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PARECER.

IMPOSTO DE RENDA - MUL'FA PUNITIVA

- A incidência do regime jurídico punitivo não se compadece


com nenhum tipo de transação, nem comporta negociação de qual-
quer espécie.
- Interpretação do art. 21, § 2Q, do Decreto-lei nQ 401, de
1968.

mcmto - segundo reajnstamento improce-


dente, promovido pelos agentes que subs-
I creveram a peça básica - ajuizou ação or-
dinária de repetição do indébito, com fun-
Três "M" do Brasil, empresa industrial damento no art. 964 do Código Civil e
com sede no Município de Sumaré, Es- art 165 do em, postulando reaver o que
tado de São Paulo, foi autuada sobre fun- lhe houvera sido cobrado de modo inde-
damento de haver infringido o art. 299 vido.
do regulamento do imposto de renda. Tendo notícias do feito, voltou a Fazen-
Não querendo discutir o ::nérito da in- da Federal a exigir a importância corres-
cidência "seca" ou normal do imposto pondente ao desconto de 50% da multa,
suplementar, decidiu a consuIente reco- sob alegação de que a consulente deixara
lher o tributo exigido, aproveitando-se do de cumprir um dos requisitos para a con-
desconto de 50% da multa, por não ofe- cesaão do benefício, qual seja a de não
recer "reclamação" ou "recurso", na con- "reclamar" nem interpor "recurso".
formic!ade do que faculta o art. 21, § 29, A despeito de saber de seus direitos e
do Decrcto-Iei n9 401, de 30 de dezembro de estar convicta do cumprimento de todu
de 1968, in verbis: ai condiÇÓCI que ensejaram o beneficio do
"Art 21. ........................ . art 21, I 29, do citado Decreto-lei n9 <401/
t 29 Será concedida a redução de 50% 68, ainda assim desistiu a conmlente do
da multa ao contribuinte que, notificado apelo que interpusera junto ao Tribunal
do lançamento er~clo, efetuar o paga- Federal de Recursos, precisamente para pôr
mento do débito, no prazo legal, indepen- fim à discussão administrativa.
temente de reclamação ou recurso." De nada adiantou tal providência, posto
Percebendo, entretanto, depois de pago o que a decisão de primeira instância mante-
tributo, que o cálculo fora feito indevida- ve a pretensão fazendária, abrindo espaço

R. Dir. adm., Rio de Janeiro, 126:547-557 out./dez. 1976


a recurso voluntário que a consulente ofe. o envolvimento total com o caso con·
receu ao Primeiro Conselho de Contribuin- creto, porém, tilou-lhes a visão dos gran-
tes, em tempo oportuno. des princípios. A contemplação das ár-
Diante do exposto, vem consultar V. Ex' vores toldou-lhes a visão da floresta.
sobre a questão, desejaooo saber sua opi- Preocupados com os atalhos, palmilhan-
nião a respeito dos argumentos do Fisco do pequenas sendas, percorrendo cami-
invocados no caso. nhos marginais, perderam de vista a es-
trada larga dos princípios científicos e do
direito positivo de nível constitucional e
II
legal que devem orientar o aplicador, na
solução do caso concreto.
CONSIDERAçõES PRELIMINARES
Muitas questões tributárias são condu-
zidas com desproporcional esforço e enor-
A consulente foi aplicada multa por infra-
me perda de energia, dedicada ao debate
ção (que aqui não se discute, por ser ma·
sobre regulamentos e atos jurídicos meno-
téria já vencida) da legislação de imposto
res, com total prejuízo da meditação so-
de renda.
bre as exigências capitulares do direito,
A multa fora imposta pela metade, com
consubstanciadas no direito constitucional.
fundamento na disposição do § 29 do art.
21 do Decreto-Iei nQ 401/68. Ulteriormen-
te, o fisco veio exigir a metade restante da III
multa.
Em outras palavras, veio a impor multa NATUREZA DA MULTA
correspondente aos 50% não exigidos antes.
Isto é fato, embora não todo o fato. ~ Uma premissa de toda discussão sobre
verdade, embora não a inteira verdade. esse caso foi imperdoavelmente negligen-
Mas, é o pedaço da verdade que interes- ciada: trata-se da imperiosa necessida-
sa, para começar a encaminhar o racio- de de determinar a natureza da multa
cínio que deve conduzir à solução global aplicada com redução de 50%, cujos res-
de toda esta questão. tantes 50% ora se exigem. Em seguida,
Este debate - que já se prolongou de- se discutirá o fundamento desta exigên-
masiado - não encontrou fim satisfa- cia suplementar.
tório até agora, porque foi sempre guiado A multa imposta à consulente tinha por
por inspirações pedestres e desatentas aos fundamento o entendimento do fisco no
magnos princípios jurídicos que, entre nós, sentido de que pagamentos a título de as-
norteiam as relações entre fisco e con- sistência técnica estão sujeitos ao chama-
tribuinte. do imposto suplementar de que cuida o
Não que os argumentos e arrazoados art. 299 do RIR.
dos representantes da Fazenda não te- Esta multa é nitidamente uma multa
nham sido de boa qualidade e cuidadosa· punitiva.
mente redigidos. Nem que a defesa da ré Em aula inaugural que recentemente
não tenha sido feita com esmero, apuro proferimos (dezembro de 1974) em curso
e competência. Pelo contrário; este autos patrocinado pela Justiça Federal de São
são testemunhos de objetividade, amor à Paulo e Procuradoria da República, sin-
verdade, zelo, competência e proficiência tetizamos o nosso pensamento sobre o as-
de ambas as partes. sunto.

