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N 70003434388
2001/CIVEL

POSSESSÓRIA. ÁREA RURAL. MST. FUNÇÃO


SOCIAL DA PROPRIEDADE. INVESTIGAÇÃO.
POSSIBILIDADE. Função social da propriedade como
Direito Fundamental. Construção de nova exegese da
norma material e procedimental. Investigação da
produtividade e aproveitamento da área em ação
possessória. Necessidade. Art. 5°, XXII e XXIII, CF. Lei
n°8.629/93. Negaram provimento. Voto vencido.

AGRAVO DE INSTRUMENTO DÉCIMA NONA CÂMARA CÍVEL

N 70003434388 PASSO FUNDO

PLINIO FORMIGHIERI AGRAVANTE

VALERIA DREYER FORMIGHIERI AGRAVANTE

LOIVO DAL AGNOLL AGRAVADO(A)

ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos.
Acordam os Desembargadores integrantes da Décima Nona
Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado, por maioria, negar provimento
ao agravo.
Custas, na forma da lei.
Participaram do julgamento, além do signatário, os eminentes
Senhores Desembargadores, Mário José Gomes Pereira e Luís Augusto
Coelho Braga.

Porto Alegre, 06 de novembro de 2.001.


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DES. CARLOS RAFAEL DOS SANTOS JUNIOR,


Relator.

RELATÓRIO

DES. CARLOS RAFAEL DOS SANTOS JUNIOR (RELATOR) –


Trata-se de agravo de instrumento interposto por PLÍNIO
FORMIGUIERI e VALÉRIA DREYER FORMIGHIERI, contra a decisão judicial
que, nos autos da ação de reintegração de posse endereçada contra LOIVO
DAL AGNOLL e OUTROS, indeferiu a liminar reintegratória, postulada nos
termos do art. 928 do CPC.
Em suas razões recursais, sustentam os agravantes que, em 15
de outubro do corrente ano, tiveram sua propriedade invadida por pessoas
integrantes do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra. Asseveram, que
estão devidamente demonstrados os requisitos do art. 927 do CPC, e que a
demanda não é sede adequada para debate acerca do cumprimento da função
social da propriedade que, no entanto, afirmam produtiva. Juntaram certidão de
propriedade da área, escritura pública de divisão amigável, boletim de
ocorrência, certificado de cadastro de imóvel rural, declaração de ITR do
exercício de 2.001, e comprovação de recolhimento do ITR, entre outros
documentos.
Pediram, assim, fosse agregado efeito suspensivo ativo ao
recurso, com o deferimento imediato da liminar postulada.

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Recebido o recurso, negado o efeito suspensivo (fl. 95/96), os


recorrentes pleitearam e obtiveram, em regime de plantão, reconsideração do
despacho que negou o efeito suspensivo, e seu deferimento, todavia revogado
em seguida pelo relator. Contra a decisão que negou o efeito suspensivo
postulado, os agravantes interpuseram agravo regimental, que não foi
conhecido por esta Décima Nona Câmara Cível, em sessão de 23 de outubro
passado. Impetraram, também, Mandado de Segurança contra a decisão que
revogou a reconsideração da eminente colega plantonista, cuja liminar foi
negada pelo preclaro Desembargador José Francisco Pellegrini.
O recurso foi com vistas à Dra. Procuradora de Justiça, que
exarou o parecer de fls.251/263, pugnando pelo improvimento do agravo de
instrumento.
Os agravados Loivo Agnoll, Dilamar de Campos e Airton
trenhago, juntaram as contra-razões de fl. 267/269, pedindo a manutenção da
decisão atacada.
É o relatório.

VOTO
DES. CARLOS RAFAEL DOS SANTOS JUNIOR (RELATOR) –

Como se viu do relatório, se enfrenta recurso de agravo de


instrumento manejado contra a decisão do eminente Dr. Luiz Christiano Enger
Aires, da Primeira Vara Cível da Comarca de Passo Fundo, que indeferiu
pretensão dos autores de ação de reintegração de posse, de liminarmente se
verem restituídos na posse de parte de área rural de sua propriedade, invadida
por agricultores sem terra. Na discutida decisão, que por cópia veio a estes
autos nas fls.68/73, o magistrado assentou a necessidade da demonstração do

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atendimento, pela propriedade, de sua função social. Viu conflito de direitos


patrimoniais e pessoais, e considerou a reduzida parcela da área rural
invadida.

Os agravantes, a seu turno, asseveram não ser caso sequer de


exame da mencionada funcionalidade social da propriedade objeto do feito,
sustentam que estão demonstrados todos os requisitos do artigo 927, do
Código de Processo Civil – posse anterior, esbulho, sua data e a perda da
posse – e pretendem a concessão da liminar negada.

A questão posta nestes autos, diz com a necessidade, ou não, da


investigação acerca do atendimento da denominada função social da
propriedade, em sede de ações de reintegração de posse, nas quais, segundo
o regramento do Código de Processo Civil, em seus artigos 926 a 933, o
debate haveria de se limitar à questão da posse, esta vista singelamente como
a situação fática de sujeição da coisa ao indivíduo.

Todavia, o Juiz, como intérprete da norma jurídica, com a função


de dar vida concreta ao preceito abstrato, cabe extrair do direito positivo sua
verdadeira concepção teleológica, adequando-o a cada fato concreto que lhe
venha a ser submetido. Nessa atividade, muitas vezes, de há de buscar novos
rumos, não nos satisfazendo com a interpretação jurídica tradicional.
Periodicamente é necessário revisar conceitos, adequando-os aos novos fatos,
de nova época, e sob contexto diverso daqueles existentes não apenas ao
tempo da criação da norma, mas principalmente quando da fixação da exegese
sedimentada.

O sempre lembrado Carlos Maximiliano, aborda o tema – que


impressiona pela atualidade – trazendo conforto ao avanço, ao
aperfeiçoamento ou mesmo à modificação radical da interpretação ortodoxa.
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Menciona o insigne jurista a importância da exegese crítica da norma, trazendo


à colação visões alienígenas que sufragam esta postura, senão vejamos.

“Os norte-americanos preferem ao trabalho analítico, ao exame


da lei isolada, à Interpretação propriamente dita, o esforço sintético, a que

apelidam Construção. Para eles, o jurista reúne e sistematiza o conjunto de


normas; e com seu espírito ou conteúdo forma um complexo orgânico. Ao
invés de criticar a lei, procura compreendê-la e nas suas palavras,
confrontadas com outras do mesmo ou de diferente repositório, achar o Direito
Positivo, lógico, aplicável à vida real. A Interpretação atém-se ao texto, como a

velha exegese; enquanto a Construção vai além, examina as normas jurídicas


em seu conjunto e em relação à ciência, e do acordo geral deduz uma obra
sistemática, um todo orgânico; uma estuda propriamente a lei, a outra conserva
como principal objetivo descobrir e revelar o Direito; aquela presta atenção
maior às palavras e ao sentido respectivo, esta ao alcance do texto; a primeira
decompõe, a segunda recompõe, compreende, constrói.”(Hermenêutica e
Aplicação do Direito, Rio de Janeiro, 1979, Forense, 9ª ed., p. 40). Importa
notar, que se está frente a lição buscada pelo jurista em Sutherland, Campbell
Black, John Bouvier e Woodburn, todos doutrinadores americanos, naturais,
portanto, de conhecida nação cujo sistema judiciário se forjou, exatamente, na
construção judicial. E em terras locais, se pretende impedi-la, sob o argumento
de arranhão à lei.

O professor Alexandre Pasqualini, em ensaio denominado Sobre


a Interpretação Sistemática do Direito, citando trabalho do Dr. Juarez Freitas,
discorre sobre a importância de uma nova visão do direito positivo. Sustenta,
nesse sentido, que a “...mudança no conceito de interpretação sistemática
decorre – como se verá – da simultânea e simétrica ampliação dos conceitos

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de sistema jurídico e de antinomias jurídicas, orientada pela descoberta,


absolutamente pioneira e lúcida, do princípio da hierarquização
axiológica.”(Revista da Ajuris, v. 65, pp. 283/284).

Com estas considerações, pensa-se que se há de construir uma


nova exegese da norma a respeito da posse e da propriedade imóveis, dando
vida efetiva ao conceito da função social da propriedade, que certamente não
encontra lugar no texto constitucional por circunstância de simples diletantismo.

Nesse sentido, de ver que a denominada função social da


propriedade, não é novidade no ordenamento jurídico brasileiro, haja vista sua
previsão constitucional remontar à Constituição de 1934(art.115). Na carta
política outorgada de 1969(Emenda Constitucional n° 1/69), igualmente não foi
esquecida, figurando em seu Título III, que disciplinava a Ordem Econômica e
Social, então no artigo 160, inciso III. O referido dispositivo vinha assim vazado:

Art. 160. A ordem econômica e social tem por fim realizar o


desenvolvimento nacional e a justiça social, com base nos
seguintes princípios:

I – liberdade de iniciativa;
II – valorização do trabalho como condição da dignidade
humana;
III – função social da propriedade;
IV – harmonia e solidariedade entre as categorias sociais de
produção;
V – repressão ao abuso do poder econômico, caracterizado
pelo domínio dos mercados, a eliminação da concorrência e o
aumento arbitrário dos lucros; e
VI – expansão das oportunidades de emprego produtivo.

