Você está na página 1de 5

ATO ADMINISTRATIVO FÉ PÚBLICATRÂNSITO AUTUAÇÃO DE TRÂNSITO

ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
Os limites da presunção de fé pública das autuações de trânsito
O objetivo do presente texto oferecer um contraponto ao Parecer publicado no
BDM nº 15, ano 6, de junho de 1999, com título “Infração de Trânsito – Auto de
Infração – Ato Administrativo Revestido de Legitimidade – Considerações”.
Objetiva ainda atingir o cidadão comum, principalmente o cidadão que já sofreu
abuso estatal sob alegação de que o “funcionário público goza de fé pública” ou
de que seus atos são dotados dos atributos de “presunção de legitimidade e de
veracidade”.
Não ficou claro? Vai ficar, pois ocorreu com alguém próximo ao autor e, nada
melhor do que a vivência para possibilitar um conjunto de detalhes para a
presente narrativa.
Pois bem. No fim do ano passado essa pessoa recebeu uma notificação de
infração de trânsito, constando que ela estava conduzindo seu veículo fazendo
uso do celular. A notificação continha o modelo e a placa de seu veículo.
Até aqui a história não teria nada de anormal. Aliás, até o fato de essa pessoa
não ter cometido a infração também não tornaria a história peculiar. Porém,
enquanto a notificação indicava que a infração teria ocorrido com seu veículo na
Zona Sul da cidade de São Paulo por volta da meia noite, nesse mesmo horário
seu veículo estava na garagem na Zona Leste... Além disso, essa pessoa e sua
família sequer estavam no Estado de São Paulo nesse dia e horário.
Detalhe: a autuação é daquelas lavradas por agente de trânsito e não daquelas
em que o indivíduo é fotografado.
Apesar do espanto, o sujeito acreditou que se tratasse de um equívoco, elaborou
a defesa administrativa, juntando as passagens, nota fiscal do hotel e do traslado,
tudo demonstrando que nem ele e nem família poderiam ter cometido a infração.
Solicitou imagens de câmeras, pois ficou preocupado com a possibilidade de
haver um clone de seu veículo. Indicou telefones de testemunhas para confirmar
que seu veículo estava estacionado bem distante do local da infração.
O resultado? Simplesmente uma outra notificação com uma frase sucinta:
“autuação mantida”.
Sequer foi esclarecido o porquê. Nem consideraram as provas que foram
apresentadas.
Não é necessário dizer que foi mais caro fazer a defesa do que simplesmente
pagar a multa. Enfim, ele pagou e recorreu.
Injustiça não se pode admitir. Se isso ocorreu com ele, pode ocorrer com outros.
E isso deve ser consertado.
É quase certo que tenha sido utilizado como fundamento da decisão aquela velha
frase de que “o funcionário público goza de fé pública” ou de que seus atos são
dotados de presunção de “veracidade e de legitimidade”. Diz-se que é quase certo
porque não houve cientificação dos fundamentos, levando à necessidade de o
administrado adivinhá-los. Mais difícil ainda é a situação porque sequer foi
esclarecido o local onde o processo poderia ser consultado.
Já que é necessário consertar, deve-se começar por esclarecer os limites dessas
frases.
Quando se diz que o “funcionário” ou servidor público goza de fé pública, quer-se
dizer que seus atos e manifestações devem ser tidos como merecedores de fé,
de crença.
Quando se diz que seus atos gozam de presunção de veracidade, significa que
os fatos constantes desses atos devem ser tidos por verdadeiros, em princípio.
Por sua vez, quando se diz que se presumem legítimos, significa que devem ser
tratados como de acordo com a lei.
Mas até onde essas expressões são válidas?
Imaginem se houvessem sido expedidos milhares de autos de infração como os
mencionados no caso acima, todos inválidos. Alguns pagariam sem reclamar, por
acharem que não compensaria questionar. Outros pagariam reclamando. Outros
não pagariam e não fariam nada. Outros recorreriam.
Percebam, contudo, que pode ser uma fácil fonte de arrecadação ilícita.
O que acham de uma fonte de arrecadação como essa simplesmente baseada na
afirmação de que, se o fiscal de trânsito disse que houve as infrações, então elas
ocorreram mesmo?
Impossível sustentar tamanho absurdo caso não sejam delineados os devidos
limites às prerrogativas dos agentes de fiscalização.
Quando Hely Lopes Meirelles diz que a presunção de legitimidade transfere ao
cidadão o dever de provar a invalidade do ato, ou que o Estado não pode ficar na
dependência da solução de eventual impugnação para agir, [1] tais afirmações
precisam ser compreendidas em seus devidos termos.
Primeiro, porque significam apenas que os atos das autoridades públicas devem
ser tidos como verdadeiros e válidos simplesmente para que os processos por
eles integrados possam prosseguir sem necessidade de verificação.
E essa “facilidade” é apenas um meio necessário para que o Estado possa
alcançar seus fins públicos, o interesse coletivo.[2]
Basta pensar em um exemplo para elucidar esse aspecto. Imaginando um edifício
que dá claras mostras de que está prestes a ruir, a prudência recomenda que
sejam retiradas as pessoas de seu interior e de seu entorno, mesmo que ainda
não haja provas cabais do risco.
Ocorre, todavia, que tanto o uso da força, assim como a própria presunção, devem
estar baseadas na lei, e esse é o detalhe importante que costuma ser olvidado.
Além disso, a presunção no caso é mera antecipação daquilo que é provável. De
forma alguma a presunção pode ser absoluta. Se fosse, seria o mesmo que
admitir que o Estado não erra, seria um enorme retrocesso em prejuízo à
cidadania.
