Você está na página 1de 6

RACISMO AMBIENTAL

Denílson Araújo de Oliveira

Antecedentes

Apesar de ser um conceito novo no mundo acadêmico, as ideias que


sustentam o debate sobre o racismo ambiental estão presentes na gênese do
capitalismo moderno-colonial. Espaços e grupos sociais desumanizados são
um dos cernes desta discussão. Essas ideias evocaram pelo menos dois
delírios da modernidade que busca silenciar o seu caráter colonial (QUIJANO,
2000; MBEMBE, 2014). Um primeiro delírio seria o travestimento das ações
danosas do capital e do Estado com o discurso do progresso, desenvolvimento
e modernização. O segundo delírio seria a legitimação da produção de
não-existências e vazios demográficos silenciando políticas genocidas,
ecocidas, etnocidas e epistemicidas. Produz-se a indignidade de grupos
não-brancos e seus ambientes de vida como justificativa de alocação dos
dejetos sociais. Assim, o racismo estrutura processos institucionais e os
arranjos espaciais da economia. Desta forma, a luta contra o racismo ambiental
é uma luta por dignidade territorial e o entendimento de que todas as vidas são
dignas de serem vividas em ambientes salubres e todas as mortes são
passíveis de luto (BUTLER, 2011).

O que é racismo

O racismo é uma construção social, histórica e política com múltiplas


geograficidades. Ele envolve padrões de poder e dominação através da
racialização/hierarquização de grupos sociais que passam a ser
desumanizados. Na modernidade ele se constituiu como um dos pilares do
projeto colonial. Uma das funções do racismo é gerar, ao mesmo tempo, uma
cadeia de vantagens aos grupos postos racialmente como hegemônicos e um
sistema de vulnerabilidades aos grupos subalternizados. Logo, ele se funda
numa rede de privilégios materiais e simbólicos para os brancos e uma rede de
desvantagens, obstáculos e opressões para não-brancos.
O papel dos ideólogos da dominação é afirmar de que não existe racismo
no Brasil. Esses afirmam que vivemos numa democracia racial. Esse princípio
ideológico dissimula a racialização/hierarquização de grupos sociais e seus
espaços. Esses ideólogos difundem um imaginário de que não existiriam
grandes conflitos raciais no país. Silencia-se o brutalismo e a vontade de poder
racial inerente à formação brasileira. Esses ideólogos buscam desmerecer
qualquer debate e luta política contra qualquer dimensão do racismo. As
heranças desses ideólogos florescem no neoliberalismo minimizando os
impactos raciais do capital e do Estado. Hoje esses ideólogos se constituem
como marqueteiros para enfraquecer dispositivos constitucionais, a exemplo
das agroestratégias criadas para colocar direitos territoriais e étnicos como
entraves ao desenvolvimento e o progresso (ALMEIDA, 2015).
O racismo, em suas várias dimensões, não é questão de intencionalidade.
Ele é expressão de um sistema complexo de poder que busca naturalizar uma
política administrada de desterritorialização, adoecimento e morte de grupos
racializados. O racismo nunca age sozinho. Ele intersecciona múltiplos
sistemas de exploração, opressão e dominação. Desta forma, o racismo é
estrutural e estruturante do capitalismo. Ele precisa ser compreendido como
um fenômeno plural, dinâmico e que foi se metamorfoseando ao longo do
tempo e se regionaliza em cada lugar de forma singular. As classificações
raciais mudam com o tempo e com os lugares. Todos os grupos racializados
foram produzidos como habitantes de uma zona do não ser, uma zona árida e
estéril aonde o Estado de direito é suplantado pelo Estado de Exceção
(FANON, 2008; AGAMBEN, 2004). Nascimento (1981: 24) afirma que o
racismo brasileiro é “muito mais do que a rejeição da cor da pele do outro,
envolve uma rejeição do ser total e íntegro do outro, rejeição essa que
transcende o nível pessoal e subjetivo e se instala objetivamente no
funcionamento das estruturas sociais. [...] diríamos que o racismo é a
interrupção violenta, a destruição e a distorção histórica da sociedade, cultura,
aspirações e realizações humanas de um povo dominado”.
O racismo ambiental é uma das dimensões do racismo. A expressão
racismo ambiental suscita, a princípio, estranheza e polêmicas. Um conceito
que emergiu da luta social na alvorada do neoliberalismo no centro do
capitalismo, os EUA. Logo envolve jogos de poder, resistências e r-existências.
A mobilização deste conceito como uma categoria da prática política evidencia
o movimento social produzindo conhecimento acerca das suas realidades e os
enfrentamentos a um capitalismo que racializa grupos sociais e territórios.