A Constituição Federal atual, promulgada em 05 de outubro de


1988 – chamada de cidadã pelo Presidente do Congresso Nacional, Deputado
Federal Ulisses Guimarães – manteve o status de norma constitucional da
denominada função social da propriedade. Todavia, nesta última, foi incluída no
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Título II, Dos Direitos e Garantias Fundamentais, entre os Direitos e Deveres


Individuais e Coletivos. Na nova Carta Política, o tema encontra disciplina no
artigo 5°, incisos XXII e XXIII, que têm a seguinte redação.

Art. 5°. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de


qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residente no País a inviolabilidade do direito à
vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade,
nos seguintes termos:
XXII – é garantido o direito de propriedade;
XXIII – a propriedade atenderá a sua função social;

Esta ação do constituinte de 1988, de transportar a função social


da propriedade do Título que tratava da ordem econômica e social, com nítida
prevalência da noção de desenvolvimento e segurança nacionais sobre os
direitos dos cidadãos, para o que contém os direitos e garantias fundamentais
do cidadão brasileiro, por certo que há de ter algum efeito no mundo jurídico
pós 1988.

A respeito da nova concepção da função social da propriedade,


pode-se citar, inclusive, autores tradicionais, como Celso Ribeiro Bastos e Ives
Gandra Martins, que comentando o inciso XXIII, do artigo 5°, da Constituição
Federal/88, lembram que não obstante a garantia do direito de propriedade em
si mesmo conste do texto constitucional, este passa a sofrer limitações maiores
do que as que havia no regime anterior. Dizem que “Isto, contudo, não significa
dizer que o titular da propriedade não possa vir a abusar do seu direito como,
de resto, qualquer outro titular de uma relação jurídica. Na medida em que haja
o uso degenerado, exclusivamente personalista e egoísta, até mesmo
deturpado à luz dos interesses pessoais do próprio possuidor, o direito de
propriedade vai expor-se a sanções fundamentalmente de duas ordens: as
decorrentes da infringência às normas do poder de polícia, ou então à perda da

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propriedade na forma da Constituição.”(Comentários à Constituição do Brasil,


1989, São Paulo, Saraiva, v. II, p.125).

A eminente Dra. Procuradora de Justiça, em seu


parecer(fls.251/263), também traz lição do eminente Clóvis do Couto e Silva,
no sentido de que a propriedade contém, em si mesma, carga obrigacional, e
não apenas de fruição.

De outro lado, se tem argumentado que a ação de reintegração


de posse não possibilita, conceitualmente, sequer o exame da questão da
propriedade. Contudo, não parece acertada esta visão quando se trata, como
no caso, de questão, não obstante possessória, em que se materializa conflito
de interesses coletivos e individuais. Não se pode esquecer, no ponto, que a
posse é, também, um dos direitos inerentes ao domínio, como o estabelece o
artigo 524, do Código Civil Brasileiro.

Modificado, então, que foi o próprio conceito de propriedade, com


a maior valia que sua função social mereceu no texto constitucional, lhe foi
imposto um limite que, não obstante preexistente, hipertrofia-se a partir da nova
Carta. Aliás, os próprios juristas acima citados, não deixaram de mencionar,
ainda que de modo subliminar, a necessária justaposição dos dois
conceitos(interesses pessoais do próprio possuidor, o direito de propriedade
vai expor-se a sanções).

Nesse novo contexto, também de citar, a promulgação da Lei


n°8.629/93, lembrada pela decisão recorrida, que tem a finalidade de examinar,
investigar, aferir, a produtividade das propriedades rurais. As conclusões
obtidas pela aplicação da norma em comento, por certo irão instruir
levantamentos de áreas aptas à desapropriação para fins de reforma agrária,
mas também hão de servir de instrumental probatório ao Poder Judiciário, que
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terá então base segura para o exame deste novo enfoque que o direito de
propriedade merece.

Com certeza, o tema ainda demandará modificação legislativa no


âmbito do processo civil, com a sistematização da investigação judicial da
função social da propriedade em cada caso concreto submetido ao Judiciário.
Todavia, o Juiz não pode deixar de decidir pela falta de norma infra-
constitucional de cunho procedimental. Há de emprestar, às normas
processuais, então, caráter amplo, ajustando-as ao novo direito positivo
material a fim de não sepultá-lo por eventual atraso legislativo. Assim, a
construção de uma nova exegese da norma, necessária à luz de um sistema
jurídico aberto e incompleto, “...assume, no seio do sistema, a condição de um
de seus pressupostos lógicos, eis que, abolindo a arbitrária dicotomia entre
interno e externo, assegura, em face do caso concreto e, principalmente, sem
recorrer ao moroso legislativo, sua espontânea e natural
modernização.”(Alexandre Pasqualini, Revista da Ajuris, 65, pp.287/288).

De todo o exposto, a conclusão é única. Não há mais como se


vedar, ao Juiz, a investigação acerca da função social da propriedade, quando
se vê o Judiciário diante de conflitos agrários como o ora em pauta. Sustentar o
contrário, a meu juízo, significa negar vigência ao próprio Texto Maior,
submetendo-o a garrote de norma processual que tem por finalidade,
exatamente, dar efetividade ao direito material, jamais impedir seu exercício. E
isto é violar a lei.

Esta visão não é original nesta Décima Nona Câmara Cível. Em


ocasião pretérita, com composição diversa, se chegou à mesma conclusão, em
acórdão cuja ementa restou assim redigida.

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“AGRAVO DE INSTRUMENTO. DECISÃO ATACADA:


LIMINAR QUE CONCEDEU A REINTEGRAÇÃO DE
POSSE DA EMPRESA ARRENDATÁRIA EM
DETRIMENTO DOS “SEM TERRA”.
Liminar deferida em primeiro grau suspensa através de
despacho proferido nos autos do agravo, pelo
Desembargador de plantão.
Competência da Justiça Estadual.
Recurso conhecido. Mesmo que descumprindo o disposto
no art. 526, CPC. Face dissídio jurisprudencial a respeito
e porque demanda versa direitos fundamentais.
Garantia a bens fundamentais como mínimo social.
Prevalência dos direitos fundamentais das 600 famílias
acampadas em detrimento do direito puramente
patrimonial de uma empresa. Propriedade, garantia de
agasalho, casa e refúgio do cidadão.
Inobstante ser produtiva, a área não cumpre sua função
social, circunstância esta demonstrada pelos débitos
fiscais que a empresa proprietária tem perante aUnião.
Imóvel penhorado ao Instituto nacional de Seguro Social –
INSS.
Considerações sobre os conflitos sociais e o Judiciário.
Doutrina local e estrangeira.
Conhecido, por maioria, rejeitada a preliminar de
incompetência à unanimidade, proveram o agravo, por
maioria.”(A. I. n° 598 360 402, Relator Des. Guinther
Spode.)

Por outro lado, se é verdadeira a circunstância de que é dado ao


magistrado, no seio de ação de reintegração de posse que tenha por objeto
conflitos agrários, investigar acerca do atendimento ou não pela propriedade,
de sua função social, por certo que, em sede de liminar reintegratória, diante de
um juízo ainda perfunctório e superficial como o que ora se efetiva, não há
como se deixar de manter a decisão recorrida.

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Com efeito, os autores não demonstraram, através da Declaração


de Propriedade própria, o grau de utilização e eficiência de exploração da área
objeto da possessória, nos termos e forma previstos na Lei n°8.629/93, única
prova legal – e documental por natureza – que autorizaria a imediata
reintegração. A prova mencionada, ademais, poderia ter sido obtida pelos
proprietários da área muito antes do conflito instalado. O argumento da
impossibilidade da vistoria, em razão do alegado esbulho, por força do artigo
2°, § 6°, da norma mencionada, não os socorre, haja vista sabido que os
próprios proprietários rurais impedem o Incra de ingressar nas áreas que
haveriam de ser vistoriadas.

E não feita esta demonstração imediata, sem qualquer resquício


de dúvida se há de aguardar a instrução, quando além de outros meios de
prova possíveis, a imediação que o magistrado manterá com a prova trará os
esclarecimentos necessários ao desate da questão posta em juízo.

Por tudo isso, nego provimento a este agravo de instrumento,


e mantenho a decisão recorrida.

