Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
A Usucapião Indígena
Ribeirão Preto
Julho/2020
1
A Usucapião Indígena
Resumo
O presente texto tem o objetivo esclarecer os requisitos, as condições e os elementos do
instituto da Usucapião Indígena, prevista no Estatuto do Índio, Lei nº. 6001/1973.
Diferentemente das demais formas da Usucapião, não encontra sua regulamentação no
Código Civil de 2002, mas em lei ordinária. Para a fundamentação da exposição recorrer-se-á
às posições doutrinárias e ao entendimento jurisprudencial.
Introdução
O instituto da usucapião tem a sua origem no Direito Romano,
aproximadamente em meados de 455 a.C.. É um instrumento voltado para proteção da posse e
aquisição da propriedade. Instituído pela Lei das Doze Tábuas, propostas pelo plebeu
Terentílio, trazia como único requisito necessário a posse contínua do bem pelo período de
um ano para móveis, e de dois anos para imóveis, sendo uma garantia apenas daqueles que
possuíam o título de cidadão romano e destinada a imóveis no solo romano.
Muito tempo transcorreu de lá para cá e, no Direito Brasileiro vigente, assim
como objetivava a lei romana, a usucapião pretende proteger a posse de bem móvel ou
imóvel, que tenha ocorrido de forma mansa, pacífica, isto é, sem violência, pública e
contínua, por certo período de tempo, desde que haja o animus domini, ou seja, a exploraração
da coisa, exclusiva e insubordinadamente, à ordem de qualquer outra pessoa. A posse deste
bem, acrescido ao cumprimento de determinados requisitos, permite mediante o instituto da
usucapião, a aquisição do domínio do referido bem.
O Código Civil Brasileiro institui, entre seus artigos 1.238 a 1.244, a usucapião
de bens imóveis, prevendo regramento especifico para imóveis urbanos e rurais, e ainda
diferenciando aqueles cuja posse possua “título de boa-fé”, ou seja, a apresentação de
documentos que demonstrem a posse com a intenção de dono. Em contrapartida, aqueles que
não possuam tal título, por exemplo, um contrato de promessa de compra e venda de imóvel
que não foi levado a registro, a lei determina que o tempo de permanência na posse mansa e
ininterrupta para que configure o direito de adquiri-lo por usucapião deve ser de 5 (cinco), 10
(dez) ou 15 (quinze) anos, dependendo da área e da existência do citado título, além de outros
requisitos legais. Se o possuidor o imóvel o adquirir por usucapião, o proprietário deste
imóvel perde o domínio de sua propriedade.
No caso da Usucapião Indígena o fundamento legal é a Lei 6.001/1973,
chamada Estatuto do Índio, estabelece a usucapião especial indígena, modalidade diversa da
2
prevista no Código Civil. Em seu art. 331, dispõe que, caso o indígena ocupe imóvel por 10
(dez) anos, também poderá adquiri-lo por meio da usucapião.
A Usucapião Indígena
1
Art. 33. O índio, integrado ou não, que ocupe como próprio, por dez anos consecutivos, trecho de terra inferior
a cinquenta hectares, adquirir-lhe-á a propriedade plena. (Lei nº. 6001/1973)
3
Em contrapartida, os bens legalmente inalienáveis que, por lei, não podem ser
transferidos a outrem, decorrente de ato jurídico não tem força de subtrair o bem gravado da
prescrição aquisitiva, não o colocando fora do comércio. No entanto, há quem entenda como
inadmissível a aquisição por usucapião de bem objeto de cláusula de inalienabilidade. Com
efeito, a jurisprudência do STJ e do TJ-SP, bem como do TJ-RJ se encaminham na mesma
direção:
A circunstância de estar o imóvel gravado com a cláusula de ‘inalienabilidade’, de igual
forma, não impede o registro de mandado judicial de ‘usucapião’ , que também versa
sobre aquisição originária, extinguindo o domínio do anterior proprietário e cessando
eventual limitação ao direito de propriedade.
(STJ, 4ª T., REsp 418.945-SP, rel. Min. César Asfor Rocha, v.u., j. 15-8-2002).
A posse e o tempo são pressupostos básicos, estruturais da aquisição por usucapião. Para que
a posse se converta em propriedade é necessário que a ela se associe o fator tempo. A posse
deve ter sido exercida por todo o lapso temporal de modo contínuo, não interrompido e sem
impugnação. A concordância dos vizinhos (se a usucapião a eles afetar), bem como a
diuturnidade (a qualidade daquilo que se prolonga no tempo) da posse, faz presumir que não
existe direito contrário ao manifestado pelo possuidor.
