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12/03/2024, 11:02 A representação LGBTQIA+ e os personagens queer coded do período do Código Hays - Valkirias

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CINEMA

A representação LGBTQIA+
e os personagens queer
coded do período do Código
Hays

A Era do Jazz foi um período marcado por


excessos em Hollywood. Ela aconteceu
durante os anos do cinema mudo e tinha
como características centrais o
hedonismo, o luxo e a selvageria. Assim,
esse período mostrava que glamour e
decadência eram duas faces da mesma
moeda, uma ideia que refletia

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diretamente na produção
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cinematográfica e resultava em títulos
considerados “à frente do seu tempo”.

Essas questões foram capturadas com


brilhantismo por Damien Chazelle em
Babilônia (Babylon, 2022), um filme que
tanto presta uma homenagem ao
contexto quanto caracteriza Hollywood
como uma “máquina de moer gente” e
uma cidade dada a todo o tipo de
“pecado”. Colhendo inspiração em figuras
que realmente existiram, Chazelle
consegue mostrar a efervescência de um
momento no qual a indústria ainda dava
os seus primeiros passos. Mas, acima de
tudo, retrata como ela sempre esteve
pronta para proteger os próprios
interesses acima de qualquer coisa,
inclusive das estrelas que criava somente
para destruir com um estalar de dedos.

Conforme a década de 1920 se


aproximava, essa visão mercadológica se
fazia notar com ainda mais clareza. Como
a Europa estava enfraquecida devido à
Primeira Guerra Mundial (1914-1918), a
produção cinematográfica estadunidense
encontrou espaço para crescer e se
transformar em um produto de
exportação. A demanda por
entretenimento era constante, o que
culminou no surgimento do studio system,
no qual oito companhias — Paramount,
Universal, Fox, Columbia, United Artists,
Warner, MGM e RKO — possuíam os seus
próprios quadros de funcionários, dos
produtores aos atores; e também os seus
próprios cinemas, que se destinavam a
exibição das obras realizadas por elas.

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Com tanto em jogo, os estúdios


precisaram encontrar uma maneira de
recuperar a sua imagem diante do
público, visto que ela tinha sofrido uma
série de desgastes. Um dos maiores
baques aconteceu em 1921, quando
Roscoe “Fatty” Arbuckle, um dos
comediantes mais populares do período,
foi acusado de estupro e assassinato.
Então, a medida adotada para essa
reabilitação foi o Código Hays, um
“conjunto de leis” que tinha como objetivo
regular as temáticas que poderiam ou não
ser retratadas nos filmes. O Código
recebeu este nome por causa de Will H.
Hays, o presidente da Associação de
Produtores e Distribuidores de Filmes da
América (MPPDA, na sigla original).

Embora a “legislação” tenha dado os seus


primeiros passos em 1924, foi somente
durante a década de 1930 que ela se
tornou oficial. Vale pontuar, porém, que o
período de maior repressão começou em
1934, quando o departamento
responsável pelo controle moral das
produções cinematográficas caiu nas
mãos de Joseph Breen, um ativista
religioso que foi apelidado de “Hitler de
Hollywood”. A partir desse ponto, o
Código Hays proibia, entre outras coisas,
retratos da “perversão sexual”, um termo
usado para fazer referência a
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homossexualidade, vista pelos


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conservadores da época como algo que
precisava ser “parado” dado o
crescimento da cultura queer durante os
anos 1920, especialmente através da vida
noturna de cidades como Nova York.

Contudo, a proibição não significou que


personagens LGBTQIA+ desapareceram
do cinema durante os anos de vigência do
Código, que permaneceu ativo até 1968.
Na verdade, os realizadores precisaram
usar a criatividade para driblar a censura,
o que rendeu uma série de personagens
queer coded — termo usado para falar a
respeito de uma representação que é
feita nas entrelinhas e não recebe
nenhum tipo de confirmação do roteiro.
Se atualmente o uso desse recurso é visto
como problemático e bastante debatido
enquanto algo nocivo para a comunidade
pelo reforço de estereótipos, durante o
período de censura em Hollywood ele
representou aquilo que manteve pessoas
queer presentes nas telas de cinema.