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Tivemos, então, o ensejo de expor uma Não vamos cuidar dos juros da mora,
cIassificação das sanções tnDUtárias apoia- nem da multa da mora, porque são insti-
da no consenso jurisprudencial e doutri- tutos regidos mais por princípios gerais
nário a baseada em critérios cujos funda- do direito - aplicáveis de modo geral ao
mentos são indiscrepantemente aceitos por direito tributário - do que por princípios
todas as correntes de escritores, na sua específicos do nosso ramo.
essência, embora não (o que é irrelevan-
Também não vamos cuidar das "penas",
te, para este estudo) em todos os desdo-
porque invadiríamos a província especí-
bramentos e acidentes.
fica do direito penal, que é de aplicação
Tivemos, então, ocasião de discernir, na
exclusiva pelo Poder Judiciário, matéria,
generalidade das sanções costumeiramente
portanto,_ inteiramente excluída das nos-
previstas pela legislação tributária, seis
sas cogitações aqui. A respeito do direito
espécies, formulando proposta de classifi-
penal tributário, gostaríamos de recomen-
cação, nesta matéria das mais difíceis e
dar a leitura do livro recente de Hector
delicadas. Trata-se de tentativa de contri-
B. Villegas - o melhor trabalho doutri-
buir para o estudo do assunto.
nário existente sobre a matéria - DI-
a) juros de mora - em geral 1%; reito Pe1lQI Tributário, que tivemos a
b) multa de mora - em geral 10%; honra de prefaciar.
c) multa reparatória (indenização) - em Hector Villegas - autoridade por mim
geral até quantia igual ao imposto de- tantas vezes invocada como dos melhores
vido; conhecedores da matéria - simplifica
d) multas punitivas - 100%, 150%, esta classificação - reconhecendo a di-
200% etc. do imposto devido; ficuldade de discernir as multas puramente
e) outras penalidades - as não com· reparatórias das reparat6rio-punitivas -
preendidas nas demais categorias; para engendrar a categoria das sanções
f) penas. mistas, que reúnem concomitantemente os
dois caracteres.
De acordo com essa classüicação, reco-
Seja qual for o ponto de vista adota-
nhecemos a dificuldade de distinguir as
do, parece-nos inconcurso e nítido que,
multas reparatórias das multas punitivas,
in hipothesy, estamos diante de multa pu-
quando o legislador - gozando de am-
nitiva, castigo cominado pelo legislador e
pla margem de discrição - pode estabe-
aplicado pelo administrador.
lecer parâmetros que as igualem. Quan-
to às multas reparatórias, ou indenizat6- Pretendemos demonstrar que a multa de
rias, muitas vezes assumem o caráter de que cuida a consulta é nitidamente puni.
sobretaxa, como bem o demonstrou o tiva. Com isto fixaremos importante pre-
constitucionalista José Horácio Meirelles missa da primeif'l conclusão deste parecer.
Teixeira, saudoso professor da Universi- Efetivamente, a multa que se pretende
dade Católica de São Paulo. As sobreta- cobrar da consulente é uma punição, um
xas são estudadas na doutrina italiana sob castigo que a ela se quer impor. É que a
a rubrica sopratassa. natureza dos 50% já recolhidos é a mes-
Neste estudo, vamos somente cuidar ma dos 50% ora pretendidos (e restan-
das multas reparatórias, das multas puni- tes). Nem poderia ser diversa a natureza
tivas e das chamadas eutras penalidades, desta segunda metade. Só por absurdo
sob as letras c, d e e. se poderia argumentar de modo diferente.

