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12/09/23, 22:46 Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa

Acórdãos TRL Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa


Processo: 937/06.3TBCSC.L1-6
Relator: GRANJA DA FONSECA
Descritores: COMPRA E VENDA
DOAÇÃO
DOAÇÃO ONEROSA
SIMULAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 21-01-2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Sumário: 1 – Na compra e venda, a atribuição patrimonial feita por uma das
partes a favor da outra tem como contrapartida o sacrifício
patrimonial suportado por esta, ou seja, cada uma das prestações é
vista pelas partes como correspectiva da outra, sendo essa a sua
razão de ser e justificação substantiva.
2 – Na doação é essencial o espírito de liberalidade, ou seja, a
intenção de fazer uma atribuição patrimonial a favor de outrem,
beneficiando-a, sem contrapartida, sem que o beneficiário suporte
o correspondente sacrifício no seu património.
3 – No exercício da liberdade contratual, a lei reconhece, por vezes,
que as partes utilizem um determinado esquema contratual,
cumulando as funções características de dois contratos, através da
estrutura própria exclusivamente de um deles, sendo exemplo
característico a chamada venda mista com doação.
4 – Utiliza-se, neste caso, o contrato de compra e venda para obter
fins de liberalidade, através da atribuição ao bem vendido de um
preço intencionalmente inferior ao seu valor corrente, para, desse
modo, beneficiar o adquirente, a título de liberalidade, pela
respectiva diferença, o que, em princípio, é válido, a menos que se
ofendam normas imperativas ou direitos alheios.
5 – O conceito de negócio simulado está explicitamente formulado
no n.º 1 do artigo 240º do Código Civil, sendo elementos
integradores do conceito a intencionalidade da divergência entre a
vontade e a declaração; o acordo entre declarante e declaratário e o
intuito de enganar terceiros.
6 – Tendo-se provado que a vendedora, ao estipular o preço do
prédio e as condições de pagamento insertas na escritura,
pretendeu compensar os compradores pelo apoio e ajuda que estes
lhe tinham vindo a prestar e assegurar a manutenção desse apoio,
enquanto fosse viva, a conjugação destes factos não permite
concluir que os compradores não efectuaram a favor da vendedora
qualquer entrega de numerário que fosse a sua contrapartida
(parcial) pela transmissão do direito de propriedade.
7 – Assim, tendo embora havido por parte da vendedora o
propósito de enriquecer o património dos compradores, sem que
tenha sido afastada a contrapartida económica directa (preço) da
parte destes, tal contrato configura uma venda por preço de favor,
ou seja, um contrato misto de onerosidade e de gratuitidade, uma
venda mista com doação.
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8 – Não se podendo afirmar que o que as partes declararam no


contrato não corresponde ao que realmente quiseram, não se
comprova a divergência entre a vontade declarada e a vontade real
dos declarantes.
9 – O facto da vendedora, atendendo ao preço de favor que foi
acordado, querer compensar os compradores pelo apoio e ajuda
que eles lhe tinham vindo a prestar e assegurar a manutenção desse
apoio, enquanto fosse viva, não permite concluir que tenha
pretendido enganar terceiros, nomeadamente, a filha
10 – Não se verificando divergência entre a vontade e a declaração
e não se verificando o intuito de enganar um terceiro, ter-se-á de
concluir que não existiu acordo simulatório entre a vendedora do
imóvel e os respectivos compradores, nem existiu,
consequentemente, simulação do negócio, titulado pela escritura
junta aos autos.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:
1. Na presente acção, com processo comum, sob a forma ordinária, B...
demandou C..., D... e E..., alegando que é filha e única herdeira da ré
C..., cujo património era constituído, na sua quase totalidade, pelo
imóvel que a mesma vendeu, no dia 18/03/2005, aos dois outros réus,
D... e marido.
No entanto, esse negócio foi simulado, para esconder a doação
efectivamente realizada, conforme foi previamente comunicado à
autora, que se lhe opôs, motivo pelo qual foi celebrada a escritura de
compra e venda.
Pede, pois, que se declare a nulidade da venda, com o consequente
cancelamento da inscrição no registo predial e a condenação dos réus
na desocupação do imóvel.
Contestando, os réus começam por invocar a excepção de ilegitimidade
da autora, negando, depois, qualquer simulação no negócio celebrado.
A autora apresentou réplica, parcialmente admitida.
Foi proferido despacho saneador, julgando improcedente a excepção de
ilegitimidade da autora e verificados todos os necessários pressupostos
processuais. Foram fixados os factos assentes e organizada a base
instrutória.
Procedeu-se ao julgamento e a matéria de facto foi decidida nos termos
que constam de fls. 423/427. Foram apresentadas alegações de direito.
Na sequência do óbito da ré C..., deixando como única sucessora a sua
filha e ora autora, foi decidido que os presentes autos prosseguiam
apenas em relação aos réus D... e marido. Estes réus vieram depois
interpor recurso desse despacho, que não foi admitido.
Os mesmos réus requereram também a junção aos autos de
comprovativo de depósito de algumas quantias, o que foi deferido, para
eventual apreciação em momento oportuno.
Proferida a sentença, foi a acção julgada parcialmente procedente por
provada, tendo os réus sido condenados a verem declarada (i) a
nulidade, por simulação, do contrato de compra e venda acima indicado
e (ii) o cancelamento do respectivo registo de aquisição na
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conservatória do registo predial.


