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UNIVERSIDADE EDUARDO MONDLANE

FACULDADE DE DIREITO

FILOSOFIA DO DIREITO
(Sumários Desenvolvidos)
Parte I

(Documento não público e nem editado. Elaborado para uso


exclusivo dos estudantes do 4.º ano diurno e 5.º ao
nocturno da Faculdade de Direito da Universidade Eduardo
Mondlane, como complemento das lições online no âmbito
do estado de emergência)
Docente: Gil Cambule

Maputo, Abril de 2020

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Apresentação
Este documento resume as matérias abordadas na Cadeira de Filosofia do Direito.
A leitura deste documento não dispensa a leitura da bibliografia recomendada e
disponibilizada no início do ano, com o plano, pelo corpo docente.
Os objectivos do documento são:

 Facilitar ao Estudante a organização dos conteúdos lecionados;


 Facilitar ao Estudante a compreensão das matérias nele contidas;
 Manter o contacto do Estudante com a matéria em causa, enquanto vigora a suspensão das
aulas presenciais por força do estado de emergência decretado pelo Presidente da República.

***As referências bibliográficas são as indicadas com detalhe no Plano distribuído no primeiro
dia de aulas.

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Introdução
Como qualquer área do saber, se a Filosofia do Direito se pretende disciplina académica, deve
delimitar o seu âmbito de estudo, balizando claramente as questões fulcrais que pretende
responder em sua abordagem.

Porém, diferentemente do que ocorre com as outras disciplinas académicas (em que as
questões por debater parecem unânimes e aceites por todos os investigadores interessados) a
tabela de prioridades das questões próprias da Filosofia do Direito não é um dado adquirido
entre os seus cultores.

Seja enquadrada no âmbito das disciplinas exclusivamente filosóficas, seja no das chamadas
disciplinas humanísticas do direito (com pretende Paulo Ferreira da Cunha), não será fácil
gerar consenso no que sejam as questões relevantes a ser debatidas nesta cadeira.

Deverá a Filosofia do Direito reflectir sobre as questões específicas do Direito, tentando


desvendar as famosas causas últimas por detrás de toda e qualquer figura jurídica?
Será antes e apenas o problema da validade e da legitimação do direito que deve ocupar o
filósofo do Direito?
Não será que a tónica fundamental da reflexão filosófica sobre o Direito deva ser colocada na
investigação sobre a origem do Direito?
Deverá o filósofo do Direito investigar especialmente o valor do direito como disciplina social
encarregue de evitar caos?
Ou será que é sobre a lógica do raciocínio do juiz, vertido na sentença judicial, que deve o
filósofo do direito central a sua reflexão?

Na verdade, Filosofia do Direito, direi eu, será tudo isso!


Com efeito, a vocação filosófica do estudo da universidade do real e do estudo da realidade
pelas suas causas últimas não pode senão também acompanhar aquele que se aventura na
reflexão filosófica sobre o Direito.

Esta posição leva-nos ao entendimento de que a Filosofia do Direito, que é a reflexão filosófica
sobre o Direito, há-de se interessar por tudo o que, respeitando à realidade jurídica, suscita
questionamento.

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Este entendimento já devia se bastante para nos tranquilizar: a delimitação do âmbito do
estudo da Filosofia de direito andaria, assim, pelo critério máximo isto é, a Filosofia do Direito
seria a disciplina que estuda a universalidade da realidade jurídica.

A afirmação do parágrafo precedente é útil apenas no sentido de indicar que o filosofo do


Direito é livre de escolher e reflectir sobre qualquer matéria no universo que é a realidade
jurídica; mas já não será assim tão útil se for tomada o sentido de indicar que todo e qualquer
filósofo do direito ocupar-se-á de tudo o que é a realidade jurídica.

Com efeito, no extenso universo que é a realidade jurídica, cada filósofo deverá tomar as suas
rédeas, escolher o seu caminho e fazer a sua via sacra. Terá cada um de enfrentar a dor da
escolha que sempre implica o afastamento de certas tantas questões, facto que a paixão
filosófica detesta fazer.

São a experiência individual e continuadas e a reflexão profunda e paciente sobre os diversos


pólos do Direito que definirão o que, para cada filósofo, se apresentará como sendo o
conjunto das questões centrais que devem ser respondidas em sede de Filosofia do Direito.

Quanto a mim, tem me parecido que a Filosofia do Direito tem uma questão fundamental a
responder e a volta da qual gravitam outras questões satélites designadamente: Quais as
condições de um direito justo?

Para responder cabalmente a esta questão deverei dividir-la em três outras questões a saber:
A)O que é o Direito?
B)O que é Justiça?
C)O que é o Direito justo?

Um plano de Filosofia do Direito deverá, por isso, inevitavelmente incluir uma reflexão sobre a
essência do direito (sobre o ser e ser do direito ou, pelo menos, sobre as várias concepções do
Direito) uma concepção da Justiça (ou pelo menos a análise das diversas concepções dessa
Justiça) e, finalmente, uma reflexão sobre as condições fundamentais para que o Direito
cumpra o seu fim que é a materialização da Justiça ou seja uma reflexão sobre as condições de
um direito justo.

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I. Da Filosofia
(Generalidades)

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1. As Origens

Do Grego philos (amigo, amor) + sophia (sabedoria, saber, conhecimento), que


etimologicamnete significa “amigo da sabedoria”. Tida como a ciência mais geral, a Filosofia
tem sido não só a busca, como também a sabedoria encontrada.
A Filosofia apresenta-se como uma tentativa de responder a questões ou problemas
fundamentais da existência, cujas respostas não foram possíveis por outras vias.
Aristóteles diz, neste sentido, que “a Filosofia surge do espanto; a semente da Filosofia é a
admiração das coisas”.

2. O Objecto

A princípio, dizer filosofia era o mesmo que dizer ciência já que o conceito englobava todo o
saber humano: Física, Geografia, Biologia, Astrologia, entre outras), daí ter sido desde sempre
considerada mãe de todas as ciências.
A Filosofia está, pois, na raiz de tudo, razão pela qual se entende que tudo pode ser objecto de
indagação filosófica: toda e qualquer realidade pode ser estudada, analisada, questionada pela
Filosofia. Assim, a Filosofia estuda o todo, a totalidade, a generalidade, a universalidade do
real.
Devemos concluir que a Filosofia estuda a universalidade do real por duas razões1:

 Primeiro, porque todas as coisas podem ser examinadas no nível científico e também no
filosófico;
 Segundo, porque enquanto as ciências estudam esta ou aquela dimensão da realidade, a
Filosofia estuda o todo, o universo tomado globalmente.

3. O problema da definição

A definição de filosofia é, já de si, um problema filosófico porquanto à parte a definição


etimológica que atrás mencionámos, não existe uma definição unânime desta disciplina. Vários
filósofos apresentaram as suas definições de Filosofia. Seguem alguns exemplos:

 Aristóteles – A Filosofia é o estudo das causas últimas de todas as coisas.


 Cícero – A Filosofia é o estudo das causas humanas e divinas das coisas.
 Hegel – A Filosofia é o saber absoluto.

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 Whitehead – A Filosofia é a ciência que fornece uma explicação orgânica do universo.

Nenhuma das definições pode ser considerada certa ou errada; cada uma delas foca numa
questão particular. Porém, nenhuma delas satisfaz de forma integral, pois nenhuma cobre
todo o objecto da Filosofia, para tal seria necessário abstrair-se praticamente de tudo e não
focar apenas num único elemento.
A diversidade das definições tem sobretudo a ver com o facto de toda a filosofia constituir o
resultado uma vivência e uma experiência. Não há duas experiências iguais. Não há duas
experiências iguais.

4. As Características

A doutrina filosófica é abundante na caracterização da Filosofia. Aqui preferimos destacar as


seguintes características:

 Historicidade – ela desenvolve-se tendo em conta as vivências concretas dos povos. Não se
trata de mera especulação teórica, que não esteja enraizada nas vivências concretas do
Homem de cada época, muito pelo contrário; a Filosofia é, na verdade, influenciada por este
curso normal da História e as questões próprias de uma época são distintas das de outra.
 Radicalidade – de radice ou radix, é o entendimento de que a Filosofia não se contenta com
respostas superficiais, ela tende a ir à raiz dos problemas, ao seu fundamento, não se satisfaz
com respostas imediatas. Ela visa justamente as “causas últimas”, causas que estão por detrás
e para além de outras causas;
 Universalidade – tem uma dupla significação: por um lado, a Filosofia diz respeito à
generalidade das pessoas ou seja, trata de problemas que interessam à globalidade das
pessoas e, por outro lado, ela não se ocupa de um objecto específico, mas é uma disciplina que
trata da generalidade dos problemas. Pode-se filosofar sobre tudo o que se pretender, mas
também todas essas questões afectam a Humanidade em geral;
 Autonomia – auto (para si mesmo) + nomos (regulação), consiste na característica daqueles
que criam normas para si próprios. O filósofo é um pensador independente, que labora no
sentido de dar a sua própria explicação a um problema que é geral. A única dependência que
se impõe ao raciocínio filosófico diz respeito à perspectiva em que o mesmo surge. Desta
forma, a Filosofia é independente do senso comum, da religião, da política e de tudo quanto
possa afectar a liberdade de pensar do filósofo.