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Se a multa era de X e foi aplicada mação" ou "recurso", tal como previstas
pela metade, a segunda metade tem a no texto do Decreto-lei n Q 201, são ex-
mesma natureza da primeira. Logo, os pressões que se estendem ao âmbito do
50% ora pretendidos correspondem a uma processo judicial (idem, item m).
punição. Nem podia repelir a invocação - aliás
Fixada tal premissa (a multa exigiria oportuna - da defesa, do princípio in
é de natureza punitiva, configura castigo), dubio pro reo (tópico 6).
podemos disso concluir: A admissão desta premissa também evi-
dencia quão repugnante é a afirmação -
aJ aplica-se à interpretação das normas que serviu de base à docisão n Q 83000/
pertinentes ao caso critério restritivo; 0.0. - no sentido de que "a redução da
b) o regime jurídico punitivo - posto multa tem a natureza de um negócio bi-
constitucionalmente como conjunto de lateral" (tópicO 6). Que audaciosa teo-
preceitos de proteção aos direitos indi- ria assim se lançoul Sustentou-se aí, ad
viduais - é integralmente invocável pela hoc, que pode uma punição legal ser ob-
defesa. jeto de transaçãol Isto dá idéia de insti-
tuto contratual, o que é absolutamente
Na verdade, se in casu, estamos diante contrário, em !ermos lógicos, à idéia ins-
de punição, castigo, retribuição adminis- titucional de penalidade legal!
trativo-penal, a interpretação da lei há de O regime jurídico punitivo é absoluta-
ser rutringenda, porque só favorabilia mente excludente de qualquer tipo de dis-
ampliando. crição, quanto mais do verdadeiro arbí-
Tal é princípio hermenêutico solidamen- trio que peculiariza a autonomia de von-
te firmado no solo de nossa tradição ju- tade, caracterizadora do contrato!
rídica, pelo caráter vetusto que já adqui- A incidência do regime jurídico puni-
riu, dado que deita raízes no direito ro- tivo - cujos princípios norteadores têm
mano. nível constitucional - não se compadece
Por outro lado, verdade que tem igual com nenhum tipo de transação, nem pode
força, constitui exigência constitucional comportar negociação de qualquer espé-
que toda vez que se configure situação cie.
em que o plrticular esteja diante do es- Assim se ::videncia a fragilidade dos
tado no exercício do seu direito de pu- fundamentos dos atos de "aplicação" de pu-
nir (castigar), incide automática e ime- nições à consulente, os quais serão aqui
diatamente o chamado regime jurídico estudados, sob 3 perspectiva jurídica.
punitivo, assim designado o conjunto de
preceitos constitucionais e legais que es- IV
tabelece limites procedimentais, proces-
suais e substanciais à ação do estado, nes- REOI~ DA APUCAÇÃO DI! Pl!NAUDADES
ta matéria (exercício do jur puniendi).
Se assim é, não poderia o fisco fazer, Costuma a doutrina classificar as sanções
como fez, invocar a analogia (Docisão n Q nas categorias de: a) sanções civil, que
83000/0.0., item m), para agravar a são indenizatórias; b) as sanções adminis-
situação da defendente. trativas, que têm caráter misto (repara-
Menos ainda poderia adotar interpreta- tório e punitivo); c) sanções penais ou
ção extensiva, para entender que "recla- puramente punitivas.