Foram absolvidos do restante pedido.
Inconformados, recorreram os réus, formulando as seguintes
conclusões:
1 – Foi incorrectamente julgado o quesito 2º, devendo dar-se como
provado o pagamento de € 25.000 a C...a título de sinal de compra e
venda.
2 – Impõem decisão diversa da recorrida, o depoimento da testemunha
F...., prestado na sessão de julgamento que teve lugar em 6/06/2008 e
que se encontra registado no CD n.º 1, 1324 a 3350 e os documentos
juntos aos autos, por requerimento de 6/05/2008.
3 – O quesito 4º foi incorrectamente julgado, devendo ser dado como
provado, somente, que “a autora manifestou-se contra a doação do
imóvel aos segundos réus”, uma vez que estes apenas tiveram
conhecimento da oposição após a outorga da escritura.
4 – Impõe decisão diversa da recorrida o depoimento do Dr. G...,
prestado na audiência de julgamento que decorreu em 16/05/2008 e que
se encontra gravado na cassete 2 – Lado A – 3035 a 4518.
5 – O quesito 5 foi, também, incorrectamente julgado, devendo nele
passar a constar que “ao imóvel, após avaliação de perito, feita cerca de
dois anos após a venda e após a realização de obras de beneficiação, foi
atribuído um valor de mercado superior ao que consta da escritura”.
6 – Impõem decisão diversa da recorrida o teor da decisão da
fundamentação da decisão da matéria de facto, onde se refere que a
casa, depois de vendida, sofreu obras de restauração e que muito
embora não se tenha concretamente apurado o valor dessas obras, daí
resultou natural aumento do seu valor em relação à data da venda.
7 – Bem como o teor do relatório de avaliação do perito nomeado pelo
Tribunal e junto por requerimento de 26/09/2007.
8 – O quesito 7º foi, igualmente, julgado de forma incorrecta, devendo
ao mesmo ser acrescentado que, “alguns potenciais clientes que
marcaram visita à casa, não quiseram entrar no imóvel por o mesmo
apresentar exteriormente evidentes sinais de degradação”.
9 – Com efeito, impõe decisão diversa da recorrida o depoimento da
testemunha H..., que depôs na audiência de 5/06/2008 e cujo
depoimento se encontra registado na CD 1 – 0 a12’35.
10 – Nos termos do artigo 240º, n.º 1 do CC, para que se verifique a
existência da simulação é necessária a verificação, cumulativa, de três
requisitos, concretamente, o acordo entre declarante e declaratário, o
intuito de enganar terceiros e a divergência entre a declaração negocial
e a vontade real do declarante.
11 – Da matéria de facto dada como provada e considerando já as
alterações esplanadas nas conclusões anteriores, verifica-se que não
existiu divergência entre a declaração negocial e a vontade dos
declarantes, que quiseram de facto, vender e comprar, pese embora, em
momento posterior à outorga da respectiva escritura, tenha havido
alteração na forma de pagamento aí plasmada.
12 – Só existe doação, se existir o referido espírito de liberalidade, de
aumentar o património de outrem, sem que a essa atribuição

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corresponda uma contrapartida por parte do beneficiário.