DES. MÁRIO JOSÉ GOMES PEREIRA (REVISOR) – Cuida-se de examinar


recurso interposto por Plínio Formighieri e sua mulher Valéria Dreyer
Formighieri, via do qual buscam reformar a decisão proferida pelo juízo de
Passo Fundo, que indeferiu liminar de reintegração de posse, ao fundamento
de que os autores, ora agravantes, deixaram de demonstrar o adequado
exercício do direito de propriedade, pelo atendimento de sua função social.

O agravo foi contra-arrazoado (fls.267/269), tendo a representante


do M.P., neste colegiado, opinado pelo improvimento do recurso.

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E ainda que se esteja a reexaminar simples decisão interlocutória,


que limitou-se a indeferir a postulada reintegração liminar na posse de uma
área de 3 hectares, de todo conveniente que se convoque noções
fundamentais acerca do tema.

Atualmente, e sobre tal não pairam dúvidas, a propriedade não


pode ser encarada apenas como direito civil de usar, fruir, dispor e reivindicar
(art. 524 do Código Civil), mas à luz dos preceitos constitucionais vigentes.

Vive-se uma fase de predomínio do social sobre o individual e


neste contexto o direito de propriedade não mais se reveste do caráter de
absoluto e intangível de que outrora se impregnava, mas está sujeito a
limitações ditadas pelo interesse público e pelos princípios da justiça e do bem
comum.

Há um conjunto de normas na atual Constituição (arts. 5º, incs.


XXIV a XXX, 170, incs. II e III, 176, 177, 178, 182, 183, 184, 185, 186, 191 e
222) que interferem com a propriedade, deixando de considerá-la como um
direito individual e atrelando-a aos princípios da ordem econômica.

Esses princípios têm por finalidade “assegurar a todos existência


digna, conforme os ditames da justiça social” (art. 170 da Constituição Federal),
pelo que a propriedade privada, que tem de atender sua função social, fica
vinculada à consecução desses princípios. Veja-se que a Constituição garante
o direito de propriedade (art. 5º, inc. XXII), mas desde que atenda ela sua
função social (art. 5º, inc. XXIII: “ a propriedade atenderá sua função social”.

A inserção da função social da propriedade no rol dos direitos e


garantias fundamentais significa que a mesma foi considerada pelo constituinte
como “regra fundamental, apta a instrumentalizar todo o tecido constitucional e,

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por via de conseqüência, todas as normas infraconstitucionais, criando um


parâmetro interpretativo do ordenamento jurídico. É interessante notar que a
Constituição reservou à função social da propriedade a natureza de princípio
próprio e autônomo ( Gustavo Tepedino, Aspectos da Propriedade Privada na
Ordem Constitucional, in, Estudos Jurídicos, obra editada pelo Instituto de
Estudos Jurídicos, Rio, 1991, pág. 314).

Assim, a Constituição garante o direito de propriedade desde que


vinculado ao exercício de sua função social. “Ao mesmo tempo em que a
propriedade é regulamentada como direito individual fundamental, revela-se o
interesse público de sua utilização e de seu aproveitamento ligado aos anseios
sociais(José Acir Lessa Giordani. Propriedade Imóvel: seu conceito, sua
garantia e sua função social na Nova Ordem Constitucional, Revista dos
Tribunais, vol. 669, 1991).

O conteúdo da função social da propriedade é informado pelo


próprio texto constitucional, que tem na dignidade da pessoa humana regra
basilar e estabelece como objetivos fundamentais da República, a erradicação
da pobreza e da marginalização, bem como a redução das desigualdades
sociais e regionais.

Para alguns, a propriedade, em razão de sua função social, deve


ser visualizada não apenas como um direito fundamental, mas também como
um dever fundamental.

Daí se dizer, que a situação jurídica daquele que é proprietário,


caminhou da esfera do ser – tal qual concepção da época do individualismo
exacerbado – para a esfera do fazer, em vista do princípio da função social da
propriedade, hoje consagrado em nível constitucional (Perez Jesus Gonzales,

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apud Antonio Carceller Fernandéz, Instituciones de Derecho Urbanístico, p.


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E a mencionada função social da propriedade possui destinatários


específicos, a saber: o titular do direito de propriedade, o legislador e o juiz.

Para o titular do direito de propriedade, a função social assume


uma valência de princípio geral. A sua autonomia para exercer as faculdades
inerentes ao domínio não corresponde a um livre-arbítrio. O proprietário,
através de seus atos e atividades, não pode perseguir fins anti-sociais ou não
sociais, como também, para ter garantida a tutela jurídica ao seu direito, deve
proceder conforme a razão pela qual o direito de propriedade lhe foi outorgado.
Em outras palavras, deve proceder de forma a promover os valores
fundamentais da República esculpidos no Texto Constitucional.

A função social impõe ao legislador ordinário que não conceda ao


titular da propriedade, mediante normas infraconstitucionais, poderes
supérfluos ou contraproducentes em relação ao interesse social positivamente
tutelado, mas também que predisponha um estatuto que, em positivo, conceda
ao titular aqueles poderes necessários para perseguir os objetivos
constitucionais relevantes.

A função social, completa Perlingeri, é também critério de


interpretação da disciplina proprietária para o juiz e para os operadores
jurídicos. Neste sentido, o operador jurídico deve ter sempre a função social
como critério de interpretação e aplicação do direito, deixando de aplicar as
normas que lhe forem incompatíveis.

“Assim, em se tratando de ações possessórias, ou


reivindicatórias, incidentes sobre bens imóveis, por exemplo, este princípio

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constitucional faz com que o Magistrado seja obrigado a examinar, no caso


concreto, o cumprimento da função social da propriedade (ou da posse), tanto
por parte do autor, como do réu, se for o caso. Se concluir que o princípio não
era atendido pelo autor da ação, o juiz deve julgar a ação improcedente, ainda
que os requisitos exigidos pela lei, para sua procedência, restem atendidos”.
(Função Social da Propriedade, Carlos Araújo Leonetti, in, Revista dos
Tribunais, vol. 770/729).

E “a liminar que seja deferida concedendo a reintegração de


posse de imóvel nessa condição pode até atender a dogmática do Código Civil,
mas se choca de frente com o novo texto constitucional.” ( A Justiça dos
Conflitos no Brasil, Luiz Edson Fachin, in, A Questão Agrária e a Justiça, Ed.
RT, pág. 285).

Como já referido, a função social da propriedade, com sua


natureza de dever do proprietário, tem uma importância transcendental para o
trabalho da magistratura: “significa na prática que o judiciário só pode
dispensar proteção jurídica ao proprietário que prove ter cumprido o dever da
função social. Em outros termos, a Constituição cria para o proprietário o ônus
de provar em juízo que deu à propriedade uma função social para que possa
merecer a proteção do judiciário. Por conseguinte, segundo a Constituição, a
propriedade não é só um conjunto de poderes do indivíduo sobre as coisas,
que ele pode usar a seu talante, mas também o dever de exercitar esses
poderes numa direção social. Em resumo, a Constituição introduziu o dever no
conteúdo do direito de propriedade.” (Novas reflexões sobre a função social da
propriedade, José de Albuquerque Rocha, in, Genesis, Revista de Direito
Processual Civil, nº 18, Curitiba).

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A estas alturas, e observando que se está a dispor sobre mera


decisão interlocutória, cabe indagar-se sobre a atual leitura do art. 524 e outros
do Código Civil e 927 e seguintes do código instrumental.

“Levando em conta a eficácia interpretativa da norma


constitucional que prescreve a função social da propriedade, o Código Civil e o
Código de Processo Civil, como normas infraconstitucionais, devem ser
interpretados em harmonia com a Constituição, que é a Norma Fundamental do
ordenamento jurídico. A Constituição é que proporciona os parâmetros e
diretrizes essenciais para a interpretação dos restantes preceitos que
compõem o ordenamento. Resta, pois, adaptar e integrar os preceitos dos
Códigos Civis e Processual Civil à nova situação constitucional, ou seja, fazer
uma interpretação atualizadora desses códigos com o objetivo de torná-los
compatíveis com os princípios constitucionais. Isto é perfeitamente possível,
pois a Constituição reconhece o direito subjetivo de propriedade privada
previsto no Código Civil, acrescentando-lhe, porém, a cláusula da função
social. De forma que, para harmonizarmos o Código Civil com a Constituição,
basta acrescentarmos ao artigo 524 do Código Civil a cláusula da função
social, ou seja, o proprietário continua a ter o direito de usar, gozar, e dispor de
seus bens e de reavê-los do poder de quem quer que injustamente os possua,
como proclama o Código Civil, desde que imprima à propriedade uma função
social como impõe a Constituição. Portanto, o Código Civil não foi revogado
pela Constituição. O que mudou foi a forma de entender e interpretar seu
sentido, o qual deve agora harmonizar-se com a Constituição. Em definitivo, a
partir desta nova perspectiva, a disciplina da propriedade contida no Código
Civil e na Constituição não são discordantes. Em ambos a propriedade é um
direito individual, cuja titularidade continua sendo atribuída aos sujeitos
privados. Seu exercício, porém, encontra-se temperado pela efetiva realização
do interesse social da coletividade, sem prejuízo do interesse do proprietário.
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Idêntica postura deve ser adotada a respeito do Código de


Processo Civil, sobretudo quanto ao artigo 927 que trata dos requisitos para a
concessão de manutenção ou reintegração, liminares que só podem ser
deferidas se o possuidor provar que esta imprimindo ao exercício de sua posse
um efeito social” (José de Albuquerque Rocha, op. cit.).

