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Capacitismo e comunicação não verbal


no Transtorno do Espectro Autista
(TEA) - o alfabeto da sophia: um relato
de caso

Alexandre Soledade Ramos


UFMT

10.37885/210906013
RESUMO

Autistas não verbais conseguem em grande parte dos casos, compreender sentimentos
e responder a estímulos sem necessariamente que a fala seja o meio de comunicação
prioritário. Percebe-se que muitas vezes se investe tempo na busca da emissão do som
e pouco no mais importante: fazer-se entender e ser entendido. Quem talvez não saiba
se comunicar seja o emissor, por vezes o terapeuta e não a pessoa autista. Este é um
relato de caso narrado por um pai atípico de dois filhos, ambos autistas, profissional de
saúde, que ensinou sinais e códigos não verbais para ser compreendido por sua filha
(TEA, nível II e não verbal).

Palavras-chave: Autismo, não Verbal, Comunicação não Verbal.

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INTRODUÇÃO

Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), na classificação internacional das


doenças, o autismo é uma síndrome que dentre as características esperadas temos as res-
postas anormais a estímulos auditivos ou visuais, como também dificuldades na compreen-
são da linguagem, no entanto, há na maioria dos casos dentro das faixas compreendidas
entre o nível 1 e 2 do DSMV, uma grande quantidade de pessoas autistas que possuem
a compreensão, no entanto a ausência da fala como feedback de compreensão da men-
sagem ou do estímulo, não configuram para validar a suposta não compreensão: São os
autistas não verbais.
Este relato de caso tem uma proposta clara que é preciso rever o que se fala ou se
acha sobre o TEA.
Uma situação bem observada no dia-a-dia está na necessidade que muitos profissio-
nais tem na visualização de características que poderiam servir como sugestão diagnóstica
como: dificuldades de relacionamento no início da vida; atraso da linguagem, ecolalia, com-
portamento obsessivo, (que preferimos grafar como paixões) e uso ritualístico da linguagem;
repertório restrito de atividades e interesses, com desejo obsessivo pela manutenção da
mesmice; desenvolvimento intelectual normal, com memória imediata excelente; desenvol-
vimento físico normal (FERNANDES 2003), mas na verdade, o conceito atual de autismo
precisa envolver discussões que vão além de características visíveis ou esperadas, bem
como que a presença ou ausência da fala poderiam ou não configurar o entendimento ou
dificuldade de entendimento inclusive para classificação do nível do autismo.
Sobre comunicação FERNANDES (2003) ressalta que:

“É um dos elementos centrais no quadro clínico de indivíduos com distúrbios


do espectro autístico (TEA); especialmente no que se refere ao uso funcional
da linguagem, aspecto diretamente relacionado às habilidades de interação
social e alterações de comportamento, sendo, portanto, fundamental para a
compreensão e a intervenção nesses casos”.

A própria Sociedade Brasileira de pediatria em um manual orientativo (2019) descreve


algumas características num roteiro para ajudar no diagnóstico dentre eles essa criança
deveria ou poderia apresentar pouca ou nenhuma vocalização; não responder ao nome;
baixa frequência de sorriso e reciprocidade social, bem como restrito engajamento social
(pouca iniciativa e baixa disponibilidade de resposta); interesses não usuais, como fixação
em estímulos sensório-viso-motores.
Volto novamente a frisar que o foco permanece em ofertar um possível diagnóstico
mas que também não emite a certeza que a pessoa autista não possua a compreensão dos
sinais e estímulos por nós emitidos mesmo que o instrumento de feedback esperado seja
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apenas a fala, ou seja, tem como objetivo apenas apontar a ausência de algo esperado nos
casos normotípicos e não que a pessoa autista compreende e se faz se compreender.
Essa mudança de pensamento permite uma abertura a observar nosso próprio
CAPACITISMO quanto profissionais de saúde no que tange a observar uma característica
ausente, mas não as habilidades obtidas.
MELLO (2016) traz a discussão desse tema, o capacitismo, “como a forma como
pessoas com deficiência são tratadas como ‘incapazes’, aproximando as demandas dos
movimentos de pessoas com deficiência a outras discriminações sociais” (...).
A compreensão do que se quer, tornaria a pessoa autista uma pessoa mais em-
poderada e menos refém ao capacitismo? Vale a pena investir tempo em linguagens
não verbais no TEA?