13 – Conforme foi dado como provado nos autos, os Recorrentes
sempre pagaram a mensalidade do lar da 1ª ré no valor de € 600, para
além de outras despesas, cujo valor concreto não foi possível apurar.
14 – Sendo esta a contrapartida por parte dos beneficiários, a qual
resultou de uma dívida exigível, que correspondia ao pagamento do
remanescente do preço devido pelo imóvel, continuando o restante a ser
pago, através de depósitos autónomos.
15 – Assim, o Tribunal a quo, ao entender que o que os Réus,
efectivamente, pretenderam fazer e fizeram, foi uma doação, violou,
certamente por erro de interpretação, o artigo 940º, n.º 1, do CC.
16 – A decisão da matéria de facto proferida em 14/07/2008 deu como
não provado o quesito 7º, concretamente que “a escritura referida em
A) teve como objectivo prejudicar a Autora, tendo os 2.os Réus
aproveitado tal objectivo da 1ª Ré para, prejudicando a Autora, obterem
benefícios”.
17 – Na fundamentação dessa decisão, o Tribunal a quo plasmou que “o
conjunto dos elementos de prova já mencionados, de onde não
resultaram elementos bastantes, havendo ainda a considerar a intenção
da 1ª Ré que se provou sob o n.º 10.
18 – No referido n.º 10, foi dado como provado que, “com a celebração
da escritura mencionada na alínea A), a 1ª Ré pretendeu compensar os
2.os Réus pelo apoio e ajuda que eles lhe tinham vindo a prestar e
assegurar a manutenção desse apoio enquanto fosse viva”.
19 – Da conjunção da resposta dada ao quesito 7º, sua fundamentação e
resposta ao quesito 10º, só se pode concluir que o Tribunal a quo deu
como não provado que a escritura de compra e venda celebrada entre os
Réus teve como objectivo prejudicar a Autora e que os 2.os Réus
tivessem aproveitado tal objectivo da 1ª Ré, para, prejudicando a
Autora, obterem benefícios.
20 – Bem como dá como provado que, com a celebração da escritura de
compra e venda, a 1ª Ré apenas pretendeu compensar os 2. os Réus
pelo apoio e ajuda que eles lhe tinham vindo a prestar e assegurar a
manutenção desse apoio enquanto fosse viva.
21 – Conclui-se, assim, que, não se tendo o intuito de enganar terceiros,
não se verifica mais um dos requisitos essenciais para que um negócio
seja declarado simulado.
22 – Não se verificando divergência entre a vontade e a declaração e
não se verificando o intuito de enganar um terceiro, inevitavelmente,
terá de se concluir, ainda, que não existiu acordo simulatório entre os
declarantes, tal como inexiste simulação de negócio.
23 – Ao decidir de forma diversa, ou seja, ao decidir-se pela existência
de uma simulação, o Tribunal a quo, certamente por erro de
interpretação, violou o disposto no artigo 240º, n.º 1 do CC.
A autora contra – alegou, defendendo a bondade da decisão recorrida.
2.Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões dos
recorrentes, salvo se outras houver de conhecimento oficioso, as
questões suscitadas são as seguintes:

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a) - Se a matéria de facto deve ser alterada;


b) – Se a compra e venda celebrada foi simulada.
3.A primeira questão, a ser decidida, reporta-se à impugnação da
matéria de facto.

Entendem os recorrentes que o tribunal a quo não julgou correctamente


os factos quesitados sob os n. os 2º, 4º, 5º e 8º (tendo os recorrentes
escrito 7º por manifesto lapso), cujo ónus da prova recaía sobre a
recorrida, em relação aos três primeiros, e sobre os recorrentes em
relação ao último. Pretendem, por isso, a reapreciação da prova e da
contraprova por si produzida, com alteração das respostas dadas a esses
quesitos.
Como é sabido, nos termos do artigo 712º, alínea a), CPC, a decisão do
tribunal de 1ª instância sobre matéria de facto pode ser alterada pela
Relação se do processo constarem todos os elementos de prova que
serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em
causa, ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver
sido impugnada, nos termos do artigo 690º-A do CPC, a decisão com
base neles proferida.
E, de acordo com o n.º 2 do mesmo artigo, no caso a que se refere a
segunda parte da alínea a) do número anterior, a Relação reaprecia as
provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo em
atenção o conteúdo das alegações de recorrente e recorrido, sem
prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos
probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos
da matéria de facto impugnados.
O artigo 690º-A do CPC, estabelece os ónus que impendem sobre o
impugnante, sob pena de rejeição desse recurso:
a) – Especificar os concretos pontos da matéria de facto que considera
incorrectamente julgados (n.º 1, alínea a);
b) – Especificar os concretos meios probatórios, constantes do processo
ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre
os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida (n.º 1,
alínea b);
c) – Indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda,
quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na
apreciação das provas tenham sido gravados e seja possível a
identificação precisa e separada dos depoimentos (n.º 2).
Importa, pois, em primeiro lugar, verificar se os recorrentes deram
cumprimento aos ónus que sobre si impendiam.
Os recorrentes identificaram os pontos da matéria de facto que
consideram incorrectamente julgados, por referência aos artigos da
decisão sobre essa matéria.
Também foram indicados os concretos meios probatórios em que se
funda a sua pretensão: mostram-se identificados os depoimentos que,
em seu entender, justificam resposta diversa.
Relativamente ao ónus previsto no n.º 2 do artigo em causa, os
recorrentes indicaram também os depoimentos por referência à acta de
julgamento, nos termos do artigo 522º-C.

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Estamos, pois, em condições de apreciar o mérito do recurso.


