso corpo. (Romanos 8.19-23)

Em nossa época, em razão do pietismo e de seu retiro para o


homem interior, perdemos essa perspectiva. Lembremo-nos que
Calvino, embora condenasse a especulação vazia, insistia que as
palavras de Paulo implicavam também a ressurreição de animais na
gloriosa nova criação de Deus. Lembremo-nos igualmente que Deus
impôs setenta anos de cativeiro para o povo da Judeia, devido aos
setenta anos sabáticos que não haviam sido observados. Essas leis
não eram uma curiosidade para nossos ancestrais cristãos, e não
ousamos considerá-las como tal, nem agora nem nunca.
Em sétimo lugar, há um impulso muito importante para a lei de
Deus que hoje desconsideramos ou espiritualizamos até à nulidade.
Paulo faz eco a essas leis ao declarar: “Digo isto, não por causa da
pobreza, porque aprendi a viver contente em toda e qualquer
situação” (Filipenses 4.11). As Escrituras dizem:
Afasta de mim a falsidade e a mentira; não me dês nem a pobreza nem a
riqueza; dá-me o pão que me for necessário; para não suceder que, estando
eu farto, te negue e diga: Quem é o Senhor? Ou que, empobrecido, venha a
furtar e profane o nome de Deus. (Provérbios 30.8-9)

E, de igual modo:
De fato, grande fonte de lucro é a piedade com o contentamento. Porque
nada temos trazido para o mundo, nem coisa alguma podemos levar dele.
Tendo sustento e com que nos vestir, estejamos contentes. (1 Timóteo 6.6-8)

Se limitarmos essas palavras à sua implicação espiritual,


perderemos seu alcance integral. Em Deuteronômio 15.1-6, somos
proibidos de continuarmos com dívidas, em tempos de necessidade,
por mais de seis anos. O sétimo ano — ou ano sabático — deve ser
também um ano de descanso para as dívidas. O objetivo é viver
livre de dívidas, de não ficar “devendo coisa alguma, exceto o amor
com que vos ameis uns aos outros” (Romanos 13.8). O propósito de
Deus para nossas vidas é viver bem, porque vivemos em fidelidade
a ele.
Em oitavo lugar, de acordo com 1 João 3.4, “o pecado é a
transgressão da lei” (isto é, a lei de Deus). A palavra traduzida por
pecado nesse verso é anomia, negação da lei ou desordem. Visto
que a lei de Deus é retidão ou justiça, ser um pecador é opor-se, por
ações, à justiça de Deus. Jesus Cristo é quem nos salva do pecado
para a retidão ou justiça. Fomos salvos, afirma Paulo, “a fim de que
o preceito da lei se cumprisse em nós, que não andamos segundo a
carne, mas segundo o Espírito” (Romanos 8.4).
A lei deve ser cumprida, isto é, aplicada em nós e por meio de
nós. É um erro ensinar que Cristo nos salva do inferno; ele nos
salva do pecado e da culpa. O inferno é simplesmente a conclusão
lógica do pecado, da rebelião contra Deus e sua lei: é a separação
total em relação a Deus.
Nossa era é secular porque não deseja ter parte com Deus.
Cabe lembrar que a escola “teológica” da morte de Deus, no início
dos anos 70, não dizia que Deus estava morto, mas sim que Deus
está morto para nós, e que nos recusamos reconhecer se ele existe
ou não. Isso é secularismo. Se recusamos viver por cada palavra
que procede da boca de Deus (Mateus 4.14), então nos tornamos
também secularistas nesse mesmo sentido.
A finalidade do reino de Deus é a santidade completa de todas
as coisas. De acordo com Zacarias 14.20-21:
Naquele dia, será gravado nas campainhas dos cavalos: Santo ao Senhor; e
as panelas da Casa do Senhor serão como as bacias diante do altar; sim,
todas as panelas em Jerusalém e Judá serão santas ao Senhor dos
Exércitos; todos os que oferecerem sacrifícios virão, lançarão mão delas e
nelas cozerão a carne do sacrifício. Naquele dia, já não haverá mercador na
Casa do Senhor dos Exércitos.

1
5. HUMANISMO E SUA INFLUÊNCIA
SOBRE A FAMÍLIA

Um dos problemas com o pastorado cristão é sua


concentração na igreja institucional. A ordem de nosso Senhor a nós
é mais ampla: “buscai, pois, em primeiro lugar, o seu reino e a sua
justiça” ou retidão (Mateus 6.33). Céu e terra são igualmente criação
de Deus, bem como todas as esferas e atividades da vida; desse
modo, todas as coisas devem ser governadas pela palavra de
Deus.
Muito frequentemente, na ânsia em edificar a igreja
institucional, que certamente demanda esse tipo de esforço,
negligenciamos as outras áreas de nosso ministério também
essencial. Uma dessas áreas negligenciadas é a família.
A família é a instituição fundamental criada por Deus. É a
primeira igreja do homem, seu primeiro governo, sua primeira escola
e muito mais. Nas Escrituras, todos os poderes fundamentais na
sociedade, com a exceção de um só, são dados à família. A única
exceção, no caso, é a pena de morte, que nos mostra porque Caim
não foi executado: toda a humanidade de então era sua família
imediata. Alguns desses poderes fundamentais são: primeiramente,
o governo sobre as crianças, que significa o controle do futuro de
uma sociedade, foi dado à família. O Estado cada vez mais usurpa
esse poder. Em segundo lugar, o controle da propriedade, que, nas
Escrituras, não segue nem um plano de posse privada, nem de
posse estatal, mas a posse familiar como um penhor do Senhor. Em
terceiro lugar, a herança é um dos poderes da família. A família
pactual edifica o reino de Deus ao reservar seus ativos para sua
descendência bendita. O resultado é a capitalização do homem
pactual e do reino de Deus. O Estado moderno progressivamente
controla tanto a propriedade como a herança por meio da taxação e
regulamentação. Em quarto lugar, a educação é uma área crucial da
autoridade e poder familiares, e neste ponto, mais uma vez, vê-se o
Estado usurpando o poder da família. Em quinto lugar, a maior
instituição de bem-estar, em toda a história, tem sido, e ainda é em
vários países, a família.
O humanismo, contudo, concebe a família como uma forma
primitiva de organização social, que, como a classe ou a tribo, deve
ceder lugar à organização científica da sociedade por parte do
Estado. O humanismo reconhece que a família é um fato natural,
uma consequência da biologia, acasalamento e parentalidade; mas
as formas arcaicas e irracionais deve dar lugar a formas mais
sofisticadas e científicas. Por conseguinte, a família está sendo cada
vez mais controlada e regulamentada, a fim de permitir que a
organização mais científica da sociedade prevaleça.
Van der Leeuw disse o seguinte acerca do casamento:
Casamento é simultaneamente “pacto” e “comunidade”: é o que é dado e o
que é escolhido. Seu caráter como algo dado torna-se cada vez mais
evidente à medida que se expande para a família: escolha, por outro lado, o
domina, uma vez que é união de amor. O elemento comum que é buscado e
ao mesmo tempo descoberto é indiferenciado: diz respeito à totalidade da
vida...
… Estes elementos [o dado e o escolhido] são igualmente expressos na
ideia bíblica de que o homem deixa seu pai e mãe em prol de sua esposa —
isso é escolha; mas que Deus une homem e mulher, é algo dado.[16]

Como cristãos, devemos dizer que o casamento, tanto no seu


aspecto de dádiva como em sua condição de pacto, provém de
Deus e por sua ordenação. Na cerimônia matrimonial, conforme
praticada nas igrejas dos Estados Unidos, o culto ou ritual tem em si
votos estabelecendo três contratos. Em primeiro lugar, o homem e a
mulher entram num contrato regido tanto pela igreja quanto pelo
Estado, mediante uma variedade de leis. Os dois juntamente
estabeleçam um contrato com as autoridades. Em segundo lugar, o
homem e a mulher entram num pacto ou contrato um com o outro.
Em terceiro lugar, os dois entram juntamente num pacto com Deus e
fazem votos a ele e um ao outro perante Deus.
No casamento humanista, o dado é totalmente suplantado pelo
elemento da livre escolha. Seja numa união romântica, numa
pragmática ou num casamento mercenário unindo bens, a ênfase
está na satisfação e na realização do homem e da mulher; assim, o
propósito do divórcio torna-se iníquo: se o objetivo é a satisfação
pessoal, a insatisfação é base para o divórcio.
No casamento pactual, o propósito da união é a vida em Cristo
e sob a lei de Deus. De acordo com Gênesis 2.23-24,
E disse o homem: Esta, afinal, é osso dos meus ossos e carne da minha
carne; chamar-se-á varoa, porquanto do varão foi tomada. Por isso, deixa o
homem pai e mãe e se une à sua mulher, tornando-se os dois uma só carne.

É preciso entender esses versos levando-se em conta o fato


essencial sobre a humanidade e seu ser: a criação à imagem de
Deus. Segundo Paulo, conforme escreve em 1 Coríntios 11.8-12:
Porque o homem não foi feito da mulher, e sim a mulher, do homem. Porque
também o homem não foi criado por causa da mulher, e sim a mulher, por
causa do homem. Portanto, deve a mulher, por causa dos anjos, trazer véu
na cabeça, como sinal de autoridade. No Senhor, todavia, nem a mulher é
independente do homem, nem o homem, independente da mulher. Porque,
como provém a mulher do homem, assim também o homem é nascido da
mulher; e tudo vem de Deus.

O que nos é dito nesses textos é, primeiramente, o caráter


teocêntrico do matrimônio e da família: todas as coisas vêm de
Deus e são para seus propósitos. Em segundo lugar, Eva é criada
como companheira de Adão, não para Adão per se, mas segundo o
chamado do ser humano para exercer domínio e subjugar a terra
(Gênesis 1.26-28). Eles devem ser ambos uma só vida no que diz
respeito ao serviço a Deus. Em terceiro lugar, em razão dessa
natureza teocêntrica do matrimônio e da família, a mulher traz
consigo “um sinal de autoridade”. Como os anjos, ela tem
autoridade porque ela está sob autoridade. No antigo Oeste
americano, as mulheres comumente usavam tocas mesmo quando
trabalhavam nos arredores de sua cabana, pois se tratava de uma
declaração a todos os de fora que elas estavam sob a proteção de
um homem e mereciam portanto a proteção de todos os homens
piedosos. Não portar chapéus evidenciava uma prostituta, desde a
época de Roma ao velho Oeste. Em quarto lugar, tanto o homem
quanto a mulher devem ser juntos e interdependentes no Senhor.
Em quinto lugar, os filhos são um aspecto de nossa herança no
Senhor (Salmos 127.3-5).
O humanismo concebe o casamento primeiramente como
centrado no homem ou no Estado, dependendo da situação. Desde
os dias da Grécia e Roma antigas até ao presente, o aborto tem
sido visto como uma solução para os problemas financeiros da
superpopulação, e também por vezes estritamente proibido, já que o
Estado precisa de soldados e contribuintes. Em segundo lugar, uma
vez que o seu propósito é reduzido à autorrealização, o casamento
naufraga à medida que homem e mulher buscam sua própria
gratificação. Os filhos são, pois, criados com base em um
egocentrismo semelhante. Em terceiro lugar, tanto o homem quanto
a mulher buscam poder à parte de Deus e sobre o outro. O século
XVIII testemunhou a ascensão dos “direitos” dos homens sobre as
mulheres, assim como o rebaixamento do status da mulher. Nos
séculos XIX e XX, o feminismo e os movimentos de emancipação da
mulher têm afirmado as mesmas reivindicações irresponsáveis para
a mulheres. Temos agora o movimento pelo direito das crianças a
fim de completar a decadência da família. Em quarto lugar, o
individualismo radical governa os homens, as mulheres e os filhos.
Em quinto lugar, os filhos não são mais vistos, por muitos, como
uma bênção de Deus, mas sim como extensões dos objetivos e
orgulho pessoais. Consequentemente, a família sob o humanismo
encontra-se num estado de crise.
O que é urgentemente necessário dentro da comunidade cristã
é uma restauração do aspecto pactual do casamento e da família. O
casamento é um pacto de lei, sob a autoridade de Deus, entre um
homem e uma mulher. Coloca ambos sob uma esfera de vida e
responsabilidade cristocêntricas (Efésios 5.21-23). O matrimônio
enquanto pacto significa que o propósito e governo do casamento e
da família está em conformidade com nosso chamado como
portadores da imagem de Deus. O Breve catecismo de Westminster
diz-nos:
Deus criou o homem macho e fêmea, conforme a sua própria imagem, em
conhecimento, retidão e santidade com domínio sobre as criaturas (Gênesis
1.27-28; Colossenses 3.10; Efésios 4.24).

A família em Cristo deve ser o instrumento chave para o


crescimento do conhecimento em seus membros, para o avanço da
retidão ou justiça, o desenvolvimento da santidade e o exercício do
domínio sob autoridade de Deus. O casamento deve ser visto como
mais que um fato natural, porque ele deve estar debaixo de um
Senhor e lei sobrenaturais, sendo portanto regido por algo mais que
a simples natureza.
1
6. PODER E SERVIÇO

Poucas coisas são mais perigosas e autodestrutivas que a


busca habitual por poder. É lamentável que a igreja frequentemente
se achou culpada dessa mesma avidez por poder e distorceu suas
doutrinas para justificar seus caminhos. Por exemplo, as igrejas por
vezes assumiram uma área legítima da fé e prática e em seguida a
usaram para justificar seu poder. Desse modo, não poucas tradições
confinaram as operações do Espírito Santo aos canais da igreja, isto
é, ao seu clero, à sua forma dos sacramentos e às decisões da
igreja. Em outras ocasiões, os líderes eclesiásticos insistiram numa
ligação íntima entre sua forma de avivalismo evangelístico e a obra
do Espírito Santo. Desse modo, D. M. Lloyd-Jones observou, com
relação à influência de Charles G. Finney e os avivamentos:
Toda a perspectiva e ensino de Finney parece ter-se tornado um fator
determinante da perspectiva da Igreja. Isso levou à ideia do que hoje
denominamos “campanhas evangelísticas”. Finney é o maior responsável
pela confusão comum quanto a esta questão. Nossos irmãos americanos
ficam confusos até com os próprios termos. Falam de “reunião de
avivamento” quando, por certo, querem dizer campanha evangelística. Isso é
resultado da influência de Finney, e realmente obscureceu toda a situação. A
influência do ensino de Finney sobre a perspectiva da Igreja é deveras
extraordinária. As pessoas agora, em vez de pensar em buscar a Deus e
orar por avivamento quando veem que a Igreja desfalece, resolvem antes
encarregar uma comissão de organizar uma campanha evangelística, e de
elaborar um plano e uma propaganda para “lançar” a campanha, como
dizem. Toda a perspectiva e mentalidade mudou.[17]

No avivalismo americano, o Espírito Santo foi frequentemente


atado a uma forma e estratégia particulares. Nos primórdios do
século XIX, era comum identificar uma forma particular de
experiência de conversão ao Espírito Santo. Aqueles que não
tiveram a dita experiência eram vistos como não convertidos, não
obstante as evidências indicassem claramente que eram pessoas
de sólida fé.
A mesma abordagem humanista se faz presente com relação à
fé. Paulo nos oferece uma declaração nítida do sentido de fé em
Efésios 2.8-10:
Porque pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós; é dom
de Deus; não de obras, para que ninguém se glorie. Pois somos feitura dele,
criados em Cristo Jesus para boas obras, as quais Deus de antemão
preparou para que andássemos nelas.

A fé não é um atributo humano. É uma graça divina e


sobrenatural. Não pode ser vista como um poder humano, nem
exercida em desprezo para com a palavra-lei de Deus. Deus deixa
claro, em Deuteronômio 15.1-11, que a dívida que se estende por
longo tempo é algo errado, e que, normalmente, devemos viver
livres de dívidas: “A ninguém fiqueis devendo coisa alguma, exceto
o amor com que vos ameis uns aos outros” (Romanos 13.8). Nos
Estados Unidos, ao menos, tornou-se agora rotina conceber a dívida
como um ato de fé. É-me frequentemente dito que adquirir dívidas é
evidência de fé e de confiança no Senhor. Incontáveis igrejas e
ministérios adquiriram dívidas imensas e fazem apelos
desesperados aos seus membros ofertantes. Eles declaram que a
honra de Deus está em jogo, e coisas semelhantes. Os pregadores
da rádio e da televisão, carismáticos e não carismáticos, são
semelhantes em suas operações financeiras: eles vivem em débito.
As pessoas próximas a essas organizações me disseram que, não
importa quantos milhões de dólares entrem em caixa, as dívidas não
são saldadas, mas sim aumentadas. Os líderes veem o crescente
endividamento como evidência de fé mais vigorosa. Certo homem,
próximo a vários desses líderes, disse uma vez, desanimado, que a
dívida substituiu o Espírito Santo nas vidas desses homens: eles
precisam de um endividamento cada vez maior para se tornarem
mais fortes. Eles tomam seu impulso e poder das pressões de
dívidas, e não do Espírito Santo.
No salmo 62, Davi apresenta-nos a doutrina do poder que
devemos levar em consideração:
Somente em Deus, ó minha alma, espera silenciosa; dele vem a minha
salvação. Só ele é a minha rocha, e a minha salvação, e o meu alto refúgio;
não serei muito abalado. Até quando acometereis vós a um homem, todos
vós, para o derribardes, como se fosse uma parede pendida ou um muro
prestes a cair? Só pensam em derribá-lo da sua dignidade; na mentira se
comprazem; de boca bendizem, porém no interior maldizem. Somente em
Deus, ó minha alma, espera silenciosa, porque dele vem a minha esperança.
Só ele é a minha rocha, e a minha salvação, e o meu alto refúgio; não serei
jamais abalado. De Deus dependem a minha salvação e a minha glória;
estão em Deus a minha forte rocha e o meu refúgio. Confiai nele, ó povo, em
todo tempo; derramai perante ele o vosso coração; Deus é o nosso refúgio.
Somente vaidade são os homens plebeus; falsidade, os de fina estirpe;
pesados em balança, eles juntos são mais leves que a vaidade. Não confieis
naquilo que extorquis, nem vos vanglorieis na rapina; se as vossas riquezas
prosperam, não ponhais nelas o coração. Uma vez falou Deus, duas vezes
ouvi isto: Que o poder pertence a Deus, e a ti, Senhor, pertence a graça, pois
a cada um retribuis segundo as suas obras.

Davi trata aqui de um homem em angústia, defrontando


poderes hostis deste mundo. Nos versos 1-4, ele está calmamente
resignado a confiar em Deus, embora confrontado com uma cruel
animosidade. Ele tem força: Deus é sua rocha e salvação. De
acordo com Leupold, o termo hebreu do verso 1 deve ser traduzido:
“Somente em Deus silencia minha alma”.[18] Confiante e sem
queixar-se, ele se coloca nas mãos de Deus, e isto é seu
reconhecimento da força de Deus. Nos versos 5-8, Davi convoca-
nos a fazer o mesmo. Deus está em seu trono, e portanto não
deveríamos nos abalar. Nos versos 9-12, toda outra ajuda que não
vem do Senhor é fútil ou vã, diz-nos Davi, e sua confiança assenta-
se sobre este fato: que o poder pertence a Deus. O Senhor dá-nos
poder, poder piedoso, somente quando cremos nele e lhe
obedecemos. Não devemos confiar em riquezas nem na opressão,
nem nos homens, pois os indivíduos de alta ou baixa estirpe são
igualmente indignos de confiança e vãos. Deus retira a autoridade
dos homens que dela abusam e a dá a outros (Mateus 21.43; cf.
8.12).
O poder e a autoridade no domínio humano são delegados por
Deus ao homem para os propósitos divinos. Nosso Senhor dá-nos a
definição de poder e domínio:
Então, Jesus, chamando-os, disse: Sabeis que os governadores dos povos
os dominam e que os maiorais exercem autoridade sobre eles. Não é assim
entre vós; pelo contrário, quem quiser tornar-se grande entre vós, será esse
o que vos sirva; e quem quiser ser o primeiro entre vós será vosso servo; tal
como o Filho do Homem, que não veio para ser servido, mas para servir e
dar a sua vida em resgate por muitos. (Mateus 20.25-28)

O Senhor nos ensina que o serviço piedoso é poder. Cabe a


nós um ministério, e nosso Senhor estabelece o padrão para ele. As
Escrituras nos dizem duas coisas nesse tocante. Primeiramente, na
ocasião do lava-pé na Última Ceia do Senhor, lemos:
Vós me chamais o Mestre e o Senhor e dizeis bem; porque eu o sou. Ora, se
eu, sendo o Senhor e o Mestre, vos lavei os pés, também vós deveis lavar
os pés uns dos outros. Porque eu vos dei o exemplo, para que, como eu vos
fiz, façais vós também. Em verdade, em verdade vos digo que o servo não é
maior do que seu senhor, nem o enviado, maior do que aquele que o enviou.
Ora, se sabeis estas coisas, bem-aventurados sois se as praticardes. (João
13.13-17)

Desses erros, procedem comumente dois erros. Por um lado,


muitos acreditavam que um ritual de lava-pé deve ser observado
pela igreja. No passado, bispos e reis praticaram esse rito, e,
atualmente em algumas igrejas, é um ato contínuo. Por outro lado,
alguns julgaram que o pastor é obrigado a ser o faz-tudo da
congregação. Em outro texto, vemos a resolução desse problema
na Igreja Primitiva:
Ora, naqueles dias, multiplicando-se o número dos discípulos, houve
murmuração dos helenistas contra os hebreus, porque as viúvas deles
estavam sendo esquecidas na distribuição diária. Então, os doze
convocaram a comunidade dos discípulos e disseram: Não é razoável que
nós abandonemos a palavra de Deus para servir às mesas. Mas, irmãos,
escolhei dentre vós sete homens de boa reputação, cheios do Espírito e de
sabedoria, aos quais encarregaremos deste serviço; e, quanto a nós, nos
consagraremos à oração e ao ministério da palavra. (Atos 6.1-4)

Esse texto diz-nos, primeiramente, que, desde seus


primórdios, a comunidade cristã foi uma comunidade, a família.
Cuidava-se e alimentava-se os necessitados. Embora ainda fossem
um grupo limitado e pobre, esses cristãos se importavam uns com
os outros em todas as necessidades materiais. Em segundo lugar,
embora não intencionalmente, os discípulos, conhecendo melhor as
necessidades das viúvas hebreias, tendiam, por essa razão, a
negligenciar as viúvas helenistas. Estando sobrecarregados, eles
cometeram um erro. Em terceiro lugar, reconheceram que a
centralidade de seu chamado seria perdida se eles negligenciassem
a oração e o ministério da palavra para se dedicarem à caridade.
Com isso, não estavam menosprezando a caridade; antes, deram-
lhe mais importância ao estabelecer o diaconato para cuidar dos
necessitados. Sabemos a partir do livro de Atos que a preocupação
apostólica pelos enfermos e necessitados permanecia, mas havia
então um ministério separado em que se concentrar. Lembremo-nos
também que, na Igreja Primitiva, o chamado do diácono era um
ministério de tempo integral, uma vez que o ministério do serviço era
demasiadamente importante.
O poder da Igreja Primitiva estava no notável ministério de
serviço aos necessitados, às viúvas e órfãos, aos enfermos,
desabrigados e viajantes. Cativos eram resgatados, recém-nascidos
abandonados eram recolhidos e criados, e muito mais. Tratava-se
do poder da obediência. Chamei a atenção anteriormente para a
identificação, por parte de muitos televangelistas, entre
endividamento e fé. Essa identificação é pecaminosa e blasfema. A
fé não significa adquirir dívidas com a confiança de que Deus nos
servirá de fiador, uma vez que somos seu povo e, afinal, a obra é
dele. Nosso Senhor, quando foi tentado, deu-nos o modelo de fé:
obediência.
Está escrito: Não só de pão viverá o homem, mas de toda palavra que
procede da boca de Deus. (Mt 4.4)
Também está escrito: Não tentarás o Senhor, teu Deus. (Mt 4.7)
Está escrito: Ao Senhor, teu Deus, adorarás, e só a ele darás culto. (Mt 4.10)

Deus não honra uma fé falsa. Ele não honra edifícios e


empreendimentos imensos construídos com dívidas iníquas. Em
Deuteronômio 28.1-68, vemos nos versos 2 e 15 que as bênçãos
irresistíveis de Deus nos buscarão e virão sobre nós, caso sejamos
fiéis, assim como suas maldições irresistíveis nos perseguirão e nos
sobrevirão, caso sejamos desobedientes à sua palavra-lei.
Somos assim chamados dentre a busca humanista por poder
para o reconhecimento de que o poder piedoso significa fidelidade e
obediência a nosso Senhor. Significa o amor a Deus e o amor ao
nosso próximo, com todo nosso coração, mente e ser.
Não ousemos perder de vista a ligação entre fé e obediência,
porque assim faríamos com que nossa fé não fosse mais que um
“címbalo que retine” (1 Coríntios 13.1). É-nos dito de modo bastante
claro:
Assim, pois, pelos seus frutos os conhecereis. (Mt 7.20)
Anulamos, pois, a lei pela fé? Não, de maneira nenhuma! Antes,
confirmamos a lei. (Rm 3.31)

Porque, assim como o corpo sem espírito é morto, assim também a


fé sem obras é morta. (Tiago 2.26)
1
7. A IGREJA DA “SENSAÇÃO
ACONCHEGANTE E CALOROSA”
VERSUS A IGREJA DE JESUS CRISTO

Recentemente, quando minha esposa Dorothy e a Sra. Grayce


Flanagan estavam tomando chá, elas iniciaram uma discussão
acerca de cristianismo e igreja. A terminologia que usavam era tão
notável, que era em si mesma uma excelente análise de nosso
problema. As igrejas e seus membros eram classificados como
membros de um destes dois grupos: o da “sensação aconchegante
e calorosa” e os guerreiros. Os primeiros são todos aqueles que
reduzem a fé ao sentimento caloroso e feliz e que desejam que a fé
lhes faça “sentir-se bem por dentro”. Os ministros e igrejas são
classificados segundo a satisfação que concedem à necessidade
para a sensação aconchegante e calorosa. A exatidão na doutrina é
vista como hostil a esse calor interno, ao passo que o pensamento
aconchegante deixa espaço para uma preocupação com o
sentimento. Por outro lado, os guerreiros querem ver o reino de
Deus e sua justiça governarem os homens e nações. Sua alegria
está na verdade de Deus. Eles querem viver e agir para Cristo, mas,
se necessário, estão preparados para dizer: “Embora ele me mate,
ainda assim esperarei nele; certo é que defenderei os meus
caminhos diante dele” (Jó 13.15). A igreja dos que vivem pela
sensação aconchegante e calorosa se encontra fortemente em
nosso meio. Por conseguinte, a igreja se mostra impotente; ao invés
de moldar a história, é moldada por ela. Ao invés de agir no quadro
do mundo, só reage. Deve-se indagar seriamente sobre uma igreja
como essa, porque uma igreja impotente parece ser uma
contradição em termos. Uma igreja perseguida é atacada, pois é um
centro de poder e uma inimiga dos inimigos de Cristo.
Uma das melhores declarações de nosso problema vem do papa
Bento XV (1914-1922), que, em “Humani Generis Redemptionem”,
de 15 de junho de 1917, uma encíclica sobre a pregação da
Palavra, disse:
3. The causes of these evils are varied and manifold: no
one, however, will gainsay the deplorable fact that the
ministers of the Word do not apply thereto an adequate
remedy. Has the Word of God then ceased to be what it
was described by the Apostle, living and effectual and
more piercing than any two-edged sword? Has long-
continued use blunted the edge of that sword? If that
weapon does not everywhere produce its effects, the
blame certainly must be laid on those ministers of the
Gospel who do not handle it as they should. For no one
can maintain that the Apostles were living in better times
than ours, that they found minds more readily disposed
towards the Gospel or that they met with less opposition
to the law of God.[19]
Precisamos constantemente reafirmar nossa comissão
mediante o retorno às Escrituras, não por aquilo que dela podemos
obter para nosso uso, mas sim pelo que Deus declara sobre o uso
que faz de nós. Uma afirmação de Paulo aos filósofos de Atenas é
crucial nesse contexto:
Então, Paulo, levantando-se no meio do Areópago, disse: Senhores
atenienses! Em tudo vos vejo acentuadamente religiosos; porque, passando
e observando os objetos de vosso culto, encontrei também um altar no qual
está inscrito: Ao Deus Desconhecido. Pois esse que adorais sem conhecer é
precisamente aquele que eu vos anuncio. O Deus que fez o mundo e tudo o
que nele existe, sendo ele Senhor do céu e da terra, não habita em
santuários feitos por mãos humanas. Nem é servido por mãos humanas,
como se de alguma coisa precisasse; pois ele mesmo é quem a todos dá
vida, respiração e tudo mais; de um só fez toda a raça humana para habitar
sobre toda a face da terra, havendo fixado os tempos previamente
estabelecidos e os limites da sua habitação; para buscarem a Deus se,
porventura, tateando, o possam achar, bem que não está longe de cada um
de nós; pois nele vivemos, e nos movemos, e existimos, como alguns dos
vossos poetas têm dito: Porque dele também somos geração. Sendo, pois,
geração de Deus, não devemos pensar que a divindade é semelhante ao
ouro, à prata ou à pedra, trabalhados pela arte e imaginação do homem.
Ora, não levou Deus em conta os tempos da ignorância; agora, porém,
notifica aos homens que todos, em toda parte, se arrependam; porquanto
estabeleceu um dia em que há de julgar o mundo com justiça, por meio de
um varão que destinou e acreditou diante de todos, ressuscitando-o dentre
os mortos. (Atos 17.22-31)

De fato, já ouvi pregadores fundamentalistas afirmarem que o


sermão de Paulo foi um fracasso porque ele não pregou João 3.16!
Na realidade, o sermão paulino no Areópago foi um desafio absoluto
e direto à toda sociedade greco-romano e à filosofia que a
representava; tratou-se de um pronunciamento que declarou o fim
daquele mundo, e por isso muitos dos ouvintes de Paulo não foram
capazes de ouvir-lhe mais. O que o apóstolo disse? Lembre-se: o
interesse dos filósofos foi despertado pelo discurso de Paulo sobre a
ressurreição de Jesus. Conforme Cornelius Van Til demonstrou em
Paulo em Atenas,[20] os gregos estavam interessados em ideias
novas como a ressurreição dos mortos, mas somente se eventos
anômalos ou inusuais como esse fossem vistos como evidência da
potencialidade do ser, ou em termos mais modernos, como
evidência do próximo passo na evolução. Em contraposição a isso,
Paulo afirmou, primeiramente, que há um Deus Criador que é maior
que o deus de Platão e Aristóteles, um simples conceito limitante.
Trata-se do Deus vivo; por mais que se escolha não conhecê-lo, ele
é o Criador, Senhor e Regente de todas as coisas. Todos os homens
e nações são criação dele e devem prestar-lhe contas. Isso
significa, em segundo lugar, que há um dia do juízo para todos os
homens, quando o Jesus ressurreto julgará homens e nações. Deus
convoca todos os homens a arrependerem-se antes daquele dia ou
depararem-se com a justiça do tribunal de Cristo. Em terceiro lugar,
todos os homens devem adorar a Deus, não em ignorância nem
segundo seus próprios caminhos determinados, mas de acordo com
a palavra e exigência reveladas de Deus. Qualquer outra forma de
adoração é culto de si mesmo. É a versão filosófica do sentimento
aconchegante e caloroso. Em quarto lugar, Paulo usa sentenças de
escritores gregos em seu sermão a fim de dar-lhes um conteúdo
radicalmente diferente. Seja a inscrição do altar ou um verso dos
poetas, ele esvaziou o conteúdo grego para atribuir, pelo contrário,
um conteúdo bíblico. A frase chave é esta: “pois nele vivemos, e nos
movemos, e existimos”. Para os gregos e romanos, o meio divino-
humano era o Estado. Era o centro, o palco da história e da
“eternidade”, a despeito do que esta significasse. A pólis ou cidade-
Estado não era eterna, porque, para os gregos, nada realmente o
era; antes, era a arena da ação para homens e quaisquer deuses
que existissem. Como Gillespie assinalou:
A pólis é o lugar da vida humana, e aqueles que vivem fora dela, conforme
sustentava Aristóteles, são (para os gregos) bestas-feras ou deuses. O
homem é o zoon politikon, o animal político, e toda imortalidade que lhe é
concedida como homem deve estar ligada à pólis... Desse modo, não é a
eternidade da pólis a fonte da imortalidade humana. Na verdade, a
imortalidade humana está ligada à pólis porque esta é o lugar do discurso, o
local em que o eterno é trazido à luz no real por meio do discurso.[21]

Paulo mudou toda essa doutrina e, eventualmente, o


pensamento paulino a destroçou. Os homens começaram a
conhecer, conforme vieram ao conhecimento salvífico de Jesus
Cristo como Senhor, que ele é o Senhor da história, que vivemos,
nos movemos e existimos no Deus triúno. Desde os primeiros dias
da igreja, a confissão batismal exigida de todos os crentes veio de
Paulo e era simplesmente isto: Jesus Cristo é Senhor. Tratava-se de
uma negação de que César é senhor, a confissão requerida por
Roma. Era uma negação de que devemos viver e mover-nos e
existir no Estado, em Roma, Grã-Bretanha ou Estados Unidos,
porque todas as nações vivem sob Cristo, que tem, para todas as
nações, “fixado os tempos previamente estabelecidos e os limites da
sua habitação”. Se eles não o buscarem e obedecer-lhe, serão
julgados por ele. Paulo também declara:
Pelo que também Deus o exaltou sobremaneira e lhe deu o nome que está
acima de todo nome, para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho, nos
céus, na terra e debaixo da terra, e toda língua confesse que Jesus Cristo é
Senhor, para glória de Deus Pai. (Filipenses 2.9-11)

O mundo greco-romano cedeu diante a palavra de Paulo no


Areópago para tornar-se a cristandade, em que, apesar de todas
suas faltas, os homens viviam, moviam-se e existiam no Deus
triúno.
A era moderna viu uma reversão da obra de Paulo. Isso tem
sido especialmente verdadeiro desde Hegel, que afirmava: “O
Estado é a ideia divina, como se faz presente na terra”.[22] O homem
mais uma vez é um animal político, não um homem criado à imagem
de Deus. Amiúde a questão crítica é: és um conservador ou um
socialista? E não: estás salvo ou perdido? Apresentamo-nos não
como imagens de redimidos e fiéis de Deus, mas como imagem de
um cidadão dos Estados Unidos, Grã-Bretanha, França ou algum
outro Estado. Temos um falso critério de identificação. Refizemo-nos
à imagem de Aristóteles como animais políticos. Ora, no Estado
vivemos, nos movemos e existimos (assim como deixamos de
existir). Em vez de morrer em Cristo, morremos no Estado, no
Medicare ou no Plano Nacional de Saúde, não nos termos do
cuidado piedoso, e sim no cuidado estatista. Não mais
providenciamos a saúde, educação e bem-estar na sociedade, pois
o Estado é agora nosso bom pastor. Aceitamos a inversão da
declaração de Paulo da liberdade do homem em relação ao pecado
e demais sujeitos, e nos contentamos em deixar que o sonho
humanista de ordem social nos governe.
A questão que nos confronta é esta: em quem vivemos, nos
movemos e existimos? Somos cristãos ou gregos hegelianos? A
questão que enfrentamos no Juízo Final é a mesma: em que tu
viveste, te moveste e exististe? Em Cristo ou em César? Se em
Cristo, então cada área de vida e pensamento deve ser trazida sob
seu domínio e à obediência à sua palavra-lei.
A Igreja do Sentimento Caloroso e Aconchegante não é lugar
para aqueles de quem Paulo trata:
Que diremos, pois, à vista destas coisas? Se Deus é por nós, quem será
contra nós? Aquele que não poupou o seu próprio Filho, antes, por todos nós
o entregou, porventura, não nos dará graciosamente com ele todas as
coisas? Quem intentará acusação contra os eleitos de Deus? É Deus quem
os justifica. Quem os condenará? É Cristo Jesus quem morreu ou, antes,
quem ressuscitou, o qual está à direita de Deus e também intercede por nós.
Quem nos separará do amor de Cristo? Será tribulação, ou angústia, ou
perseguição, ou fome, ou nudez, ou perigo, ou espada? Como está escrito:
Por amor de ti, somos entregues à morte o dia todo, fomos considerados
como ovelhas para o matadouro. Em todas estas coisas, porém, somos mais
que vencedores, por meio daquele que nos amou. Porque eu estou bem
certo de que nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados,
nem as coisas do presente, nem do porvir, nem os poderes, nem a altura,
nem a profundidade, nem qualquer outra criatura poderá separar-nos do
amor de Deus, que está em Cristo Jesus, nosso Senhor. (Romanos 8.31-39)
1
8. AS CÂMARAS DO PODER

Um comentário interessante do estudo de John Morgan sobre


certos aspectos da vida e pensamento puritanos diz respeito a uma
ênfase destes últimos:
Grande parte das tentativas puritanas de reforma, talvez especialmente nos
tempos elizabetanos, concentrava-se nas câmaras do poder. Mas mesmo
nos primórdios de nossa época, os puritanos também eram estavam
dispostos ao proselitismo nos níveis organizacionais mais baixos; daí surgiu
um novo interesse na possibilidade do ambiente familiar como um centro de
instrução religiosa. Na base de toda análise social vinha a família, em lugar
de o indivíduo.[23]

O poder duradouro do puritanismo adveio do reconhecimento


de que as câmaras do poder não são, na verdade, as mesmas que
o mundo vê como as sedes do domínio e autoridade. Um dos
maiores problemas atuais é nossa falha em reconhecer as câmaras
do poder que estão prontamente disponíveis a todos nós.
O historiador Ernst Breisach, em seu excelente estudo
Historiography, Ancient, Medieval and Modern [Historiografia: antiga,
medieval e moderna] (1983), assinala, no tocante ao futuro
conforme concebido por Jacob Burckhardt,
Visto que se teria de levar a cabo novas tentativas de alcançar a igualdade
entre povos que, por natureza, não são iguais, tradições, leis e valores
seriam destruídos como obstáculos no caminho para a igualdade absoluta,
até que, por fim, a estabilidade social desapareceria. A fim de restaurar a
estabilidade e alcançar a igualdade suprema, as pessoas recorreriam ao
socialismo com suas arregimentação e centralização crescentes; trata-se de
uma situação perfeita para o surgimento de déspotas — os terríveis
simplificadores — que ofereciam ordem sem a verdadeira legitimidade e
tradição. Nessa nova sociedade, a tradição, e junto ela a história, seriam
substituídas, enquanto guias da sociedade, pela opinião pública instável e
pelas modas efêmeras de pensamento.[24]

Já estamos no “futuro”. Os homens trabalham para substituir o


cristianismo pelo humanismo em cada esfera da vida e pensamento.
Não importa o custo — a vontade humana deve ser feita. O
Ocidente, por muito tempo governado pela lei de Deus, está agora
sob a lei do homem. Já em 1924, nos Estados Unidos, um dos mais
renomados juristas, analisando o movimento iniciando na segunda
metade do século XIX, declarou:
Assim o ciclo se completa. Voltamos ao Estado como a autoridade
inquestionável por trás dos preceitos legais. O Estado assume o lugar de
Jeová outorgando as tábuas da lei a Moisés...[25]

“O Estado assume o lugar de Jeová”: é assim que uma grande


autoridade na área jurídica orgulhosamente se gaba. A obra
Crônicas em versos da Livônia, de meados do século XIII, conta-nos
do desejo do povo de se verem livres do cristianismo. Eles
buscavam revogar seu batismo banhando-se no rio Duína Ocidental,
a fim de remover seu batismo por meio de um ritual aquático e
enviá-lo (o batismo) de volta para a Alemanha.[26] No século XX, os
homens buscaram, por meio dos assassinatos em massa de
cristãos, reverter a história e reestabelecer o homem pagão. Com
efeito, Eugen Rosenstock-Huessy, em Out of Revolution,
Autobiography of Western Man [Fruto da revolução: a autobiografia
do homem ocidental] (1938), vê a história ocidental, já há alguns
séculos, como a revolta contra o homem sobrenatural, Jesus Cristo,
e um esforço para restabelecer o homem natural, um Adão à
imagem de Rousseau. Estamos, pois, numa guerra, uma guerra
contra Cristo, e o inimigo orgulhosamente reivindica todas as
câmaras do poder. Como sobreviveremos a esse ataque, e quem
dirá reconquistar a liberdade e poder? Mas há outras perguntas,
além dessas. O inimigo mantém o controle sobre todas as câmaras
de poder estabelecidas, no entanto está falhando. O mundo capota
de crise em crise, e os homens desmaiam de terror. Não serão
essas câmaras agora câmaras de impotência e de tiranetes, e não
de autoridade e poder verdadeiros? A bancarrota do estatismo
humanista se evidencia por toda parte. Um senador americano
descreveu a mim, alguns anos atrás, o crescente temor, por parte de
muitos legisladores, mesmo quando triunfam, já que percebem os
fracassos de suas medidas. Os poderes que existem, disse ele,
sofrem de “diarreia às vésperas da batalha”. Seus corações
desmaiam de medo!
Nosso recurso numa época como essa deve ser às
verdadeiras câmaras do poder, ao poder da palavra e Espírito de
Deus. É nosso Senhor mesmo que declara, em sua oração:
Santifica-os na verdade; a tua palavra é a verdade. Assim como tu me
enviaste ao mundo, também eu os enviei ao mundo. E a favor deles eu me
santifico a mim mesmo, para que eles também sejam santificados na
verdade. (João 17.17-19)

Nosso Senhor declara que a vitória demanda total


consagração. O verbo “santificar” poderia também ser traduzido
como “consagrar” ou “sagrar”. Todo poder, habilidade e meios
devem ser oferecidos a Deus e seu reino. Como Westcott assinalou,
“não é suficiente para o cristão ‘ser guardado’ (cf. João 17.11, 15);
ele deve também promover”.[27] Ademais,
A “verdade” não é somente um poder em seu interior pelo qual ele é movido;
é uma atmosfera na qual vive. O fim da verdade não é a sabedoria, que é
parcial, mas a santidade, que é universal.[28]
Essa santidade universal é levar cativas a Cristo (como Senhor
e rei da criação) todas as áreas da vida e pensamento. Embora a
verdade carregue consigo a graça, isto não significa
contemporização. A Igreja Primitiva não se enfraquecia pelas
controvérsias doutrinárias; pelo contrário, se fortalecia: sabia que a
união não é necessariamente unidade, um fato que o movimento
ecumênico atualmente desconsidera.
O termo dogmatismo tem em nossos dias um sentido negativo.
O dicionário define-o como “1. Assertiva categórica e arrogante,
como de crença, sem provas. 2. Filos. Uma fé acrítica nos
elementos presumidos da razão ou de princípios a priori”. A raiz da
palavra dogma é, como nos é habitualmente informado, um termo
grego que significa opinião; na verdade, implicava comumente um
decreto ou ordenança dotados de autoridade. É nesse sentido que
devemos entender o dogma e a dogmática cristãos, sobre os quais
Gerald Bray escreveu:
Se compreendido apropriadamente dessa forma, o dogmatismo cristão é a
maior força para liberdade que a humanidade jamais conheceu. Ao
reivindicar a mente para Deus, o dogmatismo rompe os limites do mundo
natural que aprisionam a imaginação criativa e distorcem a análise científica.
Torna impossível uma recaída no sentimentalismo e vagueza em nome da
religião. Ataca as filosofias do mundo e nega as reivindicações da lógica
ateísta e amoral em governar as vidas dos homens. O dogmatismo abomina
a indiferença e agnosticismo, e exige o comprometimento deliberado
daqueles que seguirão a Cristo.[29]

Somos o povo da luz, e nosso Senhor não nos permite manter


nossa luz sob o alqueire (Mateus 5.15). As câmaras do poder, para
nós, são os lugares designados que nos foram designados pelo
Senhor a fim de exercermos domínio, segundo a imagem de Deus
em nós, em conhecimento, retidão ou justiça, e com santidade
(Gênesis 1.27-28; Colossenses 3.10; Efésios 4.25).
Por muito tempo imaginamos que as câmaras do poder estão
fora de Cristo e em posse do mundo. As câmaras do poder dos
homens são todas as torres de Babel, excelentes garantias de
confusão e juízo em lugar de verdadeiro domínio. Quando os seres
humanos creem no homem, eles buscarão neste as respostas, ao
passo que quando creem em Deus, saberão que seu Filho e sua
palavra nos fornecem as respostas e o poder. Conforme
Roma chafurdava em seu humanismo, também recorria — como se
deu no caso dos gregos — cada vez mais à magia e a expedientes
semelhantes. As soluções tinham de vir do mundo natural. Gerhard
Uhlhorn descreveu as profundezas a que apelavam:
Mulheres e crianças eram desventradas vivas no palácio do co-regente de
Diocleciano, a fim de que suas entranhas fossem examinadas. Inúmeros
amuletos eram usados para proteção contra a magia. Augúrios e sinais eram
diligentemente observados. Presságios de quase todos os imperadores, que
prediziam o reinado deles, nos são narrados pelos seus contemporâneos.
Na vida de Diocleciano, um dos eventos mais importantes foi a profecia de
uma druidisa, que previu sua ascensão a imperador, quando ele ainda era
apenas um subalterno do regimento nos arredores de Lutécia (Paris).