Em linha com tal ensinamento, já se pensa em novos


pressupostos processuais para as ações possessórias e petitórias.

Nilson Marques, Sérgio Sérvulo da Cunha, Gustavo Tepedino,


Jacques Távora Alfonsin, Rui Portanova, Fernando Antônio Nogueira Galvão
da Rocha, e mais detalhadamente, o Defensor Público Geral da União, Antônio
Jurandy Porto Rosa, sugerem que se exija do proprietário a prova do
adimplemento da função social da propriedade: assim, na possessória, o
descumprimento da função social desqualificaria a posse; e tanto nas
possessórias quanto nas petitórias, para a prova da propriedade não bastaria o
título, sendo também necessário provar o cumprimento da função social (CF
art. 5º, XXIII).

O último autor mencionado, ao enfrentar questão similar a contida


neste instrumento, manifestou-se nos seguintes termos, verbo ad verbum: “O
instrumento processual de que se vale o latifúndio para obter, sem qualquer
defesa dos chamados sem-terras, proteção judicial do imóvel rural, logrando
liminarmente o mandado de reintegração ou de manutenção de sua posse,
sem prévia citação, está contido nos arts. 920 a 933 do Código de Processo
Civil. Esta ferramenta garantidora da posse remonta, na legislação brasileira,
ao início do século, concebida para administrar e resolver conflitos
possessórios de caráter exclusivamente individual, que se estabelecia entre
ricos proprietários ou possuidores, às vezes com matiz de disputa familiar.

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As invasões de fazendas que ocorrem hoje, organizadas pelos


movimentos dos sem-terra, apresenta outra gênese, abertamente social,
resultando daí a inadequação absoluta das atuais ações possessórias para
solução judicial desses conflitos, de índole não privatística. O veículo
processual deve ser ajustado a cada litígio, segundo seu tipo e natureza.

O Poder Judiciário não pode e nem deve ficar à margem dessa


questão legal, que representa hoje o mais fundo conflito social brasileiro: o que
coloca, de um lado da refrega, vastos contingentes de trabalhadores rurais
sem-terra e, do outro, proprietários de glebas de grandes extensões.

A Constituição Federal estabelece, no capítulo dos Direitos


Fundamentais da Pessoa, art. 5º, XXIII – o princípio legitimador da
propriedade: sua função social. Ao tratar da política fundiária e da reforma
agrária, a Carta Magna, no art. 186, particulariza os elementos da função social
da propriedade rural:

Art. 186 – A função social é cumprida quando a propriedade


rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de
exigência estabelecidas em lei, aos seguintes requisitos:
I - aproveitamento racional e adequado;
II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e
preservação do meio ambiente;
III - observância das disposições que regulam as relações de
trabalho; e
IV - exploração que forneça o bem-estar dos proprietários e
dos trabalhadores.

Contudo, nem o Código Civil, ao disciplinar a posse, nem o


Código de Processo Civil, ao estabelecer os mecanismos de tutela da posse,
receberam qualquer alteração decorrente do princípio da função social da
propriedade, adotado pela Constituição Federal de 1988.

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A falta de ajustamento daqueles códigos a atual Constituição,


quanto à função social da propriedade, torna impossível à Justiça, a
administração pacífica ou a composição dos litígios que ora alarmam o país,
entre trabalhadores sem-terra e proprietários rurais.

Com efeito, é inadmissível que o latifúndio, violando um preceito


constitucional, receba da Justiça imediata proteção, sob a cobertura da ação de
manutenção ou de reintegração de posse, como se fosse propriedade
produtiva. Por outras palavras, não é certo tratar-se do mesmo modo, no
campo da proteção possessória, propriedades que atendem a função social e
os latifúndios que violam esse preceito constitucional.

Essa diferença há que produzir tratamento diverso na legislação


ordinária civil e processual civil, sob pena de inutilidade dos preceitos maiores
da Carta Política.

Necessário introduzir, no conceito de posse justa, tratando-se de


imóvel rural, um componente de uso, relativo a observância da função social da
propriedade.

O Código Civil vigente, de 1916, em seu art. 489, vincula a posse


justa exclusivamente a critérios de aquisição (é justa posse que não for
violente, clandestina ou precária). O princípio da função social da propriedade,
ora adotado, reclama que se acrescente, quanto aos imóveis rurais, um novo
paradigma, levando à conta essa função social. Então, seria justa a posse que
atendesse a função social da terra, ou seja, cuja a utilização não violasse os
arts. 5º, XXIII e 186 da Constituição Federal. Assim, embora a aquisição da
posse não tivesse sido violenta, clandestina ou precária, ela se tornaria injusta
pelo uso ilegítimo, por colidir com o princípio da função social da terra.

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O possuidor latifundiário que descumpre o princípio da destinação


social da propriedade desafia o equilíbrio social e afronta o sentimento de
justiça das populações pobres do campo.

Essa posse socialmente ilegítima e injusta constitui-se numa


ameaça à ordem jurídica e representa desrespeito a personalidade humana e a
direito social básico do trabalhador rural despossuído que produz alimentos – o
direito a terra.

No mesmo passo, cabe acrescentar ao art. 927 do Código de


Processo Civil novo inciso, estabelecendo ao autor da ação possessória
obrigação de provar que o imóvel rural atende aos requisitos da função social
da terra, fixados no mencionado art. 186 da CF. A apreciação da adequada
utilização do imóvel rural exige instrução probatória procedida sob o princípio
do contraditório e da ampla defesa, afastando-se o risco da expedição liminar
do mandado de manutenção ou reintegração, sem prévia citação dos réus, isto
é, dos trabalhadores rurais.

Um mandado de desocupação liminar, sem que os trabalhadores


sem-terra tenham previamente citados, a Polícia embalada com fuzis e a
resistência dos invasores – eis o estopim das tragédias que têm banhado de
sangue, sempre dos desprotegidos, o meio rural brasileiro.” (Caderno Direito e
Justiça, Correio Brasiliense de 6/11/95).

O requisito da prova do cumprimento da função social serviria


como um critério mais objetivo para o juiz posicionar-se frente à reintegração
de posse.

Como bem caracterizou Luiz Guilherme Marinoni, “a tutela de


cognição sumária deve balizar-se não apenas conforme o princípio da

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probabilidade (sacrifício do improvável em proveito do provável), mas também


pelo princípio da proporcionalidade (avaliação dos interesses em jogo)” ( Tutela
Cautelar e Tutela Antecipatória, São Paulo, RT, 1992).

No caso das ações possessórias, o cumprimento da função


social da propriedade pode ser encarado como um critério mais objetivo para
se averiguar a que lado pende o princípio da proporcionalidade.

Cabe referir, no passo, que o princípio da função social


consubstancia valores existenciais que, privilegiados pelo próprio ordenamento
constitucional, devem prevalecer quando em conflito com valores meramente
patrimoniais.

Convém mencionar, no rumo do aqui exposto, que o projeto do


novo código civil também incorporou o princípio da função social da
propriedade como eixo fundamental, com reflexos não apenas no capítulo dos
Direitos Reais, mas em todos os demais ramos do direito civil.

Sobre o tema, também se pronunciou a Prof. Judith Martins-


Costa, ao ministrar palestra sobre o novo código civil, ainda no mês passado,
na Escola Superior da Magistratura, usando dos seguintes termos: “Se a
eticidade está no fundamento das regras civis, dúvidas não há de que o Direito
Civil em nossos dias é marcado pela socialidade, pela função social oposta ao
individualismo característico da era codificatória oitocentista que tantos e tão
fundos reflexos ainda nos lega. Se é às Constituições que cabe proclamar o
princípio da função social – o que vem sendo regra desde Weimar – é ao
Direito Civil que incumbe transformá-lo em concreto instrumento de ação.
Mediante o recurso à função social e também à boa-fé – que tem uma face
marcadamente ética, outra solidarista – instrumentaliza, o Código projetado, a

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diretriz constitucional da solidariedade social, posta como um dos “objetivos


fundamentais da República”.

Esta instrumentalização ocorre em três específicos domínios, o do


contrato, o da propriedade e o da posse” ( O Projeto de Código Civil Brasileiro:
Em busca da ‘Ética da Situação’).

E com efeito, o novo código civil, modo expresso, prevê a função


social da propriedade e da posse, no artigo 1.228 e seus parágrafos.

Como se percebe, tanto à luz do direito posto, como de lege


ferenda, afigura-se jurídica a decisão que condiciona a reintegração de posse à
comprovação da efetiva função social da propriedade.