Relativamente aos poderes conferidos à Relação pelo artigo 712º CPC,
desenharam-se duas correntes.
A primeira, mais restritiva, na linha do defendido por Miguel Teixeira
de Sousa[1], resume os poderes do tribunal de recurso a uma
intervenção meramente formal, residual, destinada a apurar apenas a
razoabilidade da convicção probatória da 1ª instância, bastando que a
decisão da 1ª instância seja uma das soluções plausíveis segundo as
regras da experiência, intervindo o tribunal de recurso apenas em caso
de erro manifesto, consistente na flagrante desconformidade entre os
elementos de prova e a decisão.
A segunda corrente defende uma leitura mais ampla dos poderes da
Relação, considerando que, em sede de reapreciação da prova, a
Relação tem os mesmos poderes que a 1ª instância, podendo formar
convicção diversa relativamente à matéria impugnada. Neste sentido se
pronunciam, designadamente, Abrantes Geraldes[2] e Amâncio
Ferreira[3].
A segunda corrente é a que melhor se ajusta ao propósito de um
efectivo segundo grau de jurisdição em matéria de facto e, como
observa Abrantes Geraldes, as limitações decorrentes da falta de
imediação não devem esvaziar o regime da reapreciação da matéria de
facto, mas tão só aconselhar especiais cuidados aquando da
reapreciação dos meios de prova produzidos na 1ª instância, “evitando
a introdução de alterações na decisão da matéria de facto, quando,
fazendo actuar o princípio da livre apreciação das provas, não seja
possível concluir, com a necessária segurança, pela existência de erro
de apreciação relativamente a concretos pontos de facto
impugnados”[4].
Passemos, então, à reapreciação dos concretos pontos da matéria de
facto impugnados pelos autores.
Pretendendo a autora demonstrar que o contrato de compra e venda,
consubstanciado no documento de fls 8 a 10, foi simulado, incumbia-
lhe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado, quer o
facto seja positivo, quer negativo. À parte contrária competia provar os
factos impeditivos, modificativos ou extintivos desse direito.
Deste modo, competia à autora a prova dos factos impugnados, salvo o
quesito 8º.
Para melhor compreensão do teor dos quesitos impugnados, convirá
esclarecer que, à data da escritura, não havia quaisquer relações da
autora com a sua mãe, a ora 1ª ré, o que acontecia desde há vários anos,
encontrando-se esta completamente abandonada não só pela filha como
pelos netos, que não queriam saber dela para nada.
Perante um pedido de apoio à Comunidade Evangélica Baptista da
Parede, feito telefonicamente pela C..., que se sentia completamente
abandonada e impossibilitada de satisfazer as suas necessidades
básicas, o “pastor” pediu a intervenção de um casal, os ora 2.os réus,
que passaram a apoiar a C.... Esta encontrava-se de facto numa situação
muito débil, pelo que, carecendo de apoio permanente, estes réus
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procuraram um lar onde a internaram, continuando a prestar-lhe todo o


apoio indispensável.
Como os parcos recursos da 1ª ré não bastavam para o pagamento das
mensalidades do lar, a mesma teria de abrir mão do prédio que era sua
pertença para a satisfação dessas despesas e demais necessidades.
Formalmente, aparece uma escritura de compra e venda em que a 1ª ré
declara ter vendido o prédio aos 2.os réus.
Considera a autora que se trata de um negócio simulado, pois o que a
C... pretendia era doar o prédio aos 2.os réus.
Sustentam os réus que o contrato celebrado foi uma compra e venda,
com cujo produto a C... ia satisfazendo as despesas do lar e outras que
eram necessárias, embora a ré D... admita que a C... possa ter vendido a
casa a um preço mais acessível, com condições especiais de
pagamento, ou seja, admite um preço de favor.
De que lado estará a razão?
É evidente que, tendo a autora obtido no essencial ganho da causa, são
os réus que questionam a sentença, impugnando, desde logo, a decisão
sobre a matéria de facto, estando em causa:
Quesito 2º
Pergunta-se neste quesito se “a ré C... não recebeu a quantia de vinte e
cinco mil euros referida na escritura, nem qualquer outra relativa à
compra”.
O Tribunal a quo considerou apenas provado que “a 1ª ré (C...) não
recebeu a quantia de vinte e cinco mil euros referida na escritura”.
Pretendem os recorrentes que se considere provado que “os réus
pagaram à C... a título de sinal de compra e venda da casa 25.000
euros”.
Ouvindo as cassetes e o CD, ou seja, ouvindo toda a prova produzida,
as testemunhas arroladas pela autora não lograram provar que os 2.os
réus não houvessem feito o pagamento da compra do prédio 1ª ré.
Lançaram dúvidas.
Eis porque o Tribunal a quo, tendo em consideração o disposto nos
artigos 266º, n.º 2 e 519º, n. os 1 e 2 do CPC, notificou os 2.os réus,
para informarem, onde obtiveram o dinheiro para proceder ao
pagamento dos 25.000 euros à 1ª ré, isto é, se, por exemplo, o
levantaram em alguma Instituição de Crédito.
Os réus esclareceram, de imediato, que uma parte no valor de 10.000
euros foi paga com dinheiro levantado da CGD e outra parte com
dinheiro que o seu filho lhes emprestou, no valor de 15.000 euros (cfr.
229 a 234).
Tendo sido ouvido, o filho dos réus, F...., referiu que, após solicitação
dos pais, lhes emprestou a quantia de 15.000 euros, uma vez que o
dinheiro que os pais tinham se encontrava aplicado em títulos bancários
e só mais tarde se encontrariam disponíveis.
Causando estranheza ao Tribunal a quo que a testemunha dispusesse
desse numerário em casa, foi por ele explicado que é quadro superior
de uma empresa, sendo certo que, devido à actividade profissional que
exerce, viaja muito e, uma vez que é casado no regime de separação de

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bens, tem habitualmente uma quantia significativa disponível em


numerário no cofre de sua casa para qualquer emergência que surja na
sua ausência e por forma a que a sua esposa possa assim fazer face a
qualquer imprevisto ou necessidade que haja, razão pela qual pôde
satisfazer o pedido dos réus.
É certo que os restantes 10.000 euros que se encontravam depositados
na CGD foram levantados, no dia 21/04/2005, tendo a escritura sido
celebrada no dia 18/03/2005, podendo portanto concluir-se que, à data
da escritura, não foi entregue a totalidade da importância declarada.
Teriam sido entregues apenas 15.000 euros.