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 Exigência crítica – a Filosofia tem por base um método da justificação lógico-racional. Ela não
se contenta, tudo critica, tudo questiona. O filósofo vive permanentemente angustiado, pois
há sempre dúvidas que geram questões e críticas aos factos quotidianos.

5. Fim e valor

Para que serve a Filosofia? Qual é o seu Fim?


Diferentemente das ciências particulares (como, por exemplo, a ciência jurídica) a Filosofia não
tem uma finalidade imediatamente prática.
As respostas que ela proporciona podem essencialmente ser de duas vertentes: uma
orientativa, na qual a Filosofia opera como um pensamento anterior ao facto, que vem a
posteriori, servindo de orientação do conhecimento e da acção e outra reflexiva, em que o
próprio pensamento consiste numa análise posterior ao facto.
Por ser assim, a Filosofia tem um fim apenas mediatamente prático, mas nunca um fim
imediatamente prático, em virtude do facto de ela não estar vocacionada à resolução de
problemas práticos, mas a conceder orientações e reflexões gerais2.
Ela é, desta feita, essencialmente interrogativa, significando que a sua essência é o
permanente questionar.
É tambem essencialmente reflexiva, significando que a sua vocação é investigar aquilo que já
foi investigado anteriormente, voltar a pensar no que já foi pensado em sede de outras áreas
do saber. É um caminhar gradual em busca da verdade.
Tem, ainda, uma essência especulativa, no sentido de que não produz resultados de teor
prático, mas teóricos, cuja aplicação prática só pode ser em termos mediáticos. A Filosofia é
um saber teorético e não um saber prático, nem operativo, um saber dos princípios e das
primeiras causas e não um conhecimento de causas segundas ou de princípios derivados3.

6. Filosofia como uma disciplina aporética

A Filosofia opera sobre aporias (problemas sem solução científica; problemas que constituem
situações-limite, verdadeiros bloqueios do pensamento humano, aquilo que impede o
movimento e não deixa avançar) 4.

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Este é o campo por excelência da Filosofia. Ela é uma disciplina aporética porque se preocupa
com questões cientificamente insolúveis ou sem resposta. A sua actividade interrogativa do
real e do pensamento conduz, desta forma, ao tratamento de aporias.

7. Disinção relativamente à ciência strictu sensu

Em sentido amplo, a Filosofia é também uma ciência, pelo que por aí não há que fazer uma
distinção. A Filosofia é, pois, um conjunto de conhecimentos que visam resolver problemas, os
quais são obtidos com base num método específico.
Contudo, em sentido restrito a ciência compreende um conjunto de conhecimentos obtidos a
partir do chamado método científico. Neste sentido, até o Direito é questionado como ciência.
A Filosofia tem por base o método da justificação lógico-racional.
Portanto, a distinção entre Filosofia e Ciênia em sentido restrito coloca-se, desde logo, a nível
do método.
Por outro lado, estas duas realidades distinguem-se também a nível do objecto: enquanto nas
ciências particulares as soluções aos problemas não dependem dos sujeitos (por exemplo por
haver verificação de pares – quando há uma descoberta científica os outros cientistas
confirmam a validade e eficácia da solução ou proposta avançada), na Filosofia o resultado
depende muito da vivência do sujeito em causa, daí que o raciocínio filosófico dá lugar a
soluções tendencialmente subjectivas. – objectividade vs subjectividade.
A ciência é, de sua essência, fenomenológica (visa o saber a partir de fenómenos), enquanto a
Filosofia é radicalmente ontológica e metafísica, pois preocupa-se com o ser enquanto ser.
Distinguem-se, ainda, quanto ao fim, pois enquanto a ciência visa dar uma solução prática aos
problemas, a Filosofia procura alcançar as causas últimas de todas as coisas. A Filosofia tem
uma finalidade puramete teorética, ou seja, contemplativa, diferentemente da ciência, que
busca fins práticos e tem interesses externos.

8. Os problemas da Filosofia. Suas Principais Questões

Qualquer área do saber debruça-se sobre questões próprias e específicas, relacionadas com
determinados problemas. À Filosofia, embora não haja restrições no seu objecto, interessam
(para o presente estudo) os seguintes problemas:

 O problema do ser, que corresponde à Ontologia (ontos + logos, do Grego, significa a ciência
do ser).

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 O problema do conhecimento que corresponde à Gnoseologia (do Grego, gnosis), o seu
conceito, a possibilidade do Homem conhecer ou saber alguma coisa e a origem do
conhecimento.
 O problema antropológico, que se debruça sobre o Homem;
 O problema metafísico, que consiste no estudo de toda a realidade para além do que é físico,
do que é apreensível pelos sentidos, v.g.:, Deus, alma.

9. Filosofia do Direito e Filosofia no Direito

Qual é a diferença entre as expressões “Filosofia do Direito” e “Filosofia no Direito”?


Efectivamente, a Filosofia do Direito é uma reflexão sobre o Direito; é uma disciplina científico-
filosófica que estuda o Direito, o que significa que ela representa um olhar para o Direito na
perspectiva externa.
Por outro lado, a Filosofia no Direito é, tão só, o conjunto de ideias, pressupostos filosóficos
que presidem a construção de normas jurídicas.
Toda a norma jurídica devidamente construída tem por base pressupostos que constituem
fontes materiais do Direito (as ideias ou circunstâncias que provocam a construção de normas
jurídicas).
Por exemplo, ao questionarmos qual é a filosofia que está por detrás da Constituição de 1975,
poderemos encontrar os princípios do socialismo, enquanto a Constituição de 2004 foi
orientada pelos princípios do capitalismo.
As ideias que estão por detrás do Codigo civil português de 1876 são diferentes das que
orientaram a elaboração do CC de 1966, desde logo pelo facto de naquele instrumento legal
ter havido apenas um autor (que era um filósofo jusnaturalista) e neste, varios autores (que
são positivistas-sociais).
Um outro aspecto que pode ser chamado à colação é que na vigência do Código de 1867 a
integração de lacunas era feita mediante o recurso ao Direito Natural. De referir também que
os direitos subjectivos eram direitos absolutos, aos quais não se lhes impunha nenhum tipo de
limitação.
Já em 1966 o método para a integração de lacunas já tem por base um outro método,
designadamente o recurso à analogia e, na falta desta, a criação, pelo intérprete, da norma
que o legislador criaria, dentro do espírito do sistema, se tivesse previsto a situação que
origina a lacuna (vide art. 10 CC).
Ademais, o espírito individualista é mitigado, diferentemente do que sucedia na vigência do
código anterior, na medida em que os direitos subjectivos são “atenuados” em função dos

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interesses da sociedade, pelo que, ele deve ser exercido tendo em conta o fim social. Por isso
há institutos como o abuso de direito (art 334 do CC), que limitam o seu exercício, no sentido
de não contrariar a boa-fé, sob pena de estar a ser exercido ilegitimamente.
Ao efectuarmos esta análise, estamos a buscar a Filosofia no Direito, o conjunto de
perspectivas, visões, ideias que foram orientando o sistema jurídico ao longo do seu processo
de formação.
Esclarecida esta questão prévia, podemos avançar para a diferenciação entre a Filosofia do
Direito e áreas do saber.