De uma forma geral, as produções de


1930 usavam o humor herdado do
cinema mudo para fazer este tipo de
representação, especialmente em filmes
considerados “para a família”, como os
musicais. Um exemplo disso é A Alegre

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Divorciada (The Gay Divorce, 1934). Nele,


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Rodolfo Tonetti (Erik Rhodes) possui uma
série de trejeitos que poderiam ser
descritos como afeminados e em uma
determinada cena diz para outro
personagem que a sua esposa está segura
na companhia dele, visto que Tonetti
prefere espaguete a mulheres (“Your wife
is safe with Tonetti. He prefers spaghetti”, no
idioma original). Esse tipo de piscadela
para o público assegurava que as
produções passariam pelos censores sem
que os realizadores abrissem mão da sua
visão para os personagens.

Outro artifício bastante usado nessa


época era a bissexualidade. O cinema se
aproveitava da ideia de confusão até hoje
associada a essa orientação para
conseguir representar personagens
LGBTQIA+ e dois longas importantes do
contexto, Marrocos (Morocco, 1930) e
Rainha Cristina (Queen Christina, 1933),
ilustram bem essa questão.

Em Marrocos, ainda nos primeiros


momentos do filme, Marlene Dietrich
canta de forma provocativa e está
vestindo um smoking que se tornou
simbólico para a comunidade queer ao
longo dos anos. Então, ela se encaminha
para o centro da tela e beija uma mulher
que está assistindo a sua apresentação. A
cena não dura mais do que alguns
segundos e ainda assim permanece muito
mais no imaginário de quem assiste do
que o romance entre Amy Jolly (Dietrich)
e um soldado. Não somente pelo fato de
que se trata do primeiro beijo entre
mulheres do cinema estadunidense, mas

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pela transgressão e pela provocação,


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características que se tornariam marca
registrada da atriz ao longo de sua
carreira. Tanto faz que Marrocos trate
esse beijo como uma mera brincadeira da
protagonista e escolha colocá-la em um
relacionamento com um homem porque
isso não apaga a potência da cena em um
contexto no qual pessoas LGBTQIA+ só
tinham permissão para existir na
clandestinidade.

Rainha Cristina segue um caminho similar


mesmo retratando uma figura histórica, a
Rainha Cristina da Suécia, cuja
identidade de gênero se desviou da
norma desde o momento do seu
nascimento. Isso porque primeiramente
ela foi declarada como um menino e,
posteriormente, os porta-vozes do rei
afirmaram que tudo foi uma confusão do
seu pai e, na verdade, o bebê que acabara
de nascer era uma menina. Devido a isso
existem especulações de que Cristina era
interssexo, mas é importante lembrar que
as informações não são conclusivas
devido à época em que a rainha viveu, o
século XVII. Para além dessa
possibilidade, uma vez que Cristina se
tornou adulta, passou a recusar todos os
casamentos arranjados pelos seus
conselheiros e chegou a viver um
romance com uma das suas aias, Ebba
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Sparre, a quem chamava de “minha


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companheira de cama”.

Portanto, embora o filme de Rouben


Mamoulian nos mostre dois beijos sáficos
e conserve o gosto de Cristina (Greta
Garbo) por roupas masculinas, ele
envereda para um romance entre a rainha
e Antonio (John Gilbert). Inclusive, o
longa dá a entender que o motivo da
protagonista para abandonar o seu reino
foi o amor que sentia por ele, o que é
bastante distante da verdade, visto que
ela escolheu deixar a Suécia para se
dedicar à cultura e às artes, dois dos seus
maiores interesses em vida. Além disso, a
rainha morreu solteira.

A década de 1930 também foi palco do


surgimento dos filmes de monstro feitos
pela Universal Studios, muitos deles queer
coded, especialmente os assinados por
James Whale, um diretor abertamente
gay. Entretanto, se mostra mais
proveitoso abordar A Filha de Drácula
(Dracula’s Daughter, 1936) porque esse
filme marca o nascimento de um tipo de
personagem que se tornou bastante
comum no cinema de horror durante a
década de 1970: a vampira lésbica.

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Em linhas gerais, A Filha de Drácula conta


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a história da condessa Marya Zaleska
(Gloria Holden), que acreditava que se
livraria da sua sede de sangue depois da
morte de Dracula, o seu pai. Entretanto,
uma vez que os seus desejos permanecem
e ela vê todas as suas tentativas de
extinguir a “doença” fracassando, Marya
acaba recorrendo à ajuda de Dr. Garth
(Otto Krueger). Embora o simples ato de
se consultar com um psiquiatra torne o
subtexto queer escancarado,
especialmente em um período no qual a
homossexualidade ainda era considerada
doença, vale comentar que existem
associações mais diretas entre o
comportamento da condessa e uma
sexualidade que se desvia da norma. A
título de ilustração, é possível citar o fato
de que ela se mantém alheia à atenção
que recebe dos homens, mas em um
determinado momento leva uma moça
para a sua câmara na intenção de “devorá-
la”. Durante essa sequência, são feitas
várias insinuações avançadas para a
época.