Maximino Daia jamais fez qualquer mudança sem consultar um augúrio; ele
sequer saía de casa sem que consultasse seu antigo livro caldeu das horas.
Buscava-se zelosamente a interpretação dos sonhos. Artemidoro de Éfeso
dedicou toda sua vida na investigação de tudo que havia sido escrito sobre
sonhos, chegando mesmo a fazer longas viagens para reunir experiências e
material. O resultado foi seu livro Oneirocritica, a interpretação dos sonhos.
Nesta obra, os sonhos são divididos, com ares de ciência, em classes
definidas, apresentando-se em seguida seus significados. Se se sonha com
uma grande cabeça, isto significa riquezas e honras para aqueles que não
as tem; do contrário, é um vaticínio para que se tome precaução. Cabelos
longos e lisos significam felicidade, cabelos curtos, desventura; lã em lugar
de cabelo, doença; uma cabeça pequena, miséria. Se um homem sonha
com formigas entrando em sua orelha, isso significa, caso seja um orador,
que terá muitos ouvintes, mas, para outros homens, implica morte, pois

formigas procedem do interior da terra.[30]

Essa era a ciência do mundo romano; e nossa mitologia


científica contemporânea, seja a psiquiatria ou biologia, é, não raro,
igualmente absurda. Ora, a religião de Roma era o culto imperial.[31]
Os imperadores eram os senhores das câmaras do poder e portanto
eram adorados como deuses. Uma estátua de César trazia a
seguinte inscrição: “ao Deus inconquistado”.[32] Tanto ricos como
pobres viam divindade nas câmaras estatistas do poder. No entanto,
eram homens como Paulo, espancados na prisão e defrontando a
morte frequentemente, que
cinco vezes recebi dos judeus uma quarentena de açoites menos um; fui três
vezes fustigado com varas; uma vez, apedrejado; em naufrágio, três vezes;
uma noite e um dia passei na voragem do mar; em jornadas, muitas vezes;
em perigos de rios, em perigos de salteadores, em perigos entre patrícios,
em perigos entre gentios, em perigos na cidade, em perigos no deserto, em
perigos no mar, em perigos entre falsos irmãos; em trabalhos e fadigas, em
vigílias, muitas vezes; em fome e sede, em jejuns, muitas vezes; em frio e
nudez. Além das coisas exteriores, há o que pesa sobre mim diariamente, a
preocupação com todas as igrejas. (2Co 11.24-28)

Como dizia, eram homens como Paulo que detinham as


verdadeiras câmaras do poder e que triunfaram.
O nosso Senhor é o mesmo de Paulo. Temos agora a
revelação completa, a palavra integral de Deus. Temos o
mesmíssimo Espírito de Deus, o Espírito de poder. Temos um
mandato de trazer todas as coisas cativas a Cristo. Onde
buscaremos o poder: nas falsas câmaras ou em Cristo?
1
9. ESPERANÇA E VITÓRIA

Uma geração atrás, um proeminente americano fora descrito


como uma trombeta a soar sempre o toque de retirada. Há muitos
homens assim entre nós. Quando são — como o indivíduo citado
acima — homens sem fé, não deveríamos ficar surpresos. Paulo diz
aos efésios que, antes de se converterem, “naquele tempo, estáveis
sem Cristo, separados da comunidade de Israel e estranhos às
alianças da promessa, não tendo esperança e sem Deus no mundo”
(Efésios 2.12).
Arthur S. Way, em sua tradução, transpõe o verso nestas
palavras:
Lembre-se que, naqueles dias, estáveis excluídos de toda parte junto ao
Messias, tidos como estranhos para com a nacionalidade de Israel,
forasteiros sem porção nas alianças dadas pela promessa de Deus. Não
tínheis esperança, estáveis sem Deus naquele vosso mundo pagão.[33]

A afirmação de Paulo é em geral mal interpretada, de modo a


se entender que o descrente não tem esperança em Deus no que
diz respeito ao céu. Mas o que Paulo diz é que o ímpio não tem
esperança neste mundo. O bispo Westcott comentou o seguinte
sobre o verso:
Há um estranho pathos na combinação. Eles estavam necessariamente
defronte a todos os problemas da natureza e da vida, porém sem Deus, em
cuja sabedoria, retidão e amor poderiam encontrar descanso e esperança. A
vasta mas transitória ordem do universo física não tinha, para eles, um
Intérprete, sendo, pois, um enigma sem solução. Os gentios tinham, de fato,
“muitos deuses e senhores”, mas não o DEUS que ama os homens e a
quem os homens poderiam amar.[34]
Grosso modo, o que Paulo nos diz é isto: trata-se de uma
marca de iniquidade, de alienação para com Deus, não ter
esperança neste mundo. A equação é: sem Deus, sem esperança,
tanto neste mundo quanto no do porvir. Não ter esperança é ser
iníquo. Paulo nos diz em Romanos 5.1-5 que, quando somos
redimidos de Deus em Cristo, a tribulação desenvolve a paciência
em nós; a paciência, por sua vez, desenvolve a experiência; a
experiência, a esperança, “e a esperança não confunde”. Nosso
modelo de fé é Abraão, que num interesse próprio deste mundo — a
esperança por um herdeiro no Senhor —, “esperando contra a
esperança, creu” (Romanos 4.18), e por esta razão tornou-se o pai
de muitas nações e nosso modelo de fé.

É muito necessário e importante enfatizar o fato da esperança


na vida e perspectiva do cristão. Muitos líderes eclesiásticos agem
atualmente como se qualquer esperança dentro da história fosse
uma traição à fé! Recentemente publicaram um livro nos Estados
Unidos, cujo autor, um descrente, era bastante reputado nos altos
círculos do poder político. Ele caiu de sua eminência à prisão, onde
se converteu. Após sua conversão, bênçãos providenciais se
sucederam em sua vida, e, apesar disso, num livro lançado em
1987, ele trata a esperança como utopismo e como uma evidência
de uma fé reprovável! Aparentemente ele acredita que não ter
esperança para nosso futuro neste mundo é uma prova de fé! Em
1985, numa conferência de igrejas, um respeitado empresário
cristão, com um histórico de domínio em seu campo, gastou seu
período de fala atacando qualquer crença na vitória no tempo e na
história como sendo uma esperança falsa e anticristã. Certo aluno
do campus comentou: ele pensa que, para si, foi ótimo ter tido
sucesso e ganhar seus milhões, mas, para nós, é um pecado tentar
fazer o mesmo!

Paulo não nos diz que Jesus Cristo pode ser rei sobre o
mundo algum dia, mas sim que é o “bendito e único Soberano, o Rei
dos reis e Senhor dos senhores” (1 Timóteo 6.15). João nos diz que,
à medida que contemplarmos os julgamentos das nações ao longo
da história, devemos regozijar-nos, pois “o reino do mundo se tornou
de nosso Senhor e do seu Cristo, e ele reinará pelos séculos dos
séculos” (Apocalipse 11.15). Há muitas profecias notáveis, como a
de Isaías 19.18:

Naquele dia, haverá cinco cidades na terra do Egito que falarão a língua de
Canaã e farão juramento ao Senhor dos Exércitos; uma delas se chamará
Cidade do Sol.

A referência nessa profecia é a este mundo: pode haver ainda


inimizade para com o Senhor, mas mesmo no Egito, o tipo (símbolo)
de guerra contra Deus e seu povo da aliança, apenas uma única
cidade dentre seis será infiel.
Não ter esperança é negar a fé e interpretar equivocadamente
as Escrituras. É também uma falta de conhecimento em relação a
Deus e sua misericórdia. Duas declarações presentes na lei são
impactantes no que diz respeito a essa questão:
Não farás para ti imagem de escultura, nem semelhança alguma do que há
em cima nos céus, nem embaixo na terra, nem nas águas debaixo da terra.
Não as adorarás, nem lhes darás culto; porque eu sou o Senhor, teu Deus,
Deus zeloso, que visito a iniquidade dos pais nos filhos até à terceira e
quarta geração daqueles que me aborrecem. (Êx 20.4-5)
Não vos teve o Senhor afeição, nem vos escolheu porque fôsseis mais
numerosos do que qualquer povo, pois éreis o menor de todos os povos,
mas porque o Senhor vos amava e, para guardar o juramento que fizera a
vossos pais, o Senhor vos tirou com mão poderosa e vos resgatou da casa
da servidão, do poder de Faraó, rei do Egito. Saberás, pois, que o Senhor,
teu Deus, é Deus, o Deus fiel, que guarda a aliança e a misericórdia até mil
gerações aos que o amam e cumprem os seus mandamentos. (Dt 7.7-9)

Esses dois textos apresentam-nos duas declarações bastante


persuasivas: a primeira diz respeito à ira e juízo de Deus, e a
segunda trata de sua graça e misericórdia. Ambos os textos
pressupõem pessoas que cometem erros — no primeiro caso, os
pais; no segundo, os filhos. Os pecados dos pais visitam os filhos
até a terceira e quarta gerações. O pecado tem consequências que
não são facilmente canceladas. As consequências de queimadas
florestais nas montanhas da Califórnia em 1987 não desaparecerão
em um ano ou dois; a recuperação levará de cinquenta a cem anos.
O mesmo se aplica, diz-nos o texto, no domínio moral.
Por outro lado, quando um povo é fiel à aliança de Deus, por
mais que seus descendentes possam pecar e serem julgados, Deus
há de lembrar-se deles no juízo e mostrar misericórdia a mil
gerações para aqueles que são semente “dos que o amam e
observam seus mandamentos”. Com essa diferença de proporção
entre o juízo e a misericórdia, como podemos mostrar-nos sem
esperança?
Vemos quão verdadeiro isso é num episódio impressionante da
história bíblica. Nos dias de Jeremias, os Sabbaths de Deus para a
terra não foram observados; as leis concernentes às dívidas e
libertação delas no ano sabático eram negligenciadas, e os hebreus
que se tornavam servos em razão de suas dívidas não eram libertos
no ano sabático, mas mantidos na servidão. Quando
Nabucodonosor marchou em direção a Judá, Deus declarou por
meio de Jeremias que a nação deveria submeter-se ao rei
babilônico, e que assim sobreviveriam (Jeremias 27.6-18). A nação
escolheu resistir-lhe. Conforme os exércitos se aproximavam e o fim
parecia perto, o povo “virou religioso”. Entraram em solene aliança
para obedecer toda a lei de Deus e, como passo preliminar,
libertaram todos os servos hebreus que ilegalmente mantinham.
Assim, subitamente, Nabucodonosor desfez o certo e partiu. Os
habitantes de Judá demonstraram a superficialidade de seu recente
avivamento imediatamente: reestabeleceram a servidão e
prenderam todos os servos que haviam libertado há pouco. Deus
então declarou que reconvocaria o exército de Nabucodonosor, para
destruir o povo e a nação (Jeremias 34.8-22).
É um episódio memorável, um testemunho incrível da
misericórdia de Deus. Há épocas em que Deus anuncia que não
ouvirá às orações de um povo (1 Samuel 8.18), e, no entanto, ele
nos surpreende por sua disposição em ouvir até mesmo a oração de
um iníquo como o rei Acabe (1 Reis 21.27-29).
Segue-se claramente que não devemos abandonar a
esperança, não importa quão terríveis seja a crise no mundo e
nossa aflição. No salmo 46, temos uma celebração da presença e
poder de Deus num momento de guerra, terremotos e dilúvios — um
tempo em que homens e forças naturais, igualmente, ameaçam
exterminar o povo de Deus. Juntamente ao salmista devemos dizer:
Deus é o nosso refúgio e fortaleza, socorro bem presente nas tribulações.
Portanto, não temeremos ainda que a terra se transtorne e os montes se
abalem no seio dos mares; ainda que as águas tumultuem e espumejem e
na sua fúria os montes se estremeçam. Há um rio, cujas correntes alegram a
cidade de Deus, o santuário das moradas do Altíssimo. Deus está no meio
dela; jamais será abalada; Deus a ajudará desde antemanhã. Bramam
nações, reinos se abalam; ele faz ouvir a sua voz, e a terra se dissolve. O
Senhor dos Exércitos está conosco; o Deus de Jacó é o nosso refúgio.
Vinde, contemplai as obras do Senhor, que assolações efetuou na terra. Ele
põe termo à guerra até aos confins do mundo, quebra o arco e despedaça a
lança; queima os carros no fogo. Aquietai-vos e sabei que eu sou Deus; sou
exaltado entre as nações, sou exaltado na terra. O Senhor dos Exércitos
está conosco; o Deus de Jacó é o nosso refúgio. (Salmos 46.1-11)

Nosso Deus é quem criou o céu e a terra, assim como tudo


que neles há. Ele enviou suas pragas ao Egito e destruiu o poder de
Faraó; ele abriu o Mar Vermelho e resgatou Israel do Egito, a fim de
dar-lhe a Terra Prometida. Ele levantou reis e profetas e humilhou
nações de acordo com seu santo propósito. Ele ressuscitou Cristo
dentre os mortos, realizou milagres e fez com que os mortos
ressurgissem por meio de seu Filho e seus servos, os apóstolos.
Esse é o nosso Deus, e ele não envelheceu nem seu braço se
recolheu de nós: ele ainda está no ramo das ressurreições. As eras
não lhe deixaram impotente nem fraco. Não há “problema” com
Deus e seu poder. O problema está conosco. Será que nos
tornamos trombetas que soam o toque de retirada e derrota, ou
conhecemos “o poder da sua ressurreição, e a comunhão dos seus
sofrimentos” (Filipenses 3.10), que é o caminho para o triunfo?
Nos Estados Unidos da década de 60, havia uma canção
bastante popular nos grupos de esquerda, “We Shall Overcome”
[Nós vamos vencer]. Mas somente os cristãos são realmente
vencedores, e apenas quando vivem pela fé, esperança e amor, e
também de modo obediente. Conforme João nos diz:
Todo aquele que crê que Jesus é o Cristo é nascido de Deus; e todo aquele
que ama ao que o gerou também ama ao que dele é nascido. Nisto
conhecemos que amamos os filhos de Deus: quando amamos a Deus e
praticamos os seus mandamentos. Porque este é o amor de Deus: que
guardemos os seus mandamentos; ora, os seus mandamentos não são
penosos, porque todo o que é nascido de Deus vence o mundo; e esta é a
vitória que vence o mundo: a nossa fé. (1 João 5.1-4)
1
10. A COMUNIDADE DE CRISTO

Em 1 João 5.1-5, somos informados de vários elementos


importantes. Aqueles que nos interessam neste momento são:
primeiramente, que todos os que são nascidos de Deus “ama ao
que dele é nascido”, isto é, nossos irmãos cristãos. Nascemos de
novo na família de Deus, e nossos laços de amor devem dedicar-se
a essa família. Em segundo lugar, se amamos a Deus, “praticamos
os seus mandamentos”. Esses mandamentos incluem várias leis
relacionadas ao nosso próximo. Na parábola do juízo, nosso Senhor
confronta muitos que o chamavam “Senhor”, aos quais diz:
Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, preparado para o diabo e
seus anjos. Porque tive fome, e não me destes de comer; tive sede, e não
me destes de beber; sendo forasteiro, não me hospedastes; estando nu, não
me vestistes; achando-me enfermo e preso, não fostes ver-me. E eles lhe
perguntarão: Senhor, quando foi que te vimos com fome, com sede,
forasteiro, nu, enfermo ou preso e não te assistimos? Então, lhes
responderá: Em verdade vos digo que, sempre que o deixastes de fazer a
um destes mais pequeninos, a mim o deixastes de fazer. (Mt 25.41-45)

Paulo nos diz: “porque somos membros uns dos outros”


(Efésios 4.25). De forma bastante clara, o Senhor toma isso muito
literal e seriamente como sendo nosso relacionamento uns para
com os outros nele. Devemos obedecer a sua lei, e “seus
mandamentos não são penosos” (1 João 5.3). Em terceiro lugar,
quando vivemos nessa fidelidade, somos um povo cuja fé vence o
mundo. Conforme amamos uns aos outros em obediência à lei,
temos uma vitória sobre o mundo, porque estamos trazendo cada
domínio cativo a Cristo, nosso Senhor. Em quarto lugar, é claro o
que João quer dizer com “crer” não é simples crendice, mas fé com
obras, fé em ação no nome e poder de Cristo (Tiago 2.12-26).
O que se pode dizer para nos tornamos membros uns dos
outros? O que se segue és simplesmente uma exploração de
algumas das principais aplicações desse dever por parte das várias
igrejas.
Primeiramente, há cerca de dez anos, uma congregação então
recentemente organizada se deparou com o problema da
necessidade de muitos membros, jovens e anciãos. Muitos
enfrentavam crises para as quais não tinham dinheiro suficiente
para resolver problemas imprevisíveis. Os diáconos estabeleceram
um fundo de empréstimo livre de juros, com base das Escrituras
(Levítico 25.35-38), para todos os membros. Se, em seis anos, as
pessoas fossem incapazes de pagar, o débito era cancelado. Desde
sua fundação, esse fundo de empréstimo cresceu; mutuários
agradecidos frequentemente doaram quando capazes e outros
membros contribuíram regularmente a fim de conter crises dentro da
comunidade da igreja. A igreja não deixou de ter seus sérios
problemas e crises, mas resistiu a elas e fortaleceu-se porque se
tratava de uma comunidade, membros uns dos outros, uma família
em Cristo. Eles cresceram e algumas congregações satélites foram
formadas sob a liderança do pastor Joseph C. Morecraft, III.
O fato notável — e triste — é que essa prática é rara, ainda
que seja claramente exigida pelas Escrituras. Os membros são
livres do fardo da usura ou dos juros; não somente se emprestava
dinheiro a eles, mas também lhes eram dada uma variedade de
auxílios práticos que suas circunstâncias exigiam. Mais ainda,
quando eles encaram problemas, eles não somente tomam
empréstimos livres de juro, mas também recebem orações dos
demais membros.
Em segundo lugar, muitas igrejas e grupos cristãos, sob a
liderança do advogado Laurence Eck, estabeleceram tribunais de
reconciliação. Isto se dá em obediência a 1 Coríntios 6.1 ss., em
que Paulo ordena a igreja a estabelecer seus próprios tribunais e
administrar justiça com base na lei de Deus. A Igreja Primitiva
estabeleceu esses tribunais com êxito; mesmo os pagãos recorriam
a ele, sabendo de sua reputação no tocante à justiça. Por séculos,
essas cortes eram fundamentais à vida de Europa.
Atualmente esses tribunais estão cada vez mais em evidência
nos Estados Unidos. A lei de 1 Coríntios 6 reflete a lei do Antigo
Testamento, e os tribunais rabínicos, conforme atuam nos Estados
Unidos, ainda julgam casos. Esses tribunais, judeus e cristãos, por
vezes julgam casos de outros indivíduos que não pertencem a seu
grupo. Em 1968, residentes negros e porto-riquenses em Boston,
Massachusetts, levaram seus arrendadores ao tribunal. Seus
prédios estavam inseguros e infestados de ratos; também acusaram
seus arrendadores de reajuste abusivo do aluguel. Os arrendadores
disseram que os locatários estavam causando danos à propriedade
e negligenciavam os pagamentos. O caso foi julgado por um tribunal
rabínico, que se baseou em Êxodo 19 e Deuteronômio 1, e
considerou ambas as partes em falta. Tanto arrendadores quanto
locatários atenderam às suas falhas: os primeiros providenciaram
reparos, serviço de zeladoria, pinturas periódicas e serviços básicos
adequados. Os locatários concordaram em assumir as
responsabilidades pelo cuidado de suas próprias moradias.[35]
Ao longo dos Estados Unidos, todos os tipos de casos foram
regularmente julgados por tribunais cristãos. Ambos os lados
assinam um contrato concordando em acatar a decisão. O objetivo
não é apenas resolver a disputa legal, mas também efetuar uma
reconciliação piedosa entre as partes.
Em terceiro lugar, alguns anos atrás, John Whitehead, um
procurador cristão, tendo sido profundamente influenciado pela obra
Lex Rex, de Samuel Rutherford, fundou o Rutherford Institute. Seu
trabalho é defender cristãos nas cortes, isto é, escolas (incluindo as
domiciliares) ou pais cristãos, igrejas, grupos antiaborto, dentre
outros. Há filiais do Instituto em vários estados do país, e seu
histórico de vitórias é excelente. Estão longe de ser capazes de
assumir todos os casos, mas o número destes é impressionante, e
seu trabalho jurídico lhes conquistou a atenção respeitosa de grupos
e publicações não cristãos.
O Rutherford Institute não crê que nosso chamado cristão é
para a derrota, mas sim para a vitória: “e esta é a vitória que vence
o mundo: a nossa fé” (1 João 5.4). Há não muito tempo, um ateu a
quem se negava certa liberdade civil, recorreu ao Rutherford
Institute, e este lhe defendeu com sucesso. O instituto advoga
moderação e caridade cristãs para com todos os grupos. Nesse
caso, mais uma vez, a visão de um só homem criou uma
organização nacional. Tanto Eck quanto Whitehead eram
materialmente mais prósperos antes de assumirem suas presentes
vocações, no entanto embarcaram nas tarefas de reconstrução
cristã na fé.
Em quarto lugar, muitas igrejas grandes iniciaram ministérios
para os enfermos e anciãos. Poucas igrejas maiores contratam
enfermeiros para visitarem aqueles na igreja que precisam de seus
serviços. Na maioria dos casos, as mulheres da igreja organizam
grupos de visita para revezarem-se na assistência a esses casos.
Esta pode envolver cuidados de enfermagem, limpeza da casa,
fazer as compras dos idosos, caso as lojas estejam distantes de
seus lares, dentre outras atividades. Fazem também visitas a asilos.
Além desses serviços, em alguns casos, assiste-se também às
mães jovens que estão enfermas e sobrecarregadas. A premissa é
que as necessidades do corpo de Cristo devem ser supridas.
Em quinto lugar, muitas igrejas e organizações cristãs coletam
roupas que não puderam ser vendidas nas lojas a fim de serem
distribuídas aos pobres. Caixas e latas de comida danificadas mas
ainda boas para consumo eram também recolhidas de lojas de
atacado para que fossem também distribuídas. Certa igreja, ela
própria constituída de pessoas pobres, mostrou-se capaz de
levantar fundos para comprar um hotel antigo e há tempo
desativado, que passou a servir de acolhida a moradores de rua.
Dois jovens pastores dessa igreja, ambos negros, James C. Gilmer
e Fred A. Judy, converteram-se quando estavam na Marinha, e
então retornaram a uma cidade portuária a fim de começar um
ministério notável que inclui uma escola cristã, um ministério para os
necessitados e desabrigados, e muito mais.
Em sexto lugar, há ao menos cem ministérios para crianças e
jovens delinquentes. O falecido Rev. Lester Roloff fundou várias
casas para esses jovens, alguns saídos do tráfico de drogas,
prostituição, roubo e mesmo crimes como assassinato. A despeito
de serem perseguidos pelas autoridades estatais, ministérios como
o de Roloff continuam.
Em sétimo lugar, há vários ministérios de assistência
carcerária; em oitavo lugar, ministérios para dependentes químicos;
em nono lugar, missões de resgate em áreas urbanas.
Poder-se-ia mencionar muito mais. Escolas e educação
domiciliar cristãos nos Estados Unidos têm hoje cerca de 35% da
população em idade escolar. Existe também uma variedade de
outros ministérios.
No passado a igreja tinha uma visão e ministério integrais; no
entanto, na era moderna, entregou suas antigas obras de
misericórdia à fria burocracia estatal. Em 1890, publicou-se um livro
impressionante, que convocava os cristãos a salvarem os perdidos
e reconstruírem suas vidas e toda a sociedade segundo o mandato
de Cristo de buscar e salvar os perdidos. Tratava-se da obra In
Darkest England and the Way Out [Na mais tenebrosa Inglaterra e a
saída]. Booth disse acerca dos beberrões, prostitutas e vadios que
conhecia:
Pois milhares sobre milhares desses miseráveis, como o bispo South
acertadamente disse, “não tanto nascem neste mundo quanto são a ele
condenados”. A filha bastarda de uma meretriz, nascido num lupanar,
amamentada com gim, e familiarizada, desde a tenra infância, com toda
sorte de atrocidades da devassidão, violada antes mesmo de completar seus
doze anos, e lançada às ruas por sua própria mãe um ou dois anos depois;
ora, qual será a sorte para essa garota neste mundo (e não digo nada sobre
o do porvir)? Contudo, esse caso não é excepcional. Há muitos que diferem
nos detalhes, mas é idêntico na essência. E com os meninos é quase tão
ruim. Há milhares que são gerados quando ambos os pais estão intoxicados
pela bebida, cujas mães encharcam-se de álcool todos os dias de sua
gravidez — meninos de quem se pode dizer que adquiriram um gosto pela
bebida forte por meio do leite de suas mães, e que foram cercados desde a
meninice com oportunidades e tentações à bebedice. Como podemos nos
admirar que a compleição assim disposta à intemperança julga que o
estímulo à bebida é indispensável? Ainda que relutem contra isso, a
crescente pressão da exaustão e da escassez de comida leva-os a voltar ao
copo. Desses miseráveis, nascidos escravos da garrafa, predestinados à
borracheira desde o ventre de suas mães, há tantos! Quem dirá quantos
são? [...] Se qualquer esquema social pretende ser abrangente e prático,
deve lidar com esses homens. Deve assistir ao beberrão e à meretriz do
modo como assiste ao imprevidente e ao desempregado. Mas quem se
mostrará capaz dessas coisas?[36]

Booth conclamou as pessoas a se esforçarem vigorosamente


para salvar os perdidos, para alocá-los em casas de resgate, em
centros cristãos de preparação para trabalhos, dentre outros. Ele
também desejava estabelecer bancos para indivíduos pobres e
garantir que tivessem assistência de advogados. Ele buscou reviver
a doutrina de cristãos como uma família e comunidade. E assim
escreveu:
Não há um pecador no mundo — não importa quão degradado e imundo
possa estar — em relação ao qual meu pessoal não se regozijará de tomá-lo
pela mão e orar com, e trabalhar por ele, se com isso puderem apenas
resgatá-lo como se tira um tição do fogo. Ora, queremos ser de maior
utilidade, fazer do Exército da Salvação o núcleo de uma grande agência
para trazer conforto e conselho àqueles que se encontram nos limites de seu
juízo, sentindo-se como se em todo o mundo não houvesse ninguém a quem
pudessem recorrer.
O que desejamos é mostrar ao mundo a ideia de família. “Pai Nosso” é a
tônica. Nosso Pai é um só, logo somos todos irmãos.[37]

Booth desejava vencer um mal que via nas igrejas: ele disse
que estas mumificavam seus convertidos, de modo que se eram
capazes de pouco mais que sentar-se num dos bancos da
congregação. Ele não esperava que todos os crentes se unissem a
ele nas ruas, mas de fato esperava que todos fossem ativos em sua
fé e apoiassem vigorosamente todos os ministérios de graça e
misericórdia. Ele considerava um grande mal a rigidez das
instituições cristãs, e afirmava:
Há uma história, repetida o suficiente para ser verdadeira, acerca de uma
jovem que se apresentou certa noite para ser recebida num lar instituído com
o propósito de resgatar mulheres que haviam se perdido. A matrona
naturalmente lhe indagou se ela havia perdido sua virtude; a garota
respondeu que não. Guardou-se daquela infâmia, porém, sendo pobre e não
tendo amigos, buscava um lugar para repousar a cabeça até que
conseguisse um emprego firme e conseguisse um lar. A matrona deve ter
demonstrado comiseração pela situação, mas não poderia ajudar a garota, já
que ela não pertencia à classe para cujo benefício aquela instituição fora
fundada. A moça suplicou, mas a matrona não podia alterar as regras, nem
ousava quebrá-las, estando, como dizia, tão pressionada para encontrar
espaço para hospedar suas próprias miseráveis; de modo que não poderia
recebê-la. A pobre garota deixou, relutante, o local, mas retornou pouco
tempo depois e disse: “Eu me perdi agora, poderia me aceitar?”.
De certo modo, não me apresso a confiar nesse incidente; de qualquer
maneira, é real em seu espírito, e ilustra o fato de que, embora haja casas às
quais qualquer pobre, indivíduos arruinados, meretrizes degradadas podem
correr em busca de refúgio, há, porém, somente aqui e ali um canto ao qual
uma moça não desvirtuada mas pobre, sem recursos, desabrigada e sem
amigos pode fugir para refugiar-se da tempestade que se apresenta para
varrê-la para longe, quer ela queira ou não dirigir-se para o vórtice mortal da
ruína que se abre sob seus pés.[38]

Assim, Booth tinha em mente as necessidades de todos os


tipos de pessoas, um ministério total no nome de Cristo. Estando
distantes no tempo, é difícil para nós compreender adequadamente
a hostilidade que o livro de Booth causou tanto a cristãos quanto a
não cristãos. Todos os tipos de justificações foram apresentados
para dizer que aquilo sobre o qual havia escrito não era necessário.
[39]

Os motivos reais, no entanto, não eram declarados:


recusavam-se a ser membros uns dos outros. Será que nos
recusaremos também?
1
11. CRISTIANISMO E CULTURA, PARTE 1

Um dos grandes males de nossa época é sua falsa visão da


cultura. Na União Soviética, com seus horrores dos campos de
trabalho forçado, tortura e tirania opressiva, a cultura é
orgulhosamente cultivada. Toda cidade, não importa seu tamanho,
tem o que se chama de centro cultural, onde se tem apresentações
supostamente artísticas. Ao exibir seus grupos de balé em turnê e
diversos compositores por todo o Ocidente, a União Soviética busca
promover-se como um centro cultural. Para eles, assim como para
muitos no Ocidente, a cultura está associada às artes. Pode-se
afirmar isso? O teatro representa a cultura?
Quando nos voltamos aos especialistas, nos vemos ainda
menos orientados. O Dictionary of Anthropology [Dicionário de
Antropologia] diz-nos:
CULTURA. Tudo que é não biológico e é socialmente transmitido numa
sociedade, incluindo padrões artísticos, sociais, ideológicos e religiosos e as

técnicas para domínio de seu meio.[40]

O Dictionary of Sociology [Dicionário de Sociologia] diz algo


próximo, porém mais preciso:
Cultura. Um nome coletivo para todos os padrões de comportamento
socialmente adquirido e socialmente transmitido por meio de símbolos; daí
um substantivo para todas as distintas realizações dos grupos humanos,
incluindo não somente elementos como a linguagem, a fatura de
ferramentas, a indústria, arte, ciência, direito, governo, moral e religião, mas
também os instrumentos materiais ou artefatos nos quais essas realizações
culturais se encarnam e pelas quais se dá aos traços culturais intelectuais
uma consecução tangível, como os edifícios, ferramentas, máquinas,
dispositivos de comunicação, objetos de arte, etc.[41]

Essa definição prossegue a ponto de incluir todas as


linguagens, tradições, costumes e instituições. Ambas as definições
desses dicionários buscam ser cientificamente precisos, mas são
igual e fundamentalmente destituídas de sentido, porque, além de
generalizadas, falta-lhes foco. Ora, a falta de foco implica um retrato
borrado. Essas definições, por sua vez, buscam a exatidão e a total
abrangência. Quando estudam as “culturas nativas”, os cientistas
buscam coletar todo tipo de dados disponíveis a fim de entender a
cultura, sendo os dados religiosos listados entre eles. Contudo,
como Henry R. Van Til assinalou há alguns anos:
Cultura, no entanto, não inclui religião. Dizer que ela inclui é o erro básico de
praticamente todos os nossos antropólogos culturais, fato que deve ser
avaliado por meio de leitura cuidadosa de todo trabalho básico sobre
antropologia, de autores como Van der Leeuw, Malinowsky e outros. Além
disso, Matthew Arnold dá a impressão de que cultura é mais inclusiva que
religião. Mas a assunção básica, enfatizando essa posição, nega o
cristianismo e é inteiramente naturalista.[42]

Van Til demonstra que a cultura não inclui a religião, porque


cultura é religião externalizada. Todas as coisas numa sociedade
têm seu foco segundo a fé dessa mesma sociedade. O foco
religioso do mundo moderno é humanista; daí, homens e nações
externalizam sua fé humanista em que tudo que fazem.
Isso, de pronto, nos faz lidar com um nosso problema. Uma
vez que a cultura é religião externalizada, o que aconteceu com o
cristianismo? Se simplesmente sairmos à rua, veremos a cultura do
humanismo ao nosso redor. Se pegarmos um jornal, ou ligarmos a
televisão, mais uma vez veremos a cultura do humanismo. Vivemos
numa época intensamente religiosa, e a religião do momento é o
humanismo, a adoração ao homem. No passado — e não vem ao
caso se correta ou incorretamente —, a dissenção religiosa em
relação às formas instituídas de cristianismo fora proibida.
Presentemente, porém, é estritamente proibido, e frequentemente
sancionável por lei, citar as falhas e crimes de qualquer grupo
minoritário, por mais verdadeiros que os fatos sejam. Os direitos
iguais de todos os homens são agora vistos como o verdadeiro
evangelho, e ai daquele que desafiar essa fé! Vemos o humanismo
externalizado ao nosso redor. Nossas leis são cada vez mais
humanistas, e, o que é pior, também nossas igrejas. Não produz
nenhum bem — e, em alguns países, produz antes muitos males —
ter uma igreja oficial na nação e esta mostrar-se ainda humanista.
Na Suécia, todos os cidadãos votam nas eleições dos quadros da
igreja, e assim ateus e marxistas regularmente as dominam. De uma
ou outra forma, o humanismo é a religião estabelecida da maior
parte das nações. As antigas formas de cristianismo oficial podem
permanecer; a substância, porém, já se perdeu.
Pode-se argumentar que muitas igrejas são evangélicas, e
portanto a situação não é tão ruim quanto parece. Voltemos, pois, à
nossa definição de cultura como religião externalizada. Começando
com o movimento conhecido como pietismo, o cristianismo
paulatinamente se internalizou. Seria absurdo concluir, a partir das
declarações dos pietistas, que uma experiência religiosa calorosa e
vigorosa estivesse anteriormente ausente tanto nos círculos
católicos quanto nos protestantes. Essa ideia não tem substância
histórica. Os reformadores do continente, assim como os da
Inglaterra e Escócia, eram homens de grande e ardente fé. Percebi
quão vulgarmente podem degradar homens do passado ao ouvir
certo pastor dizer que João Calvino não era salvo, pois em nenhuma
parte de seus escritos ele relata sua experiência de conversão! Eu
disse ao homem que Calvino acreditava que era mais importante
proclamar a palavra de Deus que sua própria experiência. Este é o
ponto central. Dentre os seguidores de Zinzendorf, um fundador do
movimento, acreditava-se que era mais importante ler os sermões
das Ordinárias que estudar diretamente a Bíblia.[43] O pietismo
ressentia-se do pensamento e pregação sólidos e substanciais e
preferia o emocionalismo à doutrina. A preocupação dos
reformadores com a glória de Deus e o reino de Deus foi substituída
pela ênfase na salvação e experiência do homem.[44]
Segundo as Escrituras, a salvação do homem é o ponto de
partida, não a finalidade. Nosso Senhor declara: “buscai, pois, em
primeiro lugar, o seu reino e a sua justiça (ou retidão), e todas estas
coisas vos serão acrescentadas” (Mateus 6.33), e não uma gloriosa
experiência.
O pietismo internalizou a religião e hostilizou a externalização
do cristianismo. Nos Estados Unidos, o pietismo opôs-se às escolas
cristãs; retirou-se de um miríade de ministérios de caridade e
concentrou-se em duas coisas: primeiramente, a salvação de almas
com base numa ênfase antropocêntrica; e, em segundo lugar,
muitos retiros espirituais e conferências projetadas para edificar a
vida devocional e alegria dos indivíduos, em vez de estimular
ministérios cristãos de compaixão e misericórdia. Com a ascensão
do pietismo, passou-se a falar abundantemente de amor, ao passo
que suas práticas diminuíram.
Um exemplo mostrará os resultados de tudo isso. John Lofton,
da equipe da Chalcedon, criticou, num artigo de jornal, a falta de um
interesse cristão por parte da Sra. Nancy Reagan, assim de sua
assessoria, com relação a determinado tema. Uma mulher pertence
à assessoria ligou para contestar a declaração de Lofton, e chegou
a identificar-se como cristã. John em seguida indagou: “então por
que não vejo nenhuma evidência disso?”. A resposta dela foi que
sua fé era um assunto privado bastante precioso. John, porém,
replicou: “como é possível ser cristão, se é assim tão privado?”.
Pouco tempo depois, um indivíduo proeminente e associado
próximo de Reagen repreendeu John Lofton por “arrastar” o
cristianismo a um comentário político; ele acrescentou que era um
cristão e estava aconselhando John enquanto cristão! John Lofton,
que tinha intimidade com esse homem a ponto de tratá-lo pelo
primeiro nome, respondeu: “Conheço você há anos e jamais poderia
adivinhar que era cristão. Onde manteve sua fé, num armário?”. Um
seguimento sombrio a esse episódio se deu no fato de que, um ano
ou pouco mais depois, esse assessor presidencial estava sendo
acusado de ilicitude.
Como o cristianismo tem um impacto em nossa cultura se tem
sido mantido como um assunto privado? Como uma fé pode ser vital
se está limitada a experiências emocionais, não sendo, pois, uma
questão de vida e ação? Se somos o sal da terra, como nosso
Senhor exige que sejamos, significa que somos o agente de
preservação do mundo. Sem nós, o mundo chafurdaria em
corrupção total. O sal que se torna insípido é jogado no jardim, para
que destrua as plantas. É lançado no caminho para “ser pisado
pelos homens” (Mateus 5.13). É assim que nosso Senhor julga uma
igreja que falha em realizar seu trabalho. De semelhante modo,
somos chamados para ser a luz do mundo, para ser a força cultural
e vital. O Senhor exige de nós uma fé ativa: “Assim brilhe também a
vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras
e glorifiquem a vosso Pai que está nos céus” (Mateus 5.16). Isso
nos diz três coisas. Primeiro, somos transmissores da luz da
sabedoria de Deus, Jesus Cristo, a todos os homens. Em segundo
lugar, eles devem ver nossas “boas obras”, nossa obediência a toda
palavra que procede da boca de Deus (Mateus 4.4). A declaração
de nosso Senhor a Satanás provém de Deuteronômio 8.1-3:
Cuidareis de cumprir todos os mandamentos que hoje vos ordeno, para que
vivais, e vos multipliqueis, e entreis, e possuais a terra que o Senhor
prometeu sob juramento a vossos pais. Recordar-te-ás de todo o caminho
pelo qual o Senhor, teu Deus, te guiou no deserto estes quarenta anos, para
te humilhar, para te provar, para saber o que estava no teu coração, se
guardarias ou não os seus mandamentos. Ele te humilhou, e te deixou ter
fome, e te sustentou com o maná, que tu não conhecias, nem teus pais o
conheciam, para te dar a entender que não só de pão viverá o homem, mas
de tudo o que procede da boca do Senhor viverá o homem.