9.1. Filosofia do Direito versus Ciência Jurídica

Por um lado, na Filosofia do Direito procuramos respostas globais; por outro, na Ciência
Jurídica procuramos respostas para problemas concretos e particulares. Enquanto a Filosofia
do Direito não se limita à especificade, a Ciência Jurídica parte de um sistema concreto e busca
soluções para problemas específicos e concretos.
Têm, portanto, finalidades distintas, no sentido de que na Ciência Jurídica estão em causa
soluções imediatas para problemas práticos, ao passo que a Filosofia do Direito tem uma
função mais reflexiva e orientativa, isto é, é uma disciplina teórica e não tem em vista a
procura de soluções práticas para problemas concretos.
Mais ainda, no dizer de Braz Teixeira, ao passo que a Ciência Jurídica parte sempre do Direito
positivo, de um sistema jurídico-normativo concreto, espacio-temporalmente definido do
Direito vigente numa determinada comunidade e uma determinada época, a Filosofia do
Direito interroga-se sobre o seu valor e o seu fim, sobre o ser do Direito ou o Direito enquanto
ser e sobre a justiça que o garante, bem como sobre o valor gnoseológico do saber do Direito
dos juristas, i.e., sobre o fundamento e valor da própria Ciência Jurídica.

9.2. Filosofia do Direito versus Pensamento Jurídico

O pensamento jurídico é o modo próprio de pensar, raciocinar, argumentar do jurista, o


método ou os métodos de que este se serve para conhecer o Direito5. A formação jurídica
faculta ao indivíduo um modo próprio de pensar, de interpretar o mundo, confere, portanto,
uma cosmovisão própria daquilo que é a sociedade.
O pensamento jurídico para além de estar relacionado com a técnica jurídica, inclui a doutrina
jurídica, que é o conjunto de ideias, opiniões apresentadas pelos cultores do Direito.

5
ibidem, p. 42

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Isto não se pode confundir com a Filosofia do Direito, que é uma disciplina científica, como
referimos acima, ainda que do ponto de vista amplo.

9.3. Filosofia do Direito versus Teoria do Direito

A Teoria do Direito é, na verdade, uma abordagem teórica do Direito, é uma interpretação de


natureza geral de sistemas jurídicos concretos.
Por exemplo, uma vez que o princípio da boa fé é de aplicação universal, pode-se estudar, no
âmbito da Teoria do Direito, o que há de comum em diferentes sistemas: sul africano, inglês e
moçambicano. Trata-se de uma abordagem fenomenológica, porque buscamos aspectos
comuns em contextos diferentes.
Ora, a Teoria do Direito também não se confunde com a Filosofia do Direito, cujo conceito já
foi largamente abordado acima.

9.4. Filosofia do Direito versus Sociologia Jurídica

A Sociologia Jurídica estuda o Direito como um facto social, situando-se, pois, no plano da
eficácia do Direito e não no da validade. A Sociologia Jurídica questiona-se como é que a
sociedade encara os factos jurídicos.
A Filosofia do Direito, diferentemente, situa-se no plano da validade das normas,
questionando-se se uma norma é justa ou não.

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O PROBLEMA ANTROPOLÓGICO

Qual é a natureza do Homem?

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1. Generalidades

Pode-se questionar a relevância de se estudar o Homem num curso de Filosofia do Direito.


Essa abordagem justifica-se pelo facto de o Direito ser uma realidade eminentemente humana,
em todas as vertentes:

 Porque é criação do Homem – o Direito é sempre e exclusivamente criação do Homem. As


colónias de formigas obedecem uma organização estreita, rígida, porém, de natureza biológica
e vital para a sua sobrevivência. Se uma delas sai desta ordem, entra em crise. Contudo, aí não
há Direito. O mero facto de haver regras não leva a que exista Direito; as normas jurídicas são
exclusivamente humanas. Os animais seguem regras de natureza instintiva e biológica, mas
nunca racional e voluntária.

 Porque é uma realidade destinada exclusivamente ao Homem – o Direito existe para garantir
a boa convivência social. Não é criado para regular a vida de outro ser, senão o Homem. O seu
dado menor é o direito subjectivo, que só pode ser titulado por pessoas, idem em relação ao
dever jurídico. Só se pode exigir o cumprimento de regras a seres com vontade juridicamente
relevante, liberdade e consciência (salvas excepções) e estas características só o Homem é que
possui, não os animais. Logo, o Direito tem origem exclusivamente humana e dirige-se
exclusivamente ao Homem.

Em suma, a importância do estudo do Homem neste curso resulta do facto de que o Direito é
uma realidade exclusivamente humana, construída exclusivamente pelo Homem e que se
destina ao próprio Homem.
Para reflectirmos filosoficamente sobre o Direito é necessário que reflictamos sobre o Homem,
que é o seu autor e exclusivo destinatário.
O Direito limita-se a interpretar as circunstâncias em que o Homem vive. O Direito não é uma
realidade descritiva (não se limita a dizer o que é); é, na verdade, uma realidade impositiva (diz
o que deve ser). Não é uma realidade sobre o ser, mas sobre o dever ser.
É neste âmbito que Montesquieu defende que o Direito é influenciado por um conjunto de
circunstâncias que influenciam o Homem, inclusivamente o clima, o facto do povo de certo
Estado ser nómada ou sedentário, entre outros factores. Tudo o que rodeia o Homem
influencia, segundo este filósofo, na construção de normas jurídicas. Por exemplo, a criação do
instituto da propriedade horizontal apenas se justifica pelo facto do povo ser sedentário. Não
precisaríamos desta figura, se fôssemos nómadas. Portanto, todas as circunstâncias

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influenciam, efectivamente, na cosntrução de normas jurídicas, por isso, é importante estudar
o Homem, que é seu criador e destinatário.

2. As concepções filosóficas sobre o Homem ao longo da história

2.1. Essencialismo

Como sugere a própria designação, “essencialismo” provém de “essência”, que por sua vez, é
oriunda de “esse”, que significa “ser”, qualidade do ser.
Não é propriamente uma teoria, mas sim uma corrente, que é um conjunto de teorias que têm
alguns aspectos em comum.
O aspecto fundamental que une estas teorias que compõem o essencialismo é a crença de que
a todo o Homem corresponde uma essência imutável. Isto significa que podem existir várias
diferenciações acidentais em Homens de várias épocas, mas existe algo que não muda, que o
faz ser o que ele é.
Aristóteles defendeu que “o Homem é um animal racional”, pois todo o Homem, de todos os
tempos, sempre foi racional e o é pelo simples facto de ser humano.
Importa, neste âmbito, referir que o Homem pode ser racional mas não exercer a
racionalidade, como sucede com os dementes absolutos.
Portanto, a essência é tida como imutável, contrapondo-se ao acidente, que é mutável, pois
pode ser ou não ser (v.g.: tamanho ou cor de um objecto).
Tem duas vertentes, quais sejam: a de cariz religioso e a de cariz não religioso ou agnóstico,
que iremos ver de seguida.

2.1.1. Essencialismo de cariz religioso

Para as correntes essencialistas de feição religiosa, a imutabilidade da essência do Homem tem


uma causa. Desde logo, estas entendem que o Homem é uma criação da divindade,
considerando que cada povo dá um nome à sua divindade: Deus, Allah, Buda, entre outros,
desde que seja um ser diferente do Homem, um ser que, na verdade, é o criador do Homem e
por isso é superior a este.
É, pois, este ser que é considerado imutável e eterno. Defende-se que o Homem foi criado à
sua imagem e semelhança, não numa perspectiva física, mas espiritual.
Assim, o Homem é também encarado como um ser imutável.

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Quanto ao Direito, estas teorias tendem a considerar que o Direito ideal deve se conformar
com os mandamentos da divindade. Considera que a ordem jurídica é constituída por três
camadas:

 Direito Divino, que se encontra no topo da pirâmide;


 Direito Natural;
 Direito Positivo.

Deste modo, a validade do Direito Positivo vem do facto dele se conformar com o Direito
Natural e este, por sua vez, como Direito Divino. O Direito Positivo é subalterno, pois a sua
validade está dependente da sua conformação com outras ordens. O que justifica esta
supremacia é justamente o facto de que elas não mudam, ao passo que o Direito Positivo pode
alterar a todo o momento.
Em suma, se a natureza humana e o seu destino foram projectados por um ente divino,, assim,
toda a sua construção deve respeitar os preceitos divinos, bem como as condicionantes de
origem divina.

2.1.2. Essencialismo agnóstico

Esta designação foi adoptada em contraposição ao essencialismo religioso, por tomar em


consideração a ideia de que há autores que defendem que o Homem não pode conhecer a sua
origem e muito menos o seu destino; esse seriam problemas envolvidos num mistério
absolutamente incognoscível.
No dizer de Soares Martínez, o essencialismo agnóstico reconhecerá a imutabilidde humana,
mas não lhe atribuirá origem divina.
Assim, o ser humano tem uma essência, sim, mas não é capaz de conhecer a sua origem.
Difere-se do essencialismo religioso porque enquanto este defende que há um fim para o qual
o Homem está destinado, que é junto do seu criador, o agnóstico prefere considerar que o
destino do Homem é absolutamente incognoscível ou desconhecido. A origem e o destino são
realidades envolvidas num absoluto mistério, são verdadeiras limitações às capacidades
humanas: uma aporia.
Estas teorias de feição agnóstica aceitam a existência do Direito e tendem a configurar a
ordem a ordem jurídica como a natureza humana. O Direito Positivo é válido se estiver
conforme o Direito Natural.