RELATO DE CASO

Sophia, hoje, 2021, com 10 anos, foi diagnosticada aos 4 anos como pessoa autis-
ta. As características peculiares a condição autista, associado a ausência da fala, foram
importantes no diagnóstico precoce e para que se pudesse ter direito as legislações ou po-
líticas públicas de acesso e inclusão escolar, bem como a condutas terapêuticas ofertadas
pelo sistema único de saúde (SUS).
Medicamentos estabilizadores de humor, antipsicóticos, antiepiléticos, (...) foram re-
ceitados e alguns ainda administrados, na busca de um comportamento menos agressivo
ou que busque menos episódios que causem danos físicos a si ou aos outros. Esse pro-
ceder, interferiu na fala? Sempre nos passou pela mente se a busca pela segurança ou do
comportamento não selou um destino. Inclusive, nas tantas consultas, essa foi sempre uma
preocupação: se a cura de um comportamento, não do autismo, passaria pelo veneno.
O segundo temor estaria em se insistir sempre nas condutas terapêuticas da fonoau-
diologia ou abraçar uma alternativa na linguagem brasileira de sinais ou nos PECs (Picture
Exchange Communication System) que pudessem trazer a verdadeira vontade da criança e
não aquela que suponho ser. Capacitismo parental não é algo que se deva ser estimulado
em alguém que se espera que consiga viver sozinha na nossa ausência.
Cada profissional buscado apresentou seu pensamento e suas considerações, mas foi
necessário fugir a sugestão apresentada para uma alternativa hibrida, onde não se desistiria
das sessões, mas que ensinaria um novo “idioma” a Sophia.
Importante: Não é um nome fictício, ela é minha filha!
Ficou decidido que um conjunto de códigos fosse criado para situações ligadas carinho
(tristeza e satisfação) e segurança na aprovação ou reprovação de comportamentos: surgiu
o alfabeto da Sophia.
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Gestos e expressões faciais foram colocados e repetidamente feitos (e falados) para
que a associação do gesto se tornasse algo natural e rapidamente compreendido.
Escolhemos as seguintes frases:

 EU PRECISO MUITO FALAR COM VOCÊ:

Foto 1. Arquivo Pessoal.

Gesto: Dedo indicador no nariz (Foto 01).


Intenção:

• Chama-la a distância (em virtude de hipersensibilidade ao som;


• Reverter crises. Ao ver o sinal ela entendia que eu precisava falar com ela e o tem-
po em crise era menor sem precisar falar (gatilho para permanecer em crise).
• Ajudou muito em sala de aula ou nas terapias para ter a atenção dela assim que os
terapeutas e professores aprenderam os gestos.

EU NÃO GOSTEI. ESTOU TRISTE

Foto 2. Arquivo Pessoal.

Gesto: Mão aberta no peito (Foto 02).


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Intenção:

• Explicar cansaço (explicar que eu estava cansado de algo, fadiga, chegando do


trabalho);
• Não concordar com algum comportamento. Ao ver o sinal ela entendia que o que
estava fazendo não era algo legal. Normalmente ela respondia com o sinal de não
com o dedo ou cessava o comportamento.

EU PRECISO DE CARINHO

Foto 3. Arquivo Pessoal.

Gesto: Mão aberta na lateral do rosto (Foto 03).


Intenção:

• Demonstrar que quero muito que ela ofereça alguma forma de empatia ou carinho
(abraço, atenção, ...).

ISTO É PERIGOSO!

Foto 4. Arquivo Pessoal.

Gesto: Indicador percorrendo na horizontal (Foto 04).