Nosso Senhor declara que vive pela lei de Deus, não pela lei
de Satanás conforme expressa em Gênesis 3.5, pela qual o homem
faz de si próprio seu deus, conhecendo, ou determinado por si
mesmo, o bem e o mal, o que é lei e moralidade, e igualmente o
caminho pelo qual deve prosseguir. Em terceiro lugar, os homens
glorificarão nosso Pai no céu quando nos verem viver nesse tipo de
fidelidade. A cultura de nosso mundo será então cristã, porque
cultura é religião externalizada para governar cada área da vida e
pensamento.
As definições dicionarizadas de cultura citadas anteriormente
estavam equivocadas na medida em que negavam o foco religioso
da cultura. Estavam corretas em ver cada área da vida e
pensamento, incluindo a linguagem, como um aspecto da cultura (as
línguas ocidentais refletem profundamente a impressão e divulgação
da Bíblia). Estavam erradas, porém, ao não reconhecerem que é a
religião que molda a cultura. Mas como poderiam fazê-lo quando
mesmo a maior parte dos cristãos falham em reconhecer isso? Se
não providenciarmos a luz, quem o fará?
1
12. CRISTIANISMO E CULTURA, PARTE 2

Nosso Senhor nos ordena no Sermão da Montanha a ser a luz


do mundo (Mateus 5.15). Davi declara acerca de Deus: “Pois em ti
está o manancial da vida; na tua luz, vemos a luz” (Salmos 36.9).
Os homens, no entanto, buscam a luz por toda a parte; aliás,
buscam ser sua própria luz. Isaías diz-nos sobre o veredito de Deus
para com tais homens: “Eia! Todos vós, que acendeis fogo e vos
armais de setas incendiárias, andai entre as labaredas do vosso
fogo e entre as setas que acendestes; de mim é que vos sobrevirá
isto, e em tormentas vos deitareis” (Isaías 50.11).
Em lugar da luz de Deus, os homens buscam gerar sua própria
luz e visão. São homens das trevas, procurando um escape por
meio da exaltação de si mesmos. Sonham que sua sabedoria lhes
dará a luz necessária. Calvino percebeu que Deus dizia a esses
indivíduos: “Vocês me rejeitaram e buscaram acender sua própria
luz para escapar das trevas. Ora, sua vida agora se encaminhará
em direção ao seu próprio fogo, que será não sua salvação, mas
sua destruição: ‘no lugar de tormentas vos deitareis’”.[45] Eles
criaram a cultura da morte.
Vimos que a falsa definição de cultura se restringe a uma
classe superior interessada nas artes. Esse interesse não é cristão e
portanto superficial. Em Nova York, as pessoas leem, não tanto
livros quanto ensaios críticos dos livros, a fim de saber como
pensar; elas visitam as galerias de arte da atual “tendência” para
conhecer arte como presentemente se supõe que seja. O “teatro
legítimo” pode estar oferecendo lixo, assim como os filmes e a
televisão, mas é arte “superior” contra a arte “low-brow” dos meios
de comunicação mais populares. Num sentido não pretendido por
Alan Levy em seu título The Culture Vultures [Os abutres da cultura]
(1968), essas pessoas, seja em Nova York, Londres, Paris ou
Moscou, são de fato abutres da cultura.
Abutres da cultura acreditam que somente o melhor na arte é
de fato cultura, e esta deve ser desfrutada apenas pelos melhores
dentre os homens, a saber, eles mesmos. As definições populares
de cultura são pois elitistas e, de igual modo, anticristãs. Nesse
sentido, a cultura é vista como a prerrogativa de um grupo exclusivo
de pessoas, com a exclusão daqueles tidos como incultos.
Nosso Senhor, contudo, percebe a necessidade de se
externalizar a nova vida que nele temos. Uma vez que somos
regenerados por sua graça salvadora, devemos buscar regenerar
todos os homens e trabalhar em prol dos “novos céus e nova terra,
nos quais habita justiça” (2 Pedro 3.13). Somos o povo do Jubileu, e
nosso Senhor, em Nazaré, leu a proclamação do grande Jubileu de
Isaías 61.1 ss. Conforme nos relata Lucas:
Indo para Nazaré, onde fora criado, entrou, num sábado, na sinagoga,
segundo o seu costume, e levantou-se para ler. Então, lhe deram o livro do
profeta Isaías, e, abrindo o livro, achou o lugar onde estava escrito: O
Espírito do Senhor está sobre mim, pelo que me ungiu para evangelizar os
pobres; enviou-me para proclamar libertação aos cativos e restauração da
vista aos cegos, para pôr em liberdade os oprimidos, e apregoar o ano
aceitável do Senhor. Tendo fechado o livro, devolveu-o ao assistente e
sentou-se; e todos na sinagoga tinham os olhos fitos nele. Então, passou
Jesus a dizer-lhes: Hoje, se cumpriu a Escritura que acabais de ouvir. (Lucas
4. 16-21)

Esses versos eram parte das ordens de marcha da Igreja


Primitiva. Pregavam a salvação por meio do sacrifício expiatório de
Jesus Cristo. Eles tinham um ministério de cura e, pouco depois,
estabeleceram hospitais. Eles pregavam tanto a pobres quanto a
ricos; curavam os aflitos de coração, pagavam o resgate de cativos,
curavam aqueles que estavam tanto espiritual quanto fisicamente
cegos, e libertavam os oprimidos, aqueles que haviam sido
alquebrados ou esmagados pela opressão.
A Igreja Primitiva incluía muitos indivíduos proeminentes:
advogados, filósofos, homens do Estado, dentre outros. Mas
também incluía escravos e pobres. Essa miscelânea de pessoas
numa cultura elitista fez com que o cristianismo fosse desdenhado
como uma religião de escravos. Esses cristãos desprezados
estavam criando uma cultura cristã, na qual todas as relações,
vocações, esferas de atividades e pessoas eram aspectos do reino
de Deus e evidência de uma nova cultura. Os cristãos eram odiados
porque eram produtivos e exitosos no que faziam.
Esse ódio é um testemunho do poder cristão. John Dryden, no
século XVII, demonstrou desdém aristocrático pelos puritanos,
considerando-os escória e descrevendo-os como a “ralé
embusteira... a quem os reis não concederam título, nem Deus sua
graça”.[46] Esse mesmo “desdém culto” ainda se encontra muito
presente em nosso meio.
Um indicador de nossa perda de poder cultural é o fato de que,
antes uma doutrina extremamente importante, a providência é hoje
uma doutrina da qual pouco se ouve. O Catecismo maior de
Westminster nos diz:
As obras da providência de Deus são a sua mui santa, sábia e poderosa
maneira de preservar e governar todas as suas criaturas e todas as suas
ações, para a sua própria glória.
Também se afirmava que, uma vez que o homem foi criado à
imagem de Deus, ele tinha portanto o dever de ser providente. Por
essa razão, ao longo dos séculos, os deveres providentes eram
fielmente pregados e praticados: virtudes familiares, parcimônia,
caridade, trabalho, honestidade, uma palavra digna de confiança,
dentre outros. Os puritanos, em especial, enfatizavam essas coisas
e, por meio disso, tornaram-se poderosos. A providência era a
doutrina favorita deles, servindo inclusive de nomes para navios e
para ao menos uma cidade. Providence [Providência], Charity
[Caridade], Faith [Fé], Hope [Esperança] e nomes semelhantes
eram comumente dados às meninas.
Nos dois últimos séculos, a providência foi gradativamente
substituída por revolução. Em vez de enfatizar a providência, a
cultura da revolução sublinha a inveja e violência. A ética do
trabalho foi substituída pela ética da inveja. A solução para os
problemas não é a lei de Deus fielmente observada, mas a
subversão violenta da ordem presente. A doutrina da providência
destaca a harmonia derradeira, no Senhor, de todos os interesses,
ao passo que a revolução insiste no conflito contínuo de interesses.
Já em 1659 na Inglaterra, os homens estavam se voltando da
providência para a revolução. Richard Flecknoe escreveu: “todas as
coisas neste mundo estão em perpétua revolução; é impossível ver,
do princípio, o fim de todas as coisas”.[47] Os que creem na
providência de Deus afirmavam e ainda afirmam, juntamente com
Pedro: “diz o Senhor, que faz todas estas coisas que são
conhecidas desde toda a eternidade” (Atos 15.18, versão ARC).
Ademais, Deus anuncia sua obra e sua palavra, de modo que é
possível, desde o princípio, perceber o fim de todas as coisas.
Pertence à providência de Deus que todos os tipos de homens
sejam salvos, que todos os povos, tribos, línguas e nações
conheçam Cristo como Senhor e Salvador (Apocalipse 5.9).
Isso, porém, não pode ser feito, caso sejamos pobres para
com Deus e seus servos. No século XVIII, uma ideia maligna
ganhou cada vez mais influência — e, em alguns círculos, ainda se
faz presente. Na Escócia, a Assembleia Geral, sob a liderança de
leigos, recusou-se a aumentar os salários ministeriais. O argumento
farisaico e hipócrita deles era este: “Uma igreja pobre é uma igreja
pura”. O resultado[48] foi o triunfo do secularismo.[49]
De acordo com Jeffrey Burton Russell, a ideia de que “a
santidade, em vez da fama ou riqueza, era o caminho para obtenção
de status”[50] era essencial à cultura do medievo. Sem estreitar
nossa visão à santidade, mas incluindo o conhecimento e domínio
piedosos, com retidão ou justiça, devemos dizer que uma cultura
cristã deve manifestar todas essas coisas a serviço de Deus e, no
Senhor, ao serviço dos homens.
Antifonte, o Sofista, aparentemente um ateniense da última
metade do século V a.C., definiu claramente a doutrina grega de
justiça. Segundo ele, “a justiça é, pois, não transgredir a lei da
cidade da qual se é cidadão”. Trata-se de claro e óbvio humanismo.
É a fé e cultura de nosso tempo. A retidão ou justiça é o vínculo que
coere e sustenta uma cultura. A injustiça crescente dos Estados
humanistas está levando ao medo, fragmentação e decadência
interna. Devemos ter uma cultura cristã, governada pela lei de Deus,
e sempre atento ao fato de que Deus há de nos pedir contas pela
manutenção de sua ordem. Os testes para uma cultura, conforme
Deus lhes declara, são francas e graves:
Não afligirás o forasteiro, nem o oprimirás; pois forasteiros fostes na terra do
Egito. A nenhuma viúva nem órfão afligireis. Se de algum modo os afligirdes,
e eles clamarem a mim, eu lhes ouvirei o clamor; a minha ira se acenderá, e
vos matarei à espada; vossas mulheres ficarão viúvas, e vossos filhos,
órfãos. (Êxodo 22.21-24)

Uma cultura cristã começa onde outras culturas não se


venturam, com a palavra de Deus e seu mandato a nós para cada
esfera da vida e pensamento.
1
13. A PULSÃO DE AUTONOMIA

A cultura moderna é radicalmente antricristã, sendo também


um desenvolvimento das premissas de Gênesis 3.5, o desejo do
homem de ser seu próprio deus, conhecendo e determinando o bem
e mal por si mesmo. Isso significa uma vontade de autonomia e
asseidade. Autonomia significa “lei para si próprio”, isto é, não ser
governado por outra lei senão a de seu próprio ser. Asseidade
significa “ser de si”, ser deus, incriado e totalmente independente de
todas as demais criaturas e coisas.
Na prática, essa vontade de autonomia pode manifestar-se de
diversas formas. Pode implicar ascetismo como uma negação das
necessidades humanas, por exemplo negar-se comida, sexo,
companhia, etc. Pode implicar também um desprezo por essas
mesmas coisas por meio do excesso, isto é, orgias praticadas por
certos místicos orientais para demonstrar que o sexo não significa
nada, sendo pois praticado como um ato banal e insignificante.
Ambas as atitudes são bastante comuns entre nós.
Alguns anos atrás, uma jovem veio ouvir-me duas ou três
vezes, levada não por qualquer interesse pelo que eu tinha a dizer,
mas porque alguém lhe havia dito que eu trazia ajuda de “bom
senso” para os problemas. Logo em seguida ela buscou meu
conselho. Essa jovem e seu marido eram notáveis na sociedade e
por vezes figuravam nas páginas de notícias das altas classes. Ele
era alto, atlético, bem-apessoado e cabelos louros; ela tinha cabelos
castanhos claros, também alta e bela. O problema dela, porém, era
este: ela era uma excelente dona de casa, ótima cozinheira e uma
mulher sexualmente atraente; contudo, seu marido menosprezava
todas as suas realizações, mantinha relações sexuais com ela no
máximo uma vez ao mês, e, no entanto, nenhum dos dois eram
adúlteros. Ele tinha a aura virginal de quem jamais se envolveu em
nada bom nem mau, e havia conhecido a vida somente em sua
superfície. Ela estava profundamente magoada e abalada pela
atitude de seu marido. O que veio à tona foi em suma isto: ele, o
marido, estava plenamente consciente das qualidades dela; achava-
a de fato sexualmente atraente; havia se casado com ela porque a
“posse” dela era um troféu e um triunfo, mas ele se ressentia de
necessitar e desejá-la sexualmente. Ele considerava o sexo no
matrimônio degradante, já que isto deixava claro sua dependência
física para com ela, de modo que se sentia “menos que humano”.
Para ele, ser um homem livre significava usar de todas as coisas
sem precisar ou amar nada ou ninguém. Ele via a necessidade e a
dependência como uma capitulação da liberdade e masculinidade.
[51]

O marido talvez não estivesse consciente da filosofia


existencialista, mas era, no fundo, um existencialista. A liberdade,
para ele, implicava a ausência de vínculos em relação ao passado e
presente. A despeito dos óbvios benefícios e privilégios provindos
de seus pais, ele se mostrava embaraçado quando na presença
deles, já que esta o fazia lembrar-se de seu ser derivado e
dependente. Tratava-se de um caso clássico de um aspirante a
indivíduo autônomo. Agradava-lhe pensar que outros homens
desejavam sua fé e invejavam sua possessão de uma mulher tão
sexualmente atraente; e, contudo, se ressentia com o fato de ele
próprio desejá-la, uma vez que isto evidencia sua involuntária
dependência.
Em nossa época, o sexo é bastante enfatizado e
superestimado enquanto fato nas vidas dos homens. Evidentemente
o impulso sexual pode mostrar-se uma pulsão muito forte, mas a
vontade de ser um deus é, de longe, muito mais intensa. A
concupiscência por autonomia e asseidade é a força central no
homem caído. Certo homem, que posteriormente foi levado a
tratamento psiquiátrico como criminoso sexual, revelou sua
motivação num comentário a sua esposa que sofreu intenso abuso:
“Posso fazer o que quiser contigo, e isto não significa nada pra mim,
mas tudo pra você”.
Em 1982, o Higher Heights Christian School of Martinez, uma
escola cristã na Califórnia, iniciou seu Programa de Assistência à
Comunidade, a fim de ajudar as pessoas privadas de alimento do
Condado de Contra Costa. Em fins de fevereiro do mesmo ano, uma
média de 240 famílias, quatro vezes por semana, estavam sendo
alimentadas. Eram pessoas que realmente passavam fome,
obviamente malnutridas e algumas de fato tão famintas, que não
esperavam sair do prédio da escola para entupir a boca com
comida.
No entanto, várias pessoas recusavam comida quando ficavam
sabendo que veio dos cristãos, e não do governo federal. Embora
os atrasos burocráticos impedissem que eles recebessem o
subsídio federal, eles consideravam que essa ajuda estatista era
“direito” deles, e preferiam, portanto, seus “direitos” em vez do
auxílio ou caridade cristãos.
Esse não é um exemplo isolado. O auxílio ou caridade cristãos
são pessoais; estabelece uma relação pessoal da qual fluem a
preocupação e gratidão. Por vezes, as pessoas ministram o trabalho
de caridade vêm das mesmas camadas sociais que os indivíduos
que o recebem; os doadores sabem que uma mudança na situação
econômica pode fazer deles próprios beneficiários desempregados
dessa caridade. Resulta disso, comumente, um vínculo cristão de
graça e interesse. A vontade de autonomia não pode tolerar essa
interdependência.
O bem-estar estatista ajusta-se assim ao temperamento
moderno. É impessoal. É um “direito” e não ofende o orgulho do
homem. Numa homilia elizabetana, lemos o seguinte:
E nosso Salvador Cristo disse: ninguém é bom, senão um, que é Deus, e
que, sem ele, nada de bom podemos fazer; que ninguém vem ao Pai senão
por ele. Ele nos ordenou todos a dizer que somos servos inúteis, após
termos feito tudo que podíamos. Ele preferiu o publicano penitente ao fariseu
orgulho, santarrão e jactancioso. Chamou-se a si próprio de médico, não dos
sãos, mas dos enfermos, os quais precisam de seu bálsamo para suas
feridas. Ele nos ensina em suas orações a reconhecermo-nos como
pecadores e a pedir, pela mão celestial de nosso Pai, perdão e livramento de
todos os males. Ele declara que os pecados de nossos próprios corações
merecem condenação, afirmando que daremos conta de toda palavra frívola
que proferirmos. Ele diz que não foi enviado senão às ovelhas perdidas e
rejeitadas. Portanto, poucos dentre os orgulhos, justos, doutos, sábios,
perfeitos e santos fariseus foram salvos por ele: porque justificavam a si
mesmos com sua fingida santidade perante os homens. Por conseguinte,
meus bons ouvintes, acautelemo-nos contra essa hipocrisia, vanglória e das
tentativas de justificar-nos a nós mesmos. Olhemos para baixo e
humilhemos esses pavoneios, esse coração orgulho, esse barro vil, frágeis e
quebradiços vasos.[52]

O estatismo moderno buscar reificar e despersonalizar


profundamente, e em cada esfera, as atividades pessoais. Cria
agências que suspostamente fornecem uma variedade de serviços
como sua função lógica e, com isso, libertam os homens de suas
responsabilidades pessoais. O problema, contudo, é que quando o
cidadão se liberta de suas responsabilidades, ele, como burocrata,
deixa de atentar-se para elas também. A despersonalização se
instala por toda parte. Disso resulta não a graça diaconal nem a
preocupação pessoal, mas problemas e necessidades “sociais”.
Ninguém ganha nada sendo o contribuinte taxado ou o beneficiário
anônimo do bem-estar estatista. A responsabilidade desaparece em
ambos os lados. Os ricos estão prontos a condenar a degeneração
das turbas do bem-estar, mas falham em ver a degenerescência dos
próprios cidadãos que transitam entre as camadas mais abastadas.
A corrupção e despersonalização do Estado de bem-estar atua de
ambas as formas. É um aspecto da vontade moderna de autonomia,
e é mais claramente presente nos que não são beneficiários. Para
muitos destes, a humanidade, em qualquer sentido que se valha,
termina com eles.
O bem-estar social impessoal, desde os dias de Roma até ao
presente, cria a turba. Ora, um elemento essencial para o
desenvolvimento de uma turba é a despersonalização. Nem a
pessoa nem a moralidade governa ou atuam numa turba.
O homem foi criado por Deus para viver em comunidade, não
na autonomia. A personalidade do ser humano é um reflexo da
personalidade ou imagem de Deus. O homem, por seu pecado,
busca a autonomia, uma impossibilidade e negação de seu ser
triúno. Ao buscar a asseidade e autonomia, o homem ganha, não a
desejada divindade, mas uma descida à turba. A falha em ser uma
comunidade no Deus triúno implica um colapso em direção à
anarquia da turba. A comunidade é um fato teológico, não um
estatista.
14. GOVERNO E DOMÍNIO

São João Crisóstomo (circa 347-407 d.C.) é famoso por sua


eloquência digna de uma “boca de ouro”, assim como por sua
resistência ao poder imperial. Ele é menos conhecido por suas
obras de caridade. Em sua época, o número de cristãos em
Constantinopla se aproximava a 100.000. Segundo J. G. Davies, os
cristãos “tinham-se como responsáveis pela manutenção de 50.000
pessoas pobres”. Além desses apoiados pelo clero, mais três mil
viúvas e virgens eram auxiliadas. Os fundos para esse variado
trabalho da igreja provinham dos dízimos e ofertas dos fiéis; havia
ainda receitas das terras e propriedades legadas à igreja, e o
imperador dava uma porção à igreja. O fundo dos pobres tinha a
atenção e preocupação especiais de Crisóstomo.[53] Ao mesmo
tempo, Crisóstomo servia como juiz, uma função cedo assumida na
história da igreja, conforme o mandamento de Paulo em 1 Coríntios
6.1-6.[54] Essas audições eram feitas às segundas-feiras, de modo
que a paz pudesse ser restabelecida entre as partes conflitantes por
meio (e logo em seguida) a decisão, antes do domingo
subsequente.[55]
Nada disso era incomum. Os fiéis levavam à sério a ordem de
Paulo de que os cristãos devem julgar ou governar o mundo (1
Coríntios 6.2-3). Cedo estabeleceram suas próprias cortes, escolas,
obras para benefício público, hospitais e afins.
W. H. C. Frend, analisando a história da igreja até o ano de
604 d.C., menciona em certas passagens as atividades instituídas
pelos cristãos. Muitas delas eram comuns à vida judaica, em
obediência à lei bíblica. O livro apócrifo de Tobias dá-nos evidência
disso. Tobias aconselha seu filho a dar esmolas fielmente, pagar
pontualmente todos os trabalhadores, comer seu pão com os
famintos e necessitados e vestir aos nus. “Não faças a ninguém o
que não queres que te façam” (Tobias 4.15). O imperador apóstata,
Juliano, reconhecia que os pagãos eram atraídos ao cristianismo em
razão de sua vida em comunidade: “Nenhum judeu jamais teve de
mendigar, e os ímpios galileus auxiliam não apenas seus próprios
pobres, mas os nossos também”.[56] Hermas escreveu sobre o
dever cristão de cuidar das viúvas e órfãos, de socorrer crentes
aflitos, praticar a hospitalidade, honrar os anciãos, praticar justiça e
preservar sua irmandade. Toda a literatura cristã primitiva enfatizava
essas responsabilidades.[57] Prisioneiros raptados por salteadores
eram resgatados. A igreja, como a sinagoga judaica, agia como
administradores para viúvas e órfãos, e Cipriano comparava o clero
aos levitas do Antigo Testamento em suas responsabilidades.[58] Os
enfermos e cativos deveriam ser visitados; um funeral digno para o
cristão falecido era outra incumbência.[59] Os edifícios da igreja
eram mais impressionantes e estruturalmente superiores aos
demais e tinham câmaras para depósito de provisões aos
necessitados.[60] Basílio, o Grande, valia-se dos monges para
servirem como funcionários para escolas, orfanatos e hospitais.[61]
O papa Gregório I teve cuidado em não desperdiçar os bens do
Senhor. Registros cuidadosos eram mantidos para todos os que
receberam caridade, o montante e a data, desencorajando, assim,
enfaticamente a fraude. O palácio de Gregório hospedava os
estrangeiros e alimentava os enfermos.[62]
A era medieval viu muitos desses ministérios desenvolverem-
se e difundirem-se. Continuaram a fazê-lo após a Reforma. Na
Inglaterra, a pregação de Thomas Lever (1550) iniciou um grande
movimento para desfazer as degradações de Henrique VIII contra a
igreja ao realizar a restituição massiva a Deus por meio das obras
cristãs de educação e caridade, dentre outras.[63] As escolas de
caridade da Igreja da Inglaterra foram um fator nos últimos anos.[64]
Esse brevíssimo exame deixa claro que os cristãos assumiam
a responsabilidade pela saúde, educação e bem-estar. Eles também
forneciam cortes às quais, nos primeiros séculos, tanto pagãos
como cristãos recorriam em busca de justiça. Claramente, o governo
fundamental da sociedade estava nas mãos de cristãos e de
instituições cristãs.
Isso não deveria surpreender-nos. De acordo com Isaías 9.6, o
governo estaria nos ombros de Cristo. Com sua vida, morte,
ressurreição e ascensão, nos é dito que ele é o “bendito e único
Soberano, o Rei dos reis e Senhor dos senhores” (1 Timóteo 6.15):
é, e não será. Como reis e sacerdotes perante Deus em Cristo
(Apocalipse 1.6), os cristãos têm o dever de reger por ele. É-nos
dado esse ofício em virtude de sua expiação (Apocalipse 1.5), de
modo que agora somos o povo de seu domínio e portanto de sua
justiça, os defensores de sua lei.
Essa é não era uma questão de debate ou discussão dentro da
igreja, mas uma suposição tácita. Reconhecer esses poderes
governamentais era uma afronta ao Império Romano, tal como o é
hoje às nações. Os Estados marxistas proíbem-na estritamente;
naqueles em que uma suposta liberdade religiosa é ainda mantida
para alguns, os cristãos são limitados a adorar numas poucas
igrejas, mas impedidos de exercerem uma função governamental e
de domínio.
Domínio é o exercício de governo e assim um fato religioso.
Era natural, portanto, que os monges criassem terras nos Países
Baixos por meio de diques, abrissem florestas para plantarem, e
convertessem áreas áridas e rochosas em terras férteis. Tudo isso e
muito mais significava o exercício do domínio, do governo em nome
de Cristo.
O mandato governamental foi reduzido e por vezes extinto por
duas razões. Primeiramente, dentro da igreja, uma teologia
deficiente, pietismo e antinomismo; posteriormente escatologias da
fuga e escapismo levaram ao colapso da ação governamental cristã.
Em segundo lugar, o estatismo buscou manter domínio e governo
exclusivos em cada esfera, e teve sucesso na obtenção desses
poderes.
Por trás de tudo isso havia doutrinas e movimentos religiosos,
cruzadas e fés humanistas. Nos Estados Unidos, esse
anticristianismo veio à tona nas obras de Ralph Waldo Emerson e
Walt Whitman. O propósito declarado de Whitman, conforme
expresso em seu “Partindo de Paumanok”, na versão de 1892, era
“somente para lançar à terra os gérmens de uma religião maior”.[65]
Whitman via-se como um poeta-profeta, agindo em conformidade
com um personagem ficcional de um romance francês.[66] Em
“Chanting the Square Deific” [Cantando o quadrado deífico] (1865),
ele apresentou-se como a atual expressão de uma divindade
panteísta:
Cantando o quadrado deífico, avançando a partir do Um, emergindo dos
lados,
Saindo do velho e do novo, saindo do quadrado inteiramente divino,
Sólido, de quatro lados (todos os lados necessários), a contar deste lado,
Jeová eu sou,
Velho Brahma eu, e eu Saturno sou;
O tempo não me afeta — eu sou o Tempo, velho, moderno como qualquer
um,

Impersuadível, inexorável, executando julgamentos honrados…[67]

Nesse mesmo “poema”, Whitman também se identifica como


Satanás.[68] O que não era inédito. Em 1855, em “The Sleepers” [Os
adormecidos] Whitman declarou: “eu sou o herdeiro sofrido e terrível
de Lúcifer”.[69] O que começa como um protesto contra a escravidão
torna-se (na oitava seção) um “poema” celebrando a felação
homossexual.[70] Segundo Helen Vendler, admiradora de Whitman,
a obra pode ser comparada às bodas de Caná da Galileia e à
transformação, por parte de Cristo, da água em vinho. (Vendler vê o
episódio no poema como se dando entre Whitman e uma virgem.)
[71] Para nosso presente interesse, basta dizer que Whitman, mais
rigorosamente que Emerson, não apenas adotou uma nova religião,
mas também uma nova moralidade. Além disso, para ele, a
democracia era o verdadeiro futuro do homem. O monismo de
Whitman, assim como todo monismo, segundo a afirmação de
Rosenstock-Huessy, conduz à escravidão. Para Whitman, a única
verdade era a voz do povo, independente do que este dissesse,
contanto que não fossem cristãos. Os escritos de Whitman são uma
revolta prolongada contra o cristianismo e contra o domínio e
governo cristãos.
Visto que a religião de Whitman é a fé dos intelectuais e
educadores, testemunhamos o crescente avanço do governo
monocrático por parte do Estado. Quando as pessoas hoje falam em
“governo”, elas se referem ao Estado, embora, na verdade, o
governo comece com o autogoverno do indivíduo cristão; ademais,
governo implica a família, igreja, escola, nossa vocação, nossa
sociedade e suas muitas instituições e agências, e somente
parcialmente o Estado.
Ao abandonarem o domínio e governo, os líderes eclesiásticos
fizeram-se irrelevantes para Deus e homem, tanto na terra quanto
no céu. Uma vez que Cristo, por meio de seu sacrifício expiatório,
nos fez reis e sacerdotes perante Deus, temos o dever incontornável
de exercer domínio e governo.
O homem é, em Cristo, um profeta, sacerdote e rei. Como
profetas, cada um de nós deve interpretar nossas vidas e mundos
segundo a palavra-lei de Deus e aplicar cada uma de suas palavras
em todas as esferas. Ser um profeta em Cristo é viver por toda
palavra de Deus (Mateus 4.4).
Como sacerdotes, dedicamos e consagramos a nós mesmos,
nosso mundo e cada atividade nossa ao Deus triúno. Todas as
coisas devem ser santificadas nele (Zacarias 14.20-21). Como reis,
devemos governar o mundo em Cristo e desenvolver todas suas
potencialidades para ele, de modo que o deserto floresça como o
narciso (Isaías 35.1). Nossos ofícios em Cristo são chamados de
governo e domínio. Não temos outros chamados nele.
1
15. O PROBLEMA DA POBREZA, PARTE 1

O problema da pobreza tem sido comum ao longo de toda


história, mas não sem diferenças importantes a cada época. Em
primeiro lugar, as definições acerca do que constitui a pobreza
variam. Desse modo, o pobre moderno das cidades americanas é
“mais rico”, em alguns aspectos, do que os homens de sucesso em
outras eras: ele tem, em geral, água quente e fria correntes,
banheiros no interior da casa, fogões melhores e mais aquecimento
nas casas do que os habitantes de castelos poderiam sonhar. O
pobre em Roma tinha uma experiência de privação que era muito
mais desigual do que nossa situação atual. Em segundo lugar, isso
nos revela que a pobreza é comparativa; o pobre da Índia nos anos
de 1980 consideraria o pobre de Nova York como rico. Esse fato, no
entanto, não nos dá base para ignorarmos a pobreza na cidade de
Nova York; antes, simplesmente nos mostra que a definição é, em
certa medida, relativa. O pobre em Nova York habitualmente tem
televisão, uma realidade muito distante para o pobre de Calcutá,
mas isso não elimina o fato de que o primeiro se vê como pobre, é
visto, pelos novaiorquinos mais prósperos, como pobre, e é, com
base na vida dos Estados Unidos, de fato pobre. Em terceiro lugar,
essa pobreza é relativa a uma sociedade e seu nível de
prosperidade não elimina o fato da pobreza, nem a realidade
também muito premente de que existe um abismo entre americanos
prósperos e americanos pobres, e indianos prósperos e indianos
pobres. Com efeito, a própria existência do abismo entre ricos e
pobres é uma parte importante e central da experiência da pobreza.
Assim, o Presidente Dwight. D. Eisenhower descreveu a realidade
da “pobreza” de sua família, quando de sua infância, mas
acrescentou: “Nunca soubemos que éramos pobres”. Eram pessoas
num país relativamente novo, gozando a oportunidade de viver
livremente e de buscarem sua prosperidade. Muitos imigrantes
pobres que vieram para os Estados Unidos experimentaram sua
pobreza neste país como nova riqueza e uma maravilhosa
oportunidade.
Em quarto lugar, nos últimos anos a pobreza foi politizada,
como o fora na civilização romana (e outras) do passado, o que
alterou sua natureza, pois se perdeu a natureza moral e religiosa da
pobreza. Negligenciar o governo teológico da pobreza e riqueza é
distorcer a ambas, é engendrar uma má consciência e acalentar o
ódio de classes.
Uma visão cristã primitiva (mas não bíblica) concebia a
pobreza como uma bênção. Tratava-se uma perspectiva claramente
adotada por São Francisco de Assis e que pouco depois caiu em
declínio. É fácil chamar a atenção para a negligência dessa visão
por parte do homem medieval, das grandes diferenças de classes e
do desprezo pelo pobre; mas não devemos nos esquecer que
muitos homens ricos e poderosos distribuíam suas riquezas e
assumiam uma pobreza radical por razões religiosas. Esta, por
vezes, tinha aspectos de uma salvação por “obras”, mas também
tinha fundamentos genuinamente piedosos e era marcada
comumente por profunda humildade. Ao mesmo tempo, o golfo
moderno entre rico e pobre se desenvolvia. Essa divisão moderna é
caracterizada pelo ódio ou desprezo mútuos pelos ricos ou pelos
pobres enquanto classe. Em Piers Plowman, uma obra inteiramente
medieval, vemos evidências dessa visão moderna. Em sua “Visão
do campo cheio de gente”, lemos:

But jesters and janglers, Judas children,


Feigning their fancies, and fooling the crowds,
With wit enough to work, if work they would,
Paul preacheth about them—no more will I say—
“He that speaketh filthily” is the Devil’s man.
There were tramps and beggars fast about flitting,
Crammed with bread in wallet and belly,
Lying for their food, and fighting in the taverns,
Going to bed in gluttony, rising from bed in ribaldry,
Gangs of mean thieves.