Ainda que assim não fosse, temos sistematicamente decidido que


matéria relativa a liminares possessórias deve ficar ao prudente arbítrio do juiz
da causa. Somente nos casos de ilegalidade flagrante, será possível a
cassação da decisão através de agravo de instrumento.

Veja-se:

“Há mais de um acórdão entendendo que a concessão ou


denegação da liminar fica ao prudente arbítrio do juiz, só podendo ser
reformada, pelo tribunal, em caso de evidente ilegalidade (RT 527/223; JTA
91/405, 98/357, 103/383)” (in, Código de Processo Civil, Theotonio Negrão, 30ª
ed., Ed. Saraiva – nota 05, ao artigo 928).

Não é este o caso dos autos, razão pela qual mantenho a decisão
do juízo a quo, por seus próprios e jurídicos fundamentos.

Perfilhando este entendimento, Ovídio Baptista da Silva assevera


que:
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“Eis a razão pela qual se deve recomendar às instâncias recursais


extremo comedimento na apreciação de recursos e mandados de segurança
contra decisões concessivas de liminares, tanto nos juízos possessórios quanto
nas ações cautelares, uma vez que nosso ordenamento jurídico, ao orientar-se
pelos princípios da oralidade e imediação, pretende privilegiar, justamente, a
avaliação discricional do magistrado que esteja em vivo contato com os fatos
da causa, recusando aos tribunais superiores legitimidade para essa
simultânea e por vezes intempestiva ingerência no feito” (Procedimentos
Especiais, Aide Editora, Rio de Janeiro, 1989, pág. 268).

Noutra linha de consideração, penso que não merece prestígio a


alegação veiculada pelos agravantes, no sentido de que a função social da
propriedade somente merece perquirição no âmbito de uma ação
desapropriatória.

Estimo que “ o fato da função social ser o fundamento de um tipo


de desapropriação não a impede de se configurar como mais um pressuposto à
ação possessória e à petitória” (A repercussão da função social da propriedade
no Processo Civil, Laércio Becker, in, Genesis - Revista de Direito Processual
Civil, vol. 4, Curitiba, 1997).

Por fim, e diante de tudo que já foi dito, aqui e alhures, pode
parecer que a função social da propriedade significa uma espécie de
derrogação da propriedade privada, verdadeira conspiração anticapitalista
encravada no seio dos interesses do proprietário. Pode ainda parecer que a
função social da propriedade representa um golpe contra a liberdade do
proprietário de escolher a forma como bem (ou mal) pretende exercer o
domínio sobre o bem que lhe pertence.

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Mas estas leituras não coincidem com a finalidade do princípio em


exame. A função social da propriedade, embora represente um freio ao
exercício anti-social da propriedade, não lhe retira todo o seu gozo e exercício,
pelo contrário, muitas vezes é ela a mola impulsionadora do exercício da
senhoria, pois representa uma reação contra os desperdícios da potencialidade
da mesma. Isto significa que a propriedade, embora concebida e tutelada na
forma de sua função social, continua sendo direito subjetivo de seu titular e em
seu proveito estabelecida.

O proprietário continua com as prerrogativas de usar, gozar, fruir


e dispor da coisa, bem como persegui-la contra quem injustamente a detenha.
A propriedade continua tendo seu conteúdo protegido, cabendo à lei a tarefa de
determinar os modos de aquisição, gozo e limites, sempre no intuito de
favorecer a função social da propriedade” (Função Social da Propriedade,
André Osório Gondinho, in, Problemas de Direito Civil –Constitucional,
Renovar, 2000, pág. 418).

Dito isto, e por entender que a decisão judicial agravada intenta


legitimamente dar efetividade ao dispositivo constitucional que prevê a função
social da propriedade é que estou votando pelo improvimento do recurso.

É como decido.

DES. LUÍS AUGUSTO COELHO BRAGA –

Sr. Presidente, Desembargador Carlos Rafael dos Santos Jr.,


relator deste agravo em julgamento, e Desembargador Mário José Gomes
Pereira, ilustre integrante desta Câmara.

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1. Primeiramente, passo ao exame da matéria de fundo


exposta na decisão de primeiro grau ora em exame, que diz respeito à
função social da propriedade rural invadida no dia 15 do mês passado,
por integrantes do MST.

Justiça célere é que, talvez, busquem os sem-terras. Mas não


adianta buscar uma justiça célere que não traz justiça, ao não serem
observados os princípios legais e constitucionais vigentes, viciando, de
nulidade absoluta, qualquer tentativa de descumprimento da Ordem Social.

O Desembargador WELLINGTON PACHECO BARROS, da 4 ª


Câmara Cível deste Tribunal, ao discorrer sobre a “Função Social da
Propriedade” em sua obra denominada “Curso de Direito Agrário e Legislação
Complementar” (Ed. Livraria do Advogado, 1996, págs. 40/41), assim se
manifesta:

“Cumprir os requisitos que abrangem o princípio da função


social da propriedade é exigência ínsita a todo imóvel urbano ou rural no
País. Por via de conseqüência, todo proprietário de bens imóveis, para
que se diga titular desse direito, tem, antes, de atender aqueles
dispositivos constitucionais, uma vez que a condição de satisfação social
que acompanha o bem se traduz em obrigação superior para quem lhe é
titular.
“Na esfera específica do imóvel rural, tem, portanto, o
proprietário a obrigação de aproveitar sua terra racional e
adequadamente, utilizando-a, contudo, de forma a preservar o meio
ambiente e os recursos naturais nela existentes, com observância das
leis que regulam as relações de trabalho e uma exploração que favoreça o
seu bem-estar e os dos trabalhadores que nela trabalhem.

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“Evidentemente, que ao estabelecer condições para que se


entenda o imóvel rural cumprindo a sua função social, o legislador previu
também sanções para o caso de seu descumprimento.
“E a maior penalidade imposta é a desapropriação por
interesse social, com a finalidade exclusiva de reforma agrária, conforme
dispõe o art. 184 da CF. Ou seja, por não atender a função social, o
proprietário sofre intervenção da União que, respeitando o princípio do
devido processo legal, da indenização prévia e justa, lhe retira a
propriedade. Este é um tipo de desapropriação específica – para reforma
agrária. Assim, a terra é tomada do proprietário pela desapropriação, por
interesse social, e, no momento seguinte, redistribuída em parcelas
menores para certos beneficiários catalogados em lei, os vulgarmente
chamados de sem-terras”.

E o citado art. 184 da CF/88 dispõe, em seu caput, que:

“Compete à União desapropriar por interesse social, para fins


de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função
social, mediante prévia e justa indenização...”.

O parágrafo 2O do mesmo artigo estabelece:

“O decreto que declarar o imóvel como de interesse social,


para fins de reforma agrária, autoriza a União a propor a ação de
desapropriação”.

Daí a competência da União para dizer, através do devido


processo legal - que é a ação de desapropriação para fins sociais -, se a terra é
produtiva ou não, conforme explicita o Des. Wellington.

A Procuradora de Justiça Zuleika Pinto Costa Vargas citou, em


seu parecer, que o ilustre magistrado e professor acima nonimado teria

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afirmado, em artigo que publicara no volume 46 da Revista da AJURIS ( e não


como constou no referido parecer : vol. 40), que “a propriedade, tal qual está
disciplinada no texto constitucional, ‘além de ser um direito individual ela
também deve produzir. E, assim, a proteção que deve merecer aquele decorre
da satisfação desta. O direito do proprietário à proteção constitucional, logo,
está vinculado à anterioridade de satisfazer a sua propriedade a finalidade
social”. No entanto, para dar o real alcance do pensamento daquele jurista,
continuo na citação:

“O mau proprietário, aquele que não se obriga a produzir a terra,


como sanção, poderá perdê-la mediante a desapropriação por interesse social,
constituindo tal intervenção do Estado o meio pelo qual procurará dar à terra a
sua verdadeira função através da reforma agrária. E a penalização não se
limita tão-somente à retirada da propriedade do domínio privado mas à
indenização em TDAs (títulos da dívida agrária) resgatável em até vinte anos a
partir do segundo ano de sua imissão”. ( o grifo é nosso; p. 143).

Portanto, volto a repetir, em momento algum o eminente


magistrado afastou a necessidade do necessário processo de desapropriação.

Não há dúvidas de que os invasores são sem-terras, do


Movimento denominado MST – não reconhecido oficialmente como Associação
de Classe ou algo assemelhado -, e que pretendem a reforma agrária a
qualquer custo. Mesmo que para isso tenham que invadir áreas rurais, cujos
proprietários estão a cultivá-las.

Não há dúvidas de que os sem-terras não estão à procura de um


melhor aproveitamento da propriedade privada, mas sim querendo usar o
esbulho possessório como meio político de obrigar os Governos Federais e

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Estaduais a tomarem uma atitude desapropriatória de terras, para resolver a


tão almejada reforma agrária e urbana.