Não podemos, porém, esquecer todo o circunstancialismo que envolve


o caso, sendo perfeitamente admissível que tal importância não fosse
satisfeita na totalidade, na data da escritura mas posteriormente.
Assim, embora não correspondam à verdade as declarações dos
outorgantes, ao referirem que, à data da escritura, havia a vendedora já
recebido o aludido montante, ou que os autores haviam pago toda a
importância declarada, não fica excluída a hipótese da parte
remanescente de tal importância ter sido paga alguns dias depois à C....
Refira-se que, após o falecimento da C..., foi junto aos autos, em
9/10/2008, um comprovativo de um depósito autónomo no montante de
9.000 euros, que se encontravam na posse daquela, existindo ainda
numa conta bancária o valor de 5.000 euros.
Por outro lado, ficou demonstrado que a C... não tinha rendimentos que
lhe permitissem satisfazer as despesas pessoais. Assim, tal importância
poderá corresponder ao valor de parte do preço da compra e venda
entregue à C....
Como é sabido, “quando qualquer meio de prova, não dotado de força
probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a
convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante,
ou que há prova suficiente, desse facto.
Se, porém, a esse meio de prova um outro sobrevier que crie no espírito
do julgador a dúvida sobre a existência do facto, a prova deste facto
desapareceu, como que se desfez.
Nesse sentido se afirma que a prova bastante cede perante a simples
contraprova, ou seja, em face do elemento probatório que, sem
convencer o julgador do facto oposto, cria no seu espírito a dúvida séria
sobre a existência/inexistência do facto[5]”.
Como tal, considera-se este quesito como não provado.
Quesito 4º
Pergunta-se neste quesito se, “por a autora se ter manifestado contra a
celebração do negócio referido em C), foi-lhe comunicado, em 17 de
Março de 2005, que a doação se havia transformado em compra e
venda, tendo a mesma sido antecipada.
O Tribunal a quo considerou provado que “a autora manifestou-se
contra a doação do imóvel aos segundos réus, o que levou a celebrar a
escritura referida na alínea A)”.
Ficou assente que, no dia 10 de Março de 2005, a autora recebeu uma
carta dos advogados dos segundos réus a informarem que iriam

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celebrar a competente escritura de doação, que até já tinha sido