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Há uma boa discrepância entre os auto- dem às sanções penais, sendo as espécies
res, mas essencialmente, o que interessa é reconhecíveis ("om relativa facilidade, por
salientar o caráter de sobretaxas reves- peculiaridades ínsitas na sua natureza.
tido por algumas sanções (designadas ad- Por isso Giuseppe Giuliani prefere fa-
ministrativas), o caráter civil daquelas in- zer referência a esta matéria pela locução
denizatórias (que têm por finalidade e es- "direito repressivo tributário", em lugar
copo cobrir uma presumida lesão aos co- de direito penal tributário, exatamente
fres públicos) e por último as sanções para deixar claro o objetivo de evitar
punitivas, que têm pura e exclusivamente todo e qualquer tipo de confusão que pos-
a finalidade de castigar a transgressão da sa prejudicar a correta compreensão do
lei. tema.
De modo geral, assim toda a doutrina Nem é por outra razão que a palavra la-
classifica as sanções. A mesma coisa acon- tina sanctio deriva de sanctum facere.
tece com a jurisprudência (ex: Agravo de ~ por isso também que Acllllle Gianni-
petição n Q 30 150. Tribunal Federal de ni acentua, nos seus inexcedíveis Con-
Recursos). cetti, que as multas - ainda que trazen-
Hector Villegas, no seu festejado livro do uma vantagem econômica ao Estado
Direito Penal Tributário (Ed. Resenha - não são preordenadas a este fim, mas
Tributária-EDUC, São Paulo, 1974), ado- a um outro, substancialmente diverso,
ta critério que simplifica as classificações, qual seja o de infligir um sacrifício ao
para reconhecer duas grandes categorias, transgressor da lei" (p. 59).
quais sejam: A mesma coisa se encontra em Hensel,
no seu famoso Direito tributário, traduzi-
a) sanções repreensivas;
do para o italiano pelo Prof. Dino Jarach
b) sanções mistas ou repressivo-com-
(p. 4).
pensatórias (op. cito p. 289).
Por isso também, Angelo Dus, no seu
Esse mesmo autor leciona que, confor- livro Teoria generale dei ilecito fiscale
me o caso, determina-se que dadas con- (Ed. Giuffré Milão, 1957) afirmou:
dutas violatórias de obrigações tributárias "Classificam-se as infrações tributárias se-
sejam objeto de sanções "cuja finalidade gundo tenham natureza penal, administra-
está em reparar o dano causado". tiva ou civil, partindo de distinção essen-
E continua: "a idéia exclusiva de repa- cialmente fundada sobre a espécie de san-
ração é que distingue com nitidez as san- ção que o fato jurídico produz ou con-
ções indenizatórias das repressivas" (p. corre a produzir e que pode ser conside-
319). rado o efeito do próprio fato" (p. 82).
E depois tem oportunidade de escrever Em coerência com a mesma concepção,
que: "a multa fiscal, em sendo retribu- dispõe o art. 70 do "modelo de código
tiva, assume o caráter de pena, enquanto tributário para a América Latina", ela-
sua finalidade não se resume a simples- borado conjuntamente pelos Profs. Giu-
mente reparar o Fisco, senão também cas- liani Fonrouge, Valdes Costa e Rubens
tigar o infrator. Estas considerações estão Gomes de Souza, para o programa con-
a demonstrar aquilo que o senso jurfdico junto de tributação OEA-BID: "A falta
elementar já indicava, ou seja, que as ca- de normas tributárias expressas, aplicar-
racterfsticas das sanções civis são nitida- se-ão supletivamente, os princípios gerais
mente distintas daquelas que correspon- do direito em matéria punitiva."

