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Tudo em Todo Lugar Ao Mesmo Tempo: uma analise sobre os conceitos de

David Bordwell

Anna Beatriz Lacerda Barreto da Silva1

Resumo
Com o objetivo de analisar o filme Tudo Em Todo Lugar Ao Mesmo Tempo, o
presente artigo se utiliza dos conceitos trabalhados por David Bordwell no primeiro
capítulo do livro “Figuras Traçadas na Luz”.

Palavras-chave: Cinema. Montagem. Mise-en-scène.

Introdução
O presente artigo pretende analisar o filme “Tudo Em Todo Lugar Ao Mesmo
Tempo” através dos conceitos apresentados por David Bordwell no primeiro capítulo
do seu livro “Figuras Traçadas na Luz”, com o objetivo de conceituar a produção
cinematográfica em questão e desenvolver os conceitos apresentados no livro para
próximo do produto audiovisual.
O filme “Tudo Em Todo Lugar Ao Mesmo Tempo", lançado em 2022, teve sua
produção anunciada em 2018 e contou com uma equipe pequena, não mais que 9
pessoas. Tratando de temas filosóficos, passando por discussões niilistas e
existencialistas e falando sobre temas como a neuro divergência e depressão, o
filme se passa durante um dia movimentado na vida de Evelyn Wang, onde ela
precisa lidar com a ida a receita federal, os preparativos para uma festa na
comunidade em que mora, a rotina da lavanderia que gerencia, o pai doente vindo
da China e a filha descontente.
Este artigo coloca em destaque elementos da mise-en-scène, continuidade
intensificada e as quatro principais funções do estilo de um filme. Foi escolhido
abordar somente os conceitos que se enquadravam com o apresentado pelo filme,
para que seja possível a sua utilização como exemplos dos conceitos abordados no
artigo.

Sobre o filme
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Graduanda em Cinema e Audiovisual pela UNIJORGE. E-mail: annabeatrizlacerda3@gmail.com
2

Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo é um longa-metragem com 2h19m de


duração, dos diretores Daniel Kwan e Daniel Scheinert e produzido pela A24, o filme
foi o maior premiado do Oscar de 2023, sendo o vencedor da categoria principal de
Melhor Filme, além de levar outras 6 estatuetas. Prêmios da Associação de Críticos
de Hollywood, Globo de Ouro, Independent Spirits Awards e Screen Actors Guild
Awards estão inclusos na lista de vitórias acarretadas pelo filme. Ao todo, possui
mais de 100 conquistas.
Adentrando ao conceito de universos paralelos, o longa aborda a história de
uma imigrante chinesa, Evelyn Wang (Michelle Yeoh) que possui uma lavanderia
com problemas financeiros, além de crises familiares com o seu marido Waymond
Wang (Ke Huy Quan) e filha Joy (Stephanie Hsu). Enquanto lida com uma reunião
com a Receita Federal, Evelyn se depara com a revelação de realidades paralelas
em que ela, rapidamente, precisa se adaptar para impedir uma ameaça de destruir
todos os mundos, ao mesmo tempo que precisa vivenciar todas as suas versões de
outros universos e suas diferentes vidas.
O projeto do filme foi iniciado em 2010, mas somente em 2018 sua produção
foi anunciada, e nos três primeiros meses de 2020, o filme foi filmado. Lançado no
primeiro semestre de 2022, o longa foi a primeira produção da A24 a alcançar mais
de 100 milhões de dólares em bilheteria, ultrapassando o último sucesso da
produtora, o filme “Hereditário”.

Mise-em-scène
Antes de mais nada, é importante colocar em destaque alguns dos conceitos
trazidos por Bordwell em seu livro. A começar com o significado de “diretores que
acreditam na imagem” que é trazido por André Bazin em seu livro “A evolução da
linguagem cinematográfica” e discutido no primeiro capítulo do livro de Bordwell.
Segundo Bazin, esse grupo de diretores constroem seu estilo com manipulações
pictóricas da imagem ou justaposições de imagens, podendo ser vista em filmes de
diretores como Orson Welles, Alfred Hitchcock e Jean Renoir.
Assim, podemos dizer que os “diretores que acreditam na imagem” se utilizam
da mise-en-scène para criar uma realidade estilizada e expressiva. Então o uso do
plano-sequência, do movimento de câmera e da composição em profundidade não
visava capturar a realidade, mas sim expressar as visões particulares de mundo dos
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diretores. A tendência do diretor mise-en-scène é minimizar o papel da montagem,