marcada para o dia 21 do mesmo mês.
Consta, porém, dos autos que, na sequência da carta de 10 de Março, o
advogado dos segundos réus veio comunicar à autora que não seria
feita a doação mas sim a compra e venda do prédio. Esta carta
encontra-se datada de 17 de Março de 2005.
Consta igualmente dos autos que a carta em que a autora se opõe à
doação se encontra também datada de 17 de Março de 2005, tendo sido
remetida para o escritório do Dr. G.... (cfr. fls. 224).
Está também assente que a escritura pública de compra e venda do
aludido imóvel foi celebrada no dia 18 de Março de 2005.
Ora, como resulta do depoimento do Dr. G..., este advogado justificou
que por ele e, por seu intermédio os réus, apenas vieram a tomar
conhecimento da oposição da autora à realização da doação, já depois
de ter sido outorgada a escritura de compra e venda. Daí que se não
possa concluir que foi a oposição da autora que levou os réus a
celebrarem a escritura de compra e venda, em vez da escritura de
doação.
Assim, o quesito 4º passará a ter a seguinte redacção:
“A autora manifestou-se contra a doação do imóvel referido em A) aos
segundos réus”.
Quesito 5
Pergunta-se, neste quesito, “se o prédio referido em A) vale, pelo
menos, € 250.000?
O Tribunal a quo respondeu que “o prédio tinha um valor de mercado
superior ao que consta da escritura”.
Consideram os recorrentes que este quesito foi incorrectamente
julgado, pois que o relatório do perito (fls 156 a 160) foi efectuada
depois das obras de restauração a que a casa foi sujeita, depois de
vendida.
É certo que, embora se não tenha apurado o valor exacto dessas obras,
daí resultou um natural aumento do seu valor em relação à data da
venda.
H...., agente imobiliário da empresa que arrendou o anexo e onde a casa
chegou a estar à venda, disse que o preço pedido andaria pelos
25/26.000 contos, mas acrescentou que tal preço seria negociável. E
esse preço foi calculado, antes das obras de restauração, como é
evidente.
É aceitável, por isso, que o valor de mercado possa ser superior ao que
consta da escritura.
Não se altera, por isso, a resposta ao quesito 5º.
Quesito 8º
Pergunta-se, neste quesito, se “a 1ª ré teve a sua casa à venda por mais
de um ano numa agência e devido ao mau estado em que a mesma se
encontrava, não o conseguiu fazer facilmente”.
O Tribunal a quo considerou provado que “a 1ª ré teve durante algum
tempo a casa à venda numa agência, mas a mesma nunca chegou a ser
mostrada a nenhum interessado, em virtude de estar ocupada pela ré”.
A propósito desta matéria é relevante o depoimento da referida H...,
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agente imobiliário.
Segundo ela, o facto da casa estar habitada dificultava a marcação das
visitas, mas acrescentou que chegou a deslocar-se à casa dos autos com
potenciais compradores que não quiseram sequer entrar, face ao aspecto
que a mesma apresentava desde o exterior.
Assim sendo, considera-se provado o seguinte:
Quesito 8º
“A 1ª ré teve durante algum tempo a casa à venda numa agência, mas a
mesma nunca chegou a ser mostrada a nenhum interessado, em virtude
de estar ocupada pela ré e se apresentar com sinais de degradação, logo
no exterior”.
4.Assim, consideram-se provados os seguintes factos:
1º - Por escritura pública de 18/03/2005, C... declarou vender a D...,
casada sob o regime de comunhão de adquiridos com E..., que declarou
comprar, o prédio urbano de habitação, composto de casa de rés do
chão e sótão, denominado “O Cortiço”, com 80 m.2, dependência e
anexo, sito na Rua ...., Parede, descrito na ... Conservatória do Registo
Predial de Cascais sob o n.º ..., e inscrito na matriz sob os artigos ... e
..., pelo preço de € 90.000, sendo € 34.284,78 relativos à casa a que
respeita o artigo ... e € 55.715,22 relativos à casa a que respeita o artigo
... (alínea A).
2º - Da escritura consta:
“Disseram os outorgantes: ... Do montante do preço a vendedora
recebeu já vinte e cinco mil euros, devendo a restante parte, do
montante de sessenta e cinco mil euros, ser paga em cento e oitenta e
cinco prestações mensais e sucessivas, com início no corrente mês de
Março, as primeiras cento e oitenta e quatro de trezentos e cinquenta
euros cada uma e a última de seiscentos euros” (alínea B).
3º - No dia 10 de Março de 2005, a autora recebeu uma carta do
advogado da ré D... e marido, junta com a PI sob o n.º 2, a informar que
estava a ser preparada a escritura de doação que a mãe da autora
pretendia fazer do imóvel acima identificado, como reconhecimento
pelo apoio prestado e que continuaria a ser prestado, concedendo à
autora o prazo até ao dia 21 seguinte, para colocar eventuais objecções
a esse negócio, decorrido o qual seria marcada a escritura (alínea C).
4º - O imóvel acima mencionado constituía o principal património de
C... (quesito 1º).
5º - Em 31/10/2005, a conta bancária de C... tinha o saldo de €
5.024,19, esclarecendo-se que não é conhecida qualquer despesa da
mesma em valor próximo daquele que constou da escritura como
recebido (€ 25.000,00) (quesito 3º).
6º - A autora manifestou-se contra a doação do imóvel referido em A)
aos segundos réus (quesito 4º).
7º - O imóvel tinha um valor de mercado superior ao que consta da
escritura (quesito 5º).
8º - Ao longo dos últimos anos, C... disse várias vezes que não deixava
bens à autora (quesito 6º).
9º - C... teve durante algum tempo a casa à venda numa agência, mas a
mesma nunca chegou a ser mostrada a nenhum interessado, em virtude
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de estar ocupada pela ré e se apresentar com sinais de degradação, logo