Essa associação entre mulheres,


monstruosidade e homossexualidade
aparece em várias produções do final dos
anos 1930 e se torna ainda mais
marcante durante a década de 1940, o
que fortaleceu a conexão entre a
comunidade LGBTQIA+ e a vilania. Desse
modo, as formas de representação se
tornaram mais sombrias, algo que
também foi reforçado pela chegada da
Segunda Guerra Mundial, fato
impulsionador do crescimento do noir, um
estilo de cinema marcado por

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personagens moralmente ambíguos.


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Então, conforme os gêneros vinculados
ao horror se tornavam os principais
veículos para personagens queer, eles
assumiam o posto de assassinos frios e/ou
capazes de torturar psicologicamente
pessoas inocentes.

Um dos maiores exemplos disso é Mrs.


Danvers (Judith Anderson) de Rebecca, a
Mulher Inesquecível (Rebecca, 1940). Ela é
a governanta da casa de Maxim de Winter
(Laurence Olivier), um homem rico que
foi casado com a personagem que
empresta título ao longa. Depois que
Rebecca desapareceu misteriosamente,
Maxim acabou se casando novamente.
Embora Danvers tenha permanecido na
mansão para servir à nova Mrs. de Winter
(Joan Fontaiane), a sua fidelidade a antiga
patroa a impedia de desempenhar essa
tarefa e quem assiste consegue perceber
que a governanta está apenas camuflando
a sua paixão com servidão. Sempre com
um olhar fixo e disposta a aterrorizar a
sua nova patroa, Mrs. Danvers está
constantemente falando sobre como
Rebecca é alguém incomparável. Até que,
em determinada cena do longa, o roteiro
torna as suas motivações um pouco mais
claras fazendo com que ela cruze os
limites da relação entre
patrão/empregado ao mexer na gaveta de
lingerie de Rebecca e tocar algumas peças
de forma desejosa.

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Esse tipo de retrato de mulheres que


reprimem o seu desejo sexual por outras
mulheres também se faz presente em
Sangue da Pantera (Cat People, 1942), de
Jacques Tourneur. Nele, Irena (Simone
Simon) é uma jovem imigrante sérvia
atormentada por uma crença da sua vila
de origem: ela acredita ser descendente
das mulheres-pantera. Desse modo, vive
a sua vida reclusa nos Estados Unidos até
se casar com Oliver Reed (Keith Smith).
Porém, o casamento passa por algumas
dificuldades desde o início porque Irena
se recusa a consumá-lo afirmando que,
caso se sinta sexualmente excitada, se
transformará em um animal com sede de
sangue. Então, sem compreender o
“problema” da esposa, Oliver a envia para
o consultório do Dr. Louis (Tom Conway)
e o psiquiatra passa a investigar o que
está acontecendo com Irena.

Logo, uma possível leitura de Sangue da


Pantera é que Irena usa a maldição dos
seus descendentes para não precisar
explicar o fato de que não sente desejo
sexual por homens. Primeiramente, é
importante citar que as motivações da
protagonista para se casar foram
impulsivas. Além disso, elas têm conexão
com o seu medo de ser vista como pária.
Em um primeiro momento, o espectador é
levado a pensar que isso se deve à
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transformação que ela alega sofrer, mas


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posteriormente a hipótese da
homossexualidade começa a tomar forma,
especialmente por meio da cena em que
Irena e Oliver estão comemorando o
casamento em um restaurante. Nessa
ocasião, uma mulher encara
insistentemente a protagonista. Depois,
ela se aproxima e, então, se refere a Irena
como “minha irmã”. Ou seja, estabelece
um laço através de um reconhecimento
mútuo. Depois desse contato, Irena adota
uma expressão de medo devido à
possibilidade de que o seu marido
também note a existência de uma ligação
entre ela e a mulher. Esse tipo de medo de
ser reconhecida enquanto lésbica por
associação com uma lésbica é algo que
dispensa maiores explicações e consolida
Sangue da Pantera como um exemplar de
horror queer da década de 1940.