CELSO RIBEIROS BASTOS (“Curso de Direito Administrativo”,


Ed. Saraiva, 1994, pág 208) ensina, no item de sua obra denominado de
“Pressupostos da desapropriação”, que:

“A Constituição Federal indica como pressuposto da


desapropriação a utilidade pública, a necessidade pública e o interesse social.
“(...)
“Diz-se de interesse social a desapropriação que objetiva
solucionar os chamados problemas sociais. O Estado, ao desapropriar, tem
como meta dar à propriedade privada, seja ela urbana ou rural, um melhor
aproveitamento.
“A Constituição Federal prevê três hipóteses diferentes para a
desapropriação por interesse social:
“a) a do art. 5O, XXIV, cujas hipóteses de interesse social estão
elencadas no art. 2O da Lei n. 4.132, de 10 de setembro de 1962. São algumas:
construção de casas populares, estabelecimento e manutenção de colônias ou
cooperativas agrícolas. Pode ser promovida pela União, Estados , Municípios,
Distrito Federal e Territórios.
“b) a do art. 182 da CF/88 e da Lei 4.132/62, art. 2 O, inc. I. Trata-
se de hipótese nova de desapropriação, cujo objetivo é atender à função social
da propriedade urbana expressa no plano diretor do Município;
“c) a do art. 184 da CF/88, que prevê a desapropriação para fins
de reforma agrária. Está disciplinada pelo Decreto-Lei n. 554, de 26 de abril de
1969, e pelo Estatuto da Terra, arts. 18 a 23. Esta desapropriação é privativa
da União”.

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Posto isso, afasto por completo qualquer discussão a respeito da


função social da propriedade na área invadida e pertencente aos agravantes
Plínio Formighieri e Valéria Dreyer Formighieri, face à ausência do devido
processo legal: que seria em sede de ação de desapropriação.

O princípio do devido processo legal “não se exaure na


observância das formas da lei para a tramitação das causas em juízo.
Compreende algumas categorias fundamentais como a garantia do juiz natural
(CF, art. 5O, inc. XXXVII) e do juiz competente (CF, art. 5O, inc. LIII), a garantia
de acesso à justiça (CF, art. 5O, inc. XXXV), de ampla defesa e contraditório
(CF, art. 5O, inc. LV) e, ainda a de fundamentação de todas as decisões
judiciais (art. 93, inc. IX). Faz-se modernamente uma assimilação da idéia de
devido processo legal à de processo justo”. (Humberto Theodoro Jr., “Curso
de Direito Processual Civil”, vol. I, 34ª ed., Ed. Forense, 2000, págs. 22/23).

Ressalto o Editorial de 30 do mês passado, publicado no Correio


do Povo sob o título “Um julgamento em discussão”, que no último parágrafo
explicita a afirmação em parágrafo anterior, de que a concessão de liminar era
imperiosa em primeiro e segundo grau de jurisdição “em ressalva da
integridade da fazenda e de seus pertences”, quando afirma:

“Ora, mesmo os leigos em matéria jurídica têm a exata


compreensão de que a recusa à concessão da liminar é a própria recusa do
mérito, pedido por cautela antecipada. A partir dessa evidência, temos na
causa a falência da legislação adequada à espécie. Como temos, igualmente, o
beneplácito de juízes e tribunais à tese de que os sem-terras são alçados à
condição de juízes de uso, ou não, da terra sob os padrões de interesse social.
Essa competência pertence à autoridade pública, em processos regularmente
instaurados para fim de desapropriação. A ninguém mais. A curiosa decisão
até agora vencedora abre contra o ruralismo, hoje, e contra toda atividade
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econômica, amanhã, perigoso processo. Nos campos e nas cidades, haverá a


ameaça de tomada violenta de bens, bastando o agressor ter o título de ‘sem’.
É o império da força sobre a lei”.

O povo em geral sabe que os sem-terras estão usando de meio


inadequado de chamar a atenção das autoridades competentes para resolver o
problema social neste País, mas com prejuízos irreparáveis para a população
na medida em que estão obstruindo meios produtivos que servem para
alimentar as pessoas.

E a menção no Edital acima referido, de que basta o agressor ter


o título de “sem” para trazer a insegurança social pelo uso da força sobre a lei
constituída, traz-me à lembrança o pensamento de Jean-Jacques Rousseau
em “O Contrato Social”, tão bem apanhado em estudo produzido pelo Promotor
de Justiça Márcio Antonio Inacarato, publicado em JUSTITIA, Ano XXXVIII,
vol. 92, págs. 141 e seguintes.

E por que a referência a Rousseau e a sua obra?

Porque se trata de uma figura histórica que rompeu com a


civilização do século dezoito, quando fugiu de Genebra onde um guarda
fechara o portão da cidade meia-hora antes do prazo, eis que estavam em
guerra com Sabóia e Rousseau já havia sido punido pela mesma infração, da
qual se tornara reincidente. A partir dali resolveu nunca mais se submeter.

Diz a história que Rousseau sempre sofrera desde o seu


nascimento, pois a mãe morrera logo após o parto e seu pai lhe abandonara
aos dez anos de idade. Sofreu violentos castigos físicos, dizem de forma
injusta; freqüentou os piores lugares em Turim, para onde fora enviado pela
Sra. De Warens, em Annecy, vindo a ser acusado de furto. Iniciou sua carreira

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de escritor aos 38 anos e, a partir de então, escreveu várias obras, entre elas
“Le Contrat Social”, que revelaria a nova Jerusalém Celeste, a cidade ideal,
baseada na justiça e na harmonia.

O escritor Rolando Roque da Silva, que prefaciou a tradução de


“O Contrato Social”, da Cultrix, afirmou que “o lugar de Rousseau na História
está assegurado entre os pensadores revolucionários”. Augusto Comte
sustentou que houve um período em que “O Contrato Social” despertou maior
entusiasmo que o jamais despertado pela Bíblia e pelo Alcorão. Seria “o Quinto
Evangelho”, na opinião de Carlyle, ou então “o Evangelho segundo Jean-
Jacques”. Sua influência foi muito grande até os fins do século XVIII.

O referido Promotor de Justiça, Professor de Direito em São


Paulo, continuou a destacar a capacidade tida como revolucionária de
Rousseau:

“Georges Beaulavon não hesita em dizer que ‘toda democracia


moderna por vezes sem o saber, ou malgrado seu, encontrou no Contrato
Social, senão um programa, ao menos um espírito, um método e uma atitude
política’. Em Genebra, após a condenação de Rousseau pelo Grande
Conselho, formaram-se partidos que combatiam ou defendiam suas idéias. Em
carta a Thèrése la Vasseur, escreve Mirabeau que professava ‘um sagrado
respeito pelo escritor que mais havia esclarecido a França sobre as salutares
noções de liberdade’. Estava-se à véspera da Grande Revolução. E Rousseau
já não existia.
“Faleceu em 1778.
“Deflagrada a Revolução, e vitoriosa, Rousseau passou a ser
tomado por mentor de todos os partidos. Sua influência só era igualada pela de
Voltaire e Montesquieu.

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“Robespierre chamou-o em discurso de ‘digno do ministério de


preceptor do gênero humano’, lamentado-se não ter ele vivido para assistir à
vitória da ‘causa da justiça e da igualdade’, concluindo por afirmar que ‘os
inimigos da Revolução são os homens corruptos’.
“Sua contribuição à causa da democracia, sustenta Rolando
Roque da Silva, foi e continua sendo, relevante. A parte negativa dessa
doutrina prenhe de contradições ficou sepultada no tempo. A positiva ainda
sobrevive, diluída na “Declaração dos Direitos do Homem”.

E Rousseau, em seu clássico da filosofia política, parte de um


ideal de cidade-modelo para as suas construções teóricas, dizendo, em
apertada síntese, que não fora o sentimento familiar que provocou o
surgimento da vida dos homens em sociedade, pois “os filhos só permanecem
ligados ao pai, enquanto dele têm necessidade para se manterem. Logo que
esta necessidade cessa, dissolve-se a ligação natural. Os filhos, livres da
obediência que devem ao pai; o pai, livre dos cuidados que deve aos filhos,
recuperam a independência”. Logo, não seria o sentimento familiar que ligou os
homens entre si, fazendo-os viver em sociedade.

Também não seria o direito do mais forte? Diz Rousseau:

“Nunca o forte é bastante forte para se manter sempre como


senhor, se não converter a força em direito e a obediência em dever”.
“Se o homem não tem qualquer autoridade natural sobre os seus
semelhantes, se a força não origina direito algum, restam-nos as convenções
que, entre os homens, são a base de toda a autoridade legítima”.

E “O Contrato Social” de Rousseau dá a seguinte solução: que


unindo-se cada homem a todos, “só a si mesmo obedeça, e continue tão livre
como antes”.