Sleep and sorry sloth pursue them ever.[72]


A exatidão dos comentários de Langland sobre essas pessoas
da classe mais baixa está fora de dúvida, mas o homem não deve
ser visto apenas com base naquilo que é, mas sim considerando-se
o que Deus exige de nós em sua lei. Nossa conduta então não é
governada pelo fato do homem, mas sim pelos mandamentos de
Deus. Isso não significa dizer que Langland não esteja consciente
disso, mas simplesmente que a visão moderna também se mostra
em sua obra. Por exemplo, ele diz sobre os mercadores:
Women that bake and brew, butchers and cooks,
They are the people that harm the poor,
They harm the poor who can but buy in pennyworths,
And secretly and oft they poison them;
They grow rich on their retail with what the poor should
eat,
They buy houses, they become landlords,

If they sold honestly they would not build so high.[73]


A corrupção e adulteração caracterizavam os pequenos
comerciantes, mas Langland via o mal em todos os grupos, das
altas e baixas classes — a crença cristã na depravação total.
Contudo, essa visão acerca do pecado, se não acompanhada da
crença do poder superior de Deus, em tudo e para tudo, torna-se
anticristã e perigosa.
O resultado é então os ricos declararem que os pobres são
pobres porque preguiçosos, imprevidentes, apáticos, imorais e no
fundo azarados. Visto que todos os homens são pecadores, há certa
verdade nisso (e é inclusive fácil de se verificar), mas não é toda a
verdade, e torna-se uma mentira caso essas características sejam
vistas como características de classe. Limitar o mal a uma classe ou
etnia é mais do que errado: é uma heresia maligna.
Mesmo quando o rico diz essas coisas, eles se sentem
culpados! Num encontro de herdeiros abastados, apenas um
homem, um cristão, defrontando várias pessoas, opôs-se às
doações carregadas de culpa — que estavam servindo como
dispositivo de alívio da consciência — para grupos radicais. A maior
parte da riqueza tendia a beneficiar financeiramente grupos
dedicados à destruição da riqueza! Ao se tornarem aliados do
segmento anticapitalista da sociedade, esses capitalistas buscavam
aliviar sua consciência, comprar o respeito de seus inimigos, e
“alcançar” o direito de permanecer em sua prosperidade. Sua única
recompensa é uma má consciência crescente, juntamente com um
temperamento e prática suicidas. Lançar dinheiro aos próprios
inimigos torna-se uma grande prática pessoal, política e
internacional no século XX, assim como uma fonte imensa de
problemas.
Ademais, a “solução” do Estado de bem-estar causa divisão na
sociedade. Os pobres frequentemente julgam ter “direitos” só pelo
fato de serem pobres. Ver a pobreza como uma condição que dá
direitos e títulos aos homens é uma crença estranha e socialmente
destrutiva, já que se assenta sobre a inveja. Já que os ricos têm
posses, os pobres, pelo simples fato de o serem, estão
“autorizados” a uma parte na distribuição da riqueza dos bens e
tributos. A sociedade de bem-estar divide a sociedade por sua
impessoalidade. O rico olha do alto para o pobre, tomando-o como
perigoso, e dissimula seus temores e hesitações ao fantasiar a
sociedade de bem-estar de amor e interesse humano. Amor não é
bem-estar social: se amo uma pessoa, desejo estar próximo dela;
mas o bem-estar social busca manter o pobre a distância, numa
extensão segura e contida.
O pobre no Estado de bem-estar tende a ver os ricos como
exploradores. Em vez de perceber a riqueza como algo produzido
pela inteligência, trabalho e capital, veem-na recurso estático,
imutável, que foi obtido por meio de expropriação. No que diz
respeito às pessoas dos ricos, o pobre as vê como arrogantes,
elitistas, inconscientes, esnobes e frívolos para com as vidas das
pessoas, e assim por diante. Visto que todos os seres humanos são
pecadores, essas opiniões são facilmente comprováveis; há
verdade nelas, mas não toda a verdade. Cada lado se satisfaz
amaldiçoando o outra. Disso resultam tensões de classe e mesmo
guerra entre classes.
Ao mesmo tempo, tal como os ricos, os pobres sentem-se
culpados. As esposas dos pobres muitas vezes voltam-se contra
seus esposos para acusá-los de maus, já que são pobres e
incapazes de prover adequadamente para a família. Os maridos
pobres frequentemente julgam que suas mulheres são o restolho
ranzinza do mundo feminino, indo atrás avidamente de homens
ricos. Para esses maridos, os ricos são maus, as mulheres são
malignas, e a vida também o é.
Numa sociedade de bem-estar, a guerra entre classes, a
guerra entre etnias e o conflito entre os sexos estão habitualmente
prontos a eclodir.
Contra essa mentalidade do bem-estar, a caridade cristã antes
une do que divide a sociedade. No dia 15 de janeiro de 1891, num
sermão em Durham, Inglaterra, o bispo da cidade, Brooke Foss
Westcott, declarou em parte:
… A esmola é a expressão natural, necessária, de um caráter cristão
saudável. O cristão não pode senão compartilhar os bens que possui. A
esmola não é uma concessão à importunação, por meio da qual nos
livramos de pedintes indesejados: não é um sacrifício à opinião pública,
mediante o qual satisfazemos as reivindicações que popularmente são feitas
em relação ao nosso lugar ou fortuna; não é um pedido para aclamação; não
é uma demonstração autocomplacente de generosidade; não se deve, em
suma, a um motivo externo. É um desenlace espontâneo da vida. O que a
vida é, o fruto o será, tanto em suas formas mais baixas quanto nas mais
altas. Nossos pensamentos têm seus frutos, e nossos pensamentos em si
mesmos são frutos.
Sob essa luz, podemos sentir a inexorável verdade da sentença do Senhor:
Pelos seus frutos os conhecereis. Nada pode tomar o lugar dos resultados
maduros da vida. Pode haver uma rápida resposta de uma sensibilidade
superficial; pode dar-se um crescimento luxurioso de intenções sublimes,
mas a bênção é somente para aquele que produz o fruto — o fruto que é
uma resposta à divina semente — pacientemente.
As ações de um cristão são, portanto, um fruto do caráter cristão. Conforme
vamos modelando essa ideia, outro pensamento vem à tona. Uma dádiva
real é parte de nós mesmos... Como frutos, portanto, nossas esmolas
portarão em si as marcas de nossa fé... Pois o fruto que São Paulo deseja
para seus amados filipenses é aquele que aumente o crédito deles
[Filipenses 4.17]. O feito generoso realizado em nome de Cristo é um fruto e
é frutífero. O fruto da justiça, na linguagem significativa das Escrituras, é um
fruto de vida. Cada colheita é a semente de um retorno ainda maior no
tempo por vir. A verdade, a verdade além de toda possibilidade de falha, é
que “nenhum bem seja jamais perdido”; e, mais que isso, o bem tem em si o
poder do crescimento. Um plantou, de fato, e outro colheu, mas eles juntos
se regozijam no fim, quando seus trabalhos serão revelados e coroados na
vida eterna.[74]

Quando a visão bíblica de nossos deveres com base na lei de


Deus governa o rico e o pobre, estes então veem suas
responsabilidades de acordo com a lei de Deus, em vez de segundo
suas visões pessoais. É triste que os pobres que prosperam são em
geral os menos generosos para com os pobres, porque os
conhecem e assim agem pela sua experiência, e não pela lei de
Deus. Veem os pobres muitas vezes como não merecedores; e
negligencia-se, pois, a lei de Deus. De igual modo, os ricos podem
amiúde ser críticos dos demais ricos.
Miri Rubin, em seu estudo Charity and Community in Medieval
Cambridge (1987), entendeu a caridade e os dons como
importantes na “ordem, paz e coesão sociais” e na “formação de
amizades e alianças”. Essa doação caridosa une “intimamente” a
sociedade numa “rede de obrigações e expectativas”. A sociedade,
ricos e pobres juntamente, vê-se mantida por “um constante estado
de débito” na forma de laços e obrigações pessoais. Quando,
posteriormente na era medieval, o dever religioso e teológico deu
lugar aos fatos sociológicos, profundas divisões vieram à tona. Os
tradicionais doadores de caridade viam então os pobres como
excluídos da sociedade, como pessoas “a serem caçadas e
colocadas de novo ao trabalho ou na prisão”, já que eram inimigos
da “moralidade social”.[75]
Por trás da sentimentalidade moderna, há uma visão
igualmente horrenda do pobre moderno: eles são excluídos da
sociedade. A estratificação social instalou-se mesmo dentro das
igrejas. As igrejas têm, na era moderna, tendido a ser formadas por
classes, isto é, as altas, as médias e as baixas, não derivada de
políticas deliberadamente exclusivistas, mas porque cada grupo ou
classe sente-se mais “confortável” estando entre os seus. Numa
sociedade extensivamente governada pela inveja e tensões de
classe, os grupos diferentes de fato preferem a isolação e
insularidade, intensificando com isso suas diferenças.
Numa sociedade dividida como essa, os homens são levados
pela culpa. Suas associações interétnicas e interclasses são
habitualmente artificiais e utopistas, ao invés de naturais. Os
governos culposos buscam até mesmo ficar quites com a terra. Daí
o mito, amplamente propagado, de que o homem tem sido o grande
destruidor da vida animal e vegetal. Contudo, de cada cem espécies
da fauna e flora conhecidas pelos cientistas, noventa e nove
morreram num passado remoto. Nos dois últimos séculos
aproximadamente, cerca de 80 espécies mamíferas desapareceram.
Mas esta extinção se deu devido a cães, cabras e ratos, não a seres
humanos. Uma vez que esses animais — cães, cabras e ratos —
acompanharam os homens para o novo mundo, eles terminaram por
eliminar outros animais. O dodô desapareceu por causa da ação
humana, mas poderia ter sido rapidamente aniquilado se alguns
mangustos ou alguns pássaros predadores tivessem chegado a
Maurício. Acerca da flora, o poeta William Blake disse: “Onde o
homem não se faz presente, a natureza é estéril”. Os seres
humanos registram sua própria destruição de florestas, mas não sua
criação. Nova York, conhecida como uma selva de concreto, tem
mais de 3 milhões de árvores, um número não insignificante. Muitas
empresas madeireiras replantaram florestas, e nossas florestas são
em geral mais vigorosas atualmente do que quando da chegada dos
primeiros colonizadores à América do Norte.[76]
A fé bíblica é uma visão e mandato do homem enquanto
portador da imagem de Deus para exercer o domínio sobre a terra
(Gênesis 1.26-28). Esse mandamento foi distorcido pelo homem
caído e tornou-se um “mandato” para exercer domínio sobre os
demais indivíduos. No reino da humanidade, o mandato, porém, é
bastante diferente: “Por isso, deixando a mentira, fale cada um a
verdade com o seu próximo, porque somos membros uns dos
outros” (Efésios 4.25). O bispo Westcott descreveu Efésios 4.4-6
como o alvará e lei do cristão. O texto bíblico diz: “há somente um
corpo e um Espírito, como também fostes chamados numa só
esperança da vossa vocação; há um só Senhor, uma só fé, um só
batismo; um só Deus e Pai de todos, o qual é sobre todos, age por
meio de todos e está em todos”. Westcott então declara:
A imagem fundamental do “corpo” preserva-nos de muitos erros. A rica
energia do todo depende da variedade das partes. Não pode haver
igualdade física, intelectual ou moral entre os homens enquanto membros do
Corpo de Cristo. Cada homem tem sua própria função peculiar. Cada
homem é herdeiro de um passado e possui uma herança singular para
administrar e honrar. A oportunidade que buscamos para ele é a
oportunidade de fazer algo, mas de fazer a única coisa que responde à sua
individualidade e seu lugar. Quando o faz, ele adentra no gozo da plenitude
da vida superior para a qual contribuiu. Considerado sob esse aspecto — o
aspecto da fé cristã —, a vida é uma oportunidade para o serviço. Não
pertencemos a nós mesmos. Não somos apenas redimidos por Cristo:
somos comprados por ele e somos propriedade dele. A essência de todo
pecado reside no egoísmo, autoafirmação. Trazidas a esse teste, pode-se
lidar com as grandes questões de temperança e pureza de modo eficiente.
As virtudes são positivas e não negativas. Não são pessoais mas sociais.
Qualquer indulgência que diminua nossa própria eficiência, ou que traz
prejuízo à de outrem, é pecaminosa. São Paulo estabeleceu os princípios:
“Se, por causa de comida, o teu irmão se entristece, já não andas segundo o
amor fraternal. Por causa da tua comida, não faças perecer aquele a favor
de quem Cristo morreu... Não destruas a obra de Deus por causa da comida”
(Romanos XIV, 15, 20). E também: “Não sabeis que os vossos corpos são
membros de Cristo? E eu, porventura, tomaria os membros de Cristo e os
faria membros de meretriz? Absolutamente, não” (1 Coríntios VI.15).[77]

A finalidade da encarnação é uma nova humanidade em


Cristo. Segundo Paulo:
Porque, por ele, ambos temos acesso ao Pai em um Espírito. Assim, já não
sois estrangeiros e peregrinos, mas concidadãos dos santos, e sois da
família de Deus, edificados sobre o fundamento dos apóstolos e profetas,
sendo ele mesmo, Cristo Jesus, a pedra angular; no qual todo o edifício,
bem ajustado, cresce para santuário dedicado ao Senhor, no qual também
vós juntamente estais sendo edificados para habitação de Deus no Espírito.
(Ef 2.18-22)

O Estado de bem-estar busca uma ordem mundial por meio da


legislação, taxação e restrições coercitivas sobre os homens. Busca
criar comunidade mediante forças externas, ao passo que o corpo
unido designado por Deus em Cristo procede da redenção, isto é,
da regeneração e santificação dos seres humanos. É curioso que as
pessoas sejam cínicas quanto a esse objetivo e ação sobrenaturais
e tão esperançosas em relação à esperança humanista que trouxe
tanto mal e coerção à história. Jesus Cristo, o Senhor da história,
antes de sua crucificação, declarou a vitória total que se seguiria de
seu triunfo sobre o pecado e a morte: “E eu, quando for levantado
da terra, atrairei todos a mim mesmo” (João 12.32). Todos serão um
só Corpo nele; e o objetivo de sua nova humanidade e de sua lei
são claramente afirmados: “para que entre ti não haja pobre”
(Deuteronômio 15.4).
1
16. O PROBLEMA DA POBREZA, PARTE 2

Há cerca de quarenta anos, já bem tarde da noite, vi um


automóvel estacionado perto da entrada de nossa garagem. Dentro
estavam um homem e sua esposa, três crianças e algumas trouxas
de roupa. Era uma noite fria. O homem, que se dizia um trabalhador
imigrante, pensara que a rodovia que passa pelas montanhas era
um atalho, e que naquele momento se viu sem comida ou comida.
Levei-o para minha casa, ofereci à família faminta uma refeição e os
instalei no andar de baixo para que dormissem ali aquela noite. No
dia seguinte, logo após o café da manhã, dei-lhes dinheiro para a
gasolina e o almoço, e eles partiram. O homem parou num posto de
gasolina, identificou-se como meu hóspede e como alguém estava
fazendo um serviço para mim, e, com base nisso, ganhou um pneu
reserva [step?] para seu carro e partiu; é claro, ele não pagou pelo
pneu.
Incomum? Pelo contrário, esse foi um pequeno incidente. Sei
de outros incidentes em que os beneficiários da caridade cristã
receberam extenso auxílio e, contudo, roubaram seu benfeitor e
anfitrião, recusaram-se a realizar tarefas pequenas e fáceis, foram
culpados de espancarem crianças severamente, de agressão à
mulher, dentre outros. Os agentes do bem-estar do condado não
prestam atenção à delinquência moral, à má conduta criminosa para
com a família, ou ao roubo. Tão logo as muitas exigências técnicas
são cumpridas e os documentos são processados, essas pessoas
recebem abrigo e apoio. Os homens sabem que não se exigirá que
trabalhem; eles rejeitam ofertas de emprego e exigem a assistência
social como seu “direito”.
É bastante ingenuidade supor que esses problemas não
existiam no Império Romano na época neotestamentária. Eles
existiam, em grau extensivo. À vista disso, Paulo escreveu sem
rodeios à igreja tessalonicense:
Porque, quando ainda convosco, vos ordenamos isto: se alguém não quer
trabalhar, também não coma. Pois, de fato, estamos informados de que,
entre vós, há pessoas que andam desordenadamente, não trabalhando;
antes, se intrometem na vida alheia. A elas, porém, determinamos e
exortamos, no Senhor Jesus Cristo, que, trabalhando tranquilamente,
comam o seu próprio pão. E vós, irmãos, não vos canseis de fazer o bem.
(2Ts 3.10-13)

Alguns dos convertidos obviamente tinham a expectativa de


continuar na assistência social, bem como de explorar seus irmãos
cristãos. Esses ociosos eram um problema para a comunidade; eles
andavam “desordenadamente” e “se intromet[iam] na vida alheia”. A
ordem de Paulo, em nome de Cristo Senhor, é que, se os homens
não fisicamente capazes não trabalhassem, não deveriam comer.
Quando os cristãos na Igreja Primitiva perdiam suas ocupações, o
corpo de diáconos os ajudava com dinheiro para um dia de
sustento; após isso, deveriam auxiliar algum irmão cristão por um
pagamento abaixo da média. Eles eram com isso desencorajados a
dependência.
Desde os primeiros dias da igreja, viúvas (e órfãos) que
careciam de uma família que os apoiasse eram cuidados pelas
“ministrações diárias” da igreja. Os diáconos eram designados como
o corpo de homens responsável por essa tarefa (Atos 6.1-6). Esse
auxílio não era sentimental; não se baseava em qualquer mérito do
pobre, simplesmente por o mérito não estava em questão. Ao
mesmo tempo, não condescendia com o mal, nem subsidiava a
recusa ao trabalho. A premissa da caridade cristã deve ser a lei de
Deus e as exigências que esta faz a nós.
O caso de Rute é instrutivo. Ela cumpriu o dever de uma filha
para com Naomi, embora fosse sua nora. Em Rute 2.1-23, vemos
que Boaz demonstrou respeito pelo caráter de Rute, mas não se
ofereceu para sustentá-la nem a Naomi: ele simplesmente lhe
favoreceu no trabalho duro da respiga. Havia respeito por Rute, e
esta evidenciou, com seu trabalho, sua habilidade para cuidar de si
e de Naomi. A respiga era um trabalho mais duro que a colheita, já
que colher significa trabalhar com todo o grão ou fruta, ao passo que
a respiga exige catar o restante da safra.
Os pobres aos quais se é dado, de acordo com a lei de Deus,
são aquelas vítimas de desastres, mortes e uma variedade de
fatores além de seu controle. Alguns, que não são capazes de
trabalhar, precisam de ajuda constante, enquanto outros devem ser
ajudados a fim de obter trabalho ou mesmo para trabalhar. Pessoas
pobres como essas em geral recebem menos ajuda que as demais,
simplesmente porque não a estão exigindo como “um direito”. O
jornal U.S. News and World Report, de 11 de janeiro de 1988,
noticiou sobre cerca de nove milhões de indivíduos como esses, em
sua maioria brancos e exercendo algum trabalho,
predominantemente cristãos votos e de bom caráter. Essas pessoas
incomodam as consciências de muitos, ao passo que os que se
recusam a trabalhar e insistem no assistencialismo como seu direito
não são “problema”, já que o Estado, segunda a tendência, cuida
deles. O livro de Provérbios diz-nos:
O pobre é odiado até do vizinho, mas o rico tem muitos amigos. (Pv 14.20)
Se os irmãos do pobre o aborrecem, quanto mais se afastarão dele os seus
amigos! Corre após eles com súplicas, mas não os alcança. (Pv 19.7)

Pouquíssimos apreciam a extensão a que os cristãos


individuais, assim como as igrejas e outros ministérios cristãos,
buscam ajudar os pobres e necessitados. Estatísticas acerca do
montante da ajuda são também bastante precários: apenas
registram o que as agências cristãs fazem, mas não o trabalho dos
indivíduos. Ademais, a obra da maior parte dos corpos eclesiásticos
é uma extensão habitual desses relatórios. Parte desse trabalho é
altamente competente, conforme testificado pelo Exército da
Salvação, ou é ad hoc, isto é, com relação a uma necessidade e
crise específicas. Assim, em Stockton, Califórnia, toda tarde, por
volta de 15h, Veltessia Smith, uma cristã (negra), distribui alimentos
para aproximadamente cento e cinquenta pessoas no centro da
cidade. A refeição é precedida por oração. Trata-se de um trabalho
da Christ Temple Apostolic Faith Church [Igreja da Fé Apostólica
Templo de Cristo]. A polícia habitualmente se interferia, declarando
que era necessária uma licença para que essa obra de caridade
operasse, ao passo que funcionário da prefeitura também
habitualmente afirmam que não há lei que exija isso. Pessoas que
objetam à distribuição de alimento afirmam que o parque central fica
“numa bagunça desgraçada” logo em seguida, embora os indivíduos
que recebem a refeição sejam obrigados após terminarem-na, a
limpar o ambiente, não deixando entulhos.
Joe Jackson disse que esteve nessas obras todos os dias e
todos os dias ajudou na limpeza. “Sabemos que os policiais estão
nos vigiando”, ele disse. “Há muita gente com fome aqui. A gente
não vai para por causa disso”. Sharif Muhammad também recebe
refeições no parque. Ele está entre os que são gratos. “Acredite,
estava passando fome”, disse ele. “Agora ao menos posso ir dormir
sem a fome me atormentando. A coisa fica feia. Feia a ponto de
fazer você sair e pegar os bens de uma pessoa. A fome te faz ficar
com raiva, de pavio curto e mau. A harmonia que sinto aqui é
própria de família. Não posso acreditar que tem gente que se
oponha a isso”, afirmou. Já Elizabeth Wilder disse: “Há muita gente
passando fome por aqui. Eles não podem fazer com que ela
[Veltessia Smith] pare. Não podem!”.[78]
Dando o contexto cristão e pessoal dessa doação, não
surpreende que alguns dos pobres sejam gratos. Pessoas que
trabalharam nos órgãos de Estado assistencialista relataram que o
aspecto mais depressivo de seu trabalho é a ingratidão rotineira.
Não poucas das pessoas envolvidas com o assistencialismo entram
no campo cheios de zelo, ansiosos para ajudar os necessitados.
Muitas se endurecem e tornam-se cínicos após um tempo, ou
passam para outras áreas de atuação, porque se decepcionam.
Temos dois tipos de pobres hoje em dia, tal como havia em
Roma, por exemplo. As políticas econômicas e militares romanas
destruíram sua força, nomeadamente, seus proprietários
independentes. De um povo com muitos donos de terra e serviçais
diligentes, tornaram-se numa nação com extremos de pobreza e
riqueza. Os pequenos agricultores dedicados tornaram-se os pobres
da cidade, as turbas beneficiadas pelo Estado e fãs do circo e da
arena. De um recurso, tornaram-se um estorvo e uma ameaça à
segurança de Roma. Imperadores subsequentes deslocaram o
capitólio para fora de Roma.
Na era moderna, temos de novo dois tipos de pobres:
primeiramente, o povo do Estado de bem-estar, e, em segundo
lugar, os pobres conforme relatados pelo U.S. News and World
Report [Relatório de Notícias do Mundo e EUA]. Dentre estes
últimos pobres contam cada vez mais com grupos negros, à medida
que igrejas negras continuam seu trabalho de converter do
assistencialismo ao trabalho individual muitos indivíduos negros do
centro da cidade. Isso representa um fato importantíssimo no
cenário americano. Igrejas, em geral grupos evangélicos pequenos
e intensamente devotos, têm cada vez mais ministrado e convertido
a pobres assistidos por programas do Estado. Nessas periferias da
cidade, alguns desses convertidos têm realizado coisas
impressionantes. Mulheres mais velhas, muitas vezes incapazes de
trabalhar e continuando nos programas de assistência social, têm
afastado de suas ruas e prédios residenciais os traficantes,
prostitutas, vadios e gangues juvenis. Organizaram grupos para
remover o lixo e fazer melhorias nos edifícios. Seus esforços são
notáveis e corajosos. Ao mesmo tempo, outros convertidos que são
capazes de trabalhar deixaram o assistencialismo, por vezes em
prol de rendas ainda menores, na busca da restauração de suas
famílias.
A igreja em Stockton, na Califórnia, que citamos anteriormente
(Christ Temple Apostolic Faith Church), é uma de muitas das demais
igrejas pequenas ao longo do país que estão salvando os perdidos,
cuidando dos necessitados e alimentando os famintos. Sociólogos e
historiadores não demonstram nenhum apreço nem ciência do que
essas igrejas, que comumente não recebem o devido
reconhecimento, estão fazendo, e ignoram, portanto, o que está de
fato acontecendo. De modo bastante simples, essas igrejas estão
fazendo a obra do Senhor. Os pobres estão ajudando aos pobres.
1
17. COMPAIXÃO

A palavra compaixão sofreu bastante, em razão do abuso


liberal na era posterior à Segunda Guerra Mundial. A palavra é
comum na Bíblia e traduz várias outras palavras hebraicas e gregas,
merecendo que seja, pois, reabilitado. Os liberais usam a palavra
para justificar a legislação, ao passo que, nas suas origens bíblicas,
seu sentido está relacionado às atitudes e ação pessoais. Algumas
das palavras usadas na Bíblia são:
1. chamal (khawmal), hebraico. Ter comiseração, ter
compaixão, pena; poupar.
2. racham (rawkham), hebraico. Da mesma raiz que
afagar, amar com compaixão, ser misericordioso, ter
piedade.
3. racham (rakham), hebraico. Do número 2, com as
mesmas implicações, mas aludindo ao útero e ao feto,
amor tenro e carinhoso.
4. rachuwm (rakhoom), hebraico. Do número 2., cheio de
compaixão e misericórdia.
5. splagchnizomai, grego. Ter vísceras, ou ansiar, sentir
simpatia e piedade, ser comovido.
6. eleeo (eleheho), grego. Ter compaixão, piedade ou
misericórdia.
7. oikteiro, grego. Exercer compaixão, piedade.
8. metriopatheo, grego. Ser gentil e tratar gentilmente, ser
compassivo.
9. sumpatheo, grego. Ter um sentimento de
companheirismo, ter compaixão.
10. sumpathes, grego. Mutualmente comiserativo e
compassivo.
No contexto em que são usados, essas palavras se referem a
mais que sentimento; eles são parte de uma exigência da
comunidade sob o Deus triúno e sua lei. Ora, a palavra compaixão é
central à história do cristianismo e, portanto, importantíssima. A
exigência de compaixão veio da própria lei de Deus, mas o
cristianismo lhe deu um foco novo e atuante. Na sinagoga, o líder
designava os membros que receberiam, por hospitalidade, os
visitantes; porém, na igreja, o “bispo” tinha de ser “hospitaleiro” (Tito
1.7-8). Membros da ordem responsável pelo cuidado para com as
viúvas tinham de ter um histórico de cuidado pelos forasteiros e
atribulados (1 Timóteo 5.10). Os apóstolos levavam as obras de
compaixão tão a sério, que elas começaram a interferir em seu
trabalho ministerial; assim, estabeleceram a ordem dos diáconos
(Atos 6.1-6).
Essa ênfase na compaixão não impressionava a elite greco-
romana. Para esta, isso simplesmente caracterizava os cristãos
como uma classe inferior, a despeito da presença de muitos homens
socialmente elevados entre eles. O status de Paulo como cristão,
por exemplo, surpreendia a alguns romanos.
Embora a vasta população de escravos e pobres
respondessem por vezes com uma atenção e aprovação atônitas à
compaixão dos cristãos, os líderes se mostravam desgostosos com
ela. Conforme assinalou Goodenough, “a estrutura da elite não
podia suportar viver lado a lado da compaixão cristã”.[79] Dois
motivos encontravam-se, pois, em conflito: o elitismo romano versus
a compaixão cristã.
Essas duas forças ainda se fazem presente em nosso meio,
embora evidentemente em formas alteradas. O elitismo em Roma
lidava com os pobres movido por motivos políticos: fornecia pão e
circo a fim de manter os pobres satisfeitos e contidos. O elitismo no
mundo moderno é tão desdenhoso em relação aos pobres quanto
qualquer nobre romano, mas acaba refletindo os efeitos da
civilização cristã. A compaixão é agora uma virtude politicamente
necessária e socialmente aprovada, e sua expressão é o
assistencialismo estatista. O objetivo é satisfazer os pobres e
mantê-los longe dos ricos. A compaixão tornou-se assim um
instrumento mais da elite que da comunidade cristã.
Duas fés e esperanças heterogêneas se encontram
respectivamente por trás do elitismo e do cristianismo. O elitista
deseja mitigar a necessidade e manter a ordem política e social.
Sua esperança é que a educação e ação social elevarão, com o
tempo, as massas pobres a um nível superior e mais racional. Golby
e Purdue destacaram que, ao passo que, na Inglaterra, as reformas
cristãs trabalharam para fazer com que os indivíduos se tornassem
mais piedosos, alçando-os assim para fora da pobreza e pecado, o
iluminismo, por sua vez, colocou sua esperança em tornar os
homens mais racionais.[80] O objetivo tornou-se pois a segurança
financeira para a família, de modo que a respeitabilidade viria em
seguida — um objetivo a que mesmo alguns cristãos assentiram.[81]
Diversas instituições foram criadas para promovê-lo.[82] Opondo-se
ao assistencialismo e educação estatal, os cristãos que foram
pioneiros tanto na caridade quanto na educação colocaram sua
esperança fundamental na regeneração. Uma boa sociedade exige
homens regenerados, um povo piedoso. Com isso, duas fés opostos
estiveram em conflito. Kingsley percebeu a diferença:
É muito menos custoso e mais aprazível ser reformado pelo diabo que por
Deus; pois Deus somente reformará a sociedade sob a condição de que
reformemos, cada um de nós, nosso próprio eu — enquanto o diabo está
inteiramente disposto a ajudar-nos a remendar as leis e o parlamento, terra e
céu, sem jamais fazer uma exigência tão impertinente e “pessoal” quanto a
de que um homem deveria emendar-se a si mesmo.[83]

Na tradição elitista, várias alternativas foram utilizadas para


reformar a sociedade mediante o Estado: educação,
assistencialismo, legislação e revolução. O socialismo cristão bem
cedo tentou unir fé bíblica com humanismo iluminista.
Eventualmente, é claro, a ênfase cristã foi relegada ao
esquecimento.
A sugestão “para a regeneração pacífica da raça por meio do
cultivo do caráter individual” — cito aqui a história da Sociedade
Fabiana, escrita por Bernard Shaw — não foi aceita. “Certos
membros desse círculo”, diz Shaw, “julgando modestamente que a
revolução teria de esperar um tempo ridiculamente longo caso fosse
adiada até que alcançassem pessoalmente a perfeição, levantaram
a bandeira do socialismo militante”.[84]
Desse modo, a compaixão cessou de ser, para muitos, uma
preocupação cristã; deixou de ser essencialmente uma preocupação
religiosa individual, embora expressa em pessoa pela igreja ou por
uma instituição cristã, e tornou-se uma causa política e econômica.
O Estado tornou-se a instituição da compaixão.
Nesse processo, contudo, perdeu-se algo. A palavra
compaixão continua em uso, mas seu sentido original — suportar,
sofrer junto a alguém por meio da ação pessoal — deu lugar à ação
legislativa que distancia o pobre, o enfermo e o necessitado de nós.
Mas isso não é tudo. A ênfase estatista significou a prioridade da
determinação do elemento político-econômico. Por conseguinte, a
fundação da compaixão cristã agora é vista como sendo
economicamente determinada. Assim, Harrison, ao discutir o
matrimônio, concorda com Marx de que as ideias da classe
dominante são as ideias regentes, e estas, por sua vez, são material
ou economicamente determinadas. Dessa forma, os códigos
sexuais e o matrimônio, como toda moralidade, são criadas para
proteger as classes dominantes e seus interesses.[85]
Vivemos numa era em que se pode encontrar exemplos
marcantes de compaixão ao redor de todo o mundo. Uma cristã
como Madre Teresa, de modo nenhum um caso único em suas
realizações, recebe atenção pública, mas a maioria dos cristãos,
católicos e protestantes, é negligenciada ou molestado; o escopo de
sua importância é muito comumente depreciado. Uma Madre Teresa
é apresentada não como um exemplo prático de graça cristã
habitual e praticada há séculos, mas sim como um conto romântico.
Uma perspectiva dessas, na verdade, deprecia a natureza e alcance
da compaixão cristã.
A atitude moderna tem raízes profundas. Um incidente
evidenciando a inveja e ressentimento por poder de Carlos
Borromeu pelo Marquês de Ayamonte, representante do Rei Filipe
da Espanha, nos é bastante reveladora:
A vida de Carlos Borromeu também foi um exemplo de mudanças súbitas e
dramáticas da fortuna. Podia-se esperar que, após a praga, quando ele se
tornou o ídolo do povo, o resto de sua vida teria se passado em paz e
popularidade. Ayamonte retornou a Milão, ajudou a carregar o pálio sobre o
Arcebispo na procissão do Santo Cravo de Maio de 1577, recebeu uma
cópia do Cravo como um signo de amizade renovada (outubro de 1577).
Contudo, quando a cidade se viu por fim livre da praga, ele disse ao
arcebispo, com um misto de rudeza e estupidez: “É demasiado doloroso
para mim ver como todos em Milão vos ama. Sois de fato adorado, enquanto
eu, o ministro do rei mais poderoso, mal sou tolerado...” Já em março
daquele ano, Borromeu fora informado que Ayamonte havia envenenado
tanto a mente de Filipe, que este passou a falar de solicitar ao Papa para
remover esse ambicioso sacerdote (Borromeu) de Milão. “Isso não é
novidade para mim” foi a resposta de Borromeu.[86]

Apesar de seu trabalho durante a praga, quando 17.000


pessoas morreram em Milão, 8.000 no meio rural circundante, e
mesmo 120 sacerdotes, as caridades de Borromeu incluíam: uma
hospedagem para indigentes e andarilhos, orfanatos para meninos e
para meninas, um lar para mulheres que deixaram a prostituição,
outra casa para meninas sem teto, e, curiosamente, um lar para
mulheres que sofriam no casamento. Ele também fornecia dotes
para permitir que moças sem posses se casassem, pois, de outro
modo, seriam arrastadas para a prostituição. Ele propôs
originalmente a ideia de loja de penhores do governo para os
pobres, a fim de ajudá-los a escapar de penhoristas usurários.[87]
Borromeu era um homem de seu tempo; sua visão acerca dos
protestantes, com os quais teve pouco contanto, era comum. Ele
considerava os turcos (muçulmanos] como menos perigosos que
Lutero e Calvino![88] De todo modo, quando confrontado pela
necessidade e sofrimento humanos, assim como muitos
protestantes igualmente limitados de sua época, mostrava-se como
um homem de compaixão.
A “compaixão” estatista, se se pode chamá-la assim, levou a
problemas graves e permanentes que ajudaram a destruir Roma. A
mesma compaixão elitista é fundamental a muitos problemas do
Estado atuais. Os cristãos não desperdiçavam tempo guerreando
contra o assistencialismo romano. Eram homens de compaixão e
caridade e enfatizavam a regeneração dos homens e nações pela
obra de Jesus Cristo.
1
18. SOLUÇÕES

Acreditar que problemas causados pelo homem são passíveis


de resolução é uma crença saudável e legítima na maioria dos
casos. É claro, não podemos reverter o tempo e os eventos para
desfazer os males cometidos; no entanto, muitos problemas têm
solução. Há, contudo, problemas ao resolver os problemas.
Primeiramente, muitas pessoas querem respostas e soluções
instantâneas. Nosso Senhor nos diz: “A terra por si mesma frutifica:
primeiro a erva, depois, a espiga, e, por fim, o grão cheio na espiga”
(Marcos 4.28). Não podemos ceifar uma colheita imediatamente
após a semente ter sido lançada. O crescimento exige tempo, assim
como a solução de problemas. “Soluções” rápidas e superficiais
podem levar a problemas ainda mais sérios.
Em segundo lugar, por vezes deseja-se mais as soluções que
resoluções, isto é, um desejo de pacificar pode conduzir a uma
harmonia forçada. Em muitos exemplos, permite-se a uma pessoa
culpada desculpar-se sem qualquer restituição, ou insiste-se na
reconciliação sem sequer um traço de arrependimento da parte
culpada.
Pode-se citar várias outras falsas formas de soluções, mas
nosso interesse principal é, em terceiro lugar, que as soluções que
se esquivam da questão moral central são igualmente falsas e
malignas. A educação dos nossos dias é humanista; por
conseguinte, é, no melhor dos casos, técnica e factual, não cristã. A
era moderna, em seus primórdios, exaltou a matemática, uma área
legítima de estudo mas dificilmente uma disciplina que condiciona
todas as demais. No ensino fundamental, somos ensinados que 2 +
2 = 4, o que é de fato verdade, embora poucas respostas na vida
seja tão fáceis ou abstratas assim. Nas aulas de geometria
ministradas para o ensino médio, escutei alguns alunos
expressarem seu desejo de que tudo na vida e no pensamento
pudesse ser reduzido, como na geometria, a um punhado de
axiomas e proposições. Ao longo das gerações, homens como
Spinoza tentaram justamente isso. Mas “2 + 2 = 4” é uma abstração
e uma resposta técnica. A maior parte dos problemas dos homens
não são técnicos nem abstrações; são morais e pessoais.
Quais as respostas possíveis quando o indivíduo é
resolutamente mau? Como se pode resolver uma crise de uma
família quando todos seus membros são maus e persistem em sua
malignidade? Que respostas há para governantes que são cruéis e
que têm a maioria do povo ao seu lado? Ora, quando líderes
eclesiásticos são perversos, como a igreja não seria perversa?
Frequentemente, reforma e mudança são as soluções menos
desejadas! Esperar respostas nesse caso é em si mesmo perverso.
É antes um tempo para juízo e reconstrução.
O The Wall Street Journal de 3 de fevereiro de 1988 trouxe
uma longa reportagem sobre o abuso sofrido por idosos, amiúde
praticado pelos seus próprios filhos. Uma mulher tinha uma cicatriz
de cinco centímetros em sua testa; havia sido golpeada com uma
frigideira. Tinha também um chanfro sobre o nariz e sob um olho em
razão de um pontapé com um sapato de bico de aço. Esse
ferimento deixou-a no hospital por um mês. Os culpados eram seu
filho e nora. A anciã não tinha permissão de usar seu próprio fogão
ou refrigerados e comia na casa da vizinha. Certa ocasião, ficou
trancada no lado de fora de seu próprio apartamento. A mulher,
contudo, recusa-se a apresentar queixas contra seu filho, de modo
que as atrocidades dele correspondem pela malignidade dela em
tolerar o crime.
Um subcomitê do Congresso estima que o número desses
ocorrem cerca de 1.100.000 desses ataques por ano, sendo que
cada vez mais aceleradamente surgem casos reportados de
“abusos” como esses. Alguns deles resultam em morte.[89]
A legislação não removerá esses problemas de uma
civilização. Primeiramente, embora as leis que sancionem esses
crimes existam e sejam necessárias, não estão, porém, resolvendo
muita coisa. Quando a pessoa agredida presta queixa, muito
frequentemente nada acontece. Pode-se determinar liberdade
condicional ou uma curta sentença, e nesse caso as consequências
são piores. O criminoso, irado, exerce amiúde sua vingança. As
ordens dos tribunais proibindo qualquer importunação ou retorno à
casa são rotineiramente ignoradas.
Em segundo lugar, o problema central do mal não é resolvido.
O problema do pecado não é resolvível numa base técnica. Não é
um problema aritmético do tipo “quanto é 2 + 2?”. Exige, antes, a
regeneração de um homem, para que possa ser resolvido. É
verdade que alguns pobres e necessitados respondem com gratidão
quando recebem auxílio. É igualmente verdade que alguns
respondem com mal, com um desejo de ferir e explorar, como um
tolo, seu Bom Samaritano. “Não espere que eu lhe demonstre
gratidão”, disse desdenhosamente uma mulher à outra que lhe havia
ajudado e que queria vê-la usar a ajuda de modo construtivo. Certo
homem, após explorar e roubar seu benfeitor, disse: “Nós dois
conseguimos algo disso tudo: você, a satisfação de fazer o bem, e
eu, a satisfação que queria”.
Isso significa que deveríamos cessar de fazer o bem ou de
deixarmos de ser caridosos? De modo nenhum! Mas isso exige que
reconheçamos a existência do pecado em todas as partes e em
todos os tipos de seres humanos. Estar numa condição digna de
pena não faz de ninguém bom. Se admitirmos que nossa caridade
ou bondade mudarão as pessoas, então estamos, como os agentes
do assistencialismo, pensando de forma humanista. A bondade de
um indivíduo não é capaz mudar o coração de outro. Somente Deus
o é.
Se colocarmos a ênfase primordial de nossa caridade na
própria caridade (isto é, no fato de ajudar aos outros), nos
desgarraremos. De semelhante modo, não podemos fazer da pena
nossa motivação primária. Separado de um contexto teológico, a
pena torna-se rapidamente sentimentalismo e assume, como o
queria William Blake, uma face unicamente humana. É humanismo
em ação; e, dessa maneira, a piedade para com os necessitados
pode combinar-se facilmente com ódio aos ricos.
Na Bíblia, a compaixão ou piedade está sempre associado à
graça. Tendo recebido a graça de Deus, manifestamo-la aos outros.
Frequentemente ouvimos de pessoas que demonstram compaixão
aos pobres e necessitados, mas é menos comum ouvirmos que sua
motivação era a graça. Quando a graça é nossa motivação,
sabemos das limitações de nossos esforços, o quão limitado é o
bem que podemos fazer e quão grandes são o poder e obras de
Deus. Conforme vemos o mal tanto nos indivíduos que estão no alto
quanto nos que estão mais abaixo, sabemos que a solução se
encontra na graça soberana de Deus. Para nós, portanto, a
necessidade é reconhecer que a cruz significa julgamento sobre o
pecado. Se Deus Filho, como o último Adão do homem, sofre o juízo
por seu povo, como podem os homens e nações ter a expectativa
de que escaparão do julgamento pelo pecado? Sabemos que eles
serão julgados. Nosso dever é obedecer a nosso Senhor, ser
caridoso sempre que pudemos, e saber que, por mais miserável que
possam ser os resultados visíveis, em Jesus Cristo, nosso “trabalho
não é vão”, mas realizará o propósito do Senhor (1 Coríntios 15.58).
Nosso trabalho é, pois, de reconstrução, sabendo que o projeto não
é nosso, mas do Senhor.
1
19. VIÚVAS, ÓRFÃOS E POBRES

Como os romanos pagãos que viam o presente e o futuro


serão regidos pelos cristãos, os acadêmicos humanistas
contemporâneos, percebendo a ameaça à sua ordem mundial
estatista, irrompem selvagemente contra o cristianismo. R. L. Rike,
em seu livro Apex Omnium: Religion in the Res Gestae of
Ammianus [Apex Omnium: A Religião nas Res Gestae, de Amiano],
analisa a história escrita pelo romano pagão Amiano Marcelino, ao
fim do século IV d.C. Numa longa resenha, J. W. Jamieson concorda
com Amiano e Edward Gibbon em seu Declínio e Queda do Império
Romano, ao culpar o cristianismo pelo colapso de Roma. Rike
apresenta a tese de Amiano com evidente simpatia. O paganismo
romano era uma religião étnica, uma religião da família e do Estado;
como o xintoísmo, era uma fé racial ou étnica, limitada um só povo,
e por não tinha uma disposição missionária nem outra qualquer
senão a aristocrática. O cristianismo, contudo, tinha (e tem) uma
disposição missionária e, segundo Rike e Jamieson, igualitária, em
contraposição à desigualdade racial das religiões étnicas. A
lealdade a Jesus Cristo substituiu a lealdade ao Estado romano e
seu imperador. Amiano considerava as fés étnicas como superior.
“Em contrapartida, o cristianismo é uma religião desprezível que
serve não para fortalecer mas para enfraquecer o império”.[90] Rike,
segundo Jamieson, concebe o cristianismo, juntamente com
Amiano, como “uma distração em relação à tarefa do imperium”.[91]
O paganismo moderno é, todavia, extensivamente colorido
pelas premissas bíblicas, consciente ou inconscientemente. Nosso
estatismo humanista moderno, seja marxista ou democrático,
professar governar em nome do povo. Curiosamente, porém, o povo
tem cada vez menos lugar nos planos desses novos elitistas. Como
o assistencialismo romano de antigamente, o moderno Estado de
bem-estar não vincula os beneficiários aos doadores. O
assistencialismo estatista não estabelece nenhum relacionamento
pessoal. É esse relacionamento pessoal como “membros uns dos
outros” (Efésios 4.25), que o cristianismo promove, não o
igualitarismo como tal. Isso se faz claramente presente em Tiago 2:
1-10:
Meus irmãos, não tenhais a fé em nosso Senhor Jesus Cristo, Senhor da
glória, em acepção de pessoas. Se, portanto, entrar na vossa sinagoga
algum homem com anéis de ouro nos dedos, em trajos de luxo, e entrar
também algum pobre andrajoso, e tratardes com deferência o que tem os
trajos de luxo e lhe disserdes: Tu, assenta-te aqui em lugar de honra; e
disserdes ao pobre: Tu, fica ali em pé ou assenta-te aqui abaixo do estrado
dos meus pés, não fizestes distinção entre vós mesmos e não vos tornastes
juízes tomados de perversos pensamentos? Ouvi, meus amados irmãos.
Não escolheu Deus os que para o mundo são pobres, para serem ricos em
fé e herdeiros do reino que ele prometeu aos que o amam? Entretanto, vós
outros menosprezastes o pobre. Não são os ricos que vos oprimem e não
são eles que vos arrastam para tribunais? Não são eles os que blasfemam o
bom nome que sobre vós foi invocado? Se vós, contudo, observais a lei
régia segundo a Escritura: Amarás o teu próximo como a ti mesmo, fazeis
bem; se, todavia, fazeis acepção de pessoas, cometeis pecado, sendo
arguidos pela lei como transgressores. Pois qualquer que guarda toda a lei,
mas tropeça em um só ponto, se torna culpado de todos.