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Intenção:

• Esse gesto tem unicamente intenção em retirá-la de alguma situação perigosa;


• É importante a explicação do motivo e não somente no gesto.

Os gestos foram assimilados e repassados a todos que tinham certo contato com
ela para que facilitasse as situações ligadas ao comportamento e atenção. Terapeutas e
professores que aceitaram a sugestão de comunicação sempre nos ofereciam feedback de
quanto a técnica permitia que ela tivesse melhor aproveitamento.
A técnica foi associada recentemente a sinais da linguagem brasileira de sinais (LIBRAS)
para facilitar o entendimento dos demais profissionais ligados a comunidade escolar para
que se fizesse entender sobre acesso a banheiro, alimentação, bem como comprimentos
básicos como “oi”, “bom dia”, “boa noite” (...)
O melhor feedback se deu ao coloca-la para dormir e ter como resposta não solicitada,
um “boa noite” em LIBRAS.

DISCUSSÃO

A paternidade atípica revela que devemos ter e acreditar em um comportamento proa-


tivo quanto a situação/condição autista.
Sentir-se frustrado por não conseguir se expressar ou ser compreendido é algo inerente
a pessoa autista, imaginemos a que não consegue falar? Estima-se que cerca de 30% das
crianças, jovens e adultos autista tenham essa condição.
Se adentramos as vontades e quereres e colocarmos nesse filtro a situação do capa-
citismo, perceberemos que sem se fazer entender, ideias, necessidades, pensamentos e
urgências serão deixadas de lado gerando ou potencializando frustrações, outro problema
inerente a qualquer pessoa, mas muito observada na condição TEA.
Tecnologias assistidas, inclusive dos aplicativos de mensagens já tem permitido avanços
na independência de autistas não verbais e ampliando horizontes daqueles que possuem
ecolalia, mas nem sempre o aparelho ou tecnologia estará disponível, seja pelas limitações
técnicas ou pelas condições financeiras que a pessoa autista e sua família se encontram.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Percebe-se que é preciso avançar!


Profissionais das áreas da saúde no melhor uso do DSM V quanto ao diagnóstico (de
identificação e funcional) mais preciso e verdadeiro, não somente na ênfase de um código,
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pois essa nova concepção ou observação permitirá a outros profissionais traçar e decidir
melhor suas condutas terapêuticas. Não é essa a intenção de terem criado o CID 11?
Que pais e professores precisam rever conceitos também, pois afirmar, mesmo que
internamente, que a ausência da fala é ausência de compreensão na pessoa autista pode
ser profundamente danosa (e retrógada) por não corresponder nem a verdade e tão pouco
ajudar na mitigação dos preconceitos e no incentivo a inclusão deles na sociedade, bem
como fortalece uma ideia errônea e romântica da condição autista, romantismo esse, uma
das bases do capacitismo.
Percebe-se então a necessidade de se buscar mais alternativas e pesquisas para que
a vontade do autista, criança ou adulto, seja manifestada e amplificada, dentre elas a esti-
mulação da linguagem alternativa, e não somente da fala ou código escrito, como um passo
necessário para redução dos abismos que nos separam da verdadeira inclusão.

REFERÊNCIAS
1. Fernandes FDM. Sugestões de procedimentos terapêuticos de linguagem em distúrbios do
espectro autístico. In: Limongi S, organizadora. Procedimentos terapêuticos em linguagem.
Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2003. p. 55-66.

2. Manual de Orientação (2019) – SBP acessado em 03/09/2021 em https://www.sbp.com.br/


fileadmin/user_upload/Ped._Desenvolvimento_-_21775b-MO_-_Transtorno_do_Espectro_do_
Autismo.pdf.

3. Mello, AG - Deficiência, incapacidade e vulnerabilidade: do capacitismo ou a preeminência


capacitista e biomédica do Comitê de Ética em Pesquisa da UFSC Acessado 03/09/2021 em
https://www.scielo.br/j/csc/a/J959p5hgv5TYZgWbKvspRtF/abstract/?lang=pt.

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