Para a consumação da usucapião extraordinária não se exige que o possuidor
tenha justo título, nem boa-fé nos termos do art. 1.238, CC 2. Tal exigência também não é feita
na usucapião especial. No entanto, o justo título é requisito indispensável para a aquisição da
2
Art. 1.238. Aquele que, por quinze anos, sem interrupção, nem oposição, possuir como seu um imóvel, adquire-
lhe a propriedade, independentemente de título e boa-fé; podendo requerer ao juiz que assim o declare por
sentença, a qual servirá de título para o registro no Cartório de Registro de Imóveis.
Parágrafo único. O prazo estabelecido neste artigo reduzir-se-á a dez anos se o possuidor houver estabelecido no
imóvel a sua moradia habitual, ou nele realizado obras ou serviços de caráter produtivo.
5
propriedade pela usucapião ordinária, nos termos do art. 1.242, CC 3. Justo título é o título
normalmente hábil a transferir o domínio, e que se apresenta formalmente perfeito,
provocando no adquirente a crença de que se tornou dono, porém deve revestir as
formalidades externas e estar registrado no cartório de registro imobiliário.
Presume-se de boa-fé o possuidor com justo título, ou seja, aquele título que
seria hábil para transferir o direito à posse, caso proviesse do verdadeiro possuidor ou
proprietário da coisa. Diz-se de boa-fé4 a posse se o possuidor ignora o vício ou o obstáculo
que lhe impede a aquisição da coisa. Importante julgado sobre aquisição de terras indígenas
por particulares, vendidas pelo Estado demonstram a consequência de que a boa-fé assegura o
direito e não prejudica aquele que a pratica:
CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. SENTENÇA. NULIDADE.
INEXISTÊNCIA. DESAPROPRIAÇÃO INDIRETA. ÁREA INDÍGENA ARIPUANÃ.
OCUPAÇÃO IMEMORIAL. DEMARCAÇÃO HOMOLOGADA. LAUDO
HISTÓRICO-ANTROPOLÓGICO. TÍTULOS DE PROPRIEDADE EXPEDIDOS PELO
ESTADO DE MATO GROSSO. ALIENAÇÃO VEDADA. BENFEITORIA.
INDENIZAÇÃO. I - Não se verifica qualquer nulidade na sentença, que se mostra
suficientemente fundamentada, não tendo o julgador, na livre apreciação do conjunto
probatório dos autos, a obrigação de examinar cada um dos argumentos lançados pelas
partes. II - Os limites da Área Indígena Aripuanã, inicialmente fixados em caráter
emergencial, não abrangeram a real extensão do território ocupado pelos Cinta Larga, daí
a equivocada exclusão de importante parcela de terras cuja ocupação imemorial indígena,
posteriormente verificada pela FUNAI, levou a uma nova demarcação, finalmente
homologada pelo Decreto nº 375, de 1991. Incide, portanto, a norma do art. 231, § 2º, da
Constituição, segundo a qual "as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-
se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos
rios e dos lagos nelas existentes", sendo nulos e de nenhum efeito jurídico os atos de
domínio relativamente a essas terras (§ 6º). III - O laudo histórico-antropológico
produzido nos autos concluiu que os imóveis sub judice estão localizados no perímetro da
Área Indígena Aripuanã, constituindo, pois, território indígena de ocupação tradicional e
permanente. IV - Ainda que tenha o Estado de Mato Grosso recebido terras indígenas
entre as devolutas que lhe foram transferidas pelo legislador constituinte de 1891, não
poderia tê-las alheado, por força de expressa disposição contida no art. 129 da
Constituição de 1934, preceito este consagrado em todas as Cartas que se seguiram.
Nesse quadro, inválidos são os títulos outorgados por aquele ente federativo, que realizou
venda a non domino, não havendo falar, consoante já decidiu esta Corte, em direito
adquirido - o direito da comunidade indígena pré-existe àquele de propriedade invocado
pelos Apelantes - e tampouco na necessidade de declaração judicial. V - Tendo sido os
títulos de propriedade expedidos após processo de licitação pública realizado pelo
Instituto de Terras de Mato Grosso (INTERMAT) - o que afasta qualquer indício de
existência de má-fé -, é devida indenização pela benfeitoria implantada no imóvel. VI -
Assim como na desapropriação direta, "na indireta são também devidos os juros
compensatórios, à taxa de 12% (doze por cento) ao ano, a partir da ocupação, sobre o
valor da indenização, corrigido monetariamente (Súmulas 618 - STF, 110 - TFR e 114 -
STJ); e os juros de mora de 6% ao ano, contados na forma prevista no art. 15-B do
3
Art. 1.242. Adquire também a propriedade do imóvel aquele que, contínua e incontestadamente, com justo título
e boa-fé, o possuir por dez anos.