Existem vários outros exemplos capazes


de ilustrar a relação existente entre
pessoas LGBTQIA+ e algum tipo de
monstruosidade neste período, como
Brandon (John Dall) e Phillip (Farley
Granger) de Festim Diabólico (Rope, 1948)
e Joel Cairo (Peter Lorre) de Relíquia
Macabra (The Maltese Falcon, 1941).
Porém, conforme a década se
encaminhava para o final e os Estados
Unidos passavam algumas mudanças
sociais, a forma de retratar a comunidade
também se tornou diferente. Assim, nos
anos 1950 o melodrama passou a ser o
principal veículo para essa representação,
talvez apresentando os primeiros indícios
de um tipo de narrativa que persistiu até
um passado muito recente: a história do

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gay que morre de maneira trágica por


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tentar viver a sua sexualidade. Por outro
lado, essas histórias foram responsáveis
por tornar as representações da
comunidade LGBTQIA+ mais
tridimensionais.

De encontro a isso, cabe lembrar


Juventude Transviada (Rebel Without a
Cause, 1955). Nas palavras do próprio
roteirista, o filme aborda a história de
uma geração que se viu forçada a crescer
do dia para noite. Esse processo para
Plato (Sal Mineo) e Jim (James Dean)
significou lidar com questões
relacionadas à sexualidade. Embora elas
sejam muito mais claras da parte de Plato,
que chega a sofrer bullying pelo seu jeito
“diferente”, o roteiro é aberto o suficiente
para permitir a interpretação de que
havia correspondência da parte de Jim.
Inclusive, os dois não têm medo de
demonstrar o seu afeto um pelo outro,
algo que abre margem para que a
heterossexualidade do personagem de
James Dean seja questionada mesmo que
ele se envolva romanticamente com Judy
(Natalie Wood). Vale comentar que a
Warner, estúdio responsável por
Juventude Transviada, chegou a ser
lembrada pelos censores do Código Hays
a respeito dos perigos de representar a
homossexualidade em tela porque era um
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fato conhecido de todos os envolvidos


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nos bastidores da produção que Plato era
um personagem gay.

Também na década de 1950, outro longa


notável é Chá e Simpatia (Tea and
Sympathy, 1956), dirigido por Vincent
Minelli. Embora este não seja um filme
sobre um personagem LGBTQIA+, ele
mostra de forma bastante eficiente os
efeitos da homofobia e da masculinidade
tóxica na formação identitária da
comunidade. Em Chá e Simpatia, Tom
(John Kerr) é um rapaz que estuda em um
colégio interno masculino e é alvo do
desrespeito dos colegas por gostar de
“coisas de mulher”. Entretanto, ele é
apaixonado por Laura (Deborah Kerr), a
esposa do diretor, Bill (Leif Erickson), um
homem machista que endossa as práticas
violentas contra Tom. Nesse ambiente
tóxico, sensibilidade e homossexualidade
são constantemente confundidas, de
modo que a resposta para quem não “age
como homem” é a homofobia, um discurso
que infelizmente permanece atual. Assim,
o personagem de Chá e Simpatia não é
necessariamente queer coded para o
público, que sabe do seu relacionamento
com Laura, mas recebe o mesmo
tratamento que uma pessoa LGBTQIA+, o
que acaba tornando-o uma representação
eficiente da comunidade nos anos 1950.

Nesse ponto, é interessante ressaltar


que, conforme a década de 1960 se
aproximava, o Código Hays começava a
perder a força. Na verdade, isso foi parte
de um processo iniciado ainda nos anos
1940, um período no qual os diretores,

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produtores e estúdios começaram a se


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cansar das imposições. A título de
ilustração é possível citar a batalha de
Howard Hughes contra Joseph Breen
pelo filme O Proscrito (The Outlaw, 1941),
que levou cinco anos para ser lançado e
não conseguiu o selo de aprovação do
Código pela recusa do diretor de cortar
os closes nos seios de Jane Russell. Outro
realizador que entrou em embate direto
com os censores foi Alfred Hitchcock,
que filmou uma sequência de três
minutos composta por beijos de três
segundos de duração em Interlúdio
(Notorious, 1946), visto que beijos longos
eram proibidos.