Consideração ou acepção de pessoas é repetidamente


condenada na lei como sendo perversão da justiça pelos juízes
(Deuteronômio 1.17). Essa lei também se aplica a relações
humanas. Favorecer uma pessoa em razão de sua riqueza é ser
“parcial” e “juízes tomados de perversos pensamentos” (v.4). Num
mundo caído, riqueza é poder, e este poder é rotineiramente usado
contra os crentes (v. 5-7). Para os cristãos, demonstrar deferência a
pessoas é aquiescer no próprio mal que os oprime. Tiago não está
exigindo igualitarismo, mas sim para que não se pratique acepção
de pessoas. Há uma diferença. Que um homem é um industrial rico
e outro é um operário pobríssimo, é um fato que somente o
comunismo pode igualar, apenas para criar males ainda maiores. A
preocupação bíblica é que ambos os homens sejam vistos da
perspectiva do Senhor como igualmente necessitados da graça de
Deus e necessitados de justiça e misericórdia de nossa parte.
Observar a lei régia, amar nosso próximo como a nós mesmos (v.
8), significa respeitar sua pessoa, sua família (Não adulterarás), sua
propriedade (Não furtarás), sua vida (Não matarás) e sua reputação
(Não dirás falso testemunho). Significa também que, como membros
uns dos outros, devemos ter em mente as necessidades dos
demais.
Há uma percepção bastante profunda disso no livro de Daniel.
Nabucodonosor solicita ao profeta que interprete um sonho
estranho, o que ele faz, relutantemente. Deus, diz Daniel, está
trazendo julgamento ao rei por duas razões: “Portanto, ó rei, aceita o
meu conselho e põe termo, pela justiça, em teus pecados e em tuas
iniquidades, usando de misericórdia para com os pobres; e talvez se
prolongue a tua tranquilidade” (Daniel 4.27).
Em primeiro lugar, Nabucodonosor não possui “justiça” ou
retidão. Em segundo lugar, ele não usa de “misericórdia para com
os pobres”. Por essas duas razões, Deus estava destruiria a mente
de Nabucodonosor por um período, até que o “entendimento” na
forma de justiça e “misericórdia para com os pobres” ordenassem
sua vida e pensamento. Deus claramente considera essas duas
coisas importantes o suficiente para derrubar Nabucodonosor por
uns tempos e para arruinar Roma.
É interessante notar que, na era medieval, a caridade era
frequentemente imposta como uma penitência pelo pecado sobre
senhores arrogantes e orgulhosos. Um divertido episódio desse tipo
de penitência se deu na primeira metade do século XIV, quando Sir
Eustace D’Ambreticourt sequestrou do convento uma freira,
Elizabeth of Juliers, uma sobrinha da Rainha Filipa da Inglaterra
(Filipa de Hainault, esposa de Eduardo III), e viúva de João, Conde
de Kent. Ele encontrou um “padre-postiço”, John Ireland, que os
casou. Como penitência, o arcebispo Islip exigiu que Elizabeth
recitasse diariamente os sete salmos penitenciais, os quinze salmos
de romagem, a Litania, Placebo e Dirge.
O arcebispo Islip também exigiu que ambos dessem
contribuições generosas aos pobres sempre que tivessem intercurso
carnal. A mensagem sobre os benefícios decorrentes de seus
deveres conjugais rapidamente se espalhou, e na maior parte das
manhãs Eustace via-se sendo aclamado pelos clamorosos aldeãos.
[92]

Embora a exigência do arcebispo envolvesse certo humor, seu


curso de ação tinha profundas raízes na história da igreja. A fé
bíblica exige arrependimento pelos pecados, sendo o
arrependimento piedoso uma tristeza interior conjugada a atos
externos como restituições e penitência. A restituição exige uma
restauração com uma sanção penal daquilo que foi roubado ou
destruído. Quando a restituição não pudesse ser feita em razão da
natureza do pecado, essa penalidade se tornava hábito. A
penitência significa uma profissão externa de aflição. Embora
posteriormente tenha se tornado formal e menos vivaz, na Igreja
Primitiva tinha de ser comumente evidenciada pela caridade aos
pobres. Conforme Bingham assinalou:
E porque a misericórdia e liberalidade aos pobres eram um grande
argumento e evidência de arrependimento, isso era sempre exigido, em grau
eminente, deles (dos penitentes). Cipriano coloca essa entre outras
indicações de arrependimento. “Podemos pensar”, diz ele, “que um homem
está de fato lamentando com todo seu coração, e invocando o Senhor com
jejum, pranto e lamentações, e que, todavia, desde o momento em que
pecou, frequenta diariamente o banho, refestela-se com banquetes luxuosos
e satisfaz seu ventre com uma intensidade extraordinária, apenas para
eructar em seguida suas cruezas no dia seguinte; que não distribui sua
comida e bebida às necessidades dos pobres? Como lamenta sua própria
morte, aquele que vaga por aí com um semblante alegre e contente; que
apara sua barba e embeleza seu rosto? Pensa em agradar aos homens,
aquele que desagrada a Deus? Lamenta e aflige-se aquela mulher que
prazenteiramente veste suas indumentárias caríssimas, e jamais pensa nas
vestes de Cristo, que ela perdeu?” Nesses casos ele julga que a caridade
aos pobres seria um ornamento mais apropriado que todas suas sedas, e
joias, e ouro; portanto, ele os aconselha a revestir-se do ornamento de
Cristo, para que não apareçam nus perante ele.[93]

Cipriano enfatizava a caridade ao escrever para o clero, com


estas palavras: “Exijo que diligentemente cuideis das viúvas, dos
enfermos e de todos os pobres. Ademais, pode suprir as
necessidades dos estrangeiros, caso algum seja indigente, com
minha própria parte, que deixei com Rogaciano, nosso companheiro
presbítero...”.[94]
Em seu Três livros de testemunhos contra os judeus, Cipriano
salienta vigorosamente a caridade e a associa a fato de sermos
membros uns dos outros. O capítulo 3 se intitula “A caridade e
afeição fraternal devem ser religiosa e perseverantemente
praticadas”. No capítulo 113 lê-se:
A viúva e o órfão devem ser protegidos.

Em Salomão está escrito: “Sê para os órfãos pai e marido para sua mãe. E
serás como filho do Altíssimo” (Eclesiástico 4.10-11). Também em Êxodo: “A
nenhuma viúva nem órfão afligireis. Se de algum modo os afligirdes, e eles
clamarem a mim, eu lhes ouvirei o clamor; a minha ira se acenderá, e vos
matarei à espada; vossas mulheres ficarão viúvas, e vossos filhos, órfãos”
(Êx 22.22-24). De semelhante modo, em Isaías: “Defendei o direito do órfão,
pleiteai a causa das viúvas. Vinde, pois, e arrazoemos, diz o Senhor" (Is
1.17-18). Em Jó: “Porque eu livrava os pobres que clamavam e também o
órfão que não tinha quem o socorresse. A bênção do que estava a perecer
vinha sobre mim, e eu fazia rejubilar-se o coração da viúva” (Jó 29.12-13)
Também no salmo 68: “Pai dos órfãos e juiz das viúvas é Deus em sua santa
morada” (v. 5)[95]

Notemos a referência de Cipriano a Êxodo 22.22-24; o


versículo 21 desse capítulo exige a justiça aos estrangeiros. A
sanção que Deus com a qual Deus havia ameaçado é o outro lado
da Regra de Ouro. Em Obadias 15, lemos: “Porque o Dia do Senhor
está prestes a vir sobre todas as nações; como tu fizeste, assim se
fará contigo; o teu malfeito tornará sobre a tua cabeça”.
Isso também de certo modo se aplica ao julgamento de
Nabucodonosor. Deus declara em Êxodo 22.21-24 que se indivíduos
e sociedades oprimem o pobre, e se afligem a viúva e o órfão, ele
há de puni-los com a morte e fará de suas esposas viúvas de seus
filhos órfãos.
Obviamente, não se trata de algo sem importância para Deus.
Roma caiu não por causa dos cristãos, mas pelo juízo e decreto de
Deus. É bom que tanto líderes eclesiásticos quanto nações estejam
atentos a isso.
1
20. CARIDADE, PARTE 1

O homem do século XX tem uma visão muito diferente de si


mesmo se comparada à que seus predecessores tinham.
Primeiramente, em especial desde a renascença e o iluminismo,
muitos entre os homens ocidentais viam a si próprios com base no
humanismo greco-romano. No Hamlet de Shakespeare, vemos que
o protagonista diz o seguinte acerca do ser humano:
Que obra-prima é o homem! Como é nobre em sua razão! Que capacidade
infinita! Como é preciso e bem-feito em forma e movimento! Um anjo na
ação! Um deus no entendimento, paradigma dos animais, maravilha do
mundo. Contudo, pra mim, é apenas a quintessência do pó. O homem não
me satisfaz; não, nem a mulher também, se sorri por causa disso. (Ato II,
cena II)[96]

Essa declaração representa a amargura de Hamlet pelo fato


de que o homem fica muito aquém daquilo que se diz que ele é;
reflete uma perspectiva do renascimento tardio. Um contemporâneo
de Shakespeare, George Chapman, escreveu uma peça intitulada
Bussy D. Ambois, que trata sobre um francês de uma família nobre.
Sendo uma figura extravagante que, quando bem jovem, assassinou
um primo huguenote no Massacre de São Bartolomeu, Bussy
ofendera muitas pessoas importantes e eventualmente também foi
morto. Chapman talvez tenha tido fontes de informações privadas
ao escrever essa peça. Nesta, Bussy, já agonizando, mostra-se
consternado por que não é imortal e declara que há de queixar-se a
Deus por isso:
Is my body, then,
But penetrable flesh? And must my mind
Follow my blood? Can my divine part add
No aid to th’ earthly in extremity?
Then these divines are but for form, not fact.
Man is of two sweet courtly friends compact,
A mistress and a servant; let my death
Define life nothing but a courtier’s breath.
Nothing is made of nought, of all things made,
Their abstract being a dream but of a shade.
I’ll not complain to earth yet, but to Heaven,
And, like a man, look upwards even in death.
(Ato V, cena IV)
Esse tipo de pensamento refletia as perspectivas dos
neoplatonista da Renascença. Embora de certo modo refreada pela
Reforma, essa perspectiva retornou com o iluminismo, apesar de
que então era antes a Razão que representava o divino na visão
humanista do homem. Com certas modificações, essa perspectiva
manteve-se ao longo do século XIX.
A segunda visão do homem que se mostrou, e ainda se
mostra, influente na civilização ocidental é a doutrina bíblica do ser
humano como criado à imagem de Deus: uma criatura caída e
depravada desde Adão, e redimível somente pela obra expiatória e
pela graça regeneradora de Deus mediante Jesus Cristo. Devido ao
pecado de Adão, toda a humanidade caiu em estado de pecado,
miséria e morte. Em Cristo, todas as coisas foram restauradas e
possibilitadas de serem trazidas sob o domínio de Cristo, o Rei. Nas
palavras do Breve Catecismo de Westminster, Pergunta 26: “Cristo
exerce as funções de rei, sujeitando-nos a si mesmo, governando-
nos e protegendo-nos, contendo e subjugando todos os seus e os
nossos inimigos”.
A visão dos humanismos renascentista e iluminista deu lugar à
do humanismo moderno, uma perspectiva suicida. Já antes de
Freud, muitos pensadores tratavam da mente subconsciente do
homem; Freud rejeitou esse conceito em favor do inconsciente, que
é não tanto um repositório da mente consciente quanto um elemento
primitivo, essencial e primário no homem. O ser humano, em vez de
ter um relacionamento por meio de sua mente com algum tipo de
poder divino, passou a ser visto como se relacionando
essencialmente por meio de seu inconsciente com motivos, ímpetos
e pulsões sub-humanas e arcaicas. A mente ou razão do homem,
em vez de assemelhar-se a Deus, é agora concebida como sendo
governada por motivos primitivos e instintos raciais.
Ao mesmo tempo, a depreciação da personalidade do homem
que se iniciou com Karl Marx foi depois aprofundado por John
Dewey. Para Marx, o homem não era a criação de Deus, mas de
forças econômicas, e podia ser regenerado apenas pela
reorganização econômica de sociedade. Era uma desvalorização
radical do homem, que, de criador da sociedade, tornou-se seu
produto. De pecador, o homem tornou-se então aquele contra quem
se peca. John Dewey insistia no valor e importância precedentes da
sociedade enquanto organizada num Estado sobre um individual.
Dewey habitualmente considerava inútil a intrusão do indivíduo nos
problemas. Assim, ele dizia e tratava de sua assertiva como se
fosse um truísmo: “Todos sabemos quão desmoralizadora a
caridade é”.[97] Dewey fez essa afirmação ao contrastar estar
empregado e receber caridade, não ao contrastar caridade e
assistencialismo. Apenas assim ele podia fazer sua afirmação soar
como obviamente verdadeira. Portanto, em razão dessa sua falsa
contraposição, Dewey podia insistir no controle estatal de produção
e distribuição, de salários e condições de vida, dentre outros. Insistia
num direito garantido ao trabalho, um salário mínimo e o controle,
pelo operário, de sua indústria. “Estas três coisas, portanto,
parecem-me os elementos mínimos de um plano inteligente de
organização social”.[98] Ele exigia não uma sociedade planejada,
mas “uma sociedade em contínuo planejamento”.[99] Ele falava do
“culto do sucesso individual por meio do esforço individual” em
contraposição à realidade do planejamento social.[100] Para Dewey,
a natureza social do indivíduo era essencial. Deus não criou o
homem, e, para Dewey, o homem não criou a sociedade; antes, o
ser humano é uma criatura da sociedade, assim como a religião.
Se aquilo que a sociedade organizada em Estado faz é de
valor essencial, ao passo que aquilo que o homem enquanto
indivíduo faz não o é, segue-se que o assistencialismo é bastante
importante e pessoal e as caridades religiosas são desimportantes e
nocivas. No mínimo, há uma desvalorização moral daquilo que a
pessoa faz.
John Kekes, professor de Filosofia e Políticas Públicas na
Universidade Estadual de Nova York, Albany, Nova York, escreveu
em 1987 um texto intitulado “Benevolência: uma virtude menor”.
Kekes não adentrou na discussão sobre o Estado versus a pessoa.
Pelo contrário, simplesmente discutiu a benevolência enquanto ato
moral. Ele disse acerca da moralidade: “A moralidade exige que
ajamos pelo bem dos outros”. A definição deixa evidente seu
humanismo. Para um cristão, moralidade é fazer a vontade de Deus
conforme expressa em sua palavra-lei. Como resultado, para Kekes,
a questão é: “Quem são os outros para cujo bem somos obrigados a
agir?” Em contraposição às perspectivas cristã e utilitarista de que a
benevolência devem ser estendidas “a todos seres humanos e que
a melhor esperança de fazê-lo reside em promover a benevolência
em agentes morais”, Kekes diz:
Meu propósito aqui é argumentar que essa perspectiva está equivocada. A
benevolência não é uma virtude particularmente importante, e promovê-la
numa extensão em que muitos, mas não todos, os cristãos e utilitaristas
julgam desejável é impulsionado pelo sentimentalismo e periga cair na
imoralidade. Não há boas razões por que, como agentes morais, devamos
ser benevolentes para com a maior parte da humanidade. Insistir, ao
contrário, que devemos ser benevolentes é algo sentimental...[101]

Em certa medida, os cristãos podem concordar com isso. Mas


por que a benevolência é uma virtude menor? Kekes segue os
pensadores iluministas em sua concepção de que a benevolência é
uma “disposição humana fundamental”. É “uma virtude natural, um
elemento essencial, dado, da natureza humana”, na qual a maior
parte dos homens compensa seus traços egoístas.[102] Claramente
Kekes não vê o homem como caído!
Para Kekes, nem a benevolência estrita nem a generalizada
são “meios particularmente importantes para o bem dos demais”. Há
vários outros motivos que nos levam a buscar o bem dos outros:
“um senso de justiça, decência, ideais pessoais, prudência, o desejo
de evitar a culpa ou a vergonha são alguns deles. Desse modo,
embora a benevolência seja uma virtude, é apenas uma menor”.[103]
Kekes em nenhum lugar no diz o que é uma virtude maior, nem
mesmo se algo assim existe.
Quaisquer que sejam as crenças pessoas de Kekes, sua
estrutura de referência em nada nos surpreende; é uma perspectiva
moderna, não teísta. Se Deus está ausente numa filosofia ou fé, a
estrutura de referência desse pensamento será ou radicalmente
individualista ou anarquista, ou ainda será, de igual modo,
enfaticamente estatista. Para a forma estatista de humanismo, todas
as maiores virtudes são estatistas; para a autarquia filosófica, por
seu turno, todo pensamento humano é importante e moral quando é
racional.
A caridade é desprezada em qualquer uma dessas
perspectivas. No que diz respeito a nossas cosmovisões modernas,
a caridade é uma negação da autarquia do indivíduo, ou uma
interferência com as políticas do Estado. As agências cristãs estão,
por conseguinte, sendo tratadas com hostilidade, com exceção
daquelas que recebem fundos estatais e limitam seu status ao
enfatizar as preocupações humanistas em lugar do evangelho,
conforme agem como serviçais do Estado.
Trata-se pois de uma questão de prioridade: a quem se dirige
a questão, a quem se lança o desafio: “E quem é meu próximo”
(Lucas 10.29). Na Bíblia, a misericórdia é sempre pessoal; começa
com Deus e se manifesta por meio do povo de Deus.
1
21. O DIACONATO, CARIDADE E
ASSISTENCIALISMO

Os motivos humanistas amiúde governaram causas louváveis


dentro da igreja. O homem busca alcançar vantagem sobre Deus,
mesmo por meio de suas virtudes e obediência. Essa motivação
infesta cada área do pensamento eventualmente e de alguma
forma. Na mariolatria, por exemplo, um aspecto significativo da
devoção é a crença de que Maria, uma criatura, pode exercer uma
influência regente para com Deus. Os protestantes estão prontos a
criticar a mariolatria e a subestimar a Virgem Maria, embora eles
próprios caem em erro semelhante. A maternidade sempre foi
exaltada a certo nível de sacralidade, e dá-se uma ênfase indevida
ao “coração de mãe”. Algumas mães protestantes insistem que
Deus irá responder à oração de uma mãe por seu filho; é mais uma
crença no poder da importunação que um exemplo de fé bíblica.
Ao considerar-se, portanto, a natureza da caridade cristã, é
necessário lembrarmo-nos que motivos equivocados se infiltraram
em nosso meio. O termo moderno filantropia representa um
exemplo disso; significa, literalmente, amor ao homem; a caridade
bíblica, por sua vez, significa essencialmente manifestar a graça de
Deus porque recebemos sua graça. Conforme nos ordena nosso
Senhor: “de graça recebestes, de graça dai” (Mateus 10.8). A
caridade cristã é de fato obra piedosa, mas é também
essencialmente uma manifestação da graça. Damos porque já
recebemos.
Quando Tiago nos diz que a fé sem obras é morta (Tiago 2.14-
16), ele está declarando sua identidade prática. Uma fé viva revela-
se na obra de um indivíduo: sem fé, sem obras, e vice-versa. A obra
da graça é um fruto da graça. Uma falsa separação leva à má
teologia. Obras separadas da fé é filantropia, e por vezes é também
uma visão falaciosa acerca da salvação. A fé separada das obras
tende ao misticismo, ou ao menos a confusão da experiência e
sentimento com fé.
A Igreja Primitiva era notável em sua prática de caridade. Em
parte, era sua herança do judaísmo, mas ia além desta religião no
escopo de sua prática. Não podemos subestimar a importância de
suas obras nesse ponto. Ao mesmo tempo, essa prática não estava
livre de erros. Por exemplo, São João Crisóstomo declarou:
És incapaz de praticar a vida virginal? Busque então um casamento
prudente. És incapaz de virar-se sem posses? Doa pois o que possuis. É um
fardo muito pesado para ti? Divida teus bens com Cristo. Não estás disposto
a ceder-lhe tudo? Entrega-lhe ao menos metade ou um terço. Ele é teu
irmão e co-herdeiro; faça dele teu co-herdeiro na terra. Quanto mais dá a
Cristo, mais dá-te a ti mesmo.[104]

O neoplatonismo e o asceticismo nesse excerto são óbvios.


Uma vida e a posse da propriedade é o caminho menor da
espiritualidade, e as correções podem ser feitas por uma vida
modesta. Deus exige os dízimos; ofertas eram possíveis somente se
mais que um dízimo estivesse envolvido. Crisóstomo incentiva que
“ao menos metade ou um terço” seja dada ao Cristo e sua obra. Isto
é ser mais santo que Deus! Com referência à verdadeira esmola,
Crisóstomo disse:
Aliás, é imenso bem e dom de Deus, e faz semelhante a Deus, na medida do
possível; é isso principalmente ser homem. Por essa razão, afirmando qual o
sinal de se tratar de um ser humano, diz: “Grandioso e precioso é um
homem caritativo” (cf. Pr 20,6). É graça maior do que ressuscitar um morto.
É muito mais valioso alimentar a Cristo faminto do que em nome de Jesus
ressuscitar um morto; pois no primeiro caso prestas benefício a Cristo, no
segundo, ele a ti. Certamente, a recompensa não é reservada aos
beneficiados e sim aos benfeitores. Em verdade, na realização de milagres,
tu te tornas devedor de Deus, na esmola, porém, Deus é que fica te
devendo.
Finalmente, esmola é distribuir com prontidão, largamente, sem cogitar que
dás, e sim que recebes, que és beneficiado e lucras livre de perdas;
conquanto nem assim se considere caridade. Por conseguinte, quem se
compadece do próximo, deve agir alegremente e não contrariado. Não seria
absurdo, afastares do próximo a tristeza, e tu mesmo te entristeceres? De
forma alguma darias a esta ação o nome de esmola. Pois, se te aborreces
por aliviares a tristeza do próximo, dás provas de extrema crueldade e
desumanidade; é preferível não aliviá-la do que tirá-la desta maneira. Por
que, enfim, ó homem, ficas pesaroso? Seria porque não queres que o teu
ouro diminua? Se tal é tua disposição, absolutamente não dês; a não ser que
confies que teu ouro no céu se multiplica, não dês. Ora, reclamas
retribuição? E então? Deixa a esmola ser esmola, e não negociação.[105]

Nessas palavras, um grande incentivo para caridades


subsequentes está em evidência: “mas relativamente às esmolas, tu
pões Deus sob uma obrigação para contigo”. É um reflexo pálido
das palavras de nosso Senhor: “de graça recebestes, de graça dai”.
Essa visão de Crisóstomo é diferente da ênfase de Santo
Efrém da Síria, que disse acerca do nascimento de Cristo: “Neste
dia veio a nós a Dádiva, embora não a tenhamos solicitado!
Concedam, portanto, esmolas a quem clama e suplicam a nós!”.[106]
Efrém também disse:
O Senhor de todos deu tudo a nós. Ele, que a todos enriquece, exige juros
de todos. Ele que dá a todos coisas de modo a nada faltar, e contudo exige
juros de todos como se necessitasse. Ele deu-nos greis e rebanhos como
Criador, e todavia exigiu sacrifícios como se em necessidade.[107]

Essa citação está mais próxima, em seu espírito, ao “de graça


recebestes, de graça dai”. A graça é enfatizada, em vez de colocar
Deus sob uma obrigação. Ambas as visões eram amplamente
predominantes, mas, eventualmente, a visão de Crisóstomo (que
não é originalmente sua, sem dúvida) prevalecia. Séculos depois, o
escritor picaresco espanhol, Mateo Aleman, escreveu: “aos ricos
são dados bens temporais e aos pobres, os bens espirituais, de
modo que, em retorno pela distribuição possessões terrenas entre
os pobres, compra-se a graça”.[108]
Isso não significa que não procedesse nenhum bem desse erro
teológico, não necessariamente por causa do erro, mas da fé que
ainda se fazia presente ali. O estudo de Maureen Flynn das
confraternidades católicas em Samora, Espanha, do período de
1400-1700, é um relato notável da organização cristã da vida. As
confraternidades eram fraternidade e sororidades de ajuda mútua; a
maior parte de seus integrantes eram samoranos. O trabalho deles
incluía segurança mútua, atividades de caridade, hospitais, enterros,
redimir cativos, manutenção de pontes, providenciar de dotes,
obstar vingança, dentre outros. Eles possuíam terra e propriedades
para promover seu trabalho. Tinham seus próprios padres e eram
uma igreja operada por leigos fora da igreja. A Revolução Francesa
aboliu todas essas organizações, dentre elas outras corporações.
[109]

As confraternidades declinavam por inúmeras razões. Em


primeiro lugar, a praga tornara escassa a mão de obra, e isto ajudou
a destruir a atitude medieval para com a “pobreza santa”. Em
segundo lugar, isso andou lado a lado com a atitude então
transformada em relação ao trabalho, “e seu valor no
desenvolvimento material das nações”.[110] O trabalho tornou-se
assim mais santificador (especialmente aos protestantes) que a
pobreza, e pedintes capazes de trabalhar passaram então a ser
vistos de modo desfavorável.
Havia também, em terceiro lugar, a ascensão de caridades
estatistas, que se tornavam rapidamente assistencialismo, à medida
que o Estado ganhava poder e as condições críticas na economia
tornavam o peso da caridade grande demais para agências
eclesiásticas por vezes enfraquecidas.
Passou-se certas leis contra a mendicância em vários países.
Na Espanha, um frei dominicano, Domingo de Soto, opôs-se a elas
com base tanto teológicas quanto práticas. “Ele considerava a
mendicância um direito humano fundamental do qual nenhum
governo deveria privar seus cidadãos”.[111] Mais: Soto via a
mendicidade como intimamente ligada à liberdade de propriedade.
“Enquanto a propriedade privada permanecer o fundamento da
ordem econômica, o pobre não poderia ver-se privado de seu direito
privado de apelar por sustento”.[112]
Nessa mesma época também o Concílio de Trento começou a
alterar as confraternidades do controle e preocupações leigas para
as eclesiásticas. De fato, nas palavras significativas de Flynn, “a
irmandade universal dos irmãos na Espanha revelava-se uma
ameaça ao clero católico quase tão imensa quanto o sacerdócio
universal concebido pelos protestantes”, visto que as
confraternidades estavam administrando os sacramentos e
organizando seus próprios serviços de adoração.[113]
Calvino, nesse ínterim, dava uma ênfase renovada à caridade.
Em suas Institutas, Calvino declarou, com base em Atos, que
Assim se deveria fazer sempre; a congregação da Igreja nunca deveria se
reunir sem a Palavra, sem esmola, sem participação na Ceia e na oração.
[114]
A caridade tornou-se, portanto, inseparável da adoração. Muito
cedo, Genebra viu os necessitados sendo cuidados. Tratava-se de
uma tarefa cooperativa de igreja e Estado, tal como no caso da
Espanha. O trabalho estava sob a jurisdição do diaconato da igreja.
Um diácono renumerado, exclusivamente dedicado a seu serviço,
administrava a caridade.[115] Calvino acreditava que a caridade tinha
de ser um aspecto da vida de fé e dependente do “espírito
voluntário”.[116] Também acreditava que o trabalho era essencial, e,
num sermão em Deuteronômio 24.1-6, declarou: “Privar um homem
de seu trabalho é degradar-lhe”.[117] Assim, fizeram-se esforços para
providenciar trabalho aos pobres. A Genebra de Calvino forneceu
um modelo para a Milão do Cardeal (e posteriormente Santo) Carlos
Borromeu.
Quando a visão prévia, medieval, da santa pobreza deu lugar,
após a praga, a uma crescente desafeição a mendicantes, bem
como a uma crença de que homens saudáveis deveriam trabalhar, a
sociedade estava pois pronta para uma teologia do trabalho. Calvino
lançou os fundamentos para ela ao sustentar que a pobreza, ao
invés de conceder santidade a um homem, degradava-lhe.
Wallace afirma que o programa de Calvino para Genebra
poderia ser descrito como um programa de santificação social,
constituído de dois aspectos. O primeiro deveria ser a
transformação pessoal das pessoas; o segundo aspecto dava-se
pela disciplina social, “e mediante o poder sacramental da palavra
de Deus”[118]. A “disciplina social” incluía o trabalho do diaconato.
A visão que Calvino tinha da sociedade era a igreja e o Estado
igualmente a serviço do Deus triúno. Contudo, outro conceito estava
então em desenvolvimento. Nas palavras de Flynn, ao descrever a
manifestação espanhola desse conceito em formação, “a religião
era concebida como estando a serviço do Estado”.[119] Isso
implicava a disciplina social para a paz do Estado, não para a paz
com Deus. Deu-se assim a transição da caridade piedosa para a
filantropia e assistencialismo.
Os defensores humanistas do assistencialismo aprovariam, até
determinado grau, a afirmação de Calvino, mas com uma diferença.
Primeiramente, para o estatismo humanista, o que degrada o
homem é antes a impotência que a ociosidade. Consequentemente,
títulos e auxílios substituem o trabalho como remédio aos pobres.
Em segundo lugar, Calvino via a degradação e prosperidade do
indivíduo com base no estado deste perante Deus, e não levando
em consideração o dinheiro e bens materiais.
Como resultado, o assistencialismo degradou o homem muito
mais que a pobreza o havia, porque prejudicou o espírito humano.
1
22. CARIDADE, PARTE 2

O Império Romano, considerando aqui seus pressupostos,


tinha boas razões para perseguir o cristianismo, pois este era um
império dentro do império, com seu próprio código legal, a Bíblia, e
seu próprio rei, Jesus Cristo. Roma tinha sérios problemas:
econômicos, dentre outros, e ainda os números crescentes de
beneficiários do assistencialismo. Ora, o assistencialismo não
gerava lealdade a Roma. Pelo contrário, criava uma turba crescente
de pessoas cujo propósito de vida era receber cada vez mais do
império.
Em contraposição a isso, outro império, o cristianismo,
providenciava saúde, educação e assistência. A caridade cristã
criava laços pessoais, ao passo que o assistencialismo os dissolvia,
o que pois resultava em decadência social.
Ser um membro de uma igreja cristã significava receber o
treinamento como catecúmeno a fim de receber a autoridade para a
assistência dos necessitados. Stuart G. Hall escreveu:
Os candidatos eram examinados individualmente para ver “se eles viviam
piedosamente enquanto catecúmenos, se honravam as viúvas (isto é, se
contribuíam na caridade), se visitavam os enfermos, se realizavam todas as
boas obras”; caso sim, podiam “ouvir o evangelho”, o que aparentemente
não era permitido antes nessa igreja, e deveriam apresentar-se para o
exorcismo diário (para isto e o que se segue, veja Hipólito, Tradição
Apostólica, 20-1). Em outras igrejas, poder-se-ia aplicar testes.[120]

Para ser um membro, tinha-se de ser um cristão praticante.


Ensinava-se à pessoa a fé, mas excluía-se-lhe da comunhão e,
aparentemente em Roma, do momento da pregação, a menos que
fosse ativa na caridade. Esse relato, aproximadamente de 200 d.C.,
vem de um teólogo romano, Hipólito.
A Didaquê, cuja origem data do século I a meados do século II,
exigia que os cristãos sustentassem o clero em seu ministério e
obra de caridade. Caso não houvesse um profeta (ou pregador),
deveriam dar diretamente aos pobres:
Todo verdadeiro profeta que queira estabelecer-se entre vocês é digno do
seu alimento. Da mesma forma, também o verdadeiro mestre é digno do seu
alimento, como todo operário (cf. Mt 10.10b). Por isso, tome os primeiros
frutos de todos os produtos da vinha e da eira, dos bois e das ovelhas, e os
dê para os profetas, pois eles são os sumos sacerdotes de vocês. Se,
porém, vocês não têm nenhum profeta, dêem aos pobres. Se você fizer pão,
tome os primeiros e os dê conforme o preceito. Da mesma forma, ao abrir
uma vasilha de vinho ou de óleo, tome a primeira parte e a dê aos profetas.
Tome uma parte do seu dinheiro, da sua roupa e de todas as suas posses,
conforme lhe parecer oportuno, e os dê conforme o preceito.[121]

Com boas razões, Hall pôde escrever: “De fato, a igreja local
era, em muitos aspectos, uma sociedade de caridade”.[122] Ele
acrescenta:
Os membros vulneráveis da sociedade, como as viúvas, órfãos, bebês
indesejados e escravos idosos poderiam estar seguros de que teria um meio
de vida se pertencessem à igreja. Nela, os necessitados tinham uma família
que tomaria as providências para eles não fossem desamparados.[123]

Isso nos permite entender por que o imperador Juliano, o


Apóstata, exigiu que os sacerdotes pagãos emulassem os cristãos:
fundassem hospitais, cuidassem dos enfermos e forasteiros e
auxiliassem os pobres. Juliano propôs-se a ajudar os sacerdotes
pagãos com dinheiro para que eles cumprissem suas ordens, mas o
resultado foi-lhe desanimador. O imperador Constantino havia
anteriormente usado de seus recursos para ajudar tanto cristãos
quanto pagãos; deu comida e roupa aos pobres; cuidou de viúvas e
órfãos, e aparentemente providenciou dotes para as filhas das
viúvas, de acordo com o que escreve Eusébio de Cesareia em seu
A vida de Constantino.
A lei bíblica enfatizava as obras de caridade, incluindo o Novo
Testamento. No início do ministério de nosso Senhor, João Batista
enviou dois discípulos a Jesus:
És tu aquele que estava para vir ou havemos de esperar outro? E Jesus,
respondendo, disse-lhes: Ide e anunciai a João o que estais ouvindo e
vendo: os cegos veem, os coxos andam, os leprosos são purificados, os
surdos ouvem, os mortos são ressuscitados, e aos pobres está sendo
pregado o evangelho. (Mateus 11.3-5)

Jesus deu, de duas formas, evidências de que era o Messias:


em primeiro lugar, confirmações miraculosas foram manifestas a
todos; curou coxos, leprosos, cegos, surdos, e os mortos
ressuscitaram. Em segundo lugar, as boas novas foram pregadas
aos pobres. Na parábola do julgamento em Mateus 25.31-46, nosso
Senhor deixa claro que, conforme visitamos os encarcerados,
vestimos os nus e damos de comer e beber aos necessitados,
fazemo-lo a ele. O ministério é mais que pregação: é fé ativa.
Enquanto o pensamento grego era intelectual, enfatizando a mente
ou a cabeça, a fé cristã enfatizava a cabeça e as mãos, fé e vida,
teologia em ação. “Amarás o teu próximo como a ti mesmo” não
está somente na lei do Antigo Testamento, especificamente em
Levítico 19.18, mas no Novo Testamento, em passagens como
Mateus 5.43 e 19.19, em Lucas 10.27, Marcos 12.31, Romanos
13.9, Gálatas 5.14 e Tiago 2.8.
Há muitos escritos na literatura da Igreja Primitiva que tratam
sobre o exorcismo e que são, muito frequentemente, interpretados
em termos modernos, como se estivesse relacionado à possessão
demoníaca. Embora esta fosse sim uma faceta de seu sentido, em
geral tendemos a atribuir conotações indevidas ao termo. O
candidato para a membresia da igreja era ungido com o óleo do
exorcismo e declarava: “Renuncio a ti, Satã, e a todos teus servos e
todas tuas obras”.[124] Exorcismo era a renúncia de um modo de
vida em prol de outro, isto é, por uma vida de observância da lei e
amor fraternal. Um sentido hoje negligenciado da palavra exorcismo
é a rejeição aos poderes malignos; e ensinava-se ao catecúmeno,
dentre outras coisas, a rejeitar os poderes malignos por meio da fé e
obras piedosas, mediante a caridade. Muito da caridade medieval
tinha essa motivação.
A Igreja Primitiva não afirmava a salvação por atos de
caridade, mas afirmava sim que uma fé verdadeira se manifestava
na caridade, embora não houvesse benefício nisso para os ímpios:
XLIII. Essas coisas dizemos acerca dos piedosos; quanto ao ímpio, se
desses todo o mundo aos pobres, tu, ainda assim, em nada o beneficiaria.
Pois aquele que, em sua vida, provou da inimizade da Divindade, certamente
continuará a prová-la mesmo depois de ter partido; pois não há em Deus
iniquidade. Pois “o Senhor é justo e ama a justiça”.[125]

Não podemos compreender a ênfase contínua na caridade ao


longo dos séculos de cristianismo, se não tivermos em mente a
insistência numa fé e em obras vigorosas, a ênfase na “cabeça mas
também nas mãos”. A literatura patrística tem copiosos exemplos
desses ensinamentos, por exemplo:
XII. Se tu possuis por meio das obras de tuas mãos, dá, para que possas
trabalhar pela redenção de teu pecado; pois “pela misericórdia e pela
verdade, se expia a culpa” (Provérbios XVI.6; Daniel IV.27). Não se
queixarás de dar aos pobres, nem, ao dares, murmurarás; pois não saberás
quem há de retribuir-te com tua recompensa. Pois ele diz: “Quem se
compadece do pobre ao Senhor empresta, e este lhe paga o seu benefício”
(Provérbios XIX.17). Não te esquivarás do necessitado, pois o Senhor diz: “O
que tapa o ouvido ao clamor do pobre também clamará e não será ouvido”
(Provérbio XXI.13). Hás de partilhar de tudo com teu irmão, e não dirás que
tuas coisas são tuas, exclusivamente; pois a participação comum daquilo
que é necessário à vida é designada, por Deus, a todos os homens. Não
afastarás tua mão para com teu filho ou filha, mas ensiná-los-á o temor ao
Senhor desde sua juventude; pois ele diz: “Castiga a teu filho, enquanto há
esperança, mas não te excedas a ponto de matá-lo”.[126]

A construção de igrejas significava a edificação de bibliotecas


e escolas, e estas últimas aceitavam estudantes carentes.[127]
Desde muito cedo os líderes da Igreja Primitiva solicitavam que os
pobres se postassem perante as portas da igreja para “incitar a alma
mais bruta e inumana à compaixão”.[128] Muito se ressaltou a
palavra de Deus segundo a qual “ninguém apareça de mãos vazias
perante mim” (Êxodo 23.15; 34.20). Ao longo da Semana Santa,
antes da Páscoa, havia um aumento das obras de caridade; era
tempo de descanso e liberdade para os servos; muitos prisioneiros
recebiam perdão e libertação, e todos os processos legais, criminais
ou civis, eram suspensos naquele período.[129]
Seria um erro presumir que houve uma ordem uniforme
através dos séculos, pois a fé, por vezes, minguava gravemente. De
todo modo, os efeitos gerais da caridade cristã foram notáveis.
Ainda se fazem presentes. Ao passo que o assistencialismo
estatista é impessoal e cria ódios de classes, uma vez que os
cidadãos taxados se ressentem de uma “doação” compulsória e os
que recebem, por sua vez, começam a se ressentir de sua condição
e passam a falar de “direitos”, a caridade cristã cria laços e conduz a
vidas transformadas. A título de exemplo, recebi ontem uma carta,
por meio de Ross Aiken, de Murphys, Califórnia, de uma jovem que
fora sua inquilina. Ela não havia sido capaz, onze anos atrás, de
pagar seu aluguel e, por alguns meses, infringindo assim o contrato.
Ross Aiken ficou sabendo dos problemas conjugais da mulher e que
se encontrava agora sozinha e sem condições de transporte para
deslocar-se ao trabalho. Ele a escusou das dívidas do aluguel,
ajudou-a, contactou a Chalcedon, cujo Fundo Diaconal tinha o
suficiente para um bom carro usado, e a mulher obteve sua
independência. Tomando ciência da enfermidade de Harriette Aiken
(a esposa de Ross), em 26 de fevereiro de 1993, a mulher (H.T.)
escreveu:
Caros Harriette e Ross,
Quanto tempo! Definitivamente quase uma vida! Só queria agradecê-los
mais uma vez pela gentileza que ambos me mostraram quando eu estava
totalmente perdida. Vivo uma vida ótima agora, e limpa! Mas sem as
pessoas cristãs maravilhosas que demonstraram confiança em mim quando
eu não tinha nada naquele momento, jamais teria conseguido! Por terem
sido essas pessoas, meu obrigado.
Vivo em S.A., farei cinco anos de casada em abril. Tive duas lojas de
presentes. Agora tenho uma aqui em S.A. Um presente do Senhor. Vendo
presentes únicos e incomuns, livros, um monte de material cristão. Estou
muito feliz. As crianças já estão todas tão crescidas! Têm 12, 13 e 14 anos.
Bem longe dos meninos de 1, 2 e 3 anos que vocês viram morando em sua
casa alugada. Mas são todos excelentes meninos! Graças a Deus!
Harriette, fiquei sabendo que você não está se sentindo muito bem. Vou te
colocar em minha lista de orações na igreja St. Matthews. Espero que se
sinta melhor! Coordeno um coral popular aqui; caso você algum dia passe
por aqui no domingo, apareça; cantaremos para você.