História do Conceito de Racismo Ambiental

Foi o movimento social que forjou o conceito de racismo ambiental. Este


debate se constituiu nos EUA no início dos anos 1980. Moradores pobres
passaram perceber que o processo de racialização/hierarquização de negros e
imigrantes envolviam também a segregação para ambientes insalubres
marcados pela super-exploração e a violência policial. As discussões sobre
racismo ambiental apontavam para os processos raciais de desterritorialização
e criação de espaços de adoecimento e morte (ALVES, 2020). A percepção
das populações negras em 1982 do condado de Warren County, na Carolina do
Norte (EUA), de que eram alvo de deposição de um composto químico
altamente tóxico gerou inúmeros conflitos ambientais. Este fato pôs em
evidencia a dimensão racial do capitalismo e seus lucros advindos. Atribui-se
ao reverendo, militante pelos direitos civis e químico Benjamim Chavis a
pessoa quem primeiro empregou a expressão “racismo ambiental” durante a
sua participação na luta em Warren County (EUA) (PACHECO & FAUSTINO,
2013). Uma pluralidade de ações foi feita pelos moradores do condado de
Warren County para impedir o depósito de rejeitos tóxicos: uso políticos dos
seus corpos como barricadas para impedir a passagens dos caminhões,
denúncias nos meios de comunicação e centenas de pessoas foram presas
durante os protestos. Isso levou a outros protestos e denúncias em outras
cidades dos EUA. Pacheco & Faustino (Idem), traduzindo as ideais de
Benjamim Chavis, afirmam que:

Racismo ambiental é a discriminação racial nas políticas


ambientais. É discriminação racial no cumprimento dos
regulamentos e leis. É discriminação racial no escolher
deliberadamente comunidades de cor para depositar
rejeitos tóxicos e instalar indústrias poluidoras. É
discriminação racial no sancionar oficialmente a presença
de venenos e poluentes que ameaçam as vidas nas
comunidades de cor. E discriminação racial é excluir as
pessoas de cor, historicamente, dos principais grupos
ambientalistas, dos comitês de decisão, das comissões e
das instâncias regulamentadoras. (Chavis, 1993: 3)