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As IH Jornadas Latino-Americanas de v
Direito Tributário, promovidas pelo Ins-
tituto Latino Americano de Direito Tri- INTERPRETAÇÃO DA LEI APLICÁVEL
butário, realizaJas em São Paulo, em À QUESTÃO
1962, aprovaram, dentre as suas conclu-
sões, quanto aos princípios jurídicos apli-
cáveis à repressão e prevenção das infra- A solução do problema posto pela con-
ções tributárias: "Para aplicação e inter- sulta depende da interpretação do dispo-
pretação das normas tributárias, no que sitivo do § 29 do art. 21 do Decreto-
se refere ao ilicito tributário e suas san- lei n9 40l.
ções respecti.:ls, dever-se-á levar em Entende o Fisco que a consulente in-
conta os institutos, princípios e concei- fringiu essa disposição, ao intentar medi-
tos próprios, do direito tributário e, à ca judicial visando corrigir erro de cál-
sua falta, os prinCÍpios gerais do direito, culo detrimentoso de seus direitos.
em matéria punitiva." É convicção do Fisco que tal atitude
Aprovaram também, a seguinte resolu- consiste em violação da exigência ali con-
ção: "N9 9: a 1ei tributária deve assegu- tida. É que os agentes fazendários enten-
rar as garantlas do devido processo, nas dem que - ao dispor a lei que o reco-
instâncias administrativas e jurisdicionais, lhimento deve ser feito "indeper:dente-
outorgando, em todos os casos, o direito mente" de recurso ou reclamação - qual-
a obter o pronunciamento de um órgão quer petição ainda que dirigida ao Ju-
jurisdicional" (apêndice dos anais das VI diciário, importa desconformidade com
Jornadas Latino-Americanas de Direito o aí exigido.
Tributário. Punta Del Este, 1970, p. 664). A finalidade desse mandamento legai é
Não se carece senão de - sem nenhum nítida: acelerar a arrecadação e simplifi-
esforço - aplicar estas lições ao caso car a burocracia e tramitação administra-
sub examine. tiva de pleitos. A interpretação teleológi-
Com isto, afastar-se-á a aplicação ana- ca é, pois, intui~iva; indica que quanto
lógica detrimentosa da consulente, repe- mais expedita, célere e pacífica for a ar-
lir-se-á a interpretação extensiva que le- recadação, melhor para os desígnios fis-
vou ao grave equívoco de abranger ação cais.
judicial no conceito de reclamação e re- "Independentemente", quer significar:
curso e abrigar-se-á o princípio - tdo m~dia:Jte pagamento imediato. Não pode.
oportunamente invocado pela defendente ria querer dizer pagar multa sem moti-
- in dubio pro reo. vo, sem razão, ou sem fundamento, o que
Se - como é o caso - se trata de valeria a admItir absurdo, ccn~ra-senso,
imposição de punição à consulente, acu- despropósito inserido r;a ordem jurídica.
sada de infringir lei repressiva de compor-
Na verdade, discutir direitos não é nada
tamento antijurídico, é·lhe - por força
que possa ser considerado irregular ou
do disposto no § 15 do art. 153 da Cons-
tituição - assegurada ampla defesa. repugnante. Pelo contrário, é algo conhe-
E aí esbarram os aplicadores da lei em cido do sistema, nele previsto, a ele ine-
uma perplexidade insuperável: como aten- rente, por ele consentido e regulado.
der ao imperativo constitucional, punindo Daí porque não se poder entender como
quem, no exercício do direito de ampla abrangentes de medidas judiciais, as ex-
defesa, recorre ao judiciário? pressões "reclamação ou recurso".

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Toda e qualquer restrição de direito se nição à consulente, três violências lógicas
interpreta restritivamente. Na verdade, ai e hermenêuticas tiveram que ser pratica-
prevalece, de modo soberano e absoluto, das pelo Fisco:
o princípio exceptionea aunt strictissimae
interpretationia. a) adotar interpretação extensiva;
Na verdade, recursos judiciais não são b) recorrer escancaradamente à analo-
matéria tributária, nem regulada normal- gia;
mente pela legislação tributária - salvo c) confundir, misturar e identificar ins-
expressa, direta e inequívoca disposição titutos processuais e jurídico-administrati-
legal em contrário. vos.
A matéria de recu.rsos judiciais é pro-
c~ssual, objeto de legislação própria, in- Com isto, transgrediram-se as exigências
serida em outro ramo do direito, absolu- do método literal, assim como as do te-
tamente distinto e autônomo, tal como re- leológico e sistemático.
conhecido unanimemente por toda a dou- Do literal {-orque "ação de repetição"
trina. não é "reclamação nem recurso". Do te-
Por isso, só menção explícita e ine- leológico, porque a finalidade visada pela
quívoca poderia levar o intérprete a en- ordem jurídica - globalmente conside-
tender como abrangidos o direito proces- rada - não poderia ser frontalmente con-
sual e seus institutos nessa expressão tão trastante com o direito de postulação pe-
restrita e típica, como está na disposição rante o Judiciário. Do sistemático, porque
mencionada. o intérprete não pode dar como iguais,
As ações e recursos judiciais integram idênticas, parecidas ou semelhantes, me-
sistematicamente outro setor, seara inde- didas diversas quanto ao fundamento, re-
pendente, domínio autônomo, inteiramente gime, e fins, como o são ação judicial.
diverso do tratado pelo Decreto-lei n9 401. de um lado, e recursos e reclamações de
A disciplina do chamado contencioso outro.
tributário é radicalmente alheia, distante, A consulente foi ao Judiciário no exer-
separada e independente da processual. cício de um elementar direito, o que de-
Esta constitui um ramo autônomo do di- monstra configurar seu caso hipótese ab-
reito. Aquela é mero segmento ou par- solutamente diversa daquela contemplada
te integrante do direito administrativo. pela disposição legal invocada pelo Fisco.
Só esta razão já bastaria para repelir Na verdade, o objeto da ação judicial é
a ampliação - por via de interpretação absolutamente distinto daquele que pode-
- dos conceitos de reclamação e recurso ria ter sido objeto da reclamação adminis-
às ações judiciais. trativa, inserida como hipótese da dispo-
Além do postulado hermenêutico que sição legal contemplada. Daí se concluir
fixa o caráter restritivo da interpreta- que a hipótese prevista neste mandamento
ção - nos casos de punição - esbarra legal não se aplica a qualquer tipo de
a solução proposta pelo Fisco com o im- ação judicial intentada com outro fun-
pedimento absoluto do recurso à analo- damento e diversa finalidade. como é o
gia, como meio de alcançar com sanção caso.
situação não explicitamente contemplada Não cabe aqui repetir a excelente ar-
pela lei. gumentação desenvolvida na defesa da
Em suma, para poder aplicar esta pu- consulente, no sentido de demonstrar o