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Salienta o Professor de Direito e Promotor de Justiça já nominado


que:

“Este o problema fundamental que no Contrato Social encontra


solução.
“É que, todos se dão ou se alienam integralmente ao todo, de tal
forma que as condições pactuadas são iguais para todos, e sendo iguais para
todos, nenhum terá interesse em torná-las pesadas aos outros. Assim, nenhum
levará qualquer vantagem sobre os outros, e nem terá interesse em submeter
seus semelhantes a desígnios ilícitos, pois que os direitos que possuem são os
mesmos, e estão submetidos aos mesmos deveres.
“Além disso, no momento em que pactuam os indivíduos, com sua
liberdade e propriedade, transmitem-nas ao ‘soberano’, que então se forma,
recebendo deste tudo aquilo estritamente necessário para a sua existência
(propriedade), a garantia de sua posse e propriedade sobre esses bens,
ficando sempre ‘o direito que cada particular tem sobre sua terra, subordinado
ao direito que a comunidade tem sobre todos. Sem isso, não haveria solidez no
vínculo social, nem força real no exercício da soberania’.
“(...)
“Assim, o que ocorre é que o homem aliena sua liberdade ‘para si
próprio’, pois que ele também é uma fração, uma parcela detentora da
‘soberania’.
“O Contrato Social, nestas condições, não representa para os
particulares uma verdadeira renúncia, dado que sua situação após o pacto é
preferível àquela que possuiam antes do mesmo, pois trocaram uma maneira
de viver incerta e precária, por outra melhor e mais segura; trocaram a
independência natural pela liberdade; o poder de prejudicar o próximo pela
própria segurança ; e uma força que outros podiam dominar, por um direito que
a união social torna invencível; suas vidas estão pelo Estado continuamente

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protegidas, e quando as expõem em defesa do Estado, nada mais fazem que


devolver-lhe o que dele receberam.
“Desta forma, o pacto social, em vez de destruir a igualdade
natural, concede-lhe uma igualdade moral e legítima, onde a natureza tinha
criado uma desigualdade física, e os homens que na força e no gênio são
desiguais, tornam-se iguais pela convenção e pelo direito”.

Enfim, conclui o citado Promotor de Justiça em seu valioso


estudo:

“Sintetizando, poderíamos concluir que:


“a) Devido à impossibilidade de os homens viverem atualmente no
estado de natureza, firmaram um pacto, o contrato social:
“b) Este contrato, firmado por homens livres, destina-se a reger
sua vida política e social, e com ele se deverá atingir, dentro da liberdade
inerente a todos os homens, a igualdade jurídica de todos os homens;
“c) A resultante deste contrato é a formação do corpo político do
Estado, da República;
“d) Regerá a vida dos homens assim contratados a ‘Vontade
Geral’, que se compõe do acervo comum das virtudes e valores existentes em
cada um dos componentes do Estado, os cidadãos;
“e) A soberania é o exercício da vontade geral, o Estado visto sob
o ponto de vista de sua atividade: esta soberania pertence ao povo;
“f) Esta soberania, por sua própria essência, é inalienável e
indivisível, porque decorrente de uma vontade geral perfeita e reta;
“g) O povo, compondo a vontade geral, é que é o único legislador,
e a lei, que é sempre uma norma de caráter geral, serve para estabelecer os
direitos, e é condição de movimento e perpetuação do Estado;

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“h) São as chamadas ‘leis políticas’ que organizam o ‘governo’; o


‘governo’ nada mais é que o executor da vontade geral, das normas de conduta
estabelecidas pelo poder legislativo, que encarna o povo. O governo é, pois, o
titular do poder executivo”.

Essas são as conclusões, ainda atuais, que embasam, até


mesmo em nosso País, a existência, em nosso sistema constitucional, do
Estado Democrático de Direito, que adota o sistema republicano e a
separação de Poderes (CF, arts. 1O e 2O ), onde somente a lei, em seu sentido
formal e material, como ato do Parlamento, pode inovar a ordem jurídica, isto é,
criar modificar ou extinguir direitos de quem quer que seja.

Assim, somente o devido processo legal pode servir para os fins


almejados pelos sem-terras, os quais, como Rousseau idealizou – e saliento
que se trata de um pensador oriundo da luta por uma justiça social mais ampla
-, devem obedecer a legislação vigente neste País.

Não é desrespeitando as leis e agindo de forma temerária e


revolucionária, nos moldes de guerrilha, dentro de um Estado
Democrático de Direito, onde todo cidadão tem assegurado o exercício do
legítimo direito de defesa da propriedade e de seu uso privado,
quebrando a paz social e a tranqüilidade jurídica e legal, que alcançarão a
justa reforma agrária ou urbana.

As normas constitucionais estabelecidas nos incisos XXII e XXIII,


do art. 5O, da CF/88, as quais afirmam ser “garantido o direito de
propriedade” e que “a propriedade atenderá a sua função social”, devem ser
interpretada em conjunto com a próxima regra maior estabelecida no inciso
posterior, XXIV, no sentido de que “a lei estabelecerá o procedimento para
desapropriação, por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social,

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mediante justa e prévia indenização em dinheiro”. E a Lei Complementar n. 76,


de 6.7.1993, estabeleceu o processo judicial de desapropriação, atendendo ao
comando constitucional.

O Professor de Direito Constitucional JOSÉ AFONSO DA SILVA,


em sua obra doutrinária intitulada de “Curso de Direito Constitucional Positivo”
(18ª ed., Ed. Malheiros, págs. 797/798) quando trata da “Função social da
propriedade rural” e diz que esta também está inserida no princípio da ordem
econômica (art. 170, III, CF/88), traz lições importantes sobre esta conjugação
de artigos da Carta Maior, ao afirmar:

“O regime jurídico da terra ‘fundamenta-se na doutrina da função


social da propriedade, pela qual toda a riqueza produtiva tem uma finalidade
social e econômica, e quem a detém deve fazê-la frutificar, em benefício
próprio e da comunidade em que vive’. Essa doutrina, como observa Sodero,
trouxe um novo conceito de direito de propriedade rural que informa que ela é
um bem de produção e não simplesmente um bem patrimonial; por isso, quem
detém a posse ou a propriedade de um imóvel rural tem a obrigação de fazê-lo
produzir, de acordo com o tipo de terra, com a sua localização e com os meios
e condições propiciados pelo Poder Público, que também tem responsabilidade
no cumprimento da função social da propriedade agrícola.

“Essa doutrina foi acolhida pela Constituição, que declara que


toda propriedade atenderá sua função social (art. 5º, XXIII), que é um princípio
da ordem econômica (art. 170, III). Por isso também se exige que a
propriedade rural cumpra sua função social, mediante o atendimento,
simultâneo, de cinco requisitos, que a Constituição apresenta no art. 186: (a)
aproveitamento racional e adequado; (b) utilização adequada dos recursos
naturais disponíveis; (c) preservação do meio ambiente; (d) observância das
disposições que regulam as relações de trabalho; (e) exploração que favoreça
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o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores. Não basta que a


propriedade cumpra um desses elementos. É necessário que atenda a todos
simultânea e concomitantemente. Não requer, porém, que sejam eles
observados sempre da mesma forma por todas as propriedades,
independentemente de sua localização, tamanho e qualidade das terras. Por
isso, determina que os requisitos serão cumpridos segundo critérios e graus de
exigência estabelecidos em lei, mas, na falta desta, os princípios contidos nos
requisitos devem ser observados.

“A produtividade é um elemento da função social da propriedade


rural. Não basta, porém, ser produtiva para que ela seja tida como cumpridora
do princípio. Se ela produz, mas de modo irracional, inadequado,
descumprindo a legislação trabalhista em relação a seus trabalhadores,
evidentemente que está longe de atender a sua função social. Apesar disso, a
Constituição estabeleceu que a lei garantirá tratamento especial à propriedade
produtiva e fixará normas para o cumprimento dos requisitos relativos a sua
função social. De certo modo, isso está previsto em relação a qualquer
propriedade rural, pois é isso mesmo que significa a cláusula, constante do art.
186, ao estatuir que a função social será cumprida pela observância simultânea
dos requisitos enumerados, segundo critérios e graus de exigência
estabelecidos em lei. A proibição de desapropriação da propriedade produtiva,
para fins de reforma agrária, com pagamento de indenização mediante títulos
da dívida agrária, é, a nosso ver, absoluta, sendo inútil procurar interpretação
diferente com base em nossos desejos. Isso não seria científico”.

Aproveito para deixar a seguinte questão no ar : como agirão, no


futuro, os sem-terras quando forem assentados e vierem a sofrer uma invasão
da suposta área que lhes seja destinada? Exercerão o direito à legítima defesa
da propriedade? Irão requerer a proteção Estatal para a garantia da ordem

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pública através da Força Pública? Requererão liminar para imediata


desocupação dos “invasores”? Ou será que só é válido o desrespeito à lei e ao
devido processo legal por parte de quem tem o título de “sem”?