no exterior (quesito 8º).
10º - C... pretendeu inicialmente celebrar escritura a doar a casa aos
réus D... e marido (quesito 9º).
11º - A 1ª ré pretendeu compensar os segundos réus pelo apoio e ajuda
que eles lhe tinham vindo a prestar e assegurar a manutenção desse
apoio enquanto fosse viva (quesito 10º).
12º - Os réus D... e marido apoiam e ajudam C..., que não tem relações
com a família, e pagam todos os meses a mensalidade do Lar onde ela
permanece, em valor não inferior a € 600, esclarecendo-se que a mesma
tem outras despesas com medicação, pessoais e outras (quesito 13º).
13º - A autora é filha de C.... (certidão de fls. 116).
14º - C... nasceu no dia 13/12/1928 (certidão de fls. 118).
5.
A autora alega que foi celebrado um contrato de compra e venda do
imóvel para esconder o contrato de doação efectivamente visado pelos
réus. Os réus impugnaram os factos articulados pela autora, defendendo
tratar-se de um contrato de compra e venda, afastando o contrato de
doação.
Qual afinal o contrato celebrado?
O artigo 874º estabelece:
“A compra e venda tem como efeitos essenciais:
a) – A transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito;
b) – A obrigação de entregar a coisa;
c) – A obrigação de pagar o preço”.
Conforme se sabe, a compra e venda é um contrato pelo qual se
transmite uma coisa ou um direito contra o recebimento de uma quantia
em dinheiro (preço).
Assim, o resultado final do negócio consistirá na aquisição por parte do
comprador do direito de propriedade sobre o bem vendido, à qual
acrescerá como efeito subordinado a aquisição da posse, bem como a
aquisição por parte do vendedor do direito de propriedade sobre
determinadas espécies monetárias (o preço).
A compra e venda só se encontrará definitivamente executada quando
se verificarem estas duas alterações na situação jurídica patrimonial dos
contraentes.
Portanto, em relação ao vendedor, a obrigação que surge através do
contrato de compra e venda reconduz-se essencialmente ao dever de
entregar a coisa. Por sua vez, em relação ao comprador, existe a
obrigação de pagar o preço.
Deste modo, na compra e venda, a atribuição patrimonial feita por uma
das partes a favor da outra tem como contrapartida o sacrifício
patrimonial suportado por esta, ou seja, cada uma das prestações é vista
pelas partes como correspectiva da outra, sendo essa a sua razão de ser
e justificação substantiva.
Por sua vez, a doação é definida no artigo 940º do CC, como “o
contrato pelo qual uma pessoa, por espírito de liberalidade e à custa do
seu património, dispõe gratuitamente de uma coisa ou de um direito”.
O primeiro requisito do contrato de doação é a existência de uma

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atribuição patrimonial geradora de enriquecimento, ou seja, um acto


que atribua a outrem uma concreta vantagem patrimonial.
O segundo requisito é a diminuição do património do doador, inserta na
expressão “à custa do seu património”. Este requisito, ao contrário do
que sucede no enriquecimento sem causa, supõe uma efectiva
diminuição patrimonial, sem o que não se estará perante uma doação.
Finalmente, o último requisito do contrato de doação é a existência de
espírito de liberalidade, ou seja, que exista a intenção de atribuir o
correspondente benefício a outrem por simples generosidade ou
espontaneidade e não em qualquer outra intenção como, por exemplo, o
cumprimento de um dever.
Assim, na doação, é essencial o espírito de liberalidade, o animus
donandi, ou seja, a intenção de fazer uma atribuição patrimonial a favor
de outrem, beneficiando-a, sem contrapartida, sem que o beneficiário
suporte o correspondente sacrifício no seu património.
A lei admite, porém, a possibilidade de as doações serem oneradas com
encargos (artigo 963º, n.º 1 CC). O modo ou encargo consiste numa
restrição imposta ao beneficiário da liberalidade que o obriga à
realização de determinada prestação no interesse do autor da
liberalidade, de terceiro, ou do próprio beneficiário, sendo comuns, por
exemplo, os encargos de pagar a estadia do doador num Lar e com
assistência.
“Apesar de, por vezes, se intitular a doação com encargos de doação
onerosa, não se pode neste caso falar da existência de onerosidade,
pois, se assim fosse, estaríamos não perante uma doação, mas antes
perante uma compra e venda”[6].
Apesar das suas características especiais, o legislador não deixou de
incluir no conceito de doação a figura da doação remuneratória,
referindo o artigo 941º que “é considerada doação a liberalidade
remuneratória de serviços recebidos pelo doador, que não tenham a
natureza de dívida exigível”.
Está-se perante uma situação em que o doador recebeu determinados
serviços, os quais não têm, porém, a natureza de dívida exigível. No
entanto, o facto do doador ter ficado grato pela recepção do serviço,
leva-o a querer remunerar quem lho prestou, ainda que em termos
jurídicos a isso não seja obrigado.
É, pois, essencial, para que haja doação remuneratória, que a
remuneração dos serviços prestados não possa corresponder a qualquer
obrigação por parte do receptor.
Dir-se-á, por fim, que, no exercício da liberdade contratual, a lei
reconhece, por vezes as partes utilizam um determinado esquema
contratual, cumulando as funções características de dois contratos,
através da estrutura própria exclusivamente de um deles.
“O contrato que se celebra compreende só os elementos típicos de
determinada espécie contratual; mas na intenção das partes, pela forma
como esses elementos estão doseados ou pelo jogo das circunstâncias,
ele serve também para atingir a finalidade inerente a outra espécie
contratual”[7].
É exemplo bem característico desta ordem de ideias o chamado
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negotium mixtum cum donatione. Há aí um misto de onerosidade e de