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2.2. Existencialismo

Há alguma diferença entre ser e existir?


Enquanto a essência se mantém, a existência é dinâmica. Assim, a essência está ligada ao ser
enquanto tal. A essência é, como referimos anteriormente, o que não muda, é algo que é
absolutamente estático e que decorre da Natureza, enquanto que a existência pode assumir
diversas formas, portanto, diz respeito ao ser incluído em circunstâncias concretas, podendo
ser apreendido pelos órgãos dos sentidos.
O existencialismo enquanto uma forma de pensar ou de agir há-de ter existido em todas as
épocas, mas desenvolveu-se muito com as ideias evolucionistas de Charles Darwin e de
Nietzsche, baseadas exclusivamente na superioridade dos mais fortes, destinados a sobreviver
pelo esmagamento implacável dos fracos.
Após várias pesquisas sobre a origem da vida, Darwin escreveu uma obra sobre a origem e
evolução das espécies e contrariou várias teorias nesse campo. Desde logo, a teoria da geração
espontânea, segundo a qual os seres tinham surgido espontaneamente, sem qualquer lógica.
Darwin entende, assim, que o Homem, tal como as outras espécies, é produto de uma
evolução.
No entender dos existencialistas, ao Homem não corresponde nenhuma essência. Ele é apenas
um ser colocado na contínua transformação que ocorre no mundo, pelo que, não há, em si,
qualquer realidade imutável.
O Homem é em devir, está em constantes mudanças, alterações, tal como os outros seres,
sendo que o que o diferencia dos demais é o simples facto dele ter um grau de evolução
racional superior.
Em suma, esta corrente rejeita categoricamente uma essência no Homem, devido ao facto
dele estar sob constantes transformações (devir existencial).
Por fim, refira-se que a mesma possui duas vertentes: a nihilista e a hedonista, que iremos ver
de seguida.

2.2.1. Existencialismo nihilista

Do latim "nihilo", nada, a inexistência. Esta vertente teve um grande influenciador, que foi
filósofo Frederich Nietzsche.
A sua tese fundamental vai no sentido de que ao Homem não corresponde qualquer essência
imutável e, tal como os outros seres, o Homem deve sobreviver do manejo das forças, por isso,
os fortes sobrevivem e os fracos sucumbem.

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Nietzsche reflectiu, igualmente, sobre a moralidade. Até à época em que viveu, toda a
construção da moral estava baseada na doutrina cristã, que tendia a sobrevalorizar os mais
fracos, ideal este do qual discordava. Nietzsche defendeu que o Homem devia valorizar-se não
pela sua fraqueza, mas pela sua força vital que fará desaparecer os fracos.
Então, sugeriu que se operasse uma transmutação de valores, com vista a destruir todos os
valores baseados na doutrina cristã e recomeçar a construir uma nova ordem moral, na qual
não figuram os fracos.
A nova ordem moral a sedimentar seria baseada em princípios aristocráticos (privilegiando as
elites), baseando-se exclusivamente na ideia da supremacia dos mais fortes sobre os mais
fracos.
Frederich Nietzsche dá uma explicação alegórica do que a Humanidade devia fazer na
construção da nova ordem moral, começando por seguir três estágios:

 Estágio do camelo, que é muito obediente. A lógica do camelo é a de cumprir com todas as
ordens que lhe são dadas. Contudo, o camelo por vezes é abandonado no deserto e assim é
provável que ele ao enfrentar as dificuldades do deserto desenvolva e vá para o estágio
seguinte;
 Estágio do leão, que rejeita absolutamente ou conflitua com a moralidade;
 Estagio da criança, que não sabe o que é bom e o que é mau. Supera essa dicotomia. Uma vez
atingido este estágio, alcança-se a transmutação de valores.

Neste sentido, o nihilismo tem um entendimento tendencialmente negativo sobre a realidade


jurídica, que na sua óptica não tem qualquer valoração. O existencialismo nihilista vê o Direito
como um mero instrumento de dominação dos fracos pelos fortes, quando estes se econtram
em posições de superioridade. Mas quando os fortes estão em posição de subalternidade, o
Direito é um meio para rejeitar a ordem, tendendo para soluções de natureza anarquista.
Em síntese, a posição da vertente nihilista face ao Direito apresenta-se, nessariamente, em
termos negativistas. O Direito não possui, à luz desta tese, qualquer fundamento, legitimidade
e justificação.

2.2.2. Existencialismo hedonista

Do Grego, "hedon", que significa prazer, felicidade. O hedonista é aquele que tem tendência a
seguir os prazeres da vida. Defende esta corrente que não se conhece a origem do Homem,
nem o seu destino, mas este também é desprovido de qualquer essência, assim como de
qualquer fé num ser transcendente.

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Apregoa o desenvolvimento de uma tendência para a realização humana em níveis de mera
superficialidade, que implique o perseguir-se o maior prazer e a menor dor.
O hedonismo possui uma visão positiva do Direito, no sentido de que para que haja uma
constância de prazeres é necessário que haja ordem. Por isso, a ordem é o motivo da
manutenção do prazer, pelo que, é tida como uma realidade positiva.

2.3. HUMANISMO

É um conjunto de correntes que coloca o Homem no centro da reflexão filosófica. Enquanto


corrente sistematizada, inicia na época dos descobrimentos (séculos XV, XVI). Possui várias
perspectivas: individualista, personalista e transpersonalista.
A ideia do humanismo surge como uma reacção ao que ocorreu na Idade Média (que foi
cunhado pelos iluministas como seculum obscurum), no qual toda a reflexão girava em torno
de Deus. A doutrina cristã, principalmente a vertente católica é que enformava toda a reflexão
filosófica.
Nesta época ocorre uma revolução cultural, reformava-se o modo de pensar dos clássicos
(gregos e romanos). Era preciso “nascer de novo” e, desta forma, o centro de toda a reflexão
filosófica deixa de ser Deus e passa a ser o próprio Homem e desta forma é estabelecida a
passagem do teocentrismo para o antropocentrismo.
Todavia, o humanismo como modo de reflexão filosófica está presente, virtualmente, em
todos os tempos. Todas as correntes que colocam o Homem no centro da sua reflexão devem
ser consideradas humanistas. Mesmo na Idade Média houve teorias humanistas. Pode-se dizer
que a Idade Média é de cariz mais humanista do que a Idade Clássica.
Podemos subdividir esta corrente em: humanismo individualista, humanismo personalista e
humanismo transpersonalista.

2.3.1. Humanismo Individualista

Fundamenta-se na ideia da irredutibilidade do indivíduo. A realização do Homem é


essencialmente individual: primeiro o indivíduo, depois a colectividade.
No âmbito do humanismo individualista, pode-se afirmar que os interesses do indivíduo não
estão subordinados aos da colectividade. Antes pelo contrário. Se a ordem for contra a
realização individual do Homem, deve ser atacada.
A realização individual sobrepõe-se à realização colectiva. O Direito pode ser questionado pelo
Humanismo individualista, que tem propensão, se levado ao extremo, a gerar anarquia, dado
ao sentido de auto-satisfação e de auto-suficiência.

19
2.3.2. Humanismo personalista

É o conjunto de teorias que defende que a realização individual é importante, mas a plena
realização do Homem significa a sua realização como um sujeito em relação. O indivíduo deve
considerar que a sua liberdade não pode colocar em causa a liberdade das outras pessoas. O
indivíduo passa a ser pessoa: um ser-em-relação.
Este pensamento filosófico reflecte-se nas legislações pós-segunda guerra mundial, que
consideram que os direitos subjectivos devem ser realizados atendendendo à integração social
do indivíduo, daí a existência de figuras como o abuso de direito, por exemplo.

2.3.3. Humanismo transpersonalista

Para o transpersonalismo, o indivíduo dilui-se na comunidade. O transpersonalismo


consubstancia a ideia de que a realização da pessoa só ocorre com a sua integração na
colectividade. Na verdade, é a realização da colectividade que importa e não a do indivíduo.
O indivíduo passa a ser considerado como substituível, uma mera peça na engrenagem que é o
colectivo.
Esta lógica advoga um Direito que pode ser considerado avesso ao desenvolvimento de
direitos e liberdades individuais.