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pleno preenchimento de todas as condições Pois, a interpretação que se está pre-
para gozo da vantagem prevista na dispo- tendendo dar à lei, no caso sub eramine,
sição do § 29 do art. 21, do Decret~ é tal que obrigaria a considerá-la irre-
lei n 9 401. missivelmente inconstitucional, porque
confirmaria a tese de que ela estabelece
uma punição, cuja hipótese é: "propor
VI
ação judicial".
ATO JURÍDICO PERFEITO
Assim agindO, o Fisco - ao contrário
de tentar compatibilizar a lei com a Cons-
Ao aplicar a multa com 50%, o Fisco tituição - dá-lhe interpretação que a põe
praticou ato jurídico regular. Interpretou frontalmente em contraste com a lei
adequadamente a lei e a aplicou COlTeta- magna.
mente ao caso concreto. No exercício de
competência vinculada. exauriu seu poder VII
jurídico, criando situação jurídica estável.
Não pode, agora - em virtude de fato ATO ILÍCITO
ulterior - modificar, para pior, a situação
da consulente. Não pode reformar in pejru e comezinho e induvidoso que os casti-
a decisão administrativ~punitiva. gos (sanções punitivas) previstos pela or-
A não ser que se entenda que o fato dem jurídica se aplicam a pessoas, cujos
posterior é um ilícito em si, a que corres- comportamentos transgridem os preceitos
ponde uma sanção. legais.
Tal ilícito consistiria em "propor ação Se se fala em castigo, ipso facto se su-
judicia!", ou "pedir a prestação jurisdi- põe um ato ilícito. Se se menciona ato
cional". ilícito, a ele necessariamente há de cor-
Não carece o oponente a tal tese de responder uma punição.
nenhum esforço para demonstrar o seu A multa imposta à consulente é, como
absurdo. Não pode nenhum método ou visto, inequivocamente, um castigo, uma
processo de interpretação conduzir a tal punição que lhe foi aplicada. Cabe inda-
conclusão, tal o violento contraste de seu gar, pois, a que ilícito é ela "imputada"
conteúdo e significado, com as exigências (empregando a terminologia Kelseniana).
do preceito do § 49 do art. 153 da Cons- Qual a hipótese de incidência desse pre-
tituição, segundo o qual "a lei não pode- ceito punitivo? A interpretação dos órgãos
rá excluir da apreciação do Poder Judiciá- fazendários parece cristalinamente lfmpi-
rio qualquer lesão de direito individual". da, neste caso: entendem ilícito o gesto
Se nem a lei pode fazê-lo, menos ainda da consulente de propor a ação de repe-
o poderá a interpretação administrativa. tição.
Mas - o que é mais grave - se a lei O auto de infração narra um ilícito
não pode ercluir a apreciação judicial, com consistente em o contribuinte propor me-
maior razão não pode punir quem a pr~ dida judicial. Em conseqüência, é-lhe apli.
voque. cada uma multa, a título de castigo, pela
e manifesto ser mais grave agressão ao circunstância de ter intentada ação na jus-
mandamento constitucional o punir quem tiça.
propõe ação judicial do que simplesmente Ou a disposição mencionada (do De-
ercluir o direito de fazê-lo. cre~lei n9 401) foi estabelecida como um