No passado, São João Crisóstomo, um zeloso promotor da


caridade cristã, deixou claro a suas congregações que, por mais
efetiva e extensiva que fossem as caridades de suas dioceses, a
caridade ainda começa em casa com famílias crentes.
Em 1851, um protestante americano escreveu a obra New
Themes for the Protestant Clergy: Creeds without Charity, Theology
without Humanity, Protestantism without Christianity [Novos temas
para o clero protestante: credos sem caridade, teologia sem
humanidade e protestantismo sem cristianismo]. A Reforma,
afirmava ele, refinou a teologia, mas progressivamente abandonou a
caridade — e esta última, por muito tempo, caracterizou a
cristandade. Ele conclamava por um retorno à grande herança da
caridade cristã. Percebia-a corretamente como uma herança perdida
que precisava ser reivindicada.
Infelizmente, a própria palavra caridade adquiriu sentidos além
de liberalidade para com os pobres, os enfermos, os desamparados
e os necessitados, que foi o sentido da caridade cristã. Entre os
sentidos mais comuns de caridade nas gerações recentes encontra-
se o do pensamento moderado que não é indiferença nem
intolerância. Lamentavelmente, até mesmo líderes eclesiásticos
destacarem essa acepção do termo.[130] Conforme o Estado
assumia a assistência social, a igreja refugiava-se no pietismo, nas
preocupações que lidavam principalmente com a vida interior do
homem. Com essa retirada, veio a pobreza espiritual: os homens
não podem negligenciar o que Deus exige e, ainda assim, prosperar.
Passagens como Provérbios 14.12 e 16.25 dizem-nos: “Há caminho
que ao homem parece direito, mas ao cabo dá em caminhos de
morte”.
1
23. CARIDADE CRISTÃ

Conforme vimos, certa feita a fé cristã implicava que o crente


respondia mediante o trabalho ativo de trazer a graça e misericórdia
de Deus a outros, tanto por palavra quanto por feitos. Isso
significava a proclamação de todo o conselho de Deus, a redenção
dos perdidos, a libertação dos que se estavam cativos ao pecado,
pobreza, doenças e aos mais variados males. Nessa linha de
pensamento, o ser humano jamais era o ponto derradeiro da graça e
misericórdia de Deus. O objetivo do poder e graça redentores de
Deus não era a alma humana, mas seu Reino. Nosso Senhor
declara:
Portanto, não vos inquieteis, dizendo: Que comeremos? Que beberemos?
Ou: Com que nos vestiremos? Porque os gentios é que procuram todas
estas coisas; pois vosso Pai celeste sabe que necessitais de todas elas;
buscai, pois, em primeiro lugar, o seu reino e a sua justiça, e todas estas
coisas vos serão acrescentadas. (Mateus 6.31-33)

Essas palavras familiares têm um sentido que nos é


desconhecido. Em primeiro lugar, os versos 31 e 32 apresentam
novamente o verso 25: é-nos dito que não devemos inquietar-nos
com comida e vestimentas. Deus, como nosso Pai celestial, está
ciente de nossas necessidades. Uma preocupação egocêntrica não
honra, pois, a Deus. Em segundo lugar, devemos, acima de tudo,
também preocupar-nos com a justiça de Deus — e essa justiça ou
retidão está claramente expressa perante nós na palavra-lei divina.
A lei de Deus ordena a justiça, e esta inclui a caridade, já que várias
passagens exigem que cuidemos das necessidades dos outros. Os
desamparados são nossa responsabilidade. Assim, a caridade é um
dever pessoal e religioso. Em terceiro lugar, o Reino de Deus, e não
nós mesmos, é nossa prioridade. Paulo nos diz que não somos de
nós mesmos? (1 Coríntios 6.19). Somos servos de Deus e não
devemos esperar que Deus supra nossas necessidades quando não
lhe damos o que lhe é devido, quando colocamos nossas
necessidades à frente de seu Reino. Em quarto lugar, somente
quando cuidamos das exigências divinas é que Deus cuidará de
nós. Somente então “todas essas coisas nos serão acrescentadas”.
Numericamente, a igreja é bastante forte em nossa época. Na
prática, porém, mostra-se muito fraca, uma vez que seus membros
buscam autorrealização, atividades sociais, uma garantia de que a
questão acerca do céu esteja resolvida, e assim por diante — todos
eles objetivos para a gratificação do crente.
É verdade que os problemas no mundo ao nosso redor são de
dimensões alarmantes, mas foi nosso pecado e deserção que os
criaram, e Deus exige de nós que os resolvamos.
Havia muita pregação na Igreja Primitiva sobre caridade ou
esmolas. A palavra grega do Novo Testamento ágape é traduzida
em geral como caridade. No inglês antigo, o sentido de charity é
amor a Deus e amor ao homem. A manifestação de caridade na
vida humana era vista como a presença da graça. Quando Paulo,
em 1 Coríntios 13, fala de ágape, caridade ou amor, ele entendia a
palavra no sentido ativo, como a graça de Deus em nós dirigindo-se
livremente aos outros. Ele declarou que as três virtudes capitais
cristãs eram a fé, esperança e caridade (ou amor), e que a ágape,
ou caridade, é a maior dentre elas.
Pensamos atualmente nos bispos como sendo
administradores. Eram, todavia, originalmente pastores para
pastores, e líderes na caridade. Nesse sentido, Sidônio, em
agradecimento ao bispo Paciente por suas incontáveis boas obras,
diz-nos isto:
É possível que seja verdade que algumas dessas boas obras não lhe sejam
peculiares e que sejam compartilhadas pelos colegas; mas há uma que é
tua, como uma primeira acusação, no dizer dos advogados, e que mesmo
tua modéstia não pode negar; a saber, quando as devastações dos góticos
terminaram e as colheitas estavam todas destruídas pelo fogo, distribuístes
trigo aos destituídos por toda a terra arruinada da Gália a tuas próprias
custas, ainda que teria sido alívio suficiente a nossos povos famintos caso o
trigo tivesse vindo a eles, não como dádiva, mas pelas vias usuais do
comércio. Vimos as estradas repletas de teus carros que conduziam os
grãos. Ao longo dos rios Saône e Ródano vimos mais de um celeiro que tu
abarrotaste... Não posso dizer com exatidão o tamanho da gratidão que
todas as pessoas te devem — habitantes de Arles e Riez, Avinhão, Orange,
Viviers, Valence e Trois-Chateaux. Está além de minhas capacidades
enumerar todos os agradecimentos das pessoas que foram alimentadas sem
ter de pagar um só cêntimo. Mas pela cidade de Clermont I posso falar, e em
seu nome dou-te infinitos agradecimentos; e ainda mais porque tua ajuda
não tinha nenhuma motivação óbvia: não pertencemos à tua província,
nenhuma via navegável conveniente que te conduzisse a nós, não tínhamos
dinheiro a oferecer. Gratidão sem medidas dou-te de nossa parte; eles
devem à abundante generosidade de teu grão o fato de terem agora, e mais
uma vez, sua própria subsistência.[131]

Os cristãos substituíram a unidade imperial e solicitude


romanas com algo muito superior, a saber, a universalidade da
igreja e sua solicitude no nome de Cristo. Essa solicitude manifestou
em nosso século por todo o mundo, na ajuda, por exemplo, aos
armênios durante os massacres contra eles cometidos em 1915;
porém, a solicitude imperativa que fora uma vez demonstrada
minguou-se. Na época da queda de Roma, muitos líderes
eclesiásticos de imensas heranças contribuíram pronta e
generosamente para mitigar a necessidade humana.[132] Muitos
líderes eclesiásticos obtiveram assim respeito duradouro em razão
de seus atos de caridade, como testemunha Martinho de Tours. No
período medieval, os monges eram notáveis por esses atos.
A Igreja Primitiva tinha um imenso problema com o Império
Romano. Para o paganismo, “as principais virtudes eram cívicas”.
[133] Os cristãos desafiavam essa perspectiva e sustentavam que as
principais virtudes eram teocêntricas. Não é o Estado que define a
virtude, mas o Deus triúno em sua Palavra nas Escrituras.
Atualmente testemunhamos um ressurgimento do estatismo
clássico. O locus da virtude é novamente o Estado. O cristianismo,
por sua vez, é visto como uma questão de escolha pessoal; e suas
virtudes, uma questão de gosto individual. O universo moral foi
posto de cabeça para baixo. Onde as caridades cristãs são vistas e
notadas, é em razão de sua natureza aparentemente humanitária. O
caráter teocêntrico da caridade cristã é ignorado. O terreno comum
apresentado como a razão para seu assistencialismo é sua
humanidade comum. Mas é essa humanidade comum que divide as
pessoas. Sendo seres humanos caídos, as pessoas odeiam umas
às outras, exploram, roubam, matam livremente, e jamais estão tão
distantes entre si que quando unidos pela ação estatista. Uma
humanidade comum cuja unidade é o pecado e o mal demonstra
mais interesse na exploração que na misericórdia.
A fundação teológica da caridade cristã começa com a
expiação de Cristo e seu poder regenerador, por meio do qual ele
criou uma nova humanidade, uma nova raça humana, em Jesus
Cristo. A graça que recebemos deve perpassar-nos e dirigir-se aos
outros, ambos numa convocação para a redenção, e em atos de
auxílio e misericórdia cristãs.
Somos lentos para aprender, mas Deus é muito paciente
conosco. Não fomos criados para agradar a nós mesmos, nem a
criação foi feita para nossa glória. Somos um povo sob ordens,
convocados para o grande exército de Deus; e nosso Senhor não
tem paciência com desertores. Devemos buscar primeiramente seu
Reino e sua justiça (Mateus 6.33). Não pertencemos a nós mesmos
(1 Coríntios 6.19), e jamais podemos dar prioridade a nós mesmos.
Fazê-lo é ofender a Deus, e quem pode permanecer perante ele?
1
24. O JOÃO CALVINO DESCONHECIDO

O historiador Stephen A. McKnight chamou atenção para a


importância do pensamento de Boccaccio conforme manifesto na
primeira narrativa de Decamerão. O pano de fundo é a praga de
1348. Sete moças e três rapazes deixam a cidade em direção ao
campo, para fugir da peste. Eles se afastam da igreja e da oração
porque as consideram fúteis em face daquela situação. Eles se
entretêm com narrativas cínicas sobre pessoas e sobre a igreja. A
primeira delas diz respeito a um notário, um picareta descrito como
“possivelmente o pior homem que já nasceu”.[134] Enquanto visitava
a Burgúndia em negócios, esse homem, Ciapperelo de Prato, caiu
mortalmente doente. Mesmo sendo um enganador, ladrão, lascivo e
assassino, Ciapperello faz uma confissão radicalmente falsa para
um padre, na qual ele se posta como um homem santo com uma
dócil consciência. Ele leva a cabo uma declaração geral da
confissão, astutamente planejada, como uma manipulação do rito a
seu favor. O ingênuo sacerdote toma Ciapperello por um santo e o
enterra, portanto, em terreno sagrado; milagres são realizados na
sepultura desse homem “santo”.
McKnight assinalou que, nessa narrativa e noutras, Boccaccio
desenvolve “o tema chave da aparência versus realidade”.[135] Com
efeito, “os personagens de Boccaccio demonstram que — ao menos
no nível humano — aparência é realidade”.[136] Boccaccio, um
padre, olhava secularmente para vida. Afirmava “o valor intrínseco
da existência secular”. O sagrado e o secular não estão mais
essencialmente relacionados por meio do governo e providência de
Deus. De fato, “o sagrado não desaparece; há ainda preocupação
pela salvação, mas esta parece ter pouco a ver com a vida diária”.
[137] Vemos essa conclusão em homens como Galileu, que limitava a
relevância da Bíblia à salvação.[138] Não mais se concebia que a
Bíblia governava a totalidade da vida e pensamento; pelo contrário,
passou-se a vê-la como restrita à salvação e como um manual de
devoção. Enfim, deixou de ser as ordens de marcha para todas as
áreas da vida.
Uma nova têmpera começava então a predominar, primeiro no
catolicismo e posteriormente no protestantismo. A Bíblia era vista
estritamente como um manual eclesiástico e nada mais. Mais tarde,
por meio de homens como Bacon, Comte e Marx, essa nova
têmpera desenvolveu-se ainda mais, de acordo com
McKnight:
... cada obra desses escritores demonstram as três características
primordiais da modernidade: a consciência de uma ruptura epocal com o
passado; uma convicção que essa ruptura se deve a um avanço
epistemológico; e a crença de que esse novo conhecimento oferece ao
homem os meios de superar sua alienação e readquirir sua verdadeira
humanidade.[139]

Podemos começar a entender por que o cristianismo se mostra


tão impotente hoje. Vivemos num mundo secularizado, em que
aparência é realidade, e no qual o cristianismo não é mais visto
como uma fé realmente universal, mas é, pelo contrário, limitada a
uma simples preocupação pela vida no além. A lei bíblica é negada,
e o calvinismo é reduzido a ideias acerca de Deus e predestinação,
embora seja muito mais que isso, uma vez que exige o governo de
todas as coisas por meio de Deus e sua palavra-lei. Não conceber
Jesus Cristo, agora e sempre, como “bendito e único Soberano, o
Rei dos reis e Senhor dos senhores” (1 Timóteo 6.15). Se Cristo não
é nosso Rei, então também não é nosso Sacerdote nem nosso
Profeta. Seus ofícios são inseparáveis. Como ele pode ser nosso
Profeta se não é o Rei absoluto, Senhor e Governador de toda a
criação? E como Cristo pode ser nosso Sumo Sacerdote, se não é
totalmente competente em seu governo régio de tudo que existe? O
cristianismo não mais ordena todas as coisas porque foi limitado a
uma fé para a igreja, em vez de uma fé para o mundo e para cada
esfera da vida e pensamento. Cessou de ser universal ou católico.
Ora, catolicidade não significa controle, mas a universalidade da
relevância total e eficaz. Um Cristo limitado simplesmente não é o
Cristo.
João Calvino buscou restaurar a catolicidade à fé. Conforme
notou C. Gregg Singer, “Calvino encontrou nas Escrituras o único
remédio adequado para o dilema humano”.[140] Frequentemente se
levanta a acusação de bibliolatria contra Calvino e seus sucessores,
justamente porque, para eles, a Bíblia é a norma. Em contraposição
à palavra do homem, o calvinismo afirma a palavra de Deus.
Segundo ainda Singer, os problemas enfrentados pela sociologia
moderna existem “simplesmente porque a América moderna
negligenciou os princípios bíblicos básicos que Deus concedeu para
a orientação de seu povo”.[141] Calvino afirmava que, uma vez que
Deus é Deus, todos os homens estão sob a disciplina de sua lei
moral.[142] O reformador considerava cada aspecto da fé como de
grande importância. Por exemplo, considerava com tamanha
seriedade a virtude da hospitalidade, que recebia com alegria
estrangeiros que passavam por Genebra.[143] Trata-se de um
aspecto da vida de Calvino que não devemos esquecer. Quando
jovem, Calvino deixou Noyon em direção a Paris, colocando sua
própria vida em risco, a fim de encontrar-se com Serveto na
esperança de convertê-lo. Serveto faltou ao encontro marcado.
Anos depois, quando Serveto estava preso, Calvino lhe lembrou
desse episódio.[144]
Para Calvino, a realeza de Cristo sobre todas as coisas era
mais que um simples título. Num comentário a Isaías 9.6 (“e o
governo estará sobre seus ombros”), Calvino escreveu:
Ele, pois, mostra que o Messias será diferente dos reis
indolentes, os quais abandonam negócios e cuidados e
vivem em seu ócio; pois ele será apto a carregar o fardo.
Assim ele assevera a superioridade e grandeza de seu
governo, porque, por seu próprio poder, Cristo granjeará
para si homenagem e cumprirá seu ofício, não só com as
pontas de seus dedos, mas com sua força total.[145]
A realeza de Cristo é uma regra de ação. O cristão é chamado
a estender o alcance do Reino para cada domínio. A Igreja Primitiva
e medieval governava a educação, caridade, dentre outras áreas.
Na época de Calvino, as cidades haviam invadido essas esferas,
tomando a posse de hospitais, orfanatos e que tais. Uma situação
semelhante se dava também em Genebra. Com a ajuda do Concílio,
mas não raro também sem ela, Calvino promoveu um ministério
completo para as necessidades humanas. Diáconos eram
delegados a esses deveres, sendo os hospitais uma das áreas mais
importantes. Ora, naquele tempo o hospital servia de abrigo a
peregrinos, órfãos, idosos pobres, enfermos e outros. O alívio aos
pobres incluía tanto os que estavam dentro quanto os que se
encontravam fora do hospital. Criavam-se trabalhos para os pobres
saudáveis, que tinham de trabalhar para receber ajuda. Na época, o
problema da vadiagem na Europa era gravíssimo, uma vez que a
peste e a guerra haviam destruído os antigos padrões de vida. De
acordo com Calvino, o cuidado para com os pobres fazia-se
necessário, pois se tratava de um dever cristão. Vejamos dois
relatos sobre a liturgia reformada e sua ênfase nas esmolas:
(1551) Ele finaliza seu sermão, tendo este durado uma hora, e, após fazer
uma oração, conclui. E a primeira coisa que faz em seguida é admoestar a
congregação, indaga se há razões dignas ou necessárias — se há
certamente matrimônios e batismos, se há algum pobre ou enfermo que se
apresenta para a oração da igreja, e demais coisas do gênero.
Nesse ínterim, dois diáconos percorrem toda a igreja pedindo para cada
pessoa esmolas para o benefício dos pobres, mas o fazem em silêncio, a fim
de que não se perturbe as orações. Assim, estendem à frente dos olhos de
cada pessoa uma pequena sacola pendura num longo bastão. E eles (os
diáconos) postam-se à porta da igreja, para que os que estiveram
inteiramente concentrados nas orações e não contribuíram possam então
dar suas esmolas ao saírem.[146]

Outro relato dá-nos uma impressão semelhante da importância


da caridade no culto calvinista:
Assim, tendo-se cantado um salmo, toda a igreja era dispensada em paz
pelo pregado, com as palavras de estima aos pobres e a bênção, conforme
se segue: “Lembrai-vos dos pobres e que eles, por sua vez, orem uns pelos
outros. E que Deus possa ter misericórdia de vós e vos abençoar. Que o
Senhor faça resplandecer o rosto sobre vós, para a glória de seu santo
nome, e vos mantenha em sua santa e salvadora paz. Amém”.
Quando, porém, essas coisas são ditas pelo pregador, os diáconos, de
acordo com seus turnos, postam-se em ordem nas portas da igreja, e após a
igreja ser dispensada, eles diligentemente coletam esmolas nas portas da
igreja e imediatamente registram tudo que coletaram, na própria igreja.
Ademais, isso também era costumeiramente e sempre observado em todas
as reuniões da igreja.[147]

A importância da sentença final não pode ser suficientemente


enfatizada: “isso também era costumeiramente e sempre observado
em todas as reuniões da igreja”. A preocupação caridosa um pelo
outro caracterizava todos os encontros da igreja. De modo bastante
óbvio, a vida da fé e a vida da igreja significava exatamente o que
Paulo disse em Efésios 4.25: “porque somos membros uns dos
outros”.
Esse é um aspecto do pensamento de Calvino, assim como
das igrejas reformadas naqueles tempos e nos que se seguiram,
sobre o qual raramente ouvimos. A negligência, porém, em enfatizar
esse aspecto do calvinismo implica uma má compreensão dele. Não
era somente uma doutrina: era fé e vida inseparavelmente ligadas.
O próprio Calvino respondeu à questão “Quais são as igrejas
reformadas?” com estas palavras:
Queremos demonstrar que há reforma entre nós? Devemos começar por
este ponto, a saber, que é preciso haver pastores que apresentem, pura, a
doutrina da salvação, e depois diáconos que cuidem dos pobres.[148]

Escutamos, rotineiramente, que a definição reformada de uma


verdadeira igreja é aquela em que a palavra é fielmente pregada, os
sacramentos são corretamente administrados e a verdadeira
disciplina é aplicada. Tudo isso tem sim seu lugar, mas Calvino deu
uma definição intensamente prática:
Vimos, nesta manhã, qual é posição discutida por São Paulo aqui, isto é,
acerca daqueles que, na Igreja Primitiva, eram responsáveis por distribuir as
esmolas. É certo que Deus deseja que essa regra seja observada em sua
igreja, a saber, que haja cuidado para com os pobres — e não apenas que
cada um, particularmente, ajude os pobres, mas que haja um ofício público,
pessoas ordenadas para cuidar daqueles que se encontram em
necessidades, para que as coisas sejam conduzidas como convém. E caso
não se leve isso a cabo, é certo que não podemos nos gloriar de termos uma
igreja bem-ordenada e de acordo com o evangelho, havendo, pelo contrário,
somente desordem.[149]

Fez-se dos atos de caridades um aspecto fundamental do


culto. Calvino via tanto a igreja quanto o Estado sob a realeza de
Cristo. Ele não menosprezava coisas materiais como as esmolas.
Ele afirmava: “Disso também concluímos que nenhuma forma de
vida é mais digna de louvor perante Deus que a vida que gera
utilidade a sociedade”[150]. Nas palavras de Mckee, “Calvino vai
ainda mais longe que Lutero, na medida em que sua visão inclui a
restauração e renovação de toda a ordem criada como seu
objetivo”.[151] É verdade que os cinco pontos do calvinismo
sumarizam uma doutrina de grande importância para Calvino. É
também verdade que se pode encontrar as três marcas da igreja em
Calvino. De todo modo, esses elementos nos darão um sumário
distorcido do calvinismo, caso negligenciemos a grande relevância,
para Calvino, da caridade cristã, de sermos membros uns dos
outros. Discutir Calvino referir-se à sua ênfase no diaconato é como
descrever a Suíça sem jamais fazer referência aos Alpes. Pode ser
inteiramente precisa, no entanto continuará sendo falsa.
Vimos como Boccaccio substituiu a realidade pela aparência.
Essa tornou-se a visão da Renascença, e também se faz de modo
bastante claro na obra O Cortesão, de Baldassare Castiglione. A
perspectiva de Calvino era um retorno singelo e claro à realidade.
Nem o ímpio nem o beato se contentam com essa visão; no entanto,
quem com isso perde terrivelmente são eles.
1
25. GOVERNO E DIACONATO
(Publicado originalmente em Chalcedon Report, janeiro de 1995)

Ao longo dos anos, repetidas vezes enfatizei o fato de que é


perigoso e potencialmente totalitário tratar do Estado como sendo o
governo. A palavra governo significa várias coisas. Para nós, deve
implicar primariamente o autogoverno do homem cristão como a
primeira e fundamental esfera do governo. Se um homem não se
autogoverna, então todas as demais esferas de governo serão
pervertidas. A segunda esfera é a família, e sua importância nas
Escrituras é evidente do início ao fim. A família é, de fato, o grande
berçário e arena de treinamento para todas as esferas de governo,
incluindo especialmente o autogoverno. Em terceiro lugar, a igreja é
um governo e, assim como a família, é designada por Deus. Em
quarto lugar, a escola é um governo, tal como, em quinto lugar, a
nossa vocação o é, a qual nos governa diariamente. Em sexto lugar,
uma diversidade de organizações privadas, relacionamentos
comunitários, redes pessoais e familiares — todas elas nos
governam. Daí, em sétimo lugar, o Estado é um governo, uma forma
dentre muitos. No mundo anglófono, e aqui nos Estados Unidos por
gerações, referia-se a ele como o governo civil, não como o governo
per se.
Essas esferas do governo são, em sua plenitude, um produto
do cristianismo. Na maior parte do mundo, a religião tem sido
controlada pelo Estado, como um seu departamento. Por exemplo,
Roma não permitia uma religião ou deus não autorizado. O Senado
romano podia fazer e desfazer deuses. Grupos, organizações ou
reuniões não autorizadas não eram permitidas. O Islão vê o Estado
como a verdadeira igreja, e muitos outros movimentos o fazem. A
divisão da vida em esferas dependentes e interativas é um aspecto
da fé bíblica, com profundas raízes no Antigo Testamento.
A perspectiva bíblica é alcandorada em razão do dízimo e do
tributo. De acordo com Números 18.25-26, os levitas deveriam
receber o dízimo e em seguida ofertar a décima parte do dízimo aos
sacerdotes. O cuidado do santuário e sua música era
responsabilidade dos levitas, assim como a saúde, educação e
caridade. Os diáconos na Igreja Primitiva eram chamados levitas
porque áreas semelhantes estavam sob seu governo. A taxa civil,
chamada de resgate ou taxa de propiciação, era de metade de um
siclo, o mesmo valor para todos os indivíduos do sexo masculino
acima de vinte anos. Adentrando bem na era medieval, quando não
posteriormente, essa taxa era coletada entre os judeus para
propósitos civis (Êxodo 30.11-16). O que isso nos diz é que nem a
igreja nem o Estado deveriam ser, sob a lei de Deus, uma instituição
poderosa comandando a sociedade. Os levitas, posteriormente os
diáconos, tinham deveres mais extensivos e difusos. Não eram uma
instituição centralizada, mas ministros locais da graça e misericórdia
de Deus.
O padrão é bastante claro: um alto nível de descentralização,
com uma forte ênfase no indivíduo e sua família para governar em
suas esferas e providenciar o apoio necessário para permitir os
levitas (ou os diáconos e seu cooperadores) a ministrar em nome de
Deus.
Deparamo-nos pela primeira vez com os diáconos no Novo
Testamento, em Atos 6. A Igreja Primitiva praticava o cuidado bíblico
para com os necessitados em suas fileiras. O trabalho tornou-se
demasiado para os apóstolos, e assim sete diáconos foram
escolhidos. Os deveres levíticos foram então dados para uma nova
ordem de levitas. Esses diáconos não apenas se importavam com
as viúvas, mas também ensinavam — e em Atos 7 vemos Estevão
como um poderoso mestre da fé. Em Filipenses 1.1, Paulo dirige-se
“Paulo e Timóteo, servos de Cristo Jesus, a todos os santos em
Cristo Jesus, inclusive bispos e diáconos que vivem em Filipos”. Os
diáconos eram claramente importantes na obra do Senhor. Em 1
Timóteo 3.10-13, vemos quão semelhantes são os requisitos para
diáconos e bispos ou presbíteros:
Também sejam estes primeiramente experimentados; e, se se mostrarem
irrepreensíveis, exerçam o diaconato. Da mesma sorte, quanto a mulheres, é
necessário que sejam elas respeitáveis, não maldizentes, temperantes e fiéis
em tudo. O diácono seja marido de uma só mulher e governe bem seus
filhos e a própria casa. Pois os que desempenharem bem o diaconato
alcançam para si mesmos justa preeminência e muita intrepidez na fé em
Cristo Jesus.

Provavelmente um dos melhores resumo sobre os diáconos


dos primeiros séculos é este que nos foi dado por Schaff:
O ofício desses diáconos, de acordo com a narrativa em Atos, era ministrar
na mesa nas festas do amor diárias e atender às necessidades dos pobres e
enfermos. As igrejas primitivas eram sociedades de caridade: cuidavam das
viúvas e órfãos, concediam hospitalidade aos estrangeiros e aliviavam as
necessidades dos pobres. Os presbíteros eram os curadores dos fundos de
caridade, e os diáconos, seus coletores e distribuidores. Certo cuidado
pastoral para com almas se ligava muito naturalmente a essas obras, já que
a pobreza e a enfermidade possibilitavam as melhores ocasiões e a
demanda extremamente urgente de prover instrução e consolação. Daí, uma
fé viva e conduta exemplar eram qualificações necessárias para o ofício de
diácono.
Dois diáconos de Jerusalém, Estevão e Filipe, trabalhavam também como
pregadores e evangelistas, mas mais no exercício de um dom pessoal que
de um dever oficial.
Nos tempos pós-apostólicos, quando se passou a elevar o bispo acima do
presbítero, e este tornou-se o padre, o diácono foi considerado como levita,
e sua função primordial de cuidado para com os pobres se perdeu em razão
de sua tarefa de assistência ao padre nas partes subordinadas do culto
público e na administração dos sacramentos. O diaconato tornou-se a
primeira das três ordens do ministério e o primeiro degrau do sacerdócio. Ao
mesmo tempo, o diácono, estando próximo ao bispo enquanto seu agente e
mensageiro, adquiriu vantagem sobre o padre.[152]

Não há uma história unânime para o diaconato, mas há um


fato nela que merece tanto atenção quanto retomada. Assim como o
chamado do presbítero é um ministro em tempo integral, também o
serviço diaconal exige um compromisso integral. Conforme trabalha
no revigoramento e fortalecimento do diaconato, transformando-o
numa vocação para os que a ele foram chamados, a igreja cresce e
a sociedade torna-se solidamente cristianizada. Dificilmente há algo
mais claro em Atos que o fato de que sete diáconos não eram
trabalhadores em parte do tempo, mas servos em tempo integral de
Cristo. Os levitas cristãos eram a graça e misericórdia atuantes do
Reino de Cristo. Os diáconos demonstravam claramente que o
Reino de Cristo é de fato um governo. As obras de caridade
realizadas pelos diáconos eram um contraste nítido ao custo e
maligno assistencialismo de Roma. Por vezes, isso fazia dos
diáconos um alvo especial de perseguição, já que seu trabalho não
apenas manifestava o governo régio de Cristo, mas também sua
graça e misericórdia.
Enfrentamos hoje o colapso iminente do Estado de bem-estar
e seus programas, todos os quais contribuíram na destruição dos
beneficiários do assistencialismo. Uma vez que nossa “Roma
moderna” enfrenta a ruína, precisamos reviver o diaconato em seu
chamado santo e necessário.
Tudo isso leva a uma direção e a uma conclusão: Devemos
retirar o governo do Estado e restaurá-lo a Jesus Cristo. O governo
em cada esfera da vida e pensamento deve estar e estará sobre
seus ombros (Isaías 9.6). Uma vez que ele é o “bendito e único
Soberano, o Rei dos reis e Senhor dos senhores” (1 Timóteo 6.15),
nada pode afastá-lo de seu governo. Ele disse: “Jesus,
aproximando-se, falou-lhes, dizendo: Toda a autoridade me foi dada
no céu e na terra” (Mateus 28.18); assim, acho desconcertante que
líderes eclesiásticos que professam crer na Bíblia prefiram antes
seu partido político que o Cristo e a lei de Deus.
A igreja confundiu culto com cristianismo. Ora, a igreja será um
lugar inóspito, caso não seja mais que um centro de adoração. Deve
ser um centro de treinamento, o acampamento do exército de Deus,
onde o povo de Cristo é preparado para exercer domínio nas
esferas da vida que os cercam.
Uma carta que recebi dias atrás da parte de um jovem do
extremo Sul do país levanta uma questão crítica para nossa época.
Em certo trecho ele escreve:
Tenho um companheiro de quarto que defende uma visão escatológica,
segundo a qual o dispensacionalismo pré-tribulacionista é comprovadamente
a única sequência de eventos em conformidade às Escrituras.
Comentei que eu era um reconstrucionista pós-milenista da escola
agostiniana de ensino, que entendia que a igreja de Jesus Cristo
prevaleceria no tempo concreto. Não creio num arrebatamento antes da
tribulação.
Meu colega de quarto disse que eu era um herege, e que todos os pós-
milenistas são hereges. O senhor teria um conselho para mim? Ele também
disse que um cristão professo não precisa levar uma vida santa para ser
salvo. Ele apenas faz uma profissão de fé em determinado momento e é
tomado pelo Espírito Santo, sendo salvo simplesmente de um momento a
outro. Qual é sua opinião sobre isso?[153]
Esse tipo de pensamento é lugar-comum. Lamentavelmente
muitos indivíduos, que não são arminianos nem pré-milenistas
dispensacionalistas, passaram a crer que uma simples confissão de
fé sela um comprometimento da parte de Deus, mas não da parte
deles próprios. Essas posições podem apelar à Bíblia, mas não são
governadas pela palavra de Deus.
Nos primeiros parágrafos chamei atenção para o fato de que,
hoje em dia, identificamos equivocadamente governo e Estado ou
governo civil. Por vezes, ao longo dos séculos, a igreja, ou parte
dela, buscou identificar governo com Estado. Se Isaías 9.6, Mateus
28.18 e vários outros textos estão corretos, devemos identificar
governo com nosso Senhor Jesus Cristo. Ele é Sacerdote, Profeta e
Rei.
Como nosso Sumo Sacerdote, ele fez expiação por nós,
intercede a nosso favor e ora por nós. Como o grande Profeta, ele
proclama a palavra límpida e infalível de Deus a nós. Como Rei, é
nosso governante e legislador. Se buscarmos em outra parte por
qualquer uma dessas coisas, somos infiéis, porque outros senhores
terão portanto domínio sobre nós (Isaías 26.13).
Quando outros senhores têm domínios sobre nós, o Senhor
Deus entrega-nos em cativeiro a nossos inimigos. Ele não
defenderá nem abençoará aqueles que não o têm como seu Rei. É
por isso que estamos nessa situação. A pergunta então é: “agora,
pois, por que vos calais e não fazeis voltar o rei?” (2 Samuel 19.10).
1
26. CARIDADE E ESTADO