3. O Homem no Pensamento Filosófico Africano

A produção filosófica escrita africana tem o seu marco inicial com a publicação em 1945 da
versão francesa da obra do padre belga Placide Tempels;
A tese fundamental da obra é que o Bantu tem um comportamento racional, assente sobre um
sistema de pensamento coerente, concluindo, assim que o negro é completamente racional e
afastando-se de uma certa filosofia eurocêntrica para a qual o negro não era plenamente
racional;

Tempels critica o pré-logismo de Levy-Brhul (segundo o qual a África seria uma comunidade
pré-lógica) e defende a existência, nos povos africanos, de um conjunto de princípios e um
sistema lógico que revela uma filosofia completa sobre a vida e sobre o universo.
O valor supremo do bantu é a força vital.

20
Entretanto, para ele, a ordem ontológica do Bantu é directa, colectiva e imediata pelo que ele
não pode apresentar a sua filosofia.
Tempels não acha que o Bantu seja capaz de compreender-se a si próprio ou de apresentar ele
próprio uma filosofia sistemática: “Não pretendemos dizer que o Bantu seja capaz de
apresentar um tratado de filosofia, exposto através de um vocabulário adequado. Só a nossa
formação intelectual nos pode permitir um desenvolvimento sistemático. Nós é que podemos
dizer-lhe de uma maneira exacta, qual é o conteúdo das suas concepções de ser, de tal maneira
que se possa reconhecer nas nossas palavras e possa concordar dizendo: Tu compreendeste-
me”.

Alexis Kagamé publicou em 1956 a obra Filosofia Bantu-ruandesa do Ser.


Defende, como Tempels a existência de um sistema filosófico Bantu e tenta descrever esse
sistema partindo das categorias aristotélicas e tendo como chave a análise das estruturas da
língua Kiryarwanda;
Com base na comparação entre a língua grega de Aristóteles e a língua kiryarwanda, Kagamé
conclui que o pensamento do Bantu opera sobre quatro categorias fundamentais, a saber:
Primeira – umunthu – que designa o homem, ser dotado de inteligência;
Segunda – ikintu – são as coisas; os seres privados de inteligência
Terceira – hantu – corresponde simultaneamente às categorias de espaço e tempo;
Quarta – ukuntu – designa a modalidade.

Para Kagamé, se o bantu foi capaz de sistematizar uma língua, com estrutura coerente, então
também é capaz de apresentar coerentemente uma filosofia sistemática;

Actualmente, o personalismo africano tem sido discutido sob a expressão Muntuísmo,


neologismo tirado da palavra Muntu (pessoa na língua bantu), se propõe como denominação
de um modelo teórico de "personalismo africano".
A cultura africana é essencialmente personalista e o tal personalismo sustenta-se sobre três
pilares: pessoa, comunidade, Deus.
No ocidente, estes pilares desmoronaram: Deus já morreu (executado pelas instância niilistas e
positivistas da contemporaneidade); a comunidade é concebida prevalentemente como
espaço de reivindicação dos direitos individuais (no sentido da filosofia marxista ou filosofia da
praxe) e a pessoa é reduzida ao indivíduo sem nenhuma dimensão transcendental, sufocado
na sua finitude (do preconceituoso fechamento da cultura à ideia de Deus ficou
consequentemente também fechado o acesso à verdade da pessoa).

21
O Muntuísmo, difere-se do Ubuntuísmo e do Bantuísmo que acentuam mais a dimensão
comunitária, colocando no centro o Muntu o qual não desaparece diante da comunidade (o
comunitarismo africano é muitas vezes um lugar comum contradito pela realidade) e nem
diante de Deus (lembrar que os africanos chegaram ao monoteísmo antes dos gregos e
romanos!)

22
O PROBLEMA ONTOLÓGICO DO DIREITO

«Quid ius?»

23
1. Generalidades

Ontologia é a junção de dois termos: “ontos”, que significa “ser”e “logia”, que significa
“discurso ou ciência”. A ontologia é, assim, o discurso sobre o ser e, por sua vez, a ontologia
jurídica, a ciência do ser do Direito.
A ontologia jurídica estuda o lugar do Direito na ciência do ser, o «quid ius?». O Direito é uma
realidade eminentemente humana; nesta senda, após a reflexão feita à volta da percepção
sobre a essência do Homem ao longo da história, cabe de seguida discutir a essência do Direito
em si.

2. Correntes

Vamos concentrar-nos em quatro correntes filosóficas que estudam o ser do Direito:

1. O Positivismo jurídico;
2. O Realismo jurídico;
3. A teoria egológica do Direito;
4. A teoria tridimensional do Direito.

2.1. POSITIVISMO JURÍDICO

a) Thomas Hobbes (1888 – 1679)

O autor de “Diálogo de um Filósofo e um Estudioso do Common LAw Inglês” e “Leviatã” é o


pioneiro da corrente positivista. Primou sempre pelo Direito positivo, que é o Direito escrito, o
Direito posto pelo Estado, que contém as normas jurídicas gerais e abstractas.
Hobbes viveu ao tempo da Guerra Civil Inglesa (1642 – 1649), que teve como consequência um
verdadeiro caos político e social na Inglaterra e que culminou com a instituição da Monarquia
Absolutista. Hobbes reflecte sobre a natureza humana e confronta-se com John Locke que tem
uma visão romântica da natureza humana, na medida em que entende que as pessoas são
naturalmente boas, tanto é que elas não precisam de um Estado, nem do Direito para viverem
em harmonia, pois elas têm em si uma lei natural interna que impõe o respeito pela vida alheia
e pela propriedade alheia.
As pessoas, na visão de Locke, têm interesses em comum, nomeadamente a defesa contra
agressões externas ou de animais, o provimento de serviços comuns, entre ouros. Desde
modo, este é o único fundamneto para a existência de um Estado, que é o ente ao qual a

24
comunidade delega o poder de prosseguir o interesse geral, ao invés de cada um defender-se
por si só.
Nesta ideia está patente o princípio da soberania popular, no sentido de que o poder pertence
sempre ao povo, este apenas o delega ao Estado. Caso o Estado o exerça mal, ser-lhe-á
retirado o poder, pois o Estado não é essencial para a vida da comunidade, ele apenas existe
por razões de conveniência.
Já Hobbes é do entendimento de que a visão romântica da natureza humana é puramente
fictícia, pois o Homem é naturalmente mau, genuinamente violento e tem tendência para o
mal (homo homini lupus – o Homem é lobo do Homem). Assim, a única forma de colmatar esta
situação é fazer com que o Homem renuncie ao poder e o entregue a um terceiro, que é o
Estado. Esta é a justificação para o absolutismo.
Fazendo uma transposição da visão de Hobbes para o Direito, importa referir que:

 Hobbes apresenta-nos uma visão formalista do Direito, definindo a validade do mesmo


apenas numa perspectiva formal e com total indiferença face ao conteúdo das normas. Nesta
senda, a norma é válida pelo simples facto de se conformar com os requisitos formais (v.g. por
ter sido aprovada pelo órgão competente), independentemente do seu conteúdo se
conformar com a moral ou com a justiça.
 Apresenta-nos, ainda, uma visão imperativista do Direito, pois este é tido como um conjunto
de comandos dos que que detêm o poder do soberano, dirigidos aos súbditos, publicamente
promulgados, determinando o que estes podem fazer ou o que devem abster-se de fazer. O
Direito acaba, desta forma, por resumir-se em normas;
 O autor defende a teoria coactiva do Direito, na medida em que a natureza das normas
jurídicas é a sua susceptibilidade de serem aplicadas mediante o recurso à força pública.
Considera que a coercibilidade é a caracterítica essencial das normas jurídicas, porém, nem
todas elas são, de facto, coercivas (existem normas permissivas);
 Do ponto de vista das fontes do Direito, o autor privilegia a lei positiva Recodemo-nos do facto
de Hobbes ter estado geograficamente situado num país da Common Law, em que a principal
fonte é o case law e, portanto, dá-se maior relevância à jurisprudência. Abaixo da lei vem, na
concepção de Hobbes, o costume e assim surge a teoria declaractiva da interpretação,
segundo a qual o julgador nunca cria normas, ele limita-se a declarar o Direito.
 Por fim, defende a concepção legalista da justiça, segundo a qual é justo o acto conforme a lei
e é injusto o acto que a contarie. Subordina, deste modo, a justiça à lei, confundido-a com a
legalidade. Para Hobbes, todas as leis são necessariamente justas.