Parágrafo único. Será de cinco anos o prazo previsto neste artigo se o imóvel houver sido adquirido,
onerosamente, com base no registro constante do respectivo cartório, cancelada posteriormente, desde que os
possuidores nele tiverem estabelecido a sua moradia, ou realizado investimentos de interesse social e econômico .
4
Art. 1.201. É de boa-fé a posse, se o possuidor ignora o vício, ou o obstáculo que impede a aquisição da coisa.
(Código Civil)
6
5
Art. 191. Aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como seu, por cinco anos
ininterruptos, sem oposição, área de terra, em zona rural, não superior a cinquenta hectares, tornando-a produtiva
por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade.
Parágrafo único. Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião. (Constituição Federal)
7
a coisa para si, na condição de verdadeiro proprietário. O trecho de terra usucapível não pode
ultrapassar 50 hectares, estabelecido como limite máximo. Não há previsão para um tamanho
mínimo. O Tribunal De Justiça do Estado de Santa Catarina pronunciou-se a respeito da
usucapião em situações de bens com área inferior ao mínimo ou quando este não é
estabelecido:
APELAÇÃO CÍVEL. COISAS E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE USUCAPIÃO
EXTRAORDINÁRIA. - IMPROCEDÊNCIA NA ORIGEM. ÁREA INFERIOR À
FRAÇÃO MÍNIMA. AQUISIÇÃO ORIGINÁRIA. AUSÊNCIA DE MÁ-FÉ.
HERMENÊUTICA. ACOLHIMENTO. - A existência de característica ofensiva às
normas quanto à fração mínima da área usucapienda não obsta, per se, a
consolidação do domínio sobre o bem , desde que não se apresente o ato, com espeque
no princípio da boa-fé processual, como tentativa de subterfúgio à legislação e restem
verificados os pressupostos legais e/ou constitucionais à configuração da usucapião,
modo originário de aquisição da propriedade. SENTENÇA REFORMADA. RECURSO
PROVIDO.
(TJ-SC - AC: 03052524120168240054 Rio do Sul 0305252-41.2016.8.24.0054, Relator:
Henry Petry Junior, Data de Julgamento: 26/09/2017, Quinta Câmara de Direito Civil)
6
Art. 231 [...] §2º. s terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-
lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.
7
Art. 3º. A usucapião especial não ocorrerá nas áreas indispensáveis à segurança nacional, nas terras habitadas
por silvícolas, nem nas áreas de interesse ecológico, consideradas como tais as reservas biológicas ou
florestais e os parques nacionais, estaduais ou municipais, assim declarados pelo Poder Executivo, assegurada
aos atuais ocupantes a preferência para assentamento em outras regiões, pelo órgão competente. (Constituição
Federal).
8
Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os
direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e
fazer respeitar todos os seus bens.
§ 1º. São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas
para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-
estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições. (Constituição
Federal).
8
usucapião de imóvel por indígena, cabendo lembrar que este instituto não deve ser confundido
com o procedimento de demarcação de terras indígenas, previsto no Estatuto.
Considerações Finais
esquecer, ignorar, omitir, mais uma vez o brasileiro nativo que, certamente, entre todos os
nacionais, é o único que se preocupa com a terra sem querer possuí-la. Como dizia Rousseau,
“os frutos são de todos, mas a terra não é de ninguém”. Nesse sentido, o pensamento europeu
desse filósofo francês foi compreendido por muitos acadêmicos brancos, mas vivenciado em
sua essência pelos índios.
Referências
ARAÚJO, Ana Valéria. Povos Indígenas e a Lei dos “Brancos”: o direito à diferença.
Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e
Diversidade; LACED/Museu Nacional, 2006.
(TJ-SP REsp 418.945/SP, Rel. Ministro RUY ROSADO DE AGUIAR, QUARTA TURMA,
julgado em 15/08/2002, DJ 30/09/2002, p. 268)