Para além das tensões dentro da


indústria, o cinema começava a sentir a
aproximação de algumas ameaças
externas, como a popularização da TV —
cuja Era de Ouro nos Estados Unidos
data de 1948, ano que marca a migração
de artistas de teatro para essa mídia e a
invenção do teleteatro, um tipo de
dramaturgia que anos mais tarde
evoluiria para o formato de sitcom devido
à presença da plateia nas gravações.
Portanto, Hollywood precisava encontrar
formas de oferecer ao público algo que
ele não pudesse assistir no conforto da
sua casa, de modo que as imposições do
Código Hays começavam a pesar cada vez
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mais. Além disso, o cinema europeu já


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havia recuperado a sua força e lidava com
o sexo de forma muito mais natural do
que o estadunidense no contexto de
1950. Logo, o desejo por mais liberdade
supostamente serviria para modificar
vários tipos de representação em
Hollywood, tornando os anos 1960 um
período no qual, supostamente, o queer
coding não seria mais tão necessário.

Porém, dizer que alguma mudança


substancial aconteceu seria uma mentira.
Na verdade, tem-se uma continuidade de
tropos já conhecidos, como o da
monstruosidade, cujo exemplo de maior
destaque é Norman Bates (Anthony
Perkins) em Psicose (Psycho, 1960), um
personagem de trejeitos afeminados e
sexualidade ambígua. O principal elo de
ligação entre Bates e a comunidade
LGBTQIA+ é o fato de que ele se veste
como a sua mãe. Nesse contexto, a
homossexualidade e a transgeneridade
eram percebidas como sinônimas pela
sociedade, o que permitia essa leitura do
personagem. Vale ressaltar também que a
relação próxima que Norman mantinha
com a mãe era outro fator que contribuía
para essa percepção porque um dos
termos usados neste período para fazer
referência a homens gays era “mamma’s
boy” (garotinho da mamãe, em tradução
livre).

Atualmente, é fácil perceber este tipo de


construção como danosa e ofensiva. E,
apesar de não existir justificativa aceitável
para a associação entre pessoas queer e
personagens monstruosos, é importante

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lembrar que Psicose foi lançado nove anos


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antes de Stonewall, o marco zero da luta
por direitos LGBTQIA+. A existência do
movimento contribuiu para que algum
progresso fosse feito em termos de
representação na década de 1970, mas,
nos anos 1960, outras batalhas
ideológicas eram travadas nos Estados
Unidos e isso não é desimportante
quando se pensa o universo do cinema —
nada, afinal, existe descolado de um
contexto sócio-histórico. Beira o utópico
esperar um tratamento diferente para
questões que sequer eram pautadas e em
uma época na qual foi necessário
desenvolver um guia orientando pessoas
LGBTQIA+ a respeito de quais espaços
elas podiam ocupar.

Apesar dos equívocos, os anos 1960


também foram uma época na qual os
retratos de personagens queer no cinema
ganharam mais nuances, expandindo o
que havia sido feito no melodrama de
1950. O Pecado de Todos Nós (Reflections
in a Golden Eye, 1967), de John Huston, é
um filme que vai de encontro a isso.
Ambientado em uma base militar em um
período livre de guerras, o longa
acompanha os passos de Weldon
Penderton (Marlon Brando), um major
que passa os seus dias ensinando os
cadetes. Penderton é casado com
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Leonora (Elizabeth Taylor) e o


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relacionamento dos dois possui uma
dinâmica inquietante.

A tensão entre eles é o primeiro indício


dado pelo filme de que existe algo fora do
lugar. Até termos contato com a sua vida
privada, a sexualidade de Waldon sequer
é um assunto sobre o qual pensamos.
Entretanto, uma vez que o casal é
inserido no ambiente doméstico, nota-se
que o major se esforça ao máximo para
esconder que é gay, mas isso não escapa
do olhar de Leonora, possivelmente pela
forma como ela aprendeu a olhar para si
mesma. A personagem de Elizabeth
Taylor passou toda a sua vida na posição
de “bela do Sul”. Dessa forma, está
acostumada a ser desejada pelos homens
e parece acreditar que eles lhe devem
esse tipo de sentimento. Então, quando o
desejo lhe é negado por Waldon, Leonora
passa a fundamentar toda a raiva que
sente por ele em cima desse fato e
consegue perceber o que existe por trás
da indiferença com que ele lhe trata. De
certa forma, é a sua feminilidade que
segura o centro de todo o conflito que se
desenrola naquela base e mesmo olhando
rapidamente para a personagem é
possível perceber porque um homem
como Penderton se sentiria assustado e
acuado na sua presença.