criando significado e emoção por meio do que acontece dentro de cada plano.
Durante a direção e da produção “Tudo Em Todo Lugar Ao Mesmo Tempo”,
os diretores, apelidados de “The Daniels”, usaram da mise-en-scène em diversos
momentos para criar uma realidade caótica e, mesmo assim, crível dentro dos
diversos universos apresentados no filme. Logo, na primeira parte do filme, somos
arrastados para o cotidiano corrido e louco da personagem principal Evelyn e,
mesmo quebrando a lógica apresentada por Bordwell de que o diretor mise-en-
scène tende a minimizar o papel da montagem com planos-sequência, os diretores
do filme trabalham com cortes cada vez mais acelerados, alternando entre os
núcleos conflituosos e sem a presença de planos-sequência, utilizando a
continuidade intensificada, caracterizando assim o estilo do filme.
Em uma das cenas finais, temos a percepção de Evelyn para com Joy e todas
as suas dificuldades. É o grande desfecho da trama, o momento no qual a mãe
consegue se colocar no lugar da filha e entender suas dificuldades e medos. Joy ou
Jobu Tupaki, ao acessar todos os universos e suas diferentes colocações, chegou à
conclusão de que nada era importante, e por conta disso ela abriu mão de tudo.
Nessa temos uma ação diferente de Evelyn para a mesma conclusão, quando nada
em todos os universos importam, ela passou a valorizar todos os pequenos detalhes
que existem a sua volta.
Diferente do ritmo geral do filme, grande parte dessa cena se utiliza de planos
mais longos e fixos, deixando espaço para que os pequenos detalhes ganhem sua
devida importância. Dentro dessa cena, temos uma montagem de Evelyn nos
diferentes universos, e em cada um ela finalmente abre espaço para compreender o
sentimento do outro e assim poder ajudar quem está perto de si. Essa montagem
com as diferentes “Evelyns”, leva a resposta tão procurada no filme, é essa
montagem que faz com que o espectador tenha certeza da conclusão que a Evelyn
principal chegou, e compreender como essa visão do mundo é utilizada para salvar
Joy do vazio em que ela estava se afundando e ao mesmo tempo salvar Jobu
Tupaki de dentro do bagel, onde ela canalizou todo o sofrimento que ela encontrou
vivendo todas as vidas de Joy nos diferentes universos.

Montagem – Continuidade Intensificada


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Dentro do texto de Bordwell, encontramos alguns tipos de continuidades, que


são referentes aos estilos de montagem, no presente artigo destacamos quanto a
continuidade intensificada. A continuidade intensificada utiliza-se de cortes rápidos
entre planos, uso de câmera na mão, planos detalhes, mudanças de ângulos,
movimentos de câmera rápidos – técnicas usadas para criar uma sensação de
dinamismo e tensão, visando intensificar a experiência do espectador.
Os cineastas intensificaram o princípio de continuidade pelo emprego de
planos mais aproximados e planos únicos. Na montagem analisada por Bordwell de
“Jerry Maguire”, a montagem criada na lógica da continuidade foi reestruturada
quanto à escala de planos e dinamizada, e o drama foi concentrado nos rostos. Esse
tipo de plano mais próximo dos rostos, se tornou parte da rotina de Hollywood desde
os anos de 1960, com isso a montagem rápida se desenvolvia, com cenas de
conversas sendo fragmentadas em muitos close-ups. Antes disso, nos anos de 1930
e 1940, o enquadramento mais usado era o plano americano, que tendia a cortar as
figuras humanas na altura dos joelhos ou no meio da coxa. Atualmente, as cenas de
conversas são editadas também com planos únicos, permitindo ao editor alternar o
ritmo das cenas e escolher os melhores fragmentos de atuação de cada ator.
No filme, ainda nos primeiros minutos já somos introduzidos na rotina de
Evelyn e em seu mundo caótico, incansável e acelerado. A câmera trabalha suas
imagens acompanhando a movimentação da personagem que segue o dia fazendo
suas principais tarefas, como cuidar da sua casa e do negócio de lavanderia que sua
família tem, ao mesmo tempo em que discute com a sua filha sobre sexualidade
dela. Para que o espectador entre ainda mais nesse mundo caótico de Evelyn, além
dos movimentos de câmera, os diretores trabalharam com cortes abruptos e rápidos
na montagem, mostrando como a personagem tem que lidar com as diversas
informações que chegam a ela a todo o momento de forma desordenada.
A continuidade intensificada é trabalhada a todo momento no filme,
principalmente como forma de tornar o caos vivido da personagem real para o
espectador, e uma forma de trabalhar o desenvolvimento de tantos universos da
forma rápida na qual o filme necessita.