25
b) Jeremy Bentham (1748 – 1832)

Este autor é discípulo de Hobbes, razão pela qual adopta a maior parte do seu pensamento,
em especial no que concerne à visão formal e imperativista, à teoria coactiva do Direito, ao
primado da lei e à concepção legalista da justiça.
Bentham admite apenas a existência do Direito Positivo e rejeita o Direito Natural6. Para ele o
direito subjectivo é atribuído por lei, não há posições activas naturais, nem direitos que
advêm do simples facto de ser humano.
Fixa uma crítica ao sistema da Common Law pela inexistência de códigos e por julgar com base
no precedente. Desde modo, o autor advoga a codificação e sustenta a sua tese nos seguintes
aspectos:

 O sistema judiciário gera incerteza e insegurança nos cidadãos, sobre o que está previsto e
quais são as consequências do seu incumprimento. Para os casos ainda nao decididos, o
cidadão não tem como prever o que vai acontecer se ele violar as normas, pois a margem de
previsibilidade implica entrar na mente do juiz;
 Um juiz não tem competência técnica, nem preparação para criar Direito, mas apenas para
interpretá-lo. Quem deve criar normas é o legislador;
 Cria-se uma impossibilidade, por parte do povo, de fiscalização das normas que vão sendo
criadas pelo judiciário. O Direito Codificado tem a vantagem das normas estarem claras, o que
facilita o processo de fiscalização;
 O Direito Judiciário gera, muitas vezes, a retroactividade das normas. Refira-se que esta crítica
deve ser tomada de forma circunstancial e consiste na ideia de que um tribunal decide sobre
um caso, mais tarde, um tribunal superior cria um novo precedente sobre a mesma matéria, o
que possibilita a parte vencida reabir a discussão do caso, que já tinha sido encerrada, o que
acaba por ser um "cancro" que ataca a segurança jurídica.

Bentham defende, igualmente, o princípio da utilidade (manifestação do hedonismo), que


deve ser seguido na interpretação das leis. Este princípio impõe que o Estado na criação do
Direito deve seguir a utilidade como critério, procurando a maior felicidade pública. As normas
jurídicas devem gerar felicidade. Não está em causa a justiça, mas a utilidade. Este conceito é
subjectivo, mas não é impossível de avaliar.
Para facilitar a compreensão do alcance deste princípio, Jeremy Bentham desintegra o
conceito de felicidade que deve ser entendido neste âmbito, no sentido de que ela depende
essencialmente dos seguintes aspectos:

6
idem, pp. 146 - 152

26
 Garantia da subsistência das pessoas;
 Criação de abundância – v.g., quando o povo reclama muito deve-se “dar-lhe pão e
espetáculos” (panen et circenses), promovendo banalidades, para que se esqueça rapidamente
dos desgostos;
 Criação de igualdade no tratamento;
 Segurança jurídica.

Sintetizando, Bentham define o Direito como um conjunto de sinais declarativos da vontade


do soberano relativos à conduta a ser seguida por certas pessoas que se encontram debaixo do
seu poder.
Esta definição resume um conjunto de características do Positivismo, desde logo por entender
que se trata de “sinais declarativos”, o que transmite uma ideia de formalismo, assim como
por considerar que o que está em causa são “comandos para quem obedece”, o que ilustra
claramente a existência de uma visão imperativista.

c) John Austin (1790 – 1859)

Continua o pensamento de Thomas Hobbes e de Jeremy Bentham. Nele encontramos a


mesma concepção utilitarista, positivista, imperativista e estadualista do Direito, bem como a
defesa da superioridade da lei sobre a jurisprudência e a consequente apologia da codificação.
Austin, tal como Bentham recusa a hipótese de um contrato social e apresenta as principais
justificações:

 Por um lado considera uma ficção inútil e inadequada, já que pode não ter tido existência real;
 Por outro lado, defende que qualquer convenção para que seja válida pressupõe uma lei
positiva anterior que lhe atribua eficácia.

O autor foca-se principalmente em dois aspectos:

 A concepção voluntarista do Direito: coloca a vontade soberana como lei, sob pena de serem
infringidos males aos infractores;
 Tentativa de sistematização conceptual do Direito, que é tido pelo autor como uma expressão
de desejo de um ser racional (o soberano), no sentido de que os outros seres racionais actuem
de certo modo, sob pena de aplicação de um certo mal, em caso de actuação diversa.

O seu maior contributo para o positivismo foi a tentativa de determinar os elementos lógico-
científicos do Direito e cinstruir um sistema racional e autónomo do Direito, prescindindo de
todo o conteúdo ético ou de qualquer pressuposto histórico ou sociológico.

27
d) Hans Kelsen (1881 – 1973)

a) O princípio da pureza
Refira-se desde logo que a obra “Teoria Pura do Direito” de Hans Kelsen representa uma das
expressões mais notáveis do positivismo jurídico. Ela apresenta-se expressamente como Teoria
do Direito positivo, preocupada com a resposta sobre o que é e como é o Direito, com total
desinteresse por questões axiológicas, por considerar a Justiça como ideal irracional e
inacessível ao conhecimento humano.
É uma teoria pura porque, segundo entende Hans Kelsen, quer-se liberta de todos os
elementos estranhos à ciência jurídica como os de ordem axiológica, metafísica, sociológica
etc.
O principal objectivo da “Teoria Pura do Direito” de Hans Kelsen foi discutir os princípios e
método da teoria jurídica, em razão dos debates metodológicos que eclodiram no final do
século XIX. O Positivismo de diversas tendências, bem como a reacção dos teóricos da livre
interpretação do Direito, colocavam em crise a própria autonomia da Ciência Jurídica.
Hans Kelsen propõe-se então desenvolver o chamado princípio da pureza: o método e o
objecto da ciência jurídica devem ter como premissa básica o enfoque normativo, devendo o
Direito ser encarado pelo jurista exclusivamente como norma e nunca como facto ou valor
transcendente.
Hans Kelsen propõe-se assim apresentar uma teoria “pura” no sentido de que se propõe
garantir um conhecimento dirigido exclusivamente ao Direito, afastando desta cognição tudo o
que não pertença ao seu objecto.
Esta redução do objecto jurídico à norma causou muitas polémicas, sendo Kelsen acusado de
reducionista, de esquecer as dimensões valorativas e sociais, de fazer do fenómeno jurídico
uma mera forma normativa, despida de seu carácter humano.
Todavia, o objectivo de Hans Kelsen não era de negar os aspectos metafísicos dum fenómeno
complexo como o Direito e sim escolher estes aspectos, um que pudesse exclusivamente caber
ao cientista do direito.
Não podia a ética intervir na ciência do Direito por esta ser considerada autónoma. Pretende-
se assim expurgar da teoria do Direito a preocupação do que é justo ou injusto. A Justiça, no
entender de Kelsen, é tarefa da ética, a ciência que investiga as normas morais.
A norma constitui o princípio e o fim do sistema jurídico, o alfa e o ómega da ciência jurídica.
O Direito é então conceituado como um sistema de normas coactivas permeado por uma
lógica interna de validade que legitima, a partir de uma norma fundamental todas as outras

28
que lhe integram. Neste sistema, portanto, cada norma busca a sua validade na norma que lhe
é imediatamente superior, numa escala ascendente que termina com a “norma
fundamental”,a pedra de toque que constitui o fundamento primeiro de validade de todas as
normas.