Para além da construção da dinâmica do


casal, a própria forma como a identidade
de Waldon se estrutura é bastante rica.
Em diversas cenas, sempre anteriores a
situações sociais, ele ensaia diante do
espelho, praticando comentários

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espirituosos e sorrisos tímidos que


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acredita precisar dominar para convencer
os demais de que não existe nada de
errado com ele. Embora o major esteja
interpretando este papel muito mais para
si mesmo do que para terceiros, esse é um
tipo de farsa que ele não tem como
sustentar. A sua sexualidade está no seu
interior e um casamento de fachada ou
um posto alto em uma base militar não
são suficientes para que ele consiga negá-
la para si mesmo, especialmente quando a
figura do cadete Williams (Robert
Forster) surge despida entre as árvores
ou espreita a sua casa no escuro.

Todos esses elementos servem para que


quem assiste perceba o trabalho duro que
a repressão sexual é para aquele homem,
o quanto a sua vigilância é constante. As
lentes de John Huston captam com
precisão o desconforto que Waldon
Penderton sente em ocupar o próprio
corpo, do qual ele tenta se alienar de
todas as formas para não precisar
reconhecer os seus desejos por outro
homem. Quando tudo isso se combina,
fica claro que o desfecho de O Pecado de
Todos Nós só poderia ser a tragédia
anunciada por meio da citação de Carson
McCullers, autora da obra que deu
origem ao roteiro. E,
surpreendentemente, o condenado nesse
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desfecho não é o personagem


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homossexual — daí a ideia de que o filme
representa um avanço em relação à
década anterior.

No ano seguinte ao lançamento de O


Pecado de Todos Nós, o Código Hays
chegou ao fim. Este caminho já vinha
sendo trilhado desde 1964, quando O
Homem do Prego (The Pawnbroker)
conseguiu o seu selo de aprovação
mesmo com cenas que mostravam os
seios das atrizes Linda Geiser e Thelma
Oliver. Dois anos depois disso, em 1966,
um selo de “recomendado para o público
adulto” seria atribuído a Quem Tem Medo
de Virginia Woolf? (Who’s Afraid of Virginia
Woolf?). A partir disso, a MPCAA deu os
seus primeiros passos rumo ao sistema
que se tornaria conhecido como
Classificação Indicativa, utilizado até hoje
no território estadunidense como forma
de determinar o conteúdo das produções
e por que tipo de público elas podem ser
consumidas.

Assim, durante as décadas seguintes não


existiam mais restrições quanto ao que
poderia ou não ser representado nos
filmes. Devido a isso, alguns avanços
foram sentidos, mas não se pode dizer
que o uso do queer coding diminuiu
drasticamente. Talvez a prática apenas
tenha sido transportada para outros
veículos, como as animações da Disney
dos anos 1980 e 1990, que contavam
com personagens como Scar e Ursula (O
Rei Leão e A Pequena Sereia,
respectivamente), cuja sexualidade
ambígua sempre foi alvo de debates.

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12/03/2024, 11:02 A representação LGBTQIA+ e os personagens queer coded do período do Código Hays - Valkirias

Coincidentemente, ambos são os vilões


  
das suas respectivas histórias e Ursula foi
inspirada em uma figura real, a drag queen
Divine.

Deixando o passado de lado e olhando


para as últimas duas décadas,
personagens como Ryan (Lucas Grabeel),
de High School Musical (High School
Musical, 2006), continuam marcando
presença na cultura pop vez ou outra. E
reconhecer isso não é ser pessimista e
diminuir os avanços inegáveis da
representação LGBTQIA+ no audiovisual.
É, na verdade, deixar claro que ainda
existe um caminho a ser trilhado e ele é
tão longo quanto o que foi percorrido até
aqui. Talvez, a grande diferença dos
tempos do Código Hays para o período
atual é que quando um caso de queer
coding acontece o olhar de quem assiste já
está treinado para identificar o uso e
apontar os motivos pelos quais a prática
deve ser coibida. Mas isso só acontece
porque as ferramentas para tal existem
em 2023 e elas nem sempre estiveram à
disposição da comunidade LGBTQIA+.
Portanto, ao pensar sobre o passado das
coisas é preciso ter menos pressa em
fazer análises condenatórias. É
importante compreender que o que está
disponível para nós atualmente foi fruto
de construção. E isso inclui reconhecer o
papel das representações equivocadas de
outros tempos porque sem elas seria
impossível traçar modelos positivos.

C O M PA R T I L H E     

EM JULHO 14, 2023

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TA G S : C Ó D I G O H AY E S , H I S TÓ R I A D O C I N E M A ,
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R E P R E S E N TA Ç Ã O LG B TQ I A +

PUBLICADO POR AMANDA GUIMARÃES

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