Essa luta em Warren County passou a ser encampada pela Comissão pela
Justiça Racial da Igreja Unida de Cristo, dirigida naquele momento por
Benjamin Chavis (PACHECO & FAUSTINO, 2013). Em 1971, Chavis e outros
militantes, foram presos acusados falsamente de incendiar uma mercearia e
condenados. Depois de inúmeros protestos e atuação de várias organizações
locais, nacionais e internacionais, Chavis e seus companheiros de luta foram
libertados. Chavis posteriormente publicou em 1987 o livro Toxic Waste and
Race in the United States of America demonstrando como as comunidades
negras estavam sendo atingidas com rejeitos tóxicos em todo o país (Idem). As
injustiças ambientais provocadas por esse tipo de racismo geravam
implicações nos condicionantes sociais de saúde e adoecimento. As formas de
produção, apropriação e uso dos territórios pelo capital foi promovendo uma
geografia dos rejeitos e proveitos (PORTO-GONÇALVES, 2006), ou seja, a
localização e distribuição desigual dos rejeitos e proveitos sociais marcada por
critérios raciais. O relatório da Comissão de Justiça Social nos EUA de 1987
detectou critérios raciais na distribuição de depósitos de lixo e incineradores.
Vemos aí, topografias da crueldade (ALVES, 2011) que criam uma ‘paisagem
de medo’ para os seus habitantes e estigmas territoriais em determinadas
localidades (Idem).
Em 1991, a Comissão pela Justiça Racial promoveu em Washington (EUA)
a primeira Conferência Nacional das Lideranças Ambientalistas de Cor
reunindo mais 650 ativistas, incluindo militantes do México, Chile, Ilhas
Marshall, ativistas dos 50 estados dos EUA incluindo Porto Rico e Havaí
(PACHECO & FAUSTINO, 2013). Nesta conferência o debate do racismo
ambiental já se ampliava para compreender as ações em direção aos povos
indígenas, nativos do Alasca, latinos, asiáticos entre outros da cidade e do
campo. Ou seja, o capitalismo racializava territórios e grupos sociais para se
reproduzir. O Documento final desta conferência intitulado “Princípios da
justiça ambiental” demonstra que a luta já nascia intersecionando vários
sistemas de opressão como raça, etnia, migrantes, povos originários e classe.
Ademais, a iniciativa criava um embrião para construção de um movimento
internacional contra a injustiça ambiental. Chavis, em prefácio do livro
organizado por Robert Bullard de 1993, alertava que a luta nos EUA faria que
os países pobres tornassem alvos (como aconteceu) desses empreendimentos
poluentes debilitando vidas, ambientes e destruindo legislações (PACHECO &
FAUSTINO, 2013) ambientais e antirracistas. O debate proposto de injustiça
ambiental colocava também questionamento aos movimentos ambientalistas
internacionais que invisibilizavam a questão racial e as múltiplas formas de
opressão no debate ambiental.
O debate do racismo ambiental expôs quais grupos humanos e territórios
poderiam ser mutilados e mortos. Assim, a produção econômica cria uma
geografia do terror (OSLENDER, 2008) para os grupos atingidos pelos seus
efeitos nefastos. Essas geografias do terror promovem uma dupla
transformação: a primeira é a disseminação de estratégias eugênicas que tem
como alvo os territórios de grupos historicamente subalternizados blindando os
segmentos hegemônicos de qualquer possibilidade de serem alvos. A segunda
transformação envolve a transmutação de territórios contaminados em
‘paisagens do medo’ (Idem). Isto provocava mudanças abruptas nas práticas
rotineiras restringindo os movimentos cotidianos dos grupos subalternizados e
racializados alvos destas ações. Gestaram-se desagregação social, processos
de precarização territorial (HAESBAERT, 2004) e mudanças intensas no
sentido do lugar fazendo com que os moradores perdessem o sentimento de
seguridade e pertencimento (OSLENDER, 2008). Este fato tem promovido
processos desterritorializadores tanto na mobilidade quanto na imobilidade
(OSLENDER, 2008; HAESBAERT, 2004) restringindo o horizonte espacial
destes moradores. As lutas por justiça ambiental e criação de mecanismos
cartográficos de denúncia buscavam visibilizar, nacional e internacionalmente,
o papel dos Estados, das grandes marcas e empresas promovendo uma
política de adoecimento e morte (MBEMBE, 2006). Solidariedade nacional e
internacional, boicotes, marchas, atos públicos, petições, estudos de impacto
ambiental são algumas das ações feitas pelos movimentos sociais que lutam
por justiça ambiental.
O debate colocou a questão racial na política de localização e distribuição
dos grupos sociais em ambientes saudáveis, dignos, com saneamento básico,
infraestrutura e livre de qualquer rejeito social. A justiça ambiental passou a se
constituir como um horizonte de luta dos movimentos sociais, pois os danos
ambientais são distribuídos e sentidos desigualmente pelos territórios e
populações. As resistências constituídas a partir destes exemplos não foram
apenas reativas, mas também, passaram a ser proativas ao questionar a
localização de empreendimentos destrutivos próximos e/ou em territórios
quilombolas, populações pobres e tradicionais como moradores de favelas e
periferias, comunidades indígenas, quebradeiras de coco, faxinalenses,
geraizeiros, comunidades de fundos de pastos, ribeirinhos, camponeses, entre
outros demais grupos.
O debate do racismo ambiental nos informa múltiplos processos de
classificação/hierarquização de grupos sociais que transcende a ideia de cor da
pele. Ele diz respeito ao etnocentrismo, às injustiças sociais e ambientais que
recaem de forma desproporcional sobre etnias, grupos racializados e
subalternizados que foram historicamente violentados pelos agentes
hegemônicos do capitalismo. Instaura-se zonas de sacrifício determinando
locais e grupos onde é legitimada a aceitabilidade da matança, isto é, uma
necropolítica (MBEMBE, 2006).
O conceito de racismo ambiental passa a ganhar estatuto acadêmico
nos 1990 articulando-se ao debate de justiça ambiental. A história do conceito
demonstra histórias de violências, mas também histórias de lutas por direitos
territoriais e coletivos. Ou seja, são sujeitos políticos se constituindo pautando
outros projetos de sociedade. São lutas contra o sistema de opressão e
exploração que os adoecem e matam. São lutas pela garantia de vidas dignas.
São lutas que evidenciam a dimensão racial do capitalismo. São lutas que
coloca o protagonismo de grupos racializados, subalternizado e invisibilizado
no enfrentamento ao capitalismo diante: 1- a exposição a elementos
provocadores de adoecimento e morte em ambientes; 2- a distribuição
espacialmente desigual de bens sociais e amenidades naturais; 3- a desordem
ecológica fruto da modernidade capitalista, desigualmente distribuída
vulnerabilizando grupos e comunidades subalternizadas e racializados; 4-
extração destrutiva das condições materiais, simbólicas, ontológicas e
ambientais da existência de grupos subalternizados; 5- processos realocação
de empreendimentos poluidores tendo como alvos ambientes de grupos
subalternizados; 6- remoções de grupos subalternizado pela raça, classe e
etnia para instalação de empreendimento promovendo espoliação de direitos,
expropriação da terra e de territórios; 7- processos de realocação de grupos
subalternizados em ambientes insalubres, vulneráveis e destituídos de
condições materiais, simbólicas e ontológicas para (re)produção da existência;
8- a destruição da autonomia territorial de grupos para instalação de projetos
de desenvolvimento; 9- a indignação racialmente seletiva dos danos
ambientais; 10- política administrada de morte definida pelo tempo
governamental (executivo, legislativo e judiciário) nas respostas a danos
ambientais para grupos e ambientes subalternizados; 11- destruição de
território ancestrais desestruturando modos de existências de grupos sociais
forjado por laços comunitários; 12- destruição das condições de existência das
populações locais com o estabelecimento de vegetação e animais exógenos
que tornam-se pragas nestes novos ambientes; 13- distinção no acesso rápido
e contínuo a serviços de saúde garantidores da vida.
Uma rede internacional criada por movimentos sociais em diferentes partes
do mundo com o foco na justiça ambiental se constitui como forma de
monitoramento e combate ao racismo ambiental em todo o planeta.