Quem não tem direito à posse, nela não pode ser mantida.

2. Passo então a analisar o pedido de liminar solicitado na


ação de reintegração de posse, pelos agravantes.

A área invadida destina-se à atividade de agricultura (plantio de


milho, soja e trigo) e pecuária (produção de carne), como restou demonstrado
pelos agravantes com a juntada da documentação na inicial.

Desta feita, a permanência de invasores, que ingressaram de


forma esbulhativa na área dos agravantes, mostra-se esbulhatória e, por
conseqüência, estão a causar prejuízos quiçá irreparáveis aos proprietários da
terra.

É do conhecimento público que as invasões promovidas pelos


sem-terras têm trazido danos irreparáveis aos proprietários de imóveis rurais,
com a morte de gado, devastação de áreas verdes e cortes de árvores para a
elaboração de barracas improvisadas, etc..

Conforme já salientou a Desembargadora Elba Aparecida Nicoli


Bastos, ex-integrante desta Câmara, em passagem de voto que proferiu no
Agravo de Instrumento n. 598 360 402, julgado em 06.10.1998, de sua lavra,
que tratava de pedido de liminar solicitado por invasores em área arrendada
pela Agropecuária Primavera, de terras pertencentes a Merlin S/A, Indústria e
Comércio de Óleo Vegetais:

“A invasão praticada por força coletiva de grupo organizado


não tem sustentação jurídica nos nossos Códigos, nem lei própria a
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regulá-la. Os argumentos suscitados pelos agravantes para manter a


invasão são de natureza moral e de caráter político-social, suscitando
seus direitos fundamentais, garantidos pela Constituição Federal.
“A questão social invocada é conhecida e existe não só na
zona rural, como também nas cidades com o direito à habitação e
suprimento das necessidades básicas de sobrevivência. Porém, o
Judiciário, onde os conflitos deságuam já em grau de enfretamento, não
tem o poder material, nem jurídico para solucionar eficazmente tais
problemas de politica-social do Estado.
“O Juiz não é um mero interpretador das leis, procura
humanizá-las, afeiçoá-las aos princípios de justiça, adstrito aos limites
constitucionais. Também o Juiz não pode ignorar a lei, desconsiderando
direitos também legítimos, violando o princípio do justo no caso concreto
a decidir.
“Nas invasões coletivas, com argumento moral a embasar o
pedido, os dados concretos, caso a caso, é que ditarão a Justiça, nos
limites da lei civil e do embasamento constitucional vigente, em face da
ausência de disposições específicas próprias.
“Os Governos, ao longo de décadas, vêm descurando do
problema social. Não reservam suas energias e recursos para reduzi-lo, e
encaminhá-lo, de forma competente, a uma situação, se não ideal, pelo
menos mais justa.
“Com as ineficiência e burocracia, ao invés do dar um
equacionamento, no caso específico da produção agrícola e repartição da
terra para finalidades produtivas, alimenta, de um lado, a insegurança dos
produtores e proprietários, com decréscimo da necessária produção de
alimento e, de outro, alimenta o conflito, mantém grupos ociosos ,
desvinculados do trabalho, massa esta que torna improdutiva a terra

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invadida, até pela força da circunstância da provisoriedade da


instalação”.

E é exatamente o que ocorre nos autos deste agravo, quando se


constata invasão de uma terra produtiva, tornando-se notório o conhecimento
deste fato através da imprensa – que em momento algum foi desmentida - ,
independentemente da documentação juntada com a inicial tida como
desatualizada no parecer da Procuradora de Justiça. E o Juiz, como qualquer
cidadão, acompanha os noticiários, os comentários de técnicos e, assim, pode
avaliar que a terra invadida é produtiva em quase a sua totalidade, sendo
incabível permitir-se a ocupação, que está a trazer prejuízos irreparáveis à sua
função social, até pela simples presença de invasores em área rural que não foi
objeto de ação de desapropriação pela União.

Uma das condições para o ingresso da ação de reintegração de


posse, nunca foi e nem encontra respaldo legal na legislação processual (art.
926 e seguintes do CPC/), a necessidade de o proprietário esbulhado ter que
juntar comprovante oficial de que sua terra é tida como produtiva, como a
Declaração de Propriedade própria, ou o grau de utilização e eficiência de
exploração da área como determina a Lei 8.629/93, eis que para a reintegração
na posse basta aos autores da ação provar a sua posse, o esbulho praticado
pelos réus, a data do esbulho, bem como a perda da posse.

Posse esta, aliás, que nunca esteve em mãos dos invasores e


que sequer possuem sustentação legal para lá permanecerem, por não terem
direito à Usucapião, à desapropriação indireta, ou qualquer outra previsão
jurídica que os admitissem a permancerem na área invadida.

O já citado Professor de Direito Constitucional JOSÉ AFONSO DA


SILVA ressalta, conforme constou no item anterior, que:

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“A proibição de desapropriação da propriedade produtiva, para


fins de reforma agrária, com pagamento de indenização mediante títulos da
dívida agrária, é, a nosso ver, absoluta, sendo inútil procurar interpretação
diferente com base em nossos desejos. Isso não seria científico”. ( O grifo é
nosso).

Destaco novamente este ensinamento doutrinário pois, se nem


mesmo a doutrina permite a desapropriação de área rural produtiva, que
atende aos requisitos do art. 186, CF/88, como conceber-se em ação
possessória a discussão de matéria estranha à lide, no sentido de a área
invadida preencher ou não todos os requisitos daquele citado artigo.

ADROALDO FURTADO FABRÍCIO (“Comentários ao Código de


Processo Civil”, vol. VIII, Tomo III, arts. 890 a 945, Ed. Forense, 1980)
sustenta que:

“Sem dúvida, pode haver ‘direito de possuir’, ou direito a


possuir, mas esse direito positivamente não é a posse, tanto que o titular
daquele ‘ius possidenti’ nem sempre é o possuidor. Por outro lado, toda
tentativa de justapor a esse direito de possuir um ‘direito de posse’( ius
possessionis) esbarra na impossibilidade de se lhe atribuir um conteúdo
determinado. O ‘direito de posse’ é direito a quê, ou direito de quê?
Qualquer resposta cairá ou na tautologia ou na confusão com o ius
possidendi. Precisamente o que caracteriza a posse é o prescindir, para
torná-la digna de proteção jurídica, de saber-se a correspondente ou não
existência de um direito”.

.E um direito tem que se enquadrar no seguinte ensinamento do


citado professor :

“Dispõe o art. 485 do Código Civil de 1916 que se tem por


possuidor ‘toda aquele que tem de fato o exercício, pleno, ou não, de
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algum dos elementos inerentes ao domínio, ou propriedade’, ressalvando


adiante o art. 487 não ser possuidor ‘aquele que, achando-se em relação
de dependência para com outro, conserva a posse em nome deste e em
cumprimento a ordens ou instruções suas’, completando-se o quadro
com o art. 497, segundo o qual ‘não induzem posse os atos de mera
permissão ou tolerância, assim como não autorizam a sua aquisição os
atos violentos, ou clandestinos, senão depois de cessar a violência, ou a
clandestinidade’. A definição legal, ainda que criticável por oblíqua
(descreve o possuidor e não a posse), é substancialmente semelhante a
outras encontráveis no direito comparado (BGB alemão, par. 854; Código
Italiano, art. 1.140), e se faz notar pela clareza e pela presença dos
elementos constitutivos essenciais: (a) o poder ‘fático’ que tem a pessoa
de praticar sobre a coisa atos a que, segundo o Direito, estaria autorizado
o proprietário, (b) a expressão da vontade de possuir, manifestada no
próprio exercício desses poderes, e (c) a ‘autonomia’ desse exercício, no
sentido da não-dependência da vontade de outrem, proprietário ou não”.
(p. 454, ob. cit.).

Enfim, permitir-se em ação de reintegração de posse a discussão


a respeito da produtividade ou não da terra invadida, por eventual
descumprimento de preceito constitucional (art. 186 CF/88), seria, repito,
quebrar a paz social, pois, as conseqüências, seriam nefastas à manutenção
da ordem pública, e, a partir de então, todas as invasões de terras tidas como
produtivas, virariam o objeto a ser perseguido pelos “sem”.

Com isso, perderia a sociedade como um todo, eis que não


haveria mais a segurança jurídica necessária para o exercício do direito pelo
seu povo, seja ele proprietário de terras ou não.

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Portanto, não caracterizada a posse justa, SOU PELO


DEFERIMENTO DA LIMINAR de reintegração de posse aos agravantes.

É como voto.

O DES. CARLOS RAFAEL DOS SANTOS JÚNIOR(PRESIDENTE) – Agravo


de Instrumento n° 70003434388, por maioria, vencido o eminente
Desembargador Braga, negaram provimento.

Decisor(a) de 1º Grau: Luis Christiano Enger Aires.

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