Anos atrás, estava num jantar para pastores e padres,


convidados para terem a oportunidade de ouvir um economista
internacionalmente reconhecido. A conversa de mesa habitualmente
animada que precedia a fala da noite dizia respeito a questões
eclesiásticas. Um padre dizia que um fato bastante conhecido entre
os padres era que ninguém jamais confessava o pecado da
avareza. Ele ria-se disso, e outros também faziam observações
semelhantes a essa, todas muito verdadeiras. Ouvi inúmeros leigos
dizerem que o clero é ávido por dinheiro e faz mau uso dos fundos
recebidos. Mas quando perguntava: “se te deram uma lista de
igrejas de notável responsabilidade fiscal e de causas cristãs, tu
doarás?”, eles se irritavam com a pergunta. A avareza os governa.
Hoje em dia, em meados dos anos 1990, nos é dito que a
doação, por parte de americanos, para todos os tipos de causa gira
em torno de 2% ou 3% de suas rendas — obviamente não é um
dízimo. Caso se diga que essa estimativa inclui tanto cristãos
quanto não cristãos, resta ainda o fato de que a doação de não
cristãos para causas humanistas rivalizam perfeitamente com a
doação cristã. Os cristãos não estão dispostos a meter a mão no
bolso para fundear aquilo que tanto alardeiam. A retirada cristã em
relação à igreja é uma das catástrofes da história.
As igrejas, ademais, tornaram-se essencialmente socialistas,
em vez de cristãs. Sucessivas áreas foram entregues ao Estado. A
lei de Deus exige que seu povo governe por meio da educação,
provisões para saúde, obras de caridade, dentre outras coisas. A
entrega dessas áreas ao Estado tem se dado de modo inexorável e
revolucionário. O pietismo e arminianismo foram as forças motrizes
na capitulação da igreja; e o desejo por poder, um aspecto da
motivação do Estado.
Pode-se (aliás, deve-se) dizer que muitas vezes as caridades
cristãs continuadas foram mantidas por fundos estatistas. William
Tucker, dentre outros, chamou atenção para o fato de que várias
causas cristãs dependem imensamente de apoio financeiro do
Estado. Obras de caridade católicas constituem a maior organização
não-lucrativa nos Estados Unidos. Em 1993, de seu orçamento de
US$ 1.9 bilhão, US$ 1.2 bilhão (65% do total) veio de fontes
estatistas. O Volunteers of America arrecadou US$ 25 milhões, mas
recebeu US$ 198 milhões (ou 65% de seu orçamento de US$ 298
milhões) de contratos municipais, estaduais e federais. De acordo
com o Non-Profit Times, em 1993, relatou Tucker, as cem maiores
organizações não-lucrativas receberam 72% de sua renda de fontes
estatistas. O Lutheran Social Ministries [Ministérios Sociais
Luteranos] não se qualificaram para a lista do Non-Profit Times
porque não arrecadarem sequer 10% de ofertas para caridade;
receberam portanto 92% de seus fundos das mãos do Estado. De
todas as organizações eximidas de impostos, hospitais, colégios e
outros grupos religiosos, o que totaliza aproximadamente um milhão
de grupos, cerca de 550.000 deles são institutos de caridade. Eles
arrecadaram em média US$ 100 bilhões em bens e serviços em
1993; desse montante, US$ 50 bilhões vieram de indivíduos, US$
10 bilhões de corporações, fundações e doações, e outros US$ 40
bilhões primariamente de fontes estatistas. Esses grupos se opõem
a alterações para equilíbrio dos orçamentos. Nem todos as
organizações não-lucrativas aceitaram fundos do Estado. Alguns
grupos maiores listados por Tucker incluem o Shriners Hospitals for
Crippled Children, o United Jewish Appeal, YMCA dos Estados
Unidos, a American Cancer Society, Christian Children’s Fund,
National Benevolent Association Christian Church, Muscular
Dystrophy Association, e o United Negro College Fund.[154]
O Estado também, muito frequentemente, se mostrou pronto a
fazer o que a igreja, com indiferença, negligenciou. Os resultados
foram seriamente prejudicados. Bogdanovich demonstrou o que
hospitais estatistas, privados e religiosos fizeram a fim de defraudar
agências estatais monetárias.[155]
O crescimento do poder estatista na saúde, educação e
assistencialismo foi marcado por um retraimento dos cristãos
nesses setores. Isso permitiu que o Estado adentrasse, em revelia,
na área central do poder da sociedade, isto é, a família. O controle
da família implica controle sobre toda a sociedade. A igreja não
pode ser forte onde a família é fraca. A decadência da família e da
igreja é a ruína da sociedade.
Queixas quanto ao crescente poder do Estado são cada vez
mais evidentes. São bem fundamentadas, mas são falaciosas na
medida em que são simples queixas, e não ação remediadora. O
poder de alterar a sociedade está essencialmente nas mãos das
pessoas, mas trata-se de uma grave falácia presumir que o poder
primário possuído pelo povo é o voto, a agitação, protestos,
demonstrações ou que tais. Como unidade constituinte e mais
importante na sociedade, é a pessoa que mais pode alterá-la ao
transformar a si própria, governando sua família, dizimando,
estabelecendo ou auxiliando agências cristãs independentes na
sociedade, e assim por diante.
O Estado reflete mudanças passadas, não as presentes.
Assenta-se na anuência (ou indiferença) pública, e uma vez que se
vê governado, no século XX, pela opinião pública, desloca-se
comumente com uma vagarosidade glacial.
O ex-Procurador-Geral dos Estados Unidos, Herbert Brownell,
numa entrevista logo após a Segunda Guerra Mundial, disse que
“todas as grandes melhorias administrativas em Nova York nos
últimos anos vieram por meio dos esforços de leigos. Cidadãos
pressionaram juízes e juristas a promoverem mudanças... É preciso
que seja leigos. São eles as pessoas que são prejudicadas pela má
atuação das cortes”.[156] As mazelas da sociedade afetam
principalmente o povo, e é ele que deve corrigi-los.
Isso significa que o ponto de partida para toda reforma é o
indivíduo e seu relacionamento com o Deus triúno. O antigo
provérbio ainda é válido: Não se pode fazer um bom omelete com
bons ovos; nem se pode estabelecer uma boa sociedade sobre
pessoas más. Esperar que uma sociedade seja moral quando é
constituída de pessoas imorais é uma ilusão, uma das maiores do
século XX.
Uma das grandes mudanças — uma mudança revolucionária
— se deu no princípio do século XX. Suas origens datam do
iluminismo, mas, nos Estados Unidos, tornou-se claramente
manifesta nos anos 1920, tendo os educadores imensa parte nisso.
De acordo com Robert Nisbet, a igreja foi certa feita “a base
institucional mais amplamente aceita para a reforma da sociedade”;
porém, educadores, cientistas sociais e filósofos, a partir da década
de 1920, colocaram “ênfase total no Estado nacional” enquanto
agência central. John Dewey exerceu grande influência nessa
mudança. Segundo sua escola de pensamento, “o Estado seria o
herói incansável do povo, opondo-se às variadas facções dos
negócios, religião e política habitual”.[157] Em nossa época, a lei
estatista, humanista, é vista “como a força mais potente para a
mudança social por ora imaginável”.[158]
Uma faceta importantíssima dessa mudança foi a erosão da
moralidade e autoridade. A lei transcendente e imutável de Deus foi
negada. A lei estatista, por sua vez, muda diariamente. Ninguém é
hoje capaz de conhecer toda a lei e suas ramificações. O resultado
é a ascensão da anarquia, sendo a deterioração da lei fundamental
para isso. Estamos novamente numa era comparável àquela dos
juízes hebreus, quando Deus foi rejeitado como Rei, e “cada um
fazia o que achava mais reto” (Juízes 21.25).
Apenas aqueles que viveram na era do New Deal e do
Presidente Franklin Delano Roosevelt podem estimar a intensidade
com que se mostrou uma figura messiânica. Criticá-lo era atrair para
si a hostilidade e mesmo agressões físicas de outros estudantes, e,
da parte de professores, a acusação de que se era rico, um
“monarquista econômico”!
Nisbet destacou Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) como “o
homem do momento” na história americana do século XX.
Rousseau, que declarou Platão como seu maior mestre, “transferiu,
por assim dizer, a graça do corpo da igreja para o corpo do Estado
— o Estado baseado no contrato social e na vontade geral”.[159]
Rousseau, em O contrato social, com efeito conclamou a
divinização do Estado como nova fonte de graça e lei, já que,
segundo sustentava, “haveria necessidade de deuses para dar leis
aos homens”.[160] O Legislador é, portanto, um “homem
extraordinário” no Estado.[161] Daí a afirmação de Rousseau:
Quem ousa empreender a instituição de um povo deve sentir-se capaz de
mudar, por assim dizer, a natureza humana; de transformar cada indivíduo
que, por si mesmo, é um todo perfeito e solidário em parte de um todo maior,
do qual esse indivíduo recebe, de certa forma, sua vida e seu ser; de alterar
a constituição do homem para fortalecê-la; de substituir por uma exigência
parcial e moral a excelência física e independente que todos recebemos da
natureza. Deve, numa palavra, arrebatar ao homem suas próprias forças
para lhe dar outras que lhe sejam estranhas e das quais não possa fazer uso
sem o auxílio de outrem. Quanto mais mortas e aniquiladas são as forças
naturais, mais as adquiridas são grandes e duradouras, e na mesma
proporção a instituição é sólida e perfeita. De sorte que, quando cada
cidadão nada é e nada pode senão com todos os outros, e quando a força
adquirida pelo todo é igual ou superior à soma das forças naturais de todos
os indivíduos, pode dizer-se que a legislação está no mais alto grau de
perfeição a que pode chegar.[162]

É uma declaração notável sobre o Estado como o novo deus.


Rousseau, um nativo de Genebra, que certa feita fora lar de Calvino,
sabia que a conversão significa refazer a natureza humana a partir
de seu estado caído em Adão para uma nova criação no último
Adão, Jesus Cristo (1 Coríntios 15.45-50). “Mudar, por assim dizer, a
própria substância da natureza humana” era um ato de graça divino
aos olhos de Rousseau; agora, é um ato do Estado. Rousseau
substituiu a membresia na nova raça humana em Cristo pela
membresia no Estado moderno. Em Cristo, o velho homem em nós,
o Adão caído, deve morrer para dar lugar ao novo homem. Para
Rousseau, é preciso que haja, do início ao fim, “(cada vez mais)
mortas e aniquiladas… as forças naturais (do ser humano)” a fim de
de fazê-lo realmente um bom cidadão de sua comunidade. Em si
mesmo, o homem “não é nada”; somente no Estado, no contrato
social, ele pode ser algo.
O que para a comunidade cristã, em seus atos de misericórdia
e caridade, era uma expressão de graça é, no Estado, um aspecto
da vida da burocracia. A caridade cristã é um ato pessoal: o
assistencialismo estatista é impessoal e burocrático.
Há um aspecto central nesse problema. Nas Escrituras, o
problema fundamental do ser humano é o pecado original, a
vontade de ser seu próprio deus, “conhecendo” ou determinado por
si próprio o bem e o mal, o certo e o errado, a lei e a moralidade
(Gênesis 3.5). Esse é não apenas o significado do pecado, mas
também da insanidade. Na insanidade, a vontade própria toma
posse de tudo e predomina o desejo de realizar seus próprios
desejos. O “seja feita minha vontade” torna-se lei. A insanidade,
assim como o pecado, insiste em substituir a realidade com os
devaneios e desejos do indivíduo.
O Estado moderno vê a si mesmo como o salvador do homem,
como agência capaz de solucionar os problemas em várias esferas
da vida humana. Suas falhas são vistas como ensaios e degraus
rumo à verdade ou solução dos problemas. O crescimento do
Estado se dá em relação a ilusões e autoenganos conforme suas
respostas aos problemas somente criam problemas ainda maiores.
A proliferação das respostas estatistas leva a um aumento de novos
problemas e à inquietação social. O Estado de bem-estar torna-se a
fonte de aborto e eutanásia legalizados. Quanto mais o Estado
moderno peca, mais virtuoso se sente, já que está transgredindo a
lei do antigo Deus. Nisso, assemelha-se a Victor Hugo, que certa
vez escreveu numa carta a Victor Pavie, em 25 de julho de 1833:
Neste ano cometi mais transgressões que nunca, e jamais fui tão boa
pessoa. Sou muito melhor agora que em meus dias de inocência, dos quais
sinto imensa falta. Antes era inocente; agora sou indulgente. É um
progresso, Deus o sabe. Ao meu lado está minha querida e doce companhia,
um anjo que também sabe disso, a quem tu veneras como eu venero, e que
me perdoa e me ama. Amor e perdão, pertencem não ao homem mas a
Deus — ou à mulher.[163]

Em mais de um modo, Victor Hugo refletiu a mentalidade


moderna.
1
27. A REVOLUÇÃO HUMANISTA

Em 1973, John D. Rockefeller III publicou seu livro The Second


American Revolution, Some Personal Observations [A Segunda
Revolução Americana, algumas observações pessoais]. A
revolução, no caso, era do cristianismo ao humanismo enquanto
base da cultura americana. É claro, Rockefeller evitou qualquer
referência ao judaísmo ortodoxo ou ao cristianismo bíblico, exceto
uma bastante vaga. Obviamente, também, ele rejeitou a ideia da
determinação, por Deus, de todas as coisas. “A história não é
predeterminada por um padrão aleatório ou força desconhecida.
Antes, será determinada por nós.”[164] Trata-se de uma conclusão
lógica da parte de Rockefeller, dadas suas premissas inteiramente
humanistas. Entre Deus e homem, ele claramente opta pelo último e
não deseja ter parte com o Deus bíblico.
Suas premissas são claramente apresentadas. Primeiramente,
“somos todos membros da mesma família humana”.[165]
Aparentemente é um fato óbvio, mas devemos entendê-lo no
contexto. A fé de Rockefeller não está em Deus, mas no homem,
nas pessoas.[166] A visão bíblica é que há duas raças na terra, dois
tipos de pessoas: de um lado, a antiga raça humana caída, nascida
de Adão, pecaminosa e em guerra contra Deus, e, de outro, a nova
humanidade nascida novamente no último Adão, Jesus Cristo. A
visão de Rockefeller, no entanto, implica que o homem não é criado
por Deus, mas evoluiu e é um “animal social”.[167] Uma vez que,
para Rockefeller, não há Queda, os seres humanos manifestam por
toda parte sua boa vontade.
Assim, em segundo lugar, graças ao humanismo, valores
novos e superiores estão surgindo. Incluem uma visão positiva da
natureza. Isso também é bastante lógica: se Deus é relegado, a
fonte humana para valores positivos será ou a natureza ou o próprio
ser humano. À vista disso, Rockefeller vê como um valor emergente
“uma visão positiva da natureza humana”. O homem é visto como
inerentemente bom ao invés de mau. Se adotarmos essa visão
positiva, isso “encorajará a emergência dessa bondade inerente”.
Em seguida, “um senso de comunidade” é um dos novos valores,
baseado no fato de o homem ser um animal social. Individualidade,
liberdade e igualdade são também citadas. Rockefeller é
deleitosamente ignorante da obra A Democracia da América, de
Tocqueville, e sua tese de que a igualdade destrói a liberdade e
individualidade. Em seguida, no livro de Rockefeller, vem a
democracia, a responsabilidade social e “autoridade de status em
perspectiva”. Seus comentários refletem seu isolamento do mundo
real de Nova York. Mais adiante, cita como valores emergentes o
“materialismo em perspectiva” e “uma visão positiva de trabalho”.
Acaso a sociedade cristã carecia desses elementos anteriormente?
A ética do trabalho não declinou com a ascensão do humanismo?
Outro valor emergente é uma “visão positiva da sexualidade”.
Não se faz nenhuma associação entre moralidade e sexualidade.
No momento em que Rockefeller escrevia, “a revolução sexual”
estava já em progresso; tratava-se pois de um valor emergente?
Subsequentemente ele cita “a interdependência do homem”. Com
isso ele não se refere à comunidade cristã, mas uma ordem mundial
emergente.
“Uma consciência metafísica ou religiosa” como um valor
emergente refere-se às “religiões orientais, misticismo, percepção
extrassensorial, o oculto em geral e... o existencialismo e outras
filosofias transcendentais”, isto é, a tudo que não é cristão.[168]
Em terceiro lugar, a Segunda Revolução Americana dirige-se a
“uma sociedade generosa”.[169] É claro, a Segunda Revolução
Americana de Rockefeller levou a um decréscimo na doação para
caridade, mas o que ele tem em mente é o assistencialismo
estatista. O humanismo fez de nós uma sociedade rapace, e o
truque semântico não é capaz de obscurecer esse fato.
Não nos surpreende, portanto, que Rockefeller tenha um
capítulo sobre “A política do humanismo”. O humanismo é, para o
Estado de bem-estar, não a caridade — e não cria uma
comunidade, mas um Estado-potência. Rockefeller ficou orgulhoso
quando seu filho Jay entrou na política na Virgínia Ocidental. Suas
ideias são implicitamente socialistas, e ele fala favoravelmente de
uma “sociedade de planejamento”.[170] Sua obra ecoa todos os
mitos favoritos do humanismo, incluindo a superpopulação — uma
preocupação dos humanistas desde Platão até hoje. O mundo está
sempre superpopulado caso nele se encontram indivíduos que se
despreze. Os reformadores e revolucionários humanistas
eliminaram recorrentemente as pessoas que tinham como
indesejadas, frequentemente de modo bastante brutal.
O assistencialismo é um meio de subornar pessoas
potencialmente problemáticas. Seus objetivos não visam o bem das
pessoas, mas sim o bem do Estado dos líderes de sua elite. Como
resultado, o estatismo é anticaridade. A União Soviética considerava
a caridade contrarrevolucionária, pois fazia do cristianismo e sua
caridade a esperança do povo.
A revolução humanista é, portanto, enfaticamente contrária à
caridade. Visto que seu objetivo é o controle do ser humano e da
sociedade, é intolerante a todas influências que se opõem à sua
esperança. Ora, a realidade que se é chamado para o avanço do
Reino de Deus é fundamental ao cristianismo. É isso que tem
prioridade. Nas palavras de nosso Senhor, “buscai, pois, em
primeiro lugar, o seu reino e a sua justiça (ou retidão), e todas estas
coisas vos serão acrescentadas” (Mateus 6.33). A revolução
humanista de Rockefeller e outros trava uma guerra contra o
cristianismo, tal como as Revoluções Francesa e Russa, ou
qualquer outra revolução. Não podemos lidar com nosso mundo e
seus problemas, se não reconhecemos quem está em guerra contra
nós.
1
28. TRABALHO E CARIDADE

Parte considerável do pensamento moderno é regido por uma


ausência de pensamento sistemático; isso se aplica especialmente
aos líderes eclesiásticos e conservadores que preferem um
sortimento de ideias do tipo “salada-mista”. Os líderes eclesiásticos,
por exemplo, rotineiramente ab-rogam leis e doutrinas bíblicas que
lhes parecem suscetíveis de ofender a mente moderna (ou pós-
moderna). Essa rejeição do pensamento sólido marca notadamente
os chamados pós-modernos, dada a radicalidade de sua rejeição ao
sentido. Em última análise, rejeitar o sentido é rejeitar a vida; se a
vida e morte são igualmente absurdas, então a vida será rejeitada.
Dr. Thomas Schirrmacher, um líder cristão reconstrucionista e
acadêmico alemão, chamou atenção para um importante aspecto da
revelação bíblica. A Bíblia revela o Deus que trabalha, assinala
Schirrmacher de modo bastante impactante. O trabalho não é um
fardo nem uma maldição, embora Gênesis 3.17-19 nos diga que o
pecado do homem traz uma maldição a todas suas atividades, em
especial o trabalho, que deveria o esforço positivo do ser humano. O
indivíduo, ao trabalhar, está tanto obedece quanto imitando a Deus,
de modo que o trabalho é essencial ao bem-estar e progresso
humanos.
O Webster’s Second International Dictionary [Segundo
Dicionário Internacional Webster], versão integral, toma quase uma
página para definir trabalho, mas não se trata de uma definição
bíblica. O trabalho precede a queda do homem, não sendo portanto
um produto dela nem do pecado. No Jardim do Éden, o homem
tinha trabalho a fazer: cultivar, podar e guardar o Jardim, bem como
a tarefa científica de “nomear” ou classificar os animais (Gênesis
2.15, 20). O Jardim do Éden era uma área restrita em que o homem
deveria aprender como exercer domínio e subjugar a terra (Gênesis
1.26-28). O Éden era um projeto-piloto para a conversão de toda a
terra no Reino de Deus, mediante o serviço obediente do ser
humano ao Deus triúno.
Desde o princípio, portanto, o trabalho é uma função religiosa
e central. Por meio do trabalho, o homem deve transformar a terra
no reino glorioso que Deus exige que ela seja. É, pois, anticristão
considerar o trabalho como punição ou algo a ser evitado. Em 16 de
fevereiro de 1995, num banco em Angels Camp, Califórnia, vi um
homem, mais novo que eu, talvez com seus sessenta e sete anos,
usando um boné com estas palavras: “Morra de inveja, estou
aposentado”. Há não muito tempo, os homens iam às cortes para
abrir processos contra a aposentadoria compulsória.
Nas rebeliões estudantis dos anos 1960, os revolucionários da
Universidade da Califórnia, em Berkely, viam a necessidade de
trabalhar como uma conspiração capitalista e insistiam que um
mundo livre de trabalho era possível.
A fuga em relação ao trabalho é muitas vezes uma fuga em
relação a Deus e àquilo que ele exige de nós. Uma vez que o
homem deseja ser seu próprio deus (Gênesis 3.5), ele almeja um
mundo decretado em que sua própria palavra seja criativa e
determinativa. Dessa forma, a exigência de Paulo em 2
Tessalonicenses 3.10 é vista por muitos como brutalmente inumana
ao afirmar: “Porque, quando ainda convosco, vos ordenamos isto:
se alguém não quer trabalhar, também não coma”.
Trata-se de uma condição, em primeiro lugar, que nenhuma
pessoa capaz de trabalhar viva da caridade alheia. Roma foi o
grande império antigo, e Paulo era seu cidadão. Mas a riqueza
romana estava sendo paulatinamente erodida por seu
assistencialismo. “Pão e circo” era a ordem do dia. Em segundo
lugar, uma vez que as Escrituras declaram que o trabalho é
designado por Deus, sendo também um chamado dele e nele, a
recusa ao trabalho é um ato de rebelião religiosa contra a ordem
divina; não se trata consequentemente de uma questão leviana. O
trabalho é também bastante fundamental à ordem de Deus para o
ser humano, para que o homem venha a evitá-lo ou menosprezá-lo.
Uma cultura que trata o trabalho como fardo, ou como algo a ser
evitado, é anticristã. Em terceiro lugar, o trabalho é essencial à
manutenção e avanço da sociedade: sem trabalho, sem futuro.
As Constituições apostólicas, datadas por volta do século IV,
mostram-nos a continuidade da exigência de São Paulo em 2
Tessalonicenses 3.10. No Livro 2, Seção 8, o título é: “Do dever de
trabalhar para o próprio sustento”.[171]
A atitude contrária ao trabalho era endêmica ao paganismo.
Paulo, em 1 Coríntios, diz-nos que alguns ou mesmo muitos na
igreja coríntia viam-se como reis, como fora e acima da lei em
Cristo, e como um povo superior ao trabalho. Paulo nos lhes conta
que trabalha com suas próprias mãos (1 Coríntios 4.8-13). Os
gnósticos, conforme suas ideias se desenvolviam, mostram-se
contrários ao trabalho, e considerava o Deus que trabalha como
sendo inferior ao seu deus ocioso.[172] A intensidade com que os
gnósticos se opunham ao trabalho é evidente na visão deles
apresentada em 1 Coríntios 4.12, quando Paulo fala de trabalhar
com suas próprias mãos. Os gnósticos afirmavam que Paulo, nesse
versículo, referia-se não ao trabalho manual, mas à masturbação.
[173]

Contra essa atitude, a posição bíblica enfatizava o trabalho e a


caridade. Juliano, o Apóstata, aprendeu com as perspectivas dos
judeus e cristãos e tentou reformar o paganismo em conformidade a
elas. Ele afirmava: “nenhum judeu jamais teve de mendigar, e os
ímpios galileus [cristãos] ajudam não apenas seus próprios pobres,
mas também os nossos”. [174] Tertuliano tratou sobre a virtude cristã
da caridade e a contrapôs ao assistencialismo romano, no qual o
beneficiário recebia as dádivas porque ameaça os homens e a
sociedade.
Mas para todos que me pedem, darei em nome da caridade, não sob
qualquer intimidação. Quem pede? Dizem-me. Mas aquele que usa da
intimidação não pede. O que ameaça se não recebe não suplica, mas
obriga. Não é por esmolas que procura, acerca-se não para que lhe
tenhamos comiseração, mas para ser temido. Darei, portanto, porque me
compadeço, não porque temo, quando o que é beneficiado honra a Deus e
retorna-me sua bênção; não quando, pelo contrário, ele crê que me fez um
favor e, contemplando o que pilhou, diz: “dinheiro para aliviar a consciência”.
[175]

Mas o assistencialismo moderno é muitas das vezes dinheiro


para alívio da consciência. Os pobres, merecendo-o ou não,
comumente tentam fazer com que possíveis doadores se sintam
culpados, de modo que essa forma de doação se torna uma espécie
de suborno. Os subsídios do assistencialismo são obtidos por vezes
mediante ameaças de revolta; e turbas de beneficiários por vezes
ensaiaram manifestação e invasões de escritórios políticos, como no
infame incidente no estado de Nova York, no escritório do
governador Nelson Rockefeller.
É verdade que pessoas podem abusar (e têm abusado) da
caridade cristão. O filósofo cínico Luciano, também satirista em
Roma, dá-nos um exemplo de um falso profeta cristão, Peregrino,
que explorava cristãos e viúvas ainda mais pobres ao passar-se por
homem martirizado em sua prisão.[176] Incidentes como esse são
um episódio relativamente pequeno quando comparados às
imensas decepções e fraudes na caridade estatista.
Voltando ao ensino de 2 Tessalonicenses 3.10, a ordem de
Paulo, segundo a qual os que não queriam trabalhar não deveriam
ser alimentados, tinha uma prescrição explícita contra alimentar
aqueles que se recusavam participar do mundo do trabalho e,
conforme tratou Tertuliano, desejavam viver por meio da intimidação
aos que trabalhavam. Nos escritos de Paulo está implícita a
exigência bíblica da caridade para viúvas e órfãos, e a todos
aqueles que, por uma ou outra razão válida, não conseguiam
encontrar trabalho ou eram incapazes de fazê-lo. Os que trabalham
têm, em primeiro lugar, um dever de recusar apoio e comida a
indivíduos deliberadamente ociosos; e, em segundo lugar, um dever
de ajudar, com seus recursos (sejam muitos ou poucos) obtidos na
labuta, a todos os realmente necessitados. Isso significa que tanto
os trabalhadores quanto os necessitados devem orientar-se para o
mundo do trabalho, cujo objetivo é uma sociedade cristã.
“A comunhão dos santos” é um artigo de fé. Uma versão
inglesa antiga do Credo dos Apóstolos traduzia o original por “a
sociedade dos santos”. O propósito da caridade bíblica é a criação
de uma sociedade piedosa. A maioria serão trabalhadores, mas a
sociedade necessariamente inclui também os necessitados.
No século I a.C., um sábio judeu chamado Shema’iah dizia
com bastante simplicidade: “O amor trabalha”.[177] A Igreja Primitiva
apegava-se a essa mesma premissa, conforme testifica Paulo. A
vantagem de uma cultura bíblica está em suas visões sobre trabalho
e caridade.
1
29. JUSTIÇA E CARIDADE

A palavra hebraica para justiça é a raiz comum para outros três


termos. “Tzaddik é uma pessoa reta; tsedek é a justiça no tribunal;
tsedakah é ‘caridade’”.[178] Uma vez que Deus é o Criador e
Legislador, em seu propósito e plano soberanos, o homem reto ou
justo, o tribunal de justiça e a caridade estão essencialmente
relacionados entre si.
Esses três conceitos revelam-se na lei de Deus. As leis
sabáticas, como a do descanso a cada sete anos, têm, como um de
seus propósitos, a caridade. De acordo com Êxodo 23.10-11:
Seis anos semearás a tua terra e recolherás os seus frutos; porém, no
sétimo ano, a deixarás descansar e não a cultivarás, para que os pobres do
teu povo achem o que comer, e do sobejo comam os animais do campo.
Assim farás com a tua vinha e com o teu olival.
O dízimo para os pobres e o cancelamento das dívidas
levavam os necessitados em consideração. As leis de caridade são
muitos. A totalidade da lei expressa a natureza de Deus, e a
mesmíssima coisa certamente se dá em relação às leis da caridade.
Se não praticamos a caridade, não temos fé, porque nesse caso
falhamos em reconhecer a graça, misericórdia e caridade de Deus
para conosco. Em Deuteronômio 10.16-19, é-nos dito:
Circuncidai, pois, o vosso coração e não mais endureçais a vossa cerviz.
Pois o Senhor, vosso Deus, é o Deus dos deuses e o Senhor dos senhores,
o Deus grande, poderoso e temível, que não faz acepção de pessoas, nem
aceita suborno; que faz justiça ao órfão e à viúva e ama o estrangeiro,
dando-lhe pão e vestes. Amai, pois, o estrangeiro, porque fostes
estrangeiros na terra do Egito.

A força dessa declaração não é prontamente clara, a menos


que entendamos que Deus diz que não somos como os egípcios,
que desprezam os povos estrangeiros e mais fracos. Deus, que é
onipotente e transcendente, não é somente temível em sua Pessoa;
antes, também se importa com as viúvas e órfãos e ama os
estrangeiros. “A caridade é um atributo do próprio Deus”.[179]

Uma mulher forte ou virtuosa é aquela que “abre a mão ao


aflito; e ainda a estende ao necessitado” (Provérbios 31.20). É
próprio do caráter de Deus ser caridoso, bem como dos homens e
mulheres que pertencem ao Senhor.

Ao longo dos séculos, judeus, com base na lei, cuidaram dos


pobres. Uma vez que, na era cristã, a antiga ordem desaparecera,
“gestores da caridade” em cada comunidade judia se encarregavam
de todas as necessidades. Eram análogos aos diáconos cristãos,
que tinham a mesma responsabilidade. Entre os judeus, a caridade
habitualmente assumia quatro formas: 1) dinheiro; 2) dádivas dos
mais variados tipos; 3) indumentária; e 4) sepultamento. Os
diáconos cristãos incluíam também educação, assistência média,
conforto e ajuda a mulheres abusadas, o cuidado para com anciãos
e órfãos e atividades afins. As organizações de caridade judaicas
tratavam de necessidades semelhantes a essas. O escopo de suas
caridades expandiu-se no século XX.

Vimos que justiça e caridade estão essencialmente


relacionadas. Zedek é justiça, tal como o é zedakah. Visto que as
Escrituras reiteradamente associam justiça à misericórdia e graça,
eventualmente o judaísmo passou a entender zedakah com
caridade. Isso significou, ao mesmo tempo, que a justiça veio a ser
interpretada como caridade. São inseparáveis e estão estritamente
ligadas, já que expressam ambas a natureza de Deus. O ser
humana se equivoca ao opor entre si lei, justiça e caridade. “O
homem deve imitar a Deus ao agir com base no princípio de
equidade compadecida e — na consumação da história — justiça e
misericórdia se tornarão idênticas”.[180]

Há um aspecto importante da caridade judaica que não deve


ser desprezada. “Exige-se que até mesmo o beneficiário da
caridade faça caridade”.[181] Em Marcos 12.41-44, vemos
aparentemente um exemplo desse tipo de contribuição:
Assentado diante do gazofilácio, observava Jesus como o povo lançava ali o
dinheiro. Ora, muitos ricos depositavam grandes quantias. Vindo, porém,
uma viúva pobre, depositou duas pequenas moedas correspondentes a um
quadrante. E, chamando os seus discípulos, disse-lhes: Em verdade vos
digo que esta viúva pobre depositou no gazofilácio mais do que o fizeram
todos os ofertantes. Porque todos eles ofertaram do que lhes sobrava; ela,
porém, da sua pobreza deu tudo quanto possuía, todo o seu sustento.

Esse relato é bastante justo: “os ricos depositavam grandes


quantias”. Estas não eram os dízimos, mas ofertas de gratidão para
o templo. A viúva não julgou que a pobreza a isentava da obrigação
moral de contribuir. Nosso Senhor deliberadamente observava como
as pessoas contribuíam. Não temos menos razões para crer que ele
não faça o mesmo em relação a nós.
Ora, uma religião é ou antropocêntrica ou teocêntrica; fés não
cristãs e não bíblicas são, por óbvio, antropocêntricas. A
preocupação dos pagãos, seja na igreja ou fora dela, seja numa
antiga religião de mistério ou numa igreja moderna, é
antropocêntrica. Com efeito, um devoto pagão está interessado
naquilo que Deus pode fazer por ele. Em oposição a isso, a fé
bíblica insiste que a justiça significa retidão em nós, expressa por
nossa fidelidade à lei divina. Afinal, sendo a lei de Deus a expressão
de sua natureza e ser, crer em Deus implica obedecer à sua lei e
manifestar seus atributos comunicáveis, que incluem a graça, a
misericórdia e a caridade. Crer em Deus significa estabelecer
nossos tribunais com base em sua lei. Ademais, crer em Deus é
conhecer sua graça, misericórdia e caridade para conosco em e por
meio de Jesus Cristo, sua expiação e seu cuidado providencial.
O termo hebraico para caridade tem, como contexto, a aliança
de Deus com seu povo. Está, portanto, essencialmente associada
não apenas ao homem reto e aos tribunais da lei de Deus, mas
também com a aliança de Deus. Ser caridoso é ser fiel e grato a
Deus por sua aliança. É uma resposta pactual. O grego do Novo
Testamento comumente usa o termo eleos (compaixão,
misericórdia, comiseração) para o mesmo conceito. Na Septuaginta,
eleos é comumente usado para indicar o mesmo conceito, porém
eleos tem uma referência distinta. Esser entendia que o pano de
fundo dessa palavra grega era “predominantemente psicológico”.
Contudo, essa ênfase tem como propósito impedir a simples
observância externa da letra da lei, a fim de que o crente possa
cumprir seu espírito, ao focar-se na exigência interna. Esser chamou
atenção para o fato de que Paulo havia recebido misericórdia
(eleethen), para que pudesse tornar-se apóstolo. A misericórdia
(eleemenos) do Senhor fez de Paulo confiável e fiel à aliança.
Em Tiago 2.13 lemos: “Porque o juízo é sem misericórdia
(aneleos) para com aquele que não usou de misericórdia (eleos). A
misericórdia (eleos) triunfa sobre o juízo”.[182] A declaração de Tiago
é inseparável do entendimento hebraico de caridade. Aqueles que
são misericordiosos ou caridosos manifestam a fé evangélica e
triunfarão nos momentos de juízo: eles foram fiéis à aliança. Nosso
Senhor nos diz: “pelos seus frutos os conhecereis” (Mateus 7.20).
Paulo diz-nos que Cristo nos libertou do pecado para tornar-nos
servos da justiça (Romanos 6.18); a palavra traduzida por “justiça” é
dikaiosune, ação direta (Mateus 6.33). A passagem de Mateus 6.1-
33 apresenta-nos o sentido dessa retidão. Em Mateus 6.1, lê-se:
“Guardai-vos de exercer a vossa justiça diante dos homens, com o
fim de serdes vistos por eles” (algumas versões traduzem mesmo
como: “Guardai-vos de não dar vossas esmolas diante dos
homens”), a palavra justiça (ou, nas outras versões, esmolas) é o
grego dikaiosune, retidão. Sem caridade, não há retidão, porque a
graça para conosco resulta em graça para com outros. A caridade
não nos salva, mas, se somos salvos, somos caridosos. É disso que
se trata a parábola do juízo final: “Quem é, pois, o servo fiel e
prudente, a quem o senhor confiou os seus conservos para dar-lhes
o sustento a seu tempo?” (Mateus 25.45). Nesse ponto, o judaísmo
e o catolicismo romano mostram-se por vezes muito mais fiéis que
um sem número de protestantes, os quais, presumindo que sua
doutrina estava correta, julgaram-se isentos das exigências ditadas
pela fé.
É uma temível ofensa separar doutrinas na Bíblia, concluir que
lei e graça, misericórdia e justiça, amor e juízo (dentre muitas outras
coisas) podem ser opostas umas às outras. Os homens não
deveriam ousar separar aquilo que Deus uniu.
1
30. “A RELIGIÃO PURA E IMACULADA”
O verbo definir tem origem na expressão latina de finere,
limitar, estabelecer uma linha separatória, um fim. Definições
estabelecem, portanto, linhas separatórias entre palavras e coisas.
A linguagem seria impossível se não houvesse limites aos sentidos
das palavras. Definições são verdades proposicionais; traçam
fronteiras de sentidos para palavras e coisas.
O conceito de definição é, pois, religioso. O modo como
estabelecemos limites e fronteiras depende de nossos pressupostos
religiosos. Assim, o artista Marcel Duchamp, militando contra a fé e
moralidade cristãs, também se opunha ao sentido. “Sua obra não se
destinava a ninguém senão ele próprio, e ele tomou todas as
medidas possíveis para que nada dela pudesse ser inteligível a
alguém de fora”.[183] Ele acreditava que “o conceito de juízo deveria
ser abolido”.[184] Por anos, “a criação de uma nova linguagem foi
uma de suas principais preocupações”.[185] Essa tarefa era,
evidentemente, impossível. Como uma nova linguagem poderia
abster-se de sentido? A definição de uma palavra é delimitação, um
ato de julgamento. Ele tinha receios do belo na arte, pois a ideia de
beleza envolve juízo, um ato de definição. Ele opunha-se às
fronteiras ou definições tanto na vida quanto na arte.
Esse mesmo ímpeto de destruir as definições é comum à
mente moderna e à chamada pós-moderna. Definir é discriminar, e
discriminação é tida como invariavelmente ruim. Por conseguinte,
muitos julgam que a homossexualidade é aceitável, porque é uma
negação dos valores ou definições morais, e a heterossexualidade
bíblica é ruim, já que vê fronteiras morais por toda parte.
Uma forma de ataque às definições é a redefinição de palavras
mediante a fragmentação de alguns aspectos do sentido a fim de
dilatar as fronteiras. É uma forma de redefinição rumo à obliteração.
Esse processo de mover fronteiras ocorreu no interior do
cristianismo. O termo “cristão” tem sido definido de modo tão vago,
que seu sentido agora pode incluir os que negam todas as doutrinas
da fé bíblica. O mesmo se dá em relação à caridade cristã. Bernard
Smith chamou atenção para os novos sentidos dados à expressão.
Incluem ação política e revolução armada. Defende-se que é dar
“poder aos impotentes, ação política para mudar a constituição de
um país, apoiar grupos terroristas e coisas semelhantes”.[186] Nesse
processo de redefinição, os termos cristão e caridade foram
redefinidos.
De acordo com Tiago 1.27: “A religião pura e sem mácula,
para com o nosso Deus e Pai, é esta: visitar os órfãos e as viúvas
nas suas tribulações e a si mesmo guardar-se incontaminado do
mundo”. O versículo anterior termina com a palavra religião,
threskeia; nesse versículo 26, a religião verdadeira e a falsa são
contrastadas, sendo esta última caracterizada por uma língua sem
freios, dentre outras coisas. Mas o que é a “religião pura e
imaculada”? A tendência moderna isola textos do contexto da
revelação integral de Deus, com a qual Tiago estava familiarizado.
Por conseguinte, não podemos, caso queiramos ser honesto, limitar
essa definição de religião a simplesmente visitar os órfãos e viúvas
em suas aflições. Nessa passagem, tem-se em vista todo o leque
dos atos de caridade exigidos pela lei de Deus. De semelhante
modo, não podemos crer — mais uma vez: se queremos ser
honestos — na revelação e isolar o sentido da “religião pura” ao
cuidado das viúvas e órfãos. A totalidade da teologia bíblica está
aqui presumida: essas palavras são escritas para membros da igreja
que se professam como verdadeiros crentes. Viviam próximos à
época da ressurreição, e o pleno esplendor desse poderoso evento
era-lhes tangível e real.
A declaração conclui com estas palavras, isto é, que se deve
“guardar-se incontaminado do mundo”. A religião pura envolve, pois,
todas as premissas morais e teológicas da fé e suas conclusões de
ajudar a atender as necessidades daqueles a quem Deus vê como
teste para nossa fidelidade.
Portanto, lidamos com redefinições humanistas da fé. Esse
revisionismo existe também nos círculos eclesiais reformados e
evangélicos. Não é raro que essas pessoas empaquem em Tiago
1.27 e acusem os que usam esse verso de pregarem o “legalismo”
ou a “religião das obras”. Ora, isso também é um abuso das
Escrituras, visto que isola um texto do contexto total da Bíblia.
A caridade é uma parte importante da lei, dos profetas, dos
Salmos, dos Evangelhos e das epístolas. É, com efeito, um aspecto
distintivo da fé cristã. Nosso Senhor é bastante enfático ao declarar
que “pelos seus frutos os conhecereis” (Mateus 7.20). Tiago, nos
versos que se seguem imediatamente ao trecho de 1.27, cita a
“acepção de pessoas” como, no mínimo, evidência de malignidade e
blasfêmia (Tiago 2.1-10). Em seguida, deixa bem claro que nossas
ações de fato provam nossa fé (Tiago 2.11-26). Os demônios no
inferno sabem que Deus existe e tremem, mas não são salvos pelo
seu conhecimento desse fato (Tiago 2.19). “Porque, assim como o
corpo sem espírito é morto, assim também a fé sem obras é morta”.
Tiago prossegue citando pecados da língua como sendo mostras de
uma fé precária (Tiago 3.1-18).
Muitos líderes eclesiásticos presumiram que, uma vez que o
Estado um programa assistencialista, eles estão absolvidos da
necessidade de fazer algo nessa esfera. É estranho, porém, que a
Igreja Primitiva, vivendo dentro do Império Romano, com seu
sistema de assistencialismo bastante abrangente, que incluía
habitação e entretenimento, “pão e circo”, não dizia que o mandato
bíblico para caridade deveria ser desconsiderado! Pelo contrário,
embora pequenos em número, começaram um grande movimento,
encabeçado pelos diáconos, para suprir as necessidades humanas,
começando em seus próprios círculos. Obviamente não viam — em
contraposição a nossos líderes eclesiásticos modernos — o
assistencialismo estatista como algo aprazível a Deus.
Algo está seriamente errado quando líderes eclesiásticos
concebem a caridade cristã como uma deformação ao invés de uma
reforma. É alentador ver algumas igrejas locais retornando ao
mandato bíblico concernente à religião pura.
O cristianismo é mais que uma fé. É o Reino de Deus,
governado por um rei, Jesus Cristo. Possui uma lei dada por Deus e
um governo, do qual todos os crentes são membros, cidadãos e
servos. Esse Reino exige que ocupemos todas as coisas até que
Cristo venha. Restringir o escopo do Reino à vida interior é reduzi-lo
a uma religião de mistério pagã. Mutilar a relevância da totalidade
da palavra-lei de Deus à salvação é solapar o sentido da salvação.
A caridade cristã é um passo necessário para a restauração do
cristianismo.
1
31. ATOS DE CARIDADE