gratuitidade, por exemplo um misto de venda e doação, mas o acto na
sua configuração exterior é só oneroso. É o caso da venda por preço de
favor, que envolve uma liberalidade do vendedor em benefício do
comprador.
Na verdade, é frequente utilizar o contrato de compra e venda para
obter fins de liberalidade, com a chamada “venda mista com doação”,
através da atribuição ao bem vendido de um preço intencionalmente
inferior ao seu valor corrente para, desse modo, beneficiar o adquirente,
a título de liberalidade, pela respectiva diferença, o que, em princípio, é
válido, a menos que se ofendam normas imperativas ou direitos alheios.
Neste tipo de contrato, é importante salientar que o preço fixado,
embora inferior ao valor corrente do bem, corresponde a uma
verdadeira contrapartida pela transferência do direito, é um preço real.
Se estamos perante um “preço” meramente declarado, simulado, existe
naturalmente uma doação.
In casu, atendendo à prova, ficou demonstrado que o preço fixado é
inferior ao valor corrente do mercado. A questão essencial a decidir é,
portanto, a de saber se o preço fixado, embora inferior ao valor corrente
do mercado, corresponde a uma verdadeira contrapartida pela
transferência do direito de propriedade do bem ou se, pelo contrário,
estamos perante um preço meramente declarado, sem correspondência
a qualquer contrapartida, correspondendo tal declaração a um acordo
entre declarante e declaratário com intuito de enganar terceiros.
O conceito de negócio simulado está explicitamente formulado no n.º 1
do artigo 240º, sendo elementos integradores do conceito (i) a
intencionalidade da divergência entre a vontade e a declaração; (ii) o
acordo entre declarante e declaratário e (iii) o intuito de enganar
terceiros.
A simulação consiste, pois, na divergência entre a vontade e a
declaração, estabelecida por acordo entre as partes, com intuito de
enganar terceiros.
Embora sem efeitos práticos, a doutrina estabelece distinção entre
simulação inocente e simulação fraudulenta.
A simulação é inocente se houve o mero intuito de enganar terceiros,
sem os prejudicar (animus decipiendi) e é fraudulenta, se houve o
intuito de prejudicar terceiros ilicitamente ou de contornar qualquer
norma da lei (animus nocendi). Em qualquer dos casos, a simulação
importa a nulidade do negócio simulado (artigo 240º, n.º 2).
Pela própria natureza da simulação, a prova da sua existência, a maior
parte das vezes, terá de ser apurada através de indícios; ou seja, haverá
que apreciar as circunstâncias em que o negócio foi celebrado, e
determinar à luz das regras de experiência, o que se pode concluir (por
presunção judicial) dessas circunstâncias[8].
Reportando-nos ao caso dos autos, constata-se que no contrato ficou a
constar um preço de venda de € 90.000,00, esclarecendo-se que €
25.000 já teriam sido recebidos, sendo o restante pago em 185
prestações mensais no montante de € 350 cada uma, excepto a última
que seria de € 600.
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Não se provou que a C... não recebeu a quantia de € 25.000, referida na


escritura como tendo sido paga.
Provou-se que a C..., ao estipular o preço do prédio e as condições de
pagamento insertas na escritura referida, pretendeu compensar os
segundos réus pelo apoio e ajuda que eles lhe tinham vindo a prestar e
assegurar a manutenção desse apoio enquanto fosse viva.
Assim, ao contrário do decidido, a conjugação destes factos não
permite concluir que os réus D... e marido não efectuaram a favor de
C... qualquer entrega de numerário que fosse a sua contrapartida
(parcial) pela transmissão do direito de propriedade.
Houve, é certo, por parte da C..., o propósito de enriquecer o
património dos 2.os réus, mas não foi afastada a contrapartida
económica directa (preço) da parte destes. Trata-se de uma venda por
preço de favor, um contrato misto de onerosidade e de gratuitidade. O
contrato em si é oneroso, é uma venda, mas insinua-se nele um
elemento de gratuitidade, que provém do propositado desequilíbrio
entre as vantagens auferidas pelas partes.
Deste modo, não se pode afirmar que o que as partes declararam no
contrato não corresponde ao que realmente queriam, pelo que não se
comprova a divergência entre a vontade declarada e a vontade real dos
declarantes.
Por outro lado, o facto da C... querer compensar, atendendo ao preço de
favor que foi acordado, os segundos réus pelo apoio e ajuda que eles
lhe tinham vindo a prestar e assegurar a manutenção desse apoio
enquanto fosse viva, não permite concluir que tenha pretendido enganar
terceiros, ou seja, a filha.
Não se verificando divergência entre a vontade e a declaração e não se
verificando o intuito de enganar um terceiro, ter-se-á de concluir, como
corolário lógico, que não existiu acordo simulatório entre os
declarantes, tal como inexiste simulação de negócio.
6.Pelo exposto, na procedência da apelação, revoga-se a douta sentença
recorrida.
Custas pela autora/recorrida.
Lisboa, 21 de Janeiro de 2010
Manuel F. Granja da Fonseca
Fernando Pereira Rodrigues
Maria Manuela dos Santos Gomes
[1] Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, 348.
[2] Recursos em Processo Civil – Novo Regime, Almedina, 2ª edição,
279 e seguintes.
[3] Manual de Recurso em Processo Civil, 8ª edição, 216.
[4] Obra citada, 282.

[5] Antunes Varela, Manual de Processo Civil, 2ª edição, 472.


[6] Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Volume III, Contratos em
Especial, 205.
[7] Galvão Telles, Manual dos Contratos em Geral, 472.
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[8] Beleza dos Santos, A Simulação em Direito Civil, Volume II, 164.

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