Assim, se uma autoridade efetivamente presencia uma infração de trânsito e
preenche o auto de infração, o processo de cobrança da penalidade deve seguir
seus trâmites legais até o recebimento da quantia devida, sem necessidade de
ser verificado se a infração ocorreu mesmo.
Isso está correto na medida em que o § 2º do art. 280 do Código de Trânsito
Brasileiro dispõe que a infração é comprovada por “por declaração da autoridade
ou do agente da autoridade de trânsito, por aparelho eletrônico ou por
equipamento audiovisual, reações químicas ou qualquer outro meio
tecnologicamente disponível, previamente regulamentado pelo CONTRAN.”[3]
Não se nega que haveria risco de infrações ficarem impunes se o fato de o
cidadão alegar que não as cometeu fosse suficiente para invalidá-las.
A declaração do agente, por sua vez, se se tratar de sujeito não interessado, pode
até ser enquadrada como prova testemunhal.[4]
Independentemente dessa questão, é certo que a declaração também ganhará
ares de veracidade se, ao preencher o auto de infração, determinar o modelo do
veículo, sua placa, e outros detalhes, além mencionar determinado veículo ter
estado em determinado local e em determinado horário. Isso porque é pouco
provável que alguém consiga adivinhar qual placa é associada a tal veículo e qual
sua cor se não o tiver presenciado. Dito de outra forma, se um agente de trânsito
atesta, por exemplo, que presenciou um veículo de marca X, modelo Y, placas
ABC1234 cruzando um sinal vermelho no dia 9/9/1999 às 12h00, alguns fatos
podem ser verossímeis. É difícil acertar uma combinação de placa e veículo, sem
que o tenha presenciado, salvo se o agente estiver com algum instrumento que o
permita acessar o banco de dados de veículos cadastrados. Nesse caso, bastaria
digitar parte da placa para o sistema já mostrar os veículos possíveis. Além disso,
para dizer que certo veículo estava em algum horário e local, é necessário
confirmar se o agente de trânsito também estava lá.
Porém, se há um questionamento que apresente elementos para duvidar da
declaração, não se pode admitir que a palavra do agente público valha mais do
que a palavra do cidadão. É uma palavra contra outra e, normalmente, quem
afirma deve provar, mormente se houver dúvida fundada.
Augustin Gordillo conseguiu perceber o risco de se atribuir tamanho poder a
agentes públicos isolados:[5]
Por sua vez, o ato administrativo pode ser, e frequentemente é, produto de uma
só vontade de um indivíduo isolado que por ocupar um cargo ou desempenhar
uma função adota por si uma determinada decisão; reconhecer igual presunção
que a da lei, como para exigir seu cumprimento imediato, a qualquer ato de
qualquer agente estatal que, sem informação nem parecer jurídico, sem consulta,
sem discussão nem debate algum, sem fundamentação normativa nem fática,
emita, é consagrar o império da arbitrariedade.
Há ainda outros autores mencionados por Maria Sylvia Zanella di Pietro que
também perceberam a necessidade de, na dúvida, prevalecer a decisão em favor
da liberdade. A presunção para eles permitiria apenas a ação da Administração,
mas não a isenção do dever de provar a regularidade de sua atuação caso
questionada.[6]
Não é admissível que o volume de autuações seja utilizado como justificativa para
violação dos direitos individuais.[7]
Nesse sentido, quando a infração é fotografada por equipamento idôneo, tem-se
um meio de prova que sustenta a autuação. Nesse caso, até se poderia exigir do
cidadão prova em contrário.
Mas nunca isso pode ocorrer em situações em que a autuação é feita apenas por
um agente administrativo, sozinho, e esteja confrontada por indícios contrários ao
fato sustentado pelo agente. E essa conclusão não pode estar baseada apenas
no fato de haver doutrina sustentando-a. Não é o argumento de autoridade que
importa. Importa a razão. Importa a sociedade que os cidadãos democraticamente
escolhem para si.
Aliás, por que no processo penal a acusação deve provar a culpa do acusado?
Irão dizer que lá é diferente? Que a liberdade vale mais e por isso exigem mais
cautela? Pelo que se sabe, a exigência do contraditório, da ampla defesa, do
devido processo legal e da prova lícita estão todos no mesmo artigo da
Constituição Federal e não têm seu âmbito de aplicação restrito ao processo
penal.
Permitir penas baseadas em meras alegações de agentes estatais quando estas
são questionadas com elementos idôneos seria dar poderes demais ao Estado,
abrindo-se caminho para o abuso.[8]
Um Estado forte muitas vezes é necessário, por ser instrumento importante em
diversas áreas e, para tanto, podendo se chocar com interesses poderosos. Mas,
ante seu caráter instrumental, ele tanto pode ser usado para o bem quanto para
o mal.
Por isso, a ação estatal deve estar baseada na lei. Da mesma forma, quando se
envolve a liberdade, é bom ressaltar, é a lei que deve dizer qual presunção deve
prevalecer e a quem cabe o ônus de provar.[9]
E a limitação da ação estatal está inserida justamente na construção da cidadania,
cujo caminho já se sabe árduo.[10]
Com esse texto, espera-se incomodar o leitor, fazê-lo ir atrás de seus direitos,
questionar a opressão tirânica contra sua liberdade e seus direitos. É assim que
se constrói a cidadania.
Pode até parecer mais caro e mais difícil defender seus direitos. Mas liberdade
não tem preço e, se não houver ação, haverá culpa pela omissão.
Pode valer mais sofrer e morrer pela liberdade do que viver no conforto da
sujeição.

Você também pode gostar