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Laboratório de Guionismo, folha 5

Texto 1: Construir personagens credíveis

“As curtas-metragens tendem a centrar-se nas personagens, porque há


pouco tempo para usar outras técnicas narrativas (…). Assim, o poder ou a
força dos intervenientes deve compensar as limitações práticas, técnicas,
orçamentais e narrativas da breve história e impulsioná-la.”
— Patrick Nash, guionista

A importância das personagens

Pessoas, animais ou objetos — grandes personagens fazem grandes histórias. Quem não
conhece D. Quixote, mesmo sem ter lido as aventuras do fidalgo arruinado, louco e idealista,
fruto da imaginação de Miguel de Cervantes? Quem nunca ouviu falar do Super-Homem, criado
por Jerry Siegel, ainda que não tenha folheado a banda desenhada ou visto o herói voando
através do ecrã? Estas figuras imaginárias são incontornáveis e fazem parte da cultura comum
(Mancelos 50).
Para construir o enredo do seu guião, pode partir das personagens. São elas que
praticam as ações ou que as sofrem; é com elas que simpatizamos ou criamos antagonismo; são
elas que imitamos, numa tentativa de nos tornarmos na pessoa que sonhamos ser (Frensham
86).

Tipologia

É costume existirem duas figuras importantes no enredo de uma curta-metragem: o


herói (ou anti-herói) e o antagonista. O herói corresponde ao protagonista, a figura central da
história. Não necessita de possuir super-poderes, nem qualidades excecionais. Numa curta-
metragem, a audiência cria empatia facilmente com pessoas vulgares, como nós, que enfrentam
alguma dificuldade. Por exemplo, a protagonista de The Lunch Date (1990), de Adam Davidson,
é uma idosa que acidentalmente choca com um transeunte, espalha no chão o conteúdo da
carteira e, ao consumir tempo a recuperar os objetos, perde o comboio. Uma pessoa vulgar e
uma situação comum originam uma história extraordinária sobre o preconceito.
O antagonista, vilão ou inimigo é, claro está, o mau da fita — literalmente. É essa
personagem que pretende impedir, a todo o custo, o herói de atingir o objetivo. Não é
necessariamente um indivíduo com mau caráter: pode tratar-se apenas de um rival a competir
pela mesma rapariga, por exemplo (Nash 92).
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A ficha de personagem

Escrever é a arte de mentir bem. Para tanto, o guionista deve imaginar que o herói e o
antagonista são pessoas reais. Uma técnica simples, mas eficaz, para criar uma personagem
consiste em entrevistá-la, de forma a criar uma ficha. Registe os seguintes dados, no
computador ou num bloco de notas: a) Nome, alcunha, género, idade; b) Aspeto físico; c) Traços
psicológicos; d) Vida amorosa e familiar; e) Religião e/ou espiritualidade; f) Ideologia; g)
Emprego e ambições profissionais; h) Educação; i) Discurso (formal, informal, gíria); j)
Objetivo/missão no enredo (Marshall 34-35; Timbal-Duclaux 101-102).
Naturalmente que não irá plasmar todos estes dados na história, sobretudo tratando-se
de uma curta-metragem. No entanto, conhece agora as principais figuras do avesso. Ray
Frensham afirma: “Mesmo que não venha a empregar 80% da informação acerca da sua
personagem no argumento, precisa de a conhecer. Não apenas porque clarifica e define aspetos
para si, mas também porque, em determinada altura, alguém (um editor, produtor, realizador
ou ator) apontará para o guião e perguntará: por que motivo a personagem diz/faz isto?
Precisará de ter uma resposta plausível, e um trabalho atento sobre os actantes proporcionará
essa explicação” (Frensham 70).