Referências bibliográficas:

ALVES, Jaime A. Biopólis, necrópolis, ‘blackpolis’: notas para un nuevo léxico


político en los análisis socio-espaciales del racismo. Geopauta V. 4, n.1,
2020
______________. Topografias da violência: necropoder e governamentalidade
espacial em São Paulo. Revista do Departamento de Geografia – USP,
Volume 22 (2011), p. 108-134.
ALMEIDA, Alfredo W. Agroestratégias. ACSELRAD, H. et. al (orgs.)
Cartografias sociais, lutas por terra e lutas por território. Rio de Janeiro:
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Pesquisa e
Planejamento Urbano e Regional, 2015
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004.
BUTLER, Judith. Vidas Precárias. Contemporânea – Revista de Sociologia da
UFSCar. V.1 n.1 (2011): Janeiro – Junho de 2011.
CHAVIS, B. Forward. In: BULLARD, R. (Ed.). Confronting Environmental
Racism: voices from the grassroots. Cambridge: South End Press, 1993.
FANON, Frantz. Pele Negra Máscara Branca. Salvador: EdUFBA, 2008.
HAESBAERT, Rogério. O Mito da Desterritorialização. Rio de Janeiro: Betrand
Brasil, 2004.
MBEMBE, Achille. Necropolítica. Sevilla: Fundación BIACS. 2006
________________. Crítica da razão negra. Lisboa: Antígona, 2014.
NASCIMENTO, Elisa L. Pan-Africanismo na América do Sul: emergência de
uma rebelião negra. Petrópolis: Vozes, 1981.
OSLENDER, U. “Geografías del terror”: un marco de análisis para el estudio
del terror. Scripta Nova Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales
Universidad de Barcelona. Depósito Legal: B. 21.741-98. Vol. XII, núm. 270
(144), 1 de agosto de 2008. [Nueva serie de Geo Crítica. Cuadernos Críticos
de Geografía Humana]
PACHECO, Tânia & FAUSTINO, Cristiane. A Iniludível e Desumana
Prevalência do Racismo Ambiental nos Conflitos do Mapa. PORTO, Marcelo
Firpo; PACHECO, T. & LEROY, J. P. (Org.) Injustiça ambiental e saúde no
Brasil: o Mapa de Conflitos. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2013.
PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter. A globalização da natureza e a natureza
da globalização. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In:
LANDER, Edgardo (org.) A Colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências
sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLASCO, 2000.

Você também pode gostar