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benefício, e assim deve ser interpretada e prio", aplaudindo, dessa forma as previ-
considerada, em todas as suas conseqüên- sões constantes do código penal argentino.
cias - de modo a não prejudicar a coo- que estabelece tais regras, aliás de aca-
lUlente - ou pelo contrário, prevê um tamento universal, já que também ado-
castigo. tadas em inúmeros outros países, inclusive
Nessa segunda hipótese, tratar-se-ia de no Brasil.
um castigo absolutamente inconstitucional, Também o código penal brasileiro ado-
pelo menos, da forma como aplicado no ta esta orientação, que, como dito, é con-
presente caso: é que não se pode admitir sagrada no mundo todo. Efetivamente,
contradição desta natureza no sistema ju- sempre que alguém atua concretamente
rídico. na conformidade de um preceito norma-
Efetivamente, é simplesmente absurdo tivo que lhe assegura o direito de assim
admitir que a legislação possa contemplar, atuar, não pode o intérprete jamais en-
como hipótese de incidência de um casti- tender como ilícito tal comportamento.
go tão grave, a circunstância de alguém ~ mesmo logicamente inconcebível que
exercer um direito que a norma constitu- um comportamento possa ser jurídico e
cional - por isso mesmo superior - as- antijurídico ao mesmo tempo.
segura a toda e qualquer pessoa (§ 49 Daí a inaceitável incoerência da inter-
do art. 153 da Constituição). pretação adotada pelo Fisco, in CIlSU, ao
Então, devem os contribuintes confor- aplicar punição à consulente, pelo fato de
mar-se com todo e qualquer tipo de erro ela usar do direito de pedir repetição par-
de cálculo? Se estão impedidos - de cial de indébito, com. fundamento em
acordo com a interpretação do Fisco - erro de cálculo.
de pedir repetição, como proceder? Por Na verdade, ou é direito do contribuin-
acaso a ordem jurídica exige que aceitem te pedir repetição do indevidamente pago,
qualquer erro em detrimento de seus di- ou fazê-lo configura ato ilícito (que deva
reitos? Por acaso o Fisco devolve de ofí- ser punido). Se é direito não se pune. Se
cio as importâncias excessivas? Se não o se pune, não é direito.
fizer, está inibindo o contribuinte de plei- Ora, se é a lei expressa que cria e am-
teá-lo, administrativa ou judicialmente? E,
para esse direito, pleitear devolução é ato
em o fazendo, devem ser punidos com lícito. Não pode ser passível de punição.
aplicação de multa tão drástica e severa?
~ um direito e quem o exerce não pode
Estes absurdos estão bem a patentear
ser castigado.
a incongruência da interpretação que se
pretende dar à ordem jurídica, DO que se
aplica ao caso. IX

VIII

ExCLUDENTE DE n.IClTUDE Há um precedente administrativo, invo-


cado nos autos, e que consiste no parecer
Tratando Hector VilIegas das causas ex· normativo 475, de 21 de julho de 1971,
cludentes da antijurisdicidade, arrola en- que, a certa altura - tentando interpre-
tre elas: ''b) o cumprimento de um dever tar a situação - afirma que tem cabi-
e o legítimo exercício de um direito pr6- mento o gozo do benefício "desde que