O conhecimento jurídico deve ter como único objecto o Direito positivo, tendo neste em foco
essencialmente a norma (esta entendida como uma criação de um acto de vontade).

b) As Ciências da Natureza e a ciência Jurídica


Conforme indicado anteriormente, face aos desenvolvimentos impulsionados pelo positivismo
filosófico de Auguste Comte, colocava-se em dúvida a própria cientificidade da jurisprudência,
entendida esta no seu sentido mais radical, como Ciência do Direito.
Com efeito, é sabido que as chamadas “ciências da natureza” estudam o seu objecto com base
no método da observação e da experimentação e fundamentam-se no conhecido princípio de
causalidade, que representa uma ligação determinística entre causa e efeito (sempre que
ocorrer A, tem de, necessariamente, ocorrer B). A título de exemplo, em qualquer parte do
mundo, o ferro, submetido a altíssimas temperaturas, derrete. Esta crença na ligação
determinística e necessária entre certa causa e certo efeito, com total independência da
intervenção da vontade do sujeito é o factor fundamental para que os resultados dessas
ciências sejam exactos e objectivos, permitindo criar as chamadas “leis” científicas.
Poderia assim a ciência jurídica atingir as almejadas exactidão e objectividade? Como seria isso
numa área do saber em que não se aplica o método da experimentação e observação? Como
chegar à exactidão e objectividade, próprias das ciências da natureza se no âmbito da
realidade jurídica não se verifica causalidade necessária entre o facto e sua consequência (já
que o facto típico não gera necessariamente a consequência estatuída pela norma jurídica)?
Por outras palavras, ao lado das ciências da natureza e das outras ciências do espírito,
poderíamos falar efectivamente de uma ciência jurídica?
Kelsen propunha-se a apresentar isso mesmo: Uma teoria que pudesse conferir ao direito o
estatuto de verdadeira ciência.

c) O princípio da imputação
No entender de Hans Kelsen, o facto de não se poder falar de causalidade no Direito não
impossibilitava, per se, a instituição de uma ciência jurídica. Com efeito, segundo este jurista,
enquanto nas outras ciências temos como base o princípio da causalidade, como ligação
determinística entre o facto condicionante e a consequência condicionada, na ciência jurídica

29
temos como base o princípio da imputação, representando uma ligação jurídica (e não uma
ligação necessária e determinística), uma ligação no plano da liberdade entre condição e
consequência. Dado um certo facto, o Direito vai, em princípio, imputar a esse mesmo facto
uma certa consequência.
No mundo normativo, o Direito distingue-se por ser composto por juízos hipotéticos – que
ligam um facto condicionante a uma consequência condicionada. A imputação apresenta-se
assim como o princípio base da ciência jurídica.

d) O normativismo
No entender de Hans Kelsen, o cientista do Direito deve encarar o Direito apenas sob o ponto
de vista da norma, justamente porque na essência, o Direito é norma. Só uma abordagem que
tenha como foco exclusivo o estudo da norma é que permitirá ao jurista criar uma verdadeira
ciência jurídica, caracterizada pelas notas da exactidão e objectividade. Preocupações com
valores como a justiça ou com a pretensa factualidade do Direito deveriam ser deixadas para
outros ramos do saber como a ética, a filosofia, a sociologia entre outros, sendo que ao jurista
deveria interessar o Direito na pureza do seu objecto: a norma.
Segundo Kelsen, o Direito é essencialmente composto por normas de coação – constitui um
aparelho de coação sem qualquer valor ético ou político. E é assim que o Direito deve ser
encarado pelo jurista: como um conjunto de proposições hipotéticas que suportam o aparelho
coactivo do Estado, indiferente a qualquer conteúdo de ordem ética ou política.
Esta tentativa de Kelsen de colocar a norma na qualidade de princípio e fim do Direito valeu à
sua doutrina a caracterização de normativismo jurídico.

e) O Formalismo e o sistema de validade das normas


Nesse entendimento, a validade do Direito ou das normas jurídicas que o compõem não pode
mais ser buscada fora do próprio sistema.
O único critério de validade de uma norma é meramente formal e não material; para aferir a
validade de uma norma deve atender-se apenas ao modo de produção das normas que
constituem o sistema jurídico sem qualquer referência ao conteúdo da norma ou à sua
eventual (des) conformidade com o valor da justiça, pois, como se disse, para Kelsen, a Justiça
não passa de um ideal irracional não verificável objectivamente. O Direito é, essencialmente,
uma técnica de organização social e, como tal, qualquer conteúdo pode ser Direito, desde que
as normas que o componham sejam formalmente válidas.

30
A validade das normas é apresentada por Kelsen na dinâmica da pirâmide normativa que leva
à “Norma Fundamental” que constitui a unidade da pluralidade de todas as normas que
compõem a ordem jurídica.
A validade de uma norma jurídica depende exclusivamente de ela ter nascido de certa
maneira, ter sido criada de harmonia com uma certa regra, definida pela norma fundamental
da ordem jurídica em que essa norma se integra.
A validade da norma depende de ela ter sido criada de harmonia formal com a norma que lhe
é imediatamente superior. Esse “caminhada” escalonada em termos de validade das normas
leva, obviamente, à norma primeira do estado, que é, normalmente a norma constitucional.
Indagando-se sobre o fundamento de validade desta norma constitucional e desejoso de
conferir total coerência ao seu sistema, Kelsen vai afirmar que a norma constitucional busca a
sua validade na Norma Fundamental (Grund Norm). Por sua vez, a norma fundamental é
apenas a regra básica ou primeira, de acordo com a qual devem ser criadas todas as normas de
uma determinada ordem jurídica
O autor começou por defender que esta norma fundamental seria uma norma pertencente a
uma “Constituição histórica” que teria algures existido em algum momento. Mas dadas as
dificuldades óbvias de tal entendimento e às frequentes críticas, Kelsen passou a defender que
a norma fundamental seria simplesmente uma norma pressuposta, não posta por qualquer
autoridade, já que nesse caso haveria que buscar a validade dela também.
Já no fim da sua carreira, Kelsen avança expressamente que a “norma fundamental” é uma
simples ficção cuja defesa se afigura necessária para a coerência do sistema.

f) O Positivismo
Já antes indicámos que, acima de tudo, Hans Kelsen é um verdadeiro positivista. Com efeito, o
próprio faz questão de notar expressamente que a sua teoria é uma teoria do Direito positivo,
ou seja, do Direito posto no âmbito do poder do Estado, o qual representa a manifestação da
vontade da colectividade política. Essa concepção voluntarista do Direito – própria dos
positivistas – leva Kelsen a rejeitar a existência do chamado Direito Natural por o considerar
uma realidade indemonstrável objectivamente. Se o objectivo era erigir uma ciência com
exactidão e objectividade, havia que fundá-la em bases que fossem acessíveis objectivamente
a qualquer mente humana, afastando todas as realidades que fossem inquinadas de certo
subjectivismo e consequente incerteza como seria o caso do Direito Natural. Note-se,
entretanto, que a instituição da norma fundamental – não posta por qualquer autoridade –
representou um desvio na linha positivista deste pensador; desvio esse cujo “remendo” Kelsen
lutou por conseguir até o fim de sua vida.

31
Conforme anteriormente notado, Hans Kelsen contribuiu de modo decisivo para a teorização
da ciência jurídica, sendo que o seu pensamento não pode ser integralmente espelhado em
tão poucas palavras.
Muitas críticas foram feitas a Kelsen, havendo estudiosos que o apelidaram de grande
jusnaturalista, outros o acusando de positivista cego, outros de fundamentador de governos
tiranos etc. Por isso, nada melhor do que terminar o presente texto com uma afirmação do
próprio Kelsen, comentando sobre as críticas à sua Teoria. Dizia ele que muitos dizem que a
minha teoria é apenas a afirmação de uma determinada expressão política “mas qual das
afirmações é verdadeira? Os fascistas declaram-na liberalismo democrático, os democratas
liberais ou os sociais-democratas consideram-na um posto avançado do fascismo. Do lado
comunista é classificada como ideologia de um estatismo capitalista, do lado capitalista-
nacionalista é desqualificada, já como bolchevismo crasso, já como anarquismo velado. O seu
espírito frio é – asseguram muitos – aparentado com o da escolástica católica; ao passo que
outros crêem reconhecer nela as características distintivas de uma teoria protestante do
Estado e do Direito. E não falta também quem a pretenda estigmatizar com a marca de ateísta.
Em suma, não há qualquer orientação política de que a Teoria Pura do Direito não se tenha
ainda tornado suspeita. Mas isso precisamente demonstra, melhor do que ela própria o
poderia fazer, a sua pureza” (Hans Kelsen, Prefácio à 1.ª edição da obra Teoria Pura do Direito,
Maio de 1934)

2.2. REALISMO JURÍDICO


Esta corrente foi desenvolvida fundamentalmente em duas “vertentes” designadas por
realismo jurídico escandinavo (Escola de Upsala na Suécia e Dinamarca) e realismo jurídico
norte-americano (Estados Unidos da América). Concentrar-nos-emos na primeira “vertente”, a
do realismo jurídico escandinavo.

As figuras mais notáveis desta corrente são Axel Hagerstrom (Suécia: 1868 - 1939), Vilheln
Lundstedt (Suécia: 1882 - 1955), Karl Olivercrona (Suécia: 1897 - 1980) e Alf Ross (Dinamarca:
1899 - 1979).
Há, desde logo, que indicar que o Realismo Jurídico apresenta-se como uma tentativa de
aplicar ao Direito as ideias básicas do realismo filosófico, daí a necessidade de previamente
abordarmos – ainda que de forma muito sucinta – esta corrente filosófica.