Funções de Estilo
O estilo cumpre quatro funções principais na construção de um filme, que
estão interconectadas e muitas vezes se completam na construção de um filme,
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podendo afetar a forma como o espectador percebe e se envolve com a história e os


personagens. As funções seriam o de ajudar a criar um mundo verdadeiro para o
espectador, fornecer informações importantes sobre os personagens e a narrativa,
expressar emoções e subjetividades dos personagens e do diretor e comunicar
temas e ideologias.
A primeira função seria a de ajudar a criar o mundo da história que pareça
verossímil e crível para o espectador, com a escolha de figurinos, cenários e
iluminações que favoreçam a criação de um ambiente visualmente coeso que auxilia
o espectador a se envolver na história. Aqui temos a apresentação de locais que
fazem parte do nosso cotidiano, como lavanderias, escritórios e até mesmo casas
bagunçadas com grandes quantidades de papéis em cima da mesa, junto a essa
ambientação temos a história que sustenta os personagens e podendo gerar
empatia e reconhecimento do público para com eles, uma família de imigrantes que
estão vivenciando uma dificuldade financeira e familiar, além da barreira linguística.
A segunda, seria a de fornecer informações importantes para o espectador
sobre a narrativa, personagens e ambientes - como a utilização de recursos de
enquadramento para focalizar em objetos importantes para a trama. A exemplo
disso, no filme em questão, existem diversas cenas em que os principais tópicos a
serem discutidos são apresentados em primeiro plano em objetos simbólicos de
importante representação para os personagens e contextos expostos.
Logo na primeira cena do filme, somos apresentados a três grandes símbolos:
o espelho, o círculo/bagel e os olhos arregalados, que podem ser diretamente
ligados a cada um dos personagens mostrados no plano.
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Figura 1 - Tudo Em Todo Lugar Ao Mesmo Tempo

No momento inicial da história temos nossa visão recortada pelo espelho, um


vislumbre de uma dimensão onde a família está unida, feliz e cantando em frente ao
karaokê, o espelho aqui serve como uma porta para os diferentes universos que
mais tarde vão ser acessados por Evelyn. O espelho é retomado no filme toda vez
em que ela entra em um universo diferente, mas ao invés de ser representada de
forma intacta, vemos o quadro sendo fragmentado em diferentes pedaços, como um
espelho quebrado.
Essa mesma fragmentação ocorre com a mente de Evelyn no final do filme e
com a mente de Joy de outra dimensão, que foi gerada em um passado no qual ela
foi levada a fazer muitas viagens entre os diferentes universos, a fazendo vivenciar
todas as dimensões em todos os lugares ao mesmo tempo, e consequentemente a
transformando na vilã da história, Jobu Tupaki.
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Figura 2 - Tudo Em Todo Lugar Ao Mesmo Tempo

Logo atrás do espelho, podemos ver um círculo, que é o objeto que


representa a insatisfação de Evelyn Wong com sua vida familiar extremamente
mundana. Nada nunca sai de acordo com o plano de Evelyn, mas o tempo continua
se movendo implacavelmente e é justamente em uma comemoração na lavanderia
que ela administra que ela percebe a circularidade de sua vida ao dizer: “Mais um
ano fingindo que sabemos o que estamos fazendo, mas, na verdade, estamos
andando em círculos”.

Figura 3 - Tudo Em Todo Lugar Ao Mesmo Tempo


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Essa mesma insatisfação é o que impacta negativamente a filosofia de sua


filha Joy, assim como Jobu Tupaki, a outra versão de Joy no multiverso, a fazendo
criar o “Bagel de Tudo” como sua ferramenta para destruir o multiverso. Como
colocado pelo site Nexus, o bagel se torna um símbolo da visão de mundo niilista de
Evelyn e Jobu – tem tudo, tudo do multiverso em cada centímetro dele e, ainda
assim, seu núcleo está vazio, como um buraco negro. A natureza destrutiva do
bagel, junto com o seu verdadeiro propósito de destruir Jobu Tupaki, demonstra que
o bagel também se torna um símbolo de desespero quando se descobre o vazio de
sua existência.