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não seja apresentada defesa impugnando 1j; bem de ver que tal interpretação de-
a procedência do débito lançado". ve ser repelida. Não pode ser aceita, por
Também esta afirmação merece ade- violar frontalmente quer o direito de de-
quada interpretação, a fim de que as con- fesa - assegurado pelo § 15 do art. 153
clusões não sejam contrastantes com as da Constituição - quer o direito de pos-
exigências superiores do nosso sistema ju- tular perante o Judiciário, previsto no §
rídico. Com efeito, com isto não se pode 49 do mesmo artigo.
pretender entender que todo e qualquer Se for aceita tal interpretação, como
tipo de defesa que se apresente seja eli- fica o acatamento que todos devemos ao
dente do direito ao gozo do benefício ali preceito constitucional que estipula que
previsto. "ao acusado dar-se-á ampla defesa, com
1j; que, a prevalecer esta forma de en- os recursos a ela inerentes"?
tendimento, estar-se-ia antecipadamente Na verdade, essa interpretação deturpa
avalizando todo e gualquer abuso da par- o espírito de nosso sistema jurídico e de-
te do Fisco, que teria, dessarte, o arbítrio forma o sc;ntido e alcance da lei, subver-
de perpetrar livremente erros de inter- tendo sua finalidade.
pretação e sobretudo erros de cálculo.
Com efeito, no caso sub examine, a
Porque, diante desses erros, estaria o
consulente - só ap6s verificar ter ocor-
contribuinte inibido de qualquer tipo de
rido erro de cálculo detrimentoso de seu
reação, na defesa mais do que legítima do
patrimônio - propôs ação judicial, para
seu patrimônio e do direito de pagar ex-
corrigir tal erro.
clusivamente o previsto na lei, para -
Se é decorrência do princípio da lega-
desde que com isto tivesse um benefício
lidade que s6 é devido tributo previsto
maior do que a perda - gozar da redu-
em lei e estritamente r:a medida da lei,
ção da multa.
ipso facto todos temos o direito subjetivo
Ora, é bem de ver o absurdo desta hi-
de s6 pagar a quantia que a lei prevê.
pótese, que destruiria integralmente o
Nem um ceitil a mais.
princípio da legalidade e feriria de morte
o princípio da vinculabilidade dos atos ad- E se, eventualmente - não importa por
ministrativos. Tal solução não pode es- quais razões - , é recolhido tributo a mais,
tar prevista na ordem jurídica. Não pode, deve o Estado devolver escrupulosamente.
pois, ser adotada por nenhum intérprete. Correspectivamente, pode o contribuinte
exigir a devolução.
E, se o faz, age no exercício regular
x de um direito. Sendo assim, não pode ser
CoNCLUsÃO
punido.
Ora, se se dá à lei interpretação que
Na verdade, a interpretação atribuída pe- resulta em inibir o exercício de um di-
las autoridades fiscais à lei, confere-lhe o reito, tal interpretação está errada e deve
seguinte sentido: merecer repulsa.
A multa exigida anteriormente à consu-
a) será multado em 50% quem se defen- lente é um castigo. Isto não comporta dis-
der; ou cussão. Ainda que parcialmente remissí-
b) será multado em 50% quem usar do vel e perdoável (na proporção de 50%)
direito de defesa, recorrendo à Justiça. é sempre punição, conforme demonstrado.

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o favor - que se compadece com in- Só puno novamente, à vista de fato no-
terpretação analógica e extensiva - 6 a vo, revestindo a característica de ilícito.
redução da multa, ou sua remissão par- In hipothesy, o único fato superveniente
cial. Recorrer à analogia ou atribuir in- foi a propositura da ação de repetição de
terpretação extensiva à norma punitiva indébito, como narra a peça de imposição
(como se faz, no caso) é aberrante. de multa.
Isto evidencia que o Fisco está atribuin-
Mereceria tal tratamento, sim, a apli-
do ao fato de a consulente bater às portas
cação do favor consistente na redução.
da justiça a qualificação do ilícito puní-
Configura, porém, excesso intolerável pelo
vel. E é exatamente contra esse agravo a
nosso sistema jurídico a adoção de tal cri-
seu patrimÔnio e agressão à ordem jurí-
tério na aplicação de penalidade.
dica que devem levantar-se todos os apli-
Na verdade, a redução de 50% é lógica cadores que forem chamados a se pro-
e cronologicamente posterior à punição e nunciar.
- ao contrário de negá-la - a confir- Por todas estas razões, sou de parecer
ma. Só quem é punido com multa pode que a decisão recorrida deve ser reforma-
gozar de tal redução. Não cabe cogitar da, restabelecendo-se o statu quo ante, na
de redução, se não houver multa. Só p0- sua integridade, em respeito à lei e aca-
de receber o favor quem foi punido. tamento aos imperativos mais altos do
Ora, ao aplicar uma multa (com ou nosso sistema constitucional.
sem redução) o Estado esgota seu lru pu- Geraldo Ataliba, Professor da Facul-
niendi. Não pode depois praticar refor- dade de Direito da USP e da Católica de
mIltio in pejru, J'e'll incidir em bis in idem. São Paulo.

o Instituto de Organização Racional do Trabalho do Rio


de Janeiro - IDORT-RJ -, com seus congêneres de outros
Estados, propõe-se a realizar e proporcionar a seus associados
e demais interessados:

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e administração

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