32
A) O REALISMO FILOSOFICO
O vector chave do realismo filosófico é a rejeição absoluta da metafísica, sempre entendida
como uma mera combinação de palavras completamente vazias de conteúdo e cujo estatuto
epistemológico não pode, de modo algum, ser determinado.
i) O realismo filosófico e a gnoseologia
No entender do realismo filosófico, só o que é real (significa, no caso, dizer só o que faz parte
do mundo empírico, o que se apresenta no espaço e no tempo), é que pode ser objecto de
investigação científica e do conhecimento humano. Os objectos de que se ocupa a metafísica
(ex. Deus, alma etc.) não são dados no espaço e no tempo e, como tais, são inapreensíveis
pelos órgãos dos nossos sentidos. Por consequência, a metafísica nada pode acrescentar
conhecimento ao Homem, devendo, por isso, ser rejeitada.
ii) O realismo filosófico e a axiologia
No plano axiológico – plano dos valores – a tese fundamental do realismo filosófico é que os
juízos morais não indicam nenhuma qualidade intrínseca dos objetos ou actos a que se
referem. Os juízos morais têm apenas sentido na medida em que os objectos ou actos a que
eles se referem inspiram prazer ou dor no sujeito que emite o juízo. Portanto, o valor moral
atribuído aos actos ou objectos encontra-se sempre ligado ao sentimento que os mesmos
inspiram no sujeito que emite o juízo moral. E sendo que este sentimento sempre depende da
intimidade do sujeito, o juízo moral será sempre subjectivo. A consequência deste raciocínio é
que não é possível uma axiologia objectiva, ou seja, no entender do Realismo filosófico, é
impossível uma ciência da moral. Na verdade, os juízos morais não podem ser verdadeiros
nem falsos, porquanto não contém um juízo sobre o que é real. São, antes, mera expressão
das emoções do sujeito.
Significa dizer que as expressões de tipo “isto é bom/mau”, “aquilo é justo/injusto”, nada nos
dizem sobre a realidade. Não são juízos verdadeiros ou falsos, já que só expressam emoções
de quem os emite, baseadas no prazer ou na dor que os objectos ou actos em referência lhe
inspiram. Insiste-se: em sentido restrito, não há, para esta corrente, uma ciência da moral.
B) O REALISMO NO DIREITO – Realismo Jurídico
No âmbito jurídico e à semelhança do positivismo jurídico, o Realismo rejeita o Direito Natural,
por ser indemonstrável e não sujeito à observação da razão humana, o que o torna uma ideia
metafísica que carece de qualquer fundamento científico.
O realismo jurídico também rejeita a ideia do “direito subjectivo”, considerando esta uma
noção sem qualquer sustentabilidade porquanto não se refere a qualquer realidade empírica
que se dê no espaço e no tempo.

33
No que em específico se refere ao conceito do Direito, o realismo – em oposição ao
positivismo – rejeita a ideia de que a essência deste se encontre na vontade individual ou
colectiva (o tal Direito posto pela vontade manifestada no Estado, como pretendia o
formalismo positivista): o Direito positivo, para o realismo, é apenas um conjunto de regras
destinadas aos órgãos do Estado e que asseguram determinadas vantagens para certos
indivíduos.
No entender do realismo, a realidade jurídica consiste simplesmente no facto da força aplicada
pelos funcionários e na base psicológica da obediência que, muitas vezes, torna desnecessário
o uso dessa mesma força, pelo que, em última instância, o Direito pode ser configurado como
”ameaça de uso da força”.
Em oposição ao normativismo, o Realismo não entende o Direito como uma realidade
essencialmente normativa. O Direito é apresentado por esta corrente como um “facto ou
fenómeno psíquico colectivo”. O Direito não possui em si qualquer força vinculante. A sua
vinculatividade é apenas uma ideia – de natureza mística, mesmo – não havendo nada no
mundo externo ou real que lhe corresponda.
As normas jurídicas são simplesmente regras sobre o uso da força. Elas são primariamente
dirigidas aos órgãos do Estado, disciplinado a actuação destas no uso da força. As normas
jurídicas não são “garantidas pela força”; elas são “sobre o uso da força”. O seu objecto
primeiro é justamente o uso dessa força.
Conclui-se assim que a) o realismo jurídico escandinavo é uma tentativa de aplicar no Direito
as teses do realismo filosófico e que b) esta corrente denota pontos de contacto e também
pontos de divergência com o positivismo jurídico.
Relembra-se sempre a necessidade de, individual ou colectivamente, os estudantes darem
uma “espreitadela” ao chamado realismo jurídico norte-americano de que não nos
ocuparemos no alinhamento das matérias do ano 2013.

2.3. Teoria Egológica do Direito

Esta teoria doi desenvolvida na Argentina pelo jurista e filósofo Carlos Cossio e parte de uma
concepção culturalista, i.e., da visão do Direito como realidade cultural, procurando
surpreender e determinar o que nele há de específico. O seu pressuposto é de uma ontologia
pluralista, que distingue quatro realidades em camadas ônticas (ontos, ser, realidade), quais
sejam:

a) 1ª camada: objectos ideais – são aqueles sem existência física ou sensorial, alheios ao tempo
e axiologicamente neutros; o seu contacto é alcançado através da intelecção (uso a

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inteligência racional). Ex.: o número, que é um elemento que não caduca, não é susceptível de
ser apalpado e não é moralmente avaliável sob os critérios do bom e do mau;
b) 2ª camada: objectos naturais – são aqueles que possuem existência física, ou seja, são dados à
experiência sensorial, existem no tempo e no espaço, entretanto são axiologicamnente
neutros, sendo o seu conhecimento alcançado pela dedução empírica e nem pode ser valorado
moralmente. Ex.: célula, árvore.
c) 3ª camada: objectos metafísicos – são valiosos (moralmente avaliáveis), contudo, não são
dados à experiência sensorial e nem existem no tempo e no espaço. Ex.: liberdade.
d) 4ª camada: objectos culturais – são dados à experiência, existem no tempo e no espaço, são
valiosos e são cognoscíveis por via intuitiva, por meio da compreensão. São, por isso, a
extensão do Homem no mundo exterior. Ex.: Direito, música.

O autor entende que o Direito representa não só um objecto cultural, mas também um elo
entre vários elementos sob um parâmetro de valorações. O Direito pode ser definido, assim,
como a conduta humana em interferência intersubjectiva. Apresenta-se, desta forma, como
um objecto cultural de natureza egológica, representando aquilo que o Homem faz segundo
valorações.
Portanto, o Direito é tido não como a norma, mas apenas como a descrição da conduta. A
norma apenas se refere à conduta. O Direito não é a norma, porque esta refere-se apenas à
descrição da conduta. A realidade e a essência do Direito encontram-se precisamente na
conduta humana.
A teoria egológica, embora aceite de forma clara a lógica normativa da Teoria Pura do Direito,
acrescenta-lhe aquilo que considera a intuição específica do Direito, que é intuição de
liberdade e intuição axiológica.

2.4. Teoria Tridimensional do Direito

Foi desenvolvida pelo professor brasileiro Miguel Reale, que é tido como um dos maiores
filósofos do Direito e um dos maiores juristas da Lusofonia.
Foi o único autor que, de modo sistematizado, conseguiu responder a Kelsen. A sua ideia
fundamental é que as correntes que o precederam eram monolíticas, pois sobrevalorizavam
apenas um e único aspecto da realidade jurídica: a norma. Outras limitavam-se à análise dos
factos, sobre os quais era exarada uma sentença e outras, ainda, restringiam o cômputo da sua
análise às condutas.

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Reale vem esclarecer que não é possível conhecer a realidade jurídica focando só num dos
seus aspectos. Há sempre factos previstos, daí a necessidade de existirem normas jurídicas,
integradas em previsões normativas.
Com efeito, toda a norma jurídica visa um fim, que é a justiça. Ademais, o Direito nunca é só
um facto. Ele possui, na verdade, três dimensões inseparáveis e indissociáveis: facto, norma e
valor.
As três são importantes e interdependentes. O Direito será tido, desta forma, como a
integração normativa de certos factos segundo certos valores. Para que haja Direito, é
necessário que se verifique a reunião e coexistência destes três elementos, que são orientados
segundo valores de liberdade e justiça.
Por isso, o Direito é uma realidade complexa, composta por esta tridimensionalidade.

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