Descrever a personagem

Não existe uma fórmula para descrever uma personagem num guião. Contudo, é
importante referir pormenores que ajudam o leitor do argumento a visualizá-la e, mais tarde, a
fazer o “casting”. Proponho este modelo: nome; idade (a menos que se trate de uma criança,
em que ter 2 ou 6 anos é completamente diferente, indique só a faixa etária); aspeto (altura,
peso, vestuário). Por exemplo: Ana é uma jovem na faixa dos vinte anos, alta, de peso médio,
vestida com uma camisola azul, calças de ganga, e sapatilhas pretas. (…)

Mancelos, João de. Como escrever um guião para curta-metragem. 2.ª ed. Lisboa: Colibri, 2021.
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Texto 2: Excerto do guião de Bara Prata Lite/Talk (1997), de Lukas Moodysson

INT. AUTOCARRO – MANHÃ

O autocarro encontra-se cheio de PASSAGEIROS, sobretudo


jovens. BIRGER ANDERSSON, na faixa dos sessenta anos, alto,
magro, vestido com um casaco de fato de treino, camisa,
calças de fazenda aos quadrados e sapatilhas, senta-se ao
lado de uma RAPARIGA, na casa dos vinte, de estatura
mediana, magra, vestida com uma camisola de manga curta,
jeans e sapatilhas. Traz com ela um livro e uma mala.

BIRGER
Bem, o verão está quase a chegar!
(sorri)
Maravilhoso.

A rapariga ignora-o e volta o rosto para a janela do


autocarro. Birger contempla o livro da estudante.

BIRGER
É um livro em inglês?

A rapariga, constrangida, vira o rosto para ele e sorri, em


SILÊNCIO. O semblante do homem revela tristeza.

BIRGER
(hesitante)
Então, vai para a escola?

A jovem ignora-o, de novo, visivelmente incomodada.

BIRGER
Estou a caminho do trabalho.
Volvo... Trabalho na Volvo.
(acena)
É um bom emprego. Gosto
de trabalhar lá.

INT. FÁBRICA VOLVO - OFICINA - MANHÃ

Vários TRABALHADORES FABRIS desempenham funções laborais.


Birger, com um saco plástico branco, observa-os. Tem um ar
perdido. Deambula por entre a maquinaria RUIDOSA.

Aproxima-se de NIELSEN, um operário na faixa dos sessenta,


de cabelo grisalho, vestido com a farda da Volvo e sapatos
negros, que se encontra a calibrar uma peça. O RUÍDO é
ensurdecedor. Toca-lhe no braço e MURMURA algo
ininteligível, para o corrigir.
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NIELSEN
Por favor, vá embora.

Birger afasta-se.

INT. FÁBRICA DA VOLVO – CANTINA – MANHÃ

A cantina é espaçosa, bem iluminada e com um ar moderno.


Apresenta várias mesas, cadeiras e um balcão. Encontra-se
vazia, pois é ainda cedo para o almoço. Birger entra e
dirige-se ao balcão.

BIRGER
Ei!

Uma FUNCIONÁRIA, na casa dos quarenta, com óculos, vestida


com uma bata branca, uma touca e sapatos, entra e despeja
água num recipiente. Não responde a Birger. Volta-lhe as
costas.

FUNCIONÁRIA
(para o colega)
Ernst! Vem cá!

Surge ERNST, um homem alto, de barba grisalha, na faixa dos


sessenta, vestido de branco e com um chapéu de cozinheiro.

ERNST
Olá!

BIRGER
Cheguei demasiado cedo? São só
nove e meia, mas pensei…

ERNST
Não acha que devia ir para casa?

BIRGER
Não posso tomar um café? Trouxe
um termo.

ERNST
(saturado)
Não pode continuar a vir aqui
todos os dias. Já não trabalha
aqui.

Moodysson, Lukas, dir. Bara Prata Lite/Talk. Screenplay by Lukas Moodysson. Sweden: Memfis
Film, 1997. Transcrito e adaptado por J. Mancelos.
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Exercício 1: ficha de personagem

Nome, alcunha, género

Idade

Aspeto físico

Traços psicológicos

Vida amorosa/familiar

Religião/espiritualidade/ideologia

Emprego/ambições profissionais

Educação

Objetivo/missão no enredo

Exercício 2: adivinhe a personagem

Pense numa personagem de um filme conhecido. Preencha a ficha, mas sem dizer o nome. Os
colegas, tentarão adivinhar quem é, através das pistas que fornecer. Podem colocar perguntas.

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