Figura 4 - Tudo Em Todo Lugar Ao Mesmo Tempo

Outros símbolos identificados nessa primeira cena do filme são os olhos


arregalados, sinônimo do marido de Evelyn, Waymond, e de suas crenças de que,
mesmo que a existência não tenha sentido, pode-se encontrar alegria nela. A
princípio, Evelyn, que está insatisfeita com a vida e com seu marido, sempre remove
e repreende as tentativas dele de encorajar o humor e a felicidade a qualquer
momento. No andamento do filme, a personagem passa a entender e aceitar as
crenças de Waymond, assim como a valorizá-lo como pessoa. A partir daqui,
podemos entender os olhos arregalados como uma contraposição ao niilismo do
bagel - a representação do existencialismo, a busca do significado para si mesmo.
A grande revelação para Evelyn acontece justamente quando ela entende que
deve criar seu próprio significado, mas que, para tal, ela precisa aceitar o que o
bagel representa: a falta de sentido no universo. Assim, um não existe sem o outro,
uma demonstração do que está por trás da filosofia do yin yang. Essa iluminação de
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Evelyn leva para a verdadeira mensagem por trás do filme, o valor de encontrar
significado na vasta e infinita falta de sentido do multiverso.

Figura 5 - Tudo Em Todo Lugar Ao Mesmo Tempo

A terceira função é a de expressar emoções e subjetividades dos


personagens e do diretor, e a quarta e última função do estilo para Bordwell é a de
comunicar temas e ideologias, o uso de determinados ângulos de câmera pode
sugerir uma posição crítica ou irônica em relação ao assunto tratado. Aqui cabe o
grande enredo do filme com a busca pelo significado das coisas que acontecem ao
decorrer da vida, a conclusão para Evelyn e Joy/Jobu Tupaki é a mesma - nada
importa, no entanto Joy/Jobu Tupaki se deixa levar por suas dores, frustrações e
medos, todas canalizadas no beagle criado pela mesma. Já sua mãe, Evelyn,
recebe essa conclusão com outro olhar, muito influenciada pelo seu marido, ela
percebe que são nas menores coisas do dia-a-dia que trazem felicidade a sua vida e
a fazem querer ficar no universo onde ela tem a sua filha e o seu marido, mesmo
que isso implique em viver com dívidas e muitos outros problemas.

Considerações Finais
Ao analisar o filme em questão foi possível perceber como os diretores,
mesmo que sem intenção, se utilizaram dos conceitos apresentados no primeiro
capitulo do seu livro para melhor produzir o longa. Entender esses como esses
conceitos funcionam também serve como base para que assim seja possível
quebrar algumas de suas regras, como é o que acontece com os diretores de Tudo
Em Todo Lugar Ao Mesmo Tempo, quando eles utilizam da montagem como forma
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principal para contar a sua história, quebrando a ideia de que para o diretor mise-en-
scène ocorre o contrário, minimizando o papel da montagem.
Durante todo o filme é possível perceber como cada plano foi pensado
cuidadosamente, com a inserção de objetos que agregam na mensagem final que o
longa carrega consigo.

Referências

BIERNATH, André. 'Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo': filósofo analisa


multiverso retratado em filmes. 2023. Disponível em:
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cjmznprmyvpo. Acesso em: 07 maio 2023.

Everything Everywhere All At Once - Evelyn saves Joy. Disponível em:


<https://www.youtube.com/watch?v=XIPK0lXnK2A>. Acesso em: 11 jun. 2023

NEXUS, The. Bagels & Googly Eyes significado explicado. 2023. Disponível em:
https://thenexus.one/bagels-googly-eyes-significado-explicado/. Acesso em: 07 maio
2023.

PIRES, Ygor. “TUDO EM TODO O LUGAR AO MESMO TEMPO” – Multiverso da


loucura. 2023. Disponível em: http://www.nossocinema.com.br/tudo-em-todo-lugar-
ao-mesmo-tempo-multiverso-da-loucura/. Acesso em: 07 maio 2023.

‌Tudo Em Todo Lugar Ao Mesmo Tempo. Direção de Daniel Kwan, Daniel


Scheinert. Simi Valley, Califórnia.: IAC Inc, AGBO, Ley Line Entertainment, IAC
Films, 2022. (139 min.), son., color. Legendado.

Why Everything Everywhere All At Once Is A MASTERPIECE | Ending


Explained, Easter Eggs And More. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=ml_5Js3hWF0&t=435s>. Acesso em: 11 jun.
2023.

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