A Igreja Primitiva preocupava-se imensamente com os atos de caridade


(ou esmola), como foi chamada ao longo dos séculos. Os pais da igreja
podem ser criticados por uma apreensão inadequada da teologia bíblica: eram
muito influenciados pelo pensamento grego para que fossem claros em
diversos pontos. Contudo, foram também profundamente influenciados pela
insistência vetero e neotestamentária sobre a caridade. A “Segunda Carta aos
Coríntios” de Clemente tratava-se, na verdade, de um sermão anônimo,
datando aproximadamente de 150 d.C. Após referir-se ao Juízo Final, o
sermão diz:
A caridade, portanto, como o arrependimento do pecado, é excelente. Mas
jejum é melhor que oração, e a caridade é melhor que ambos. “O amor cobre
uma multidão de pecados” (Provérbios 10.12; 1 Pedro 4.8), e a oração,
procedendo de uma boa consciência, “salva da morte” (Tiago 5.20). Bendito
é todo aquele que é abundante nessas coisas, pois a caridade abranda o
pecado.[187]

A teologia dessa declaração pode ser imperfeita; os pressupostos de


parte significativa da Igreja Primitiva, incluindo os judeus, eram gregos. Sua
aplicação da fé, no entanto, era hebraica. Eles percebiam a ênfase ao longo
de todo o Antigo Testamento, assim como nos primeiros excertos do cânone
do Novo Testamento que então circulavam, quanto à aplicação da fé. O
resultado foi uma dedicação à caridade que prosseguiu nas igrejas da era
medieval e do período da Reforma. Acadêmicos, sendo intelectuais, tendiam
a destacar as correntes teológicas e filosóficas mais que os gestos práticos e
beneficentes da fé.
O tipo de fé sublinhado por João Calvino e São Carlos Borromeu
procede nitidamente da Igreja Primitiva. Na “Primeira Apologia de Justino
Mártir”, lemos:
67. … recordamos constantemente entre nós essas coisas e aqueles de nós
que possuem alguma coisa socorrem todos os necessitados e sempre nos
ajudamos mutuamente. Por tudo o que comemos, bendizemos sempre ao
Criador de todas as coisas, por meio de seu Filho Jesus Cristo e do Espírito
Santo. No dia que se chama do sol, celebra-se uma reunião de todos os que
moram nas cidades ou nos campos, e aí se leem, enquanto o tempo o
permite, as memórias dos apóstolos ou os escritos dos profetas. Quando o
leitor termina, o presidente faz uma exortação e convite para imitarmos
esses belos exemplos. Em seguida, levantamo-nos todos juntos e elevamos
nossas preces. Depois de terminadas, como já dissemos, oferece-se pão,
vinho e água, e o presidente, conforme suas forças, faz igualmente subir a
Deus suas preces e ações de graças e todo o povo exclama, dizendo:
“Amém”. Vem depois a distribuição e participação feita a cada um dos
alimentos consagrados pela ação de graças e seu envio aos ausentes pelos
diáconos. Os que possuem alguma coisa e queiram, cada um conforme sua
livre vontade, dá o que bem lhe parece, e o que foi recolhido se entrega ao
presidente. Ele o distribui a órfãos e viúvas, aos que por necessidade ou
outra causa estão necessitados, aos que estão nas prisões, aos forasteiros
de passagem, numa palavra, ele se torna o provisor de todos os que se
encontram em necessidade. Celebramos essa reunião geral no dia do sol,
porque foi o primeiro dia em que Deus, transformando as trevas e a matéria,
fez o mundo, e também o dia em que Jesus Cristo, nosso Salvador,
ressuscitou dos mortos.[188]

Os cultos semanais eram pois marcados pelas ofertas semanais para


permitir aos diáconos a suprir as necessidades do povo; e tais ofertas —
temos razão para crê-lo — eram intensamente promovidas. Dessa forma, a
caridade era uma parte essencial do culto.
A “Carta de Policarpo aos Filipenses” foi escrita antes de 155 ou 156
d.C., época de seu martírio. Ele aconselhava os homens “a andar nos
mandamentos de Deus”. Esposas deveriam “andar em fé”, amar seus maridos
e “educar seus filhos no conhecimento e temor do Senhor”. Há ainda esta
impressionante declaração:
Que as viúvas sejam sábias na fé do Senhor e intercedam sem cessar por
todos. Fiquem afastadas de toda calúnia, maledicência, falso testemunho,
amor ao dinheiro e qualquer mal. Saibam que elas são o altar de Deus, e
que ele examina minuciosamente cada coisa, e nada lhe escapa de nossos
pensamentos, sentimentos e segredos do coração.[189]

Exige-se o comportamento piedoso das viúvas porque “são altar de


Deus”. Um altar é primariamente um lugar de sacrifício; em seguida, um lugar
também de oração. A razão por que as viúvas foram chamadas de altar
(altares, segundo alguns manuscritos) de Deus não nos é apresentada. O uso
é obviamente metafórico, mas não diminui sua importância. São as viúvas,
afirma Policarpo, que deveriam saber que são altar de Deus. Paulo, ao tratar
das viúvas no serviço a Cristo, diz que “não têm amparo” (1 Timóteo 5.5, no
sentido de que vivem “sozinhas”). A elas cabe “espera[r] em Deus e
persevera[r] em súplicas e orações, noite e dia”. É nesse sentido que uma
viúva santa era um altar. Posteriormente, houve um desvio da prática
apostólica, quando então se passou a admitir jovens ao círculo das viúvas
(um fato que Tertuliano, em seu Sobre o véu das virgens, capítulo 9, assinala
como sendo incomum e extraordinário). Além de seus deveres práticos (1
Timóteo 5.3-16), a viúva tinha o dever de orar pela comunidade cristã.
Policarpo, tratando sobre os presbíteros, exigia, dentre outras coisas, seu
cuidado para com aqueles que se desgarraram e das viúvas, órfãos e pobres,
em geral.[190] Inácio, escrevendo a Policarpo, ressaltou o cuidado às viúvas, e
acrescentou: “Não trate escravos e meninas escravas com desdém. Nem
devem eles tornar-se insolentes”. Dever-se-ia ter cautela antes de libertar
escravos às custas da comunidade.[191] O objetivo da comunidade cristã era
o domínio mundial de Cristo, e Policarpo citava 1 Coríntios 6.2: “Ou não
sabeis que os santos hão de julgar o mundo?”.[192]
Inácio afirmava que uma igreja precisava de um bispo, presbíteros e
diáconos. “Não se pode ter uma igreja sem esses.”[193] Os cristãos tinham de
ser uma comunidade, não simplesmente uma congregação. Esses ofícios
eram os mesmos que os ofícios veterotestamentários de profetas e mestres.
[194]

Havia, pois, uma continuidade autoconsciente com o Antigo Testamento.


A igreja, com sua origem nos doze discípulos que substituíam as doze tribos
de Israel, era, de um modo autoconsciente, “o Israel de Deus” (Gálatas 6.16).
O fato de que “muitíssimos sacerdotes obedeciam à fé” (Atos 6.7) torna ainda
mais óbvio por que a ênfase do Velho Testamento na comunidade e caridade
eram tão crucial para a Igreja Primitiva: em sua “membresia”, era, até certo
ponto e claramente em seu caráter, judia. Fidelidade à fé dos pais eram algo
que saltava aos olhos — uma fé atuante, prática. Não seremos capazes de
compreender a Igreja Primitiva senão com base em sua origem e herança
veterotestamentárias.
Vemos quão importante o diaconato era naquela época quando Inácio se
refere a ele como “o ministério de Jesus Cristo” e a seus diáconos como
“meus amados”.[195] Assim, deve-se honrar aos diáconos.[196] Hermas disse
aos cristãos:
Dá a todos, porque Deus quer que seus próprios bens sejam dados a todos.
Os que recebem prestarão contas a Deus do motivo e finalidade daquilo que
tiverem recebido: os que receberem por necessidade não serão julgados,
mas os que enganarem para receber, serão punidos.[197]

Esses muitos cristãos acreditavam efetivamente que Paulo falara da


parte de Deus quando declarou que os santos julgariam ou regeriam o mundo
(1 Coríntios 6.2). Mesmo um simples pastor como Hermas entendia que a
tristeza de coração e falta de paciência eram moralmente erradas.[198]
A prática da esmola, por sua vez, é moralmente correta. A palavra
esmola, aliás, que vem também da raiz grega eleos, compassivo, aparece no
Novo Testamento, notadamente no Sermão da Montanha (Mateus 6.1-4); em
Lucas 11.41; Atos 3.2, 3.10, 9.36, 10.2,4,31 e 24.17. Em inglês, o prefixo alms
(de almsgiving), embora singular, apresenta uma forma plural. Alms significa
caridade, mas também transmite o sentido, conforme notou Patrick Fairbairn,
de piedade ativa, de compaixão que leva à ajuda prática. Por essa razão, às
vezes, em vez de almsgiving, se usa almsdeeds (Atos 9.36). Neste texto,
Dorcas é descrita como “notável pelas boas obras e esmolas que fazia”. Em
fins do século XIX, Fairbairn observou:
No presente estado da cristandade evangélica, especialmente
nas condições reais das grandes cidades, pode-se muito bem
duvidar se há suficientes cristianismo vivo e amor cooperativo
nessas igrejas, para permiti-las a exercer adequadamente o
cuidado para com os pobres, caso essa responsabilidade lhes
seja incumbida.[199]

Há algo ainda pior: para muitas pessoas, a prática da esmola cheira a


medievalismo e Roma, embora julgariam difícil julgá-la, visto que os
reformadores eram vigorosamente a favor dela.
O século I d.C. viu os extremos do conceito de amor. Para o poeta
romano Ovídio, significava essencial a técnica sexual. Para a comunidade do
Novo Testamento, amor implicava a graça de Deus recebida e transmitida a
outros na ajuda prática: significava comunidade.[200]

A posição católica romana tem sido a de que “a obrigação da esmola é


complementar ao direito de propriedade”. Desde os primórdios, o malicioso, o
intemperado e o indolente foram excluídos por exigências apostólicas.[201] A
propriedade privada é um privilégio dado aos homens por Deus, que é
proprietário de todas as coisas, já que “ao Senhor pertence a terra e tudo o
que nela se contém, o mundo e os que nele habitam” (Salmos 24.1). Todas as
coisas são propriedade divina, incluindo a humanidade. Nossa posse da terra
se dá enquanto seus mordomos inteiramente responsáveis perante Deus pelo
uso que fazemos dela e uns dos outros. Daí ser inteiramente bíblica a visão
medieval de que, junto com a propriedade, vinha a obrigação de dar esmolas.
A visão moderna do “direito” puramente privado à propriedade é humanista e
antibíblica.

Levítico 25.35-38 é uma passagem importante nesse sentido, na medida


em que a redenção é apresentada como uma razão adicional para a caridade:
Se teu irmão empobrecer, e as suas forças decaírem, então, sustentá-lo-ás.
Como estrangeiro e peregrino ele viverá contigo. Não receberás dele juros
nem ganho; teme, porém, ao teu Deus, para que teu irmão viva contigo. Não
lhe darás teu dinheiro com juros, nem lhe darás o teu mantimento por causa
de lucro. Eu sou o Senhor, vosso Deus, que vos tirei da terra do Egito, para
vos dar a terra de Canaã e para ser o vosso Deus.
O salmo 24 nos diz que pertencemos a Deus; somos sua propriedade e
seus mordomos. Os versículos de Levítico citados acima declaram, em
primeiro lugar, que Deus dá ordens como nosso Redentor — aquele que
redime Israel de seu pecado e do Egito (e a nós, de nossa escravidão ao
pecado). Em segundo lugar, nossa caridade deve estender-se, não somente
aos irmãos crentes, mas a estrangeiros e forasteiros. Em terceiro lugar, nas
ocasiões em que a caridade se fizer necessária, não se pode emprestar o
dinheiro com juros, caso a ajuda requerida seja um empréstimo. Uma vez que
o Senhor é nosso Criador e Redentor, todas as condições da vida são
governadas por sua palavra-lei. Sendo nosso Criador, é o único que pode ser
nosso Legislador. Rejeitar sua lei em qualquer esfera, incluindo a caridade, é
rejeitá-lo, por mais que se professe o contrário. Vemos, em Jó 29.12-17, o
quão intimamente relacionada está a caridade à verdadeira fé:
Porque eu livrava os pobres que clamavam e também o órfão que não tinha
quem o socorresse. A bênção do que estava a perecer vinha sobre mim, e
eu fazia rejubilar-se o coração da viúva. Eu me cobria de justiça, e esta me
servia de veste; como manto e turbante era a minha equidade. Eu me fazia
de olhos para o cego e de pés para o coxo. Dos necessitados era pai e até
as causas dos desconhecidos eu examinava. Eu quebrava os queixos do
iníquo e dos seus dentes lhe fazia eu cair a vítima.
Há muitas passagens semelhantes em Jó, conforme atesta Jó 31.5-40.
De modo bastante evidente, em toda a Bíblia, a caridade é um teste de fé
verdadeira. Nosso Senhor se mostra categórico em relação a isso, como
podemos ver em Lucas 14.12-14 — palavras que deixam claro o quão aquém
estamos das exigências do Antigo e Novo Testamentos:
Disse também ao que o havia convidado: Quando deres um jantar ou uma
ceia, não convides os teus amigos, nem teus irmãos, nem teus parentes,
nem vizinhos ricos; para não suceder que eles, por sua vez, te convidem e
sejas recompensado. Antes, ao dares um banquete, convida os pobres, os
aleijados, os coxos e os cegos; e serás bem-aventurado, pelo fato de não
terem eles com que recompensar-te; a tua recompensa, porém, tu a
receberás na ressurreição dos justos.

Certamente nosso Senhor perturbava a paz. Paulo lembra aos crentes


que Cristo havia dito: “Mais bem-aventurado é dar que receber” (Atos 20.35).
Em Gálatas 2.10, o apóstolo nos conta que os líderes em Jerusalém o
acolheram, junto a Barnabé, como servos comissionados “para os gentios”
(2.9). “Recomendando-nos somente que nos lembrássemos dos pobres, o
que também me esforcei por fazer.” O verbo esforçar pode também ser
traduzido por ansiar.
Um teste chave que, por século, regeu a caridade cristã é o ensino de
Mateus 25.40: “O Rei, respondendo, lhes dirá: Em verdade vos afirmo que,
sempre que o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o
fizestes”. Vemos essa verdade enfatizada de diversas maneiras. Numa capa
feita para um saltério do século XII da Rainha Melisenda do Reino Latino de
Jerusalém, vemos um rei, talvez seu marido Fulque, alimentando os famintos,
dando-lhes de beber, vestindo os nus, confortando os enfermos, acolhendo os
estrangeiros e visitando os prisioneiros.[202]
Em 1460, o Cardeal romano fundou a Confraternidade da Anunciação,
para providenciar dotes para garotas pobres. Nos primórdios do século XX,
ainda se mantinha essa prática, embora se doasse então o dobro do valor a
moças que entravam para ordens religiosas.
Tudo isso simplesmente arranha a superfície. É importante lembrar que,
certa feita, os cristãos, por meio de diversas organizações, confraternidades,
fundações e ordens proviam saúde, educação, caridade, artes e muito mais,
ao passo que o Estado se limitava à guerra e à justiça. Na década de 1990,
após uma palestra ministrada num estado, um legislador comentou
privadamente sobre observações feitas numa reunião fechada do comitê.
Todos ali, segundo ele, reconheciam que a sobrevivência financeira do Estado
estava sendo ameaçada pelo assistencialismo. Afirmou-se, na verdade, com
consentimento não oficial, que talvez os beneficiários deveriam ser
encaminhados separadamente para todas as igrejas, como uma convocação
para que retomem seu papel histórico na caridade. A maioria das igrejas
ficaria chocada se ouvisse que esse foi, certa vez, seu dever sob a autoridade
do Senhor. Eles leem a Bíblia, mas com um véu perante seus olhos.
1

[1] Philippe Diol, The Forgotten People of the Pacific (New York: Barron’s Educational
Series, 1976), p. 255.
[2] Herman Hoeksema, The Triple Knowledge, An Exposition of the Heidelberg Catechism,
Vol. 1, (Grand Rapids, MI: Reformed Free Publishing Association, [1970] 1976), p. 67.
[3] Diol, op. cit., p. 245.
[4] Gerhard Uhlhorn, The Conflict of Christianity with Heathenism (New York: Charles
Scribner’s Sons, 1879), p. 92 s.
[5] Macklin Fleming, The Price of Perfect Justice (New York: Basic Books, 1974), p. 121-
128.
[6] Sydney Biddle Barrows, com William Novak, Mayflower Madam (New York: Ballantine,
Ivy Books, 1986), p. 51-52, 60-61, 170-71, 220, 314, 366.
[7] Michael J. Bandler, “John Huston”, in American Way, October 15, 1987, 134.
[8] Samuel L. Blumenfeld, “The Lethal Education”, in The Blumenfeld Letter, Vo. 2, No. 2,
February, 1987.
[9] James Turner, Without God, Without Creed, The Origins of Unbelief in America
(Baltimore, MD: The Johns Hopkins Press, 1985), p. 133.
[10] Ibid., p. 134.
[11] Idem.
[12] Ibid., p. 135.
[13] Chad Walsh, From Utopia to Nightmare (Westport, CT: Greenwood Press, [1962]
1976), p. 136.
[14] William E. Nelson, Americanization of the Common Law, The Impact of Legal Change
on Massachusetts Society, 1760-1830 (Cambridge, MA: Harvard University Press, [1975]
1976), 90. A fonte de Nelson é a seguinte: Commonwealth v. Sosa, Boston Police Ct.,
1827, n. 382.
[15] Veja Lynn R. Buzzard e Laurence Eck, Tell it to the Church (Wheaton, IL: Tyndale
House Publishers, 1985).
[16] Gerardus Van der Leeuw, Religion in Essence and Manifestation (New York:
Macmillian, 1938), p. 244.
[17] Os puritanos: suas origens e sucessores (São Paulo: PES, 1993), p. 19.
[18] H. C. Leupold, Exposition of the Psalms (Columbus, OH: Wartburg Press, 1959), p.
459.
[19]
[20] Texto incluso em Por que creio em Deus, 2ª edição (Monergismo, 2017).
[21] Michael Allen Gillespie, Hegel, Heidigger, and the Ground of History (Chicago, IL:
University of Chicago Press, 1984), p. 3.

[22] Hegel, Philosophy of History, 12:56-57, citado em Gillespie, p. 91.


[23] John Morgan, Godly Learning, Puritan Attitudes towards Reason, Learning and
Education, 1560-1640 (Cambridge, England: Cambridge University Press, 1986), p. 142.
[24] Ernst Breisach, Historiography, Ancient, Medieval, and Modern (Chicago, IL: University
of Chicago Press, 1983), p. 304.
[25] Roscoe Pound, Law and Morals (Chapel Hill, NC: The University of North Carolina
Press, 1924), p. 14.
[26] Breisach, op.cit., p. 110.

[27] Brooke Foss Westcott, The Gospel According to St. John (Grand Rapids, MI:
Eerdmans, [1885] 1954), p. 245.
[28] Idem.
[29] Gerald Bray, Creeds, Councils, and Christ (Leicester, England: Inter-Varsity Press,
1984), p. 37.
[30] Gerhard Uhlhorn, The Conflict of Christianity with Heathenism (New York, NY: Charles
Scribner’s Sons, 1879; 3ª edição), p. 317-18.
[31] Donald Earl, The Age of Augustus (New York, NY: Exeter Books, [1968] 1980), p. 166
ss.
[32] Ibid., p. 173.
[33] Arthur S. Way, trans., The Letters of St. Paul (London, England: Macmillan, [1901]
1935), p. 180-81.
[34] Brooke Foss Westcott, St. Paul’s Epistle to the Ephesians (Grand Rapids, MI:
Eerdmans, [1906) 1952), p. 35-36.
[35] Ibid., p. 139.

[36] General William Booth, In Darkest England and the Way Out (New York, NY: Funk &
Wagnalls, 1890), p. 47.
[37] Ibid., p. 218-19.
[38] Ibid., p. 192.
[39] St. John Ervine, God’s Soldier, General William Booth, Vol. 2 (New York, NY:
Macmillan, 1935), p. 702-734.

[40] Charles Winick, Dictionary of Anthropology (New York, NY: Philosophical Library,
1956), p. 144.
[41] Charles A. Ellwood, “Culture”, in Henry Pratt Fairchild, editor, Dictionary of Sociology
(New York, NY: Philosophical Library, 1944), p. 80.
[42] Henry R. Van Til, O conceito calvinista de cultura (São Paulo: Cultura Cristã, 2010), p.
30.

[43] F. Ernest Stoeffler, German Pietism During the Eighteenth Century (Leiden,
Netherlands: E. J. Brill, 1973), p. 161.
[44] F. Ernest Stoeffler, The Rise of Evangelical Pietism (Leiden, Netherlands: E. J. Brill,
1971), p. 55.
[45] Edward J. Young, The Book of Isaiah, Vol. 3 (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1972), p.
304-5.
[46] Ruth Nevo, The Dial of Virtue, A Study of Poems on Affairs of State in the Seventeenth
Century (Princeton, NJ: Princeton, University Press, 1963), p. 254.

[47] Ibid., p. 95.


[48] Como é típico em sua argumentação, Rushdoony condensa uma série de argumentos
e citações e conclui, em geral listando a obra consultada, com afirmações que por vezes
nos soam abruptas. Talvez o leitor antipático ou distraído seja tentado a interpretar a
passagem acima como uma tentativa brusca e infundada de justificação dos aumentos
salariais dos ministros, como se as causas da secularização estivessem na avareza dos
membros responsáveis pela fixação dos proventos pastorais. Obviamente não é o caso;
pois, conforme se verá em outras passagens ao longo do livro, a crítica de Rushdoony é à
associação antibíblica entre pobreza e pureza. Ora, se é verdade que as Escrituras nos
ordenam a caridade (a tônica de todo este livro) e o cuidado para com os pobres, viúvas,
órfãos e excluídos desta terra, elas também nos incitam, primeiramente, a honrar os
pastores que se acharem dignos e foram ativos e fieis no ministério, e, em segundo lugar, a
progredirmos inclusive em nosso crescimento institucional, evidenciando que a pobreza é
uma consequência da entrada do pecado num mundo de recursos abundantes criado por
nosso Deus. Desse modo, todo entendimento equivocado que associa a pobreza
essencialmente à santidade (esquecendo que esta é um atributo comunicável do próprio
Deus, dado a todos, pobres e ricos, que foram selados com o Espírito Santo) é, nos dizeres
de Rushdoony, maligno. [N. do T.]
[49] G. R. Cragg, The Church and the Age of Reason, 1648-1789 (Grand Rapids, MI:
Eerdmans, [1962] 1967), p. 91.
[50] Jeffrey Burton Russell, A History of Medieval Christianity, Prophecy and Order (New
York, NY: Thomas Y. Crowell, 1968), p. 84.
[51] Sobre como essa visão anti-bíblica afetou o pensamento de muitos cristão, inclusive
alguns puritanos, veja Rushdoony, Rejeição à humanidade: os efeitos do neoplatonismo no
cristianismo (Brasília, DF: Monergismo, 2019). [N. do R.]
[52] “A Sermon of the Misery of all Mankind and of his Condemnation to Death Everlasting
by his own Sin”, extraído de The Two Books of Homilies Appointed to be Read in Churches
(Oxford, England: Oxford University Press, 1859), 19-20. Esse sermão é do Primeiro Livro
de Homilias, julho de 1547.
[53] J. G. Davies, Daily Life of Early Christians (New York, NY: Duell, Sloan and Pearce,
1953), p. 167-68.
[54] Ibid., p. 169-172.
[55] Ibid., p. 169.
[56] W. H. C. Frend, The Rise of Christianity (Philadelphia, PA: Fortress Press, 1984), p. 25.
[57] Ibid., p. 133.
[58] Ibid., p. 404-05.
[59] Ibid., p. 421.
[60] Ibid., p. 558.
[61] Ibid., p. 631.
[62] Ibid., p. 885.
[63] Thomas Lever, Sermons, 1550 (Westminster, England: Constable, 1901).
[64] W. L. Lowther Clarke, Eighteenth Century Piety (London, England: Society for
Promoting Christian Knowledge, 1944), p. 45-46, 69 ss.
[65] Lawrence I. Buell, “Unitarian Aesthetics and Emerson’s Poet Priest”, American
Quarterly, Vol. 20, No. 1, Spring, 1968, 3.
[66] Esther Shephard, Walt Whitman’s Pose (New York, NY: Harcourt, Brace, 1938).
[67] Walt Whitman, Leaves of Grass (New York, NY: Grosset & Dunlap, n.d.), p. 425.
[Folhas de relva (São Paulo: Martin Claret, 2005). Tradução: Luciano Alves Meira.]
[68] Ibid., p. 427.
[69] Ibid., p. 98.
[70] Ibid., p. 94.
[71] Helen Vendler, “Body Language”, in Harper’s Magazine, Vo. 273, No. 1637, October
1986, p. 64-65.
[72] Arthur Burrell, editor, Piers Plowman, The Vision of People’s Christ, by William
Langland (London, England: J. M;. Dent, Everyman’s Library, [1912], 1925), p. 4.
[73] Ibid., p. 39-40.
[74] Brooke Foss Westcott, The Incarnation and Common Life (London, England:
Macmillan, 1893), p. 197-200.
[75] Miri Rubin, Charity and Community in Medieval Cambridge (Cambridge, England:
Cambridge University Press, 1987), p. 1 ss., 10, 32.
[76] Cy A. Adler, “Death by Falling Watermelons”, in Oui, Vol. 5, No. 5, 1976, 55 ss.
[77] Westcott, op. cit., p. 57-54. Discurso sobre “The Incarnation a Revelation of Human
Duties”.
[78] Keith Robson, “Food crew gets mixed blessings”, in The Stockton (California) Record,
Saturday, January 23, 1988, A-1, A-4.
[79] Simon Goodenough, com Richard Reece, Citizens of Rome (New York, NY: Crown
Publishers, 1979), p. 10.

[80] J. M. Golby e A. W. Purdue, The Civilization of the Crowd, Popular Culture in England
1750-1900 (London, England: Batsford, 1984), p. 10.
[81] Ibid., p. 178.
[82] Ibid., p. 178-19, 196 ss.
[83] Charles Kingsley, “Parson Lot”, Letters to Chartists, no. 1, 1848; citado em Karl de
Schweinitz, England’s Road to Social Security (New York, NY: A. S. Barnes, 1943), p. 140.
[84] Ibid., p. 174.
[85] Fraser Harrison, Dark Angel, Aspects of Victorian Sexuality (London, England: Sheldon
Press, 1977), p. 272.
[86] Margaret Yeo, Reformer, St. Charles Borromeo (Milwaukee, WS: The Bruce Publishing
Company, 1938), p. 33-34.
[87] Ibid., p. 228-29.
[88] Ibid., p. 174.
[89] Clare Ausberry, “Family Affair, Abuse of the Elderly by Their Own Children Increases in
America”, The Wall Street Journal, Wednesday, February 3, 1988, Western edition, 1, 12.

[90] J. W. Jamieson, “Early Christianity as Missionary Religion, Book Review Article”, in The
Mankind Quarterly, Vol. 28, no. 4, Summer, 1988, p. 418.
[91] Ibid., p. 420.
[92] Michael Packe, ed. por L. C. B. Seaman, King Edward III, (London, England: Routledge
& Kegal Paul, 1983), p. 255.
[93] Joseph Bingham, The Antiquities of the Christian Church, Vol. 2, Book 18, Chapter 2,
Sect. 10 (London, England: Reeves & Turner, 1878), p. 1064.
[94] The Ante-Nicene Fathers, Vol. 5, Hippolytus, Cyprian, Caius, Novatian, Epistle 35
(Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1981 reprint), p. 314.
[95] Ante-Nicene Christian Library, Vol. 13, The Writings of Cyprian, Vol. 2, “Testimonies
Against the Jews” (Edinburgh, Scotland: T. & T. Clark, 1873), p 196. A última citação de
Cipriano é do salmo em nossa numeração.
[96] Tradução de Millôr Fernandes.
[97] John Dewey, Intelligence in the Modern World (New York, NY: The Modern Library,
1939), p. 417.
[98] Ibid., p. 422.
[99] Ibid., p. 431.
[100] Ibid., p. 486; extraído de Education and the Social Order, de Dewey, um panfleto
publicado pela League for Industrial Democracy.
[101] John Kekes, “Benevolence: A Minor Virtue”, Social Philosophy and Policy, Vol. 4, No.
2, Spring, 1987, 21.
[102] Ibid., p. 23.
[103] Ibid., p. 36.
[104] “Homilies on St. Matthew”, de Mary H. Allies, tradutor, Leaves from St. John
Chrysostom (London, England: Burns & Oates, 1889), p. 73.
[105] “Homilias sobre a Segunda Carta aos Coríntios de São João Crisóstomo”, in São
João Crisóstomo, Comentário às Cartas de São Paulo/2 (São Paulo: Paulus, 2010).
Coleção Patrística, Volume 27/2.
[106] “Rhythm the First”, extraído de J. B. Morris, tradutor, Select Works of S. Ephrem the
Syrian (Oxford, England: John Henry Parker, 1847), p. 9.
[107] Ibid., “Third Rhythm”, p. 25.
[108] Maureen Flynn, Sacred Charity, Confraternities and Social Welfare in Spain 1400-
1700 (Ithaca, NY: Cornell University Press, 1989), p. 76.
[109] Ibid., p. 247.
[110] Ibid., p. 86.
[111] Ibid., p. 95.
[112] Ibid., p. 96.
[113] Ibid., p. 118.
[114] João Calvino, A instituição da religião cristã, Tomo II, Livros III e IV (São Paulo:
Editora UNESP, 2009), p. 818 (IV:XVII:44).
[115] Ronald S. Wallace, Calvin, Geneva, and the Reformation (Edinburgh, Scotland:
Scottish Academic Press, 1988), p. 90. [Edição em português: Calvino, Genebra e a
Reforma. Um estudo sobre Calvino como um reformador social, clérigo, pastor e teólogo
(São Paulo: Cultura Cristã, 2003)].
[116] Ibid., p. 96.
[117] Ibid., p 124.
[118] Ibid., p. 31.
[119] Flynn, op. cit., p. 107.
[120] Stuart G. Hall, Doctrine and Practice in the Early Church (Grand Rapids, MI:
Eerdmans, [1991] 1992), p. 18.
[121] Robert A. Kraft, The Apostolic Fathers, A New Translation and Commentary, Vol. 3,
Barnabas and the Didache (New York, NY: Thomas Nelson & Sons, 1965), p. 172.
[Tradução do Didaquê (ou Didaqué) extraída do Volume 1 da Coleção Patrística (Editora
Paulus).]
[122] Hall, op. cit., p. 23.
[123] Idem.
[124] Hall, op. cit, p. 20.
[125] The Apostolic Constitutions, Book 8, 43, in Alexander Roberts and James Donaldson,
editors, Ante-Nicene Christian Library, Vol. 17, The Clementine Homilies, The Apostolic
Constitutions (Edinburgh, Scotland: T. & T. Clark, 1870), p. 252.
[126] Constitutions of the Holy Apostles, Book 7, Sect. 12; in Alexander Roberts and James
Donaldson, editors, Ante-Nicene Fathers, Vol. 7, Lactantius, Venantius, etc. (Grand Rapids,
MI: Eerdmans, 1982 reprint), p. 468.
[127] Joseph Bingham, The Antiquities of the Christian Church. Vol. 1 (London, England:
Reeves and Turner, 1878), p. 313-14.
[128] Ibid., p. 652-53.
[129] Ibid., Vol. 2, p. 1187-8.
[130] Veja B. D., “Charity not Indifference”, in The Orthodox Presbyterian, Vol. 3 (Belfast,
Ireland: William McComb, 1832), p. 96-102.
[131] Edward Motley Pickman, The Mind of Latin Christendom (London, England: Oxford
University Press, 1937), p. 297-98.
[132] Ibid., p. 311, nota 57.
[133] Ibid., p. 110.

[134] John Payne, tradutor, The Decameron of Giovanni Boccaccio (New York, NY: Triangle
Books, [1931] 1940), p. 18.
[135] Stephen A. McKnight, Sacralizing the Secular, The Renaissance Origins of Modernity
(Baton Rouge, LA: Louisiana State University Press, 1989), p. 31n.
[136] Idem.
[137] Ibid., p. 32.
[138] Ibid., p. 37-38.
[139] Ibid., p. 91.
[140] C. Gregg Singer, “Calvin and the Social Order”, in Jacob T. Hoogstra, editor, John
Calvin, Contemporary Prophet (Philadelphia, PA: Presbyterian and Reformed Publishing
Company, 1959), p. 229.
[141] C. Gregg Singer, John Calvin, His Roots and Fruits (Philadelphia, PA: Presbyterian
and Reformed Publishing Company, 1967), p. 68.
[142] Basil Hall, John Calvin (London, England: Routledge and Kegan Paul, [1956] 1962), p.
27.
[143] Emanuel Stickelberger, Calvin, A Life (Richmond, VA: John Knox Press, 1954), p. 83.
[144] R. N. Carew Hunt, Calvin (London, England: The Centenary Press, 1933), p. 47.
[145] João Calvino, Comentário sobre o Livro do Profeta Isaías, Volume 1. Tradução de
Valter Graciano Martins.
[146] Elsie Anne McKee, John Calvin on the Diaconate and the Liturgical Almsgiving
(Geneva, Switzerland: Librairie Droz S.A., 1984), p. 39.
[147] Ibid., p. 40.
[148] Ibid., p. 184.
[149] Ibid., p. 183.
[150] Ibid., p. 119.
[151] Ibid., p. 118.
[152] Philip Schaff, History of the Christian Church, Vol. 1, (New York: NY: Charles
Scribner’s Sons, 1882), p. 499-500.
[153] Carta, excerto, enviada em setembro de 1994.
[154] William Tucker, “Sweet Charity”, The American Spectator, February, 1995, 38-41.
[155] Walt Bogdanovich, The Great White Lie (New York: NY: Simon Schuster, 1991).

[156] Howard James, Crisis in the Courts (New York, NY: David McKay, [1967] 1968), p.
207.
[157] Robert Nisbet, The Present Age, Progress and Anarchy in Modern America (New
York, NY: Harper & Row, 1988), p. 65.
[158] Ibid., p. 67.
[159] Ibid., p. 55.
[160] Jean-Jacques Rousseau, O contrato social, 3ª edição (São Paulo: Martins Fontes,
1996), Livro II, Capítulo VII, p. 49. Tradução de Antonio de Pádua Danesi.
[161] Ibid., p. 50.
[162] Ibid.
[163] Eugene Ionesco, Hugoliad, or the Grotesque and Tragic life of Victor Hugo (New York,
NY: Grove Press, 1987), p. 116.
[164] John D. Rockefeller, III, The Second American Revolution (New York, NY: Harper &
Row, 1973), p. 51.
[165] Ibid., p. 25.
[166] Ibid., p. 34.
[167] Ibid., p. 182.
[168] Ibid., p. 41-49.
[169] Ibid., p. 113.
[170] Ibid., p. 143-163.
[171] “Constitution of the Holy Apostles”, in Ante-Nicene Fathers, Vol. 7 (Grand Rapids, MI:
Eerdmans, 1982 reprint), p. 424.
[172] Robert M. Grant, Early Christianity and Society (San Francisco, CA: Harper & Row,
1977), p. 68.
[173] Ibid., p. 69. As fontes de Grant são as seguintes: Epiphanius, Haer XXVI, 11, 1-2; de
Clemente, Exc. Ex Theod 49, 1; Irenaeus, Adv. Haer I, 5, 3; Hyppolytus, Ref. VI, 33; 34:8;
Heracleon in Origin, Ioh. Comm., XII, 50.)
[174] Ibid., p. 125.
[175] Tertullian, “De Fuga in Persecutione”, 13, in The Ante-Nicene Fathers, Vol. 4 (Grand
Rapids, MI: Eerdmans, 1982 reimpressão), p. 124.
[176] Lucian, Works, Vol. 5, Sec. 12.18 (Cambridge, MA: Harvard University Press, [1936]
1962), p. 13.

[177] Grant, op.cit., p. 66-67.

[178] Rabbi Meir Zlotowitz, Rabbi Nosson Scherman, Bereishis, Genesis, Vol. 1 (Brooklyn,
NY: Mesorah Publications, [1977] 1980), p. 198.
[179] Haim Hillel Ben-Sasson, “Charity”, in Encyclopaedia Judaica, Vol. 5 (Jerusalem,
Israel: Keter Publishing Company, 1971), p. 339.

[180] Steven S. Schwarzschild, “Justice”, in Ibid., Vol. 10, p. 476 s.


[181] “Charity”, in Geoffrey Wigoder, editor, Encyclopedic Dictionary of Judaism (Jerusalem,
Israel: Keter Publishing House, 1974), p. 120.

[182] H. H. Esser, “Mercy”, in Colin Brown, General Editor, The New International Dictionary
of New Testament Theology, Vol. 2 (Grand Rapids, MI: Zondervan, 1976), p. 594-598.

[183] Robert Lebel, Marcel Duchamp (New York: NY: Grove Press, 1959), p. 69.
[184] Ibid., p. 56.
[185] Ibid., p. 26.
[186] Bernard Smith, “Christian Aid: The Politics of Charity”, in Conservative Review, Vol. 1,
No. 1, February, 1990, 21-23.

[187] “Clement’s Second Letter”, 16, 4, Cyril C. Richardson, com E. R. Fairweather, E. R.


Hardy, M. H. Shepherd, Early Christian Fathers (New York, NY: Macmillan, 1970), p. 200.

[188] Justino de Roma, I e II Apologias e Diálogo com Trifão, 2ª edição (São Paulo: Paulus,
1995). Tradução Ivo Storniolo, Euclides M. Balancin. Coleção Patrística, Volume 3.
[189] Policarpo de Esmirna, “Segunda carta aos filipenses”, in Padres Apostólicos, 2ª
edição (São Paulo: Paulus, 1995). Tradução Ivo Storniolo, Euclides M. Balancin. Coleção
Patrística, Volume 1.

[190] Richardson, op. cit., Sect. 6, 133.


[191] Ibid., “Letter of Ignatius to Polycarp”, Sec. 4, 119. [A carta de “Inácio a Policarpo” está
disponível no Volume 1 da Coleção Patrística (Editora Paulus).]
[192] Ibid., “Letter of Polycarp to the Philippians”, 11:2, 3, 135. [A “Primeira carta aos
filipenses”, de Policarpo, está disponível no Volume 1 da Coleção Patrística (Editora
Paulus).]
[193] Ibid., “Letter of Ignatius to the Trallians”, 2:1-2; 99. [A carta de “Inácio aos tralianos”
está disponível no Volume 1 da Coleção Patrística (Editora Paulus).]
[194] Ibid., “The Didache”, 15:1-2; 178. [O “Didaqué” está disponível, entre outros lugares,
disponível no Volume 1 da Coleção Patrística (Editora Paulus).]
[195] “Ignatius, To the Magnesians”, Chap. 6, in Roberts, Donaldson and Crombie, The
Writings of the Apostolic Fathers, p. 177. [“Inácio aos magnésios” está disponível no
Volume 1 da Coleção Patrística (Editora Paulus).]
[196] “Ignatius, To the Trallians”, Chap. 3; Ibid., p. 191-92.
[197] Ibid., “The Pastor of Hermas”, Commandment Second, p. 350. [“O pastor de Hermas”
está disponível no Volume 1 da Coleção Patrística (Editora Paulus).]
[198] Ibid., Commandment Fifth, p. 356-57.
[199] Patrick Fairbairn, “Alms”, in Patrick Fairbairn The Imperial Bible Dictionary, Vol. 1
(Grand Rapids: MI: Zondervan, n.d., reprint of 1891 edition), p. 131-134.
[200] William Klassen, “Love, NT and Early Jewish Literature”, in David Noel Freedman,
The Anchor Bible Dictionary, Vol. 4, K-N (New York, NY: Doubleday, 1992), p. 381-396.
[201] James David O’Neill, “Alms”, in The Catholic Encyclopedia, Vol. 1 (New York, NY: The
Encyclopedia Press, [1907] 1913), p. 328-331.
[202] Geoffrey Barraclough, editor, The Christian World (New York: NY: Harry R. Abrams,
Publishers, 1981), p. 124.

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