Você está na página 1de 11

Alguns aspectos ideológicos do moderno sistema-mundo

GLAUBER LOPES XAVIER*

Resumo
Trata-se de uma breve reflexão sobre alguns aspectos ideológicos do moderno
sistema-mundo a partir das contribuições do estruturalismo althusseriano, do
pensamento de Immanuel Wallerstein e da história estrutural de Fernand Braudel.
Encarrega-se, ainda, de abordar aspectos ideológicos das economias
periféricas/semiperiféricas.
Palavras-chave: Ideologia; Sistema-Mundo; Aparelhos ideológicos.
Some ideological aspects of the modern world-system
Abstract
This paper is a brief reflection on some ideological aspects of the modern world-
system based on the contributions of Althusserian structuralism, Immanuel
Wallerstein's thought and Fernand Braudel's structural history. It also deals with
ideological aspects of the peripheral/semi-peripheral economies.
Key words: Ideology; World-system; Ideological apparatuses.

*
GLAUBER LOPES XAVIER é Doutor em Sociologia pela Universidade Federal de Goiás.
Realizou estágio pós doutoral no PPGSS de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade
da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Professor Adjunto da Universidade Estadual de Goiás,
atuando no PPGSS em Territórios e Expressões Culturais no Cerrado, TECCER.

125
Sobre os aparelhos ideológicos suas determinações mais estáveis e, por
interestatais isso mesmo, mais perenes.
O objetivo deste texto é o de É difícil imaginar sociedades, povos, sem
problematizar a noção althusseriana de ideologias. (WOLF, 2005). As ideologias
Aparelhos Ideológicos de Estado (AIE) e e suas variadas formas de manifestação
transpor esta noção para o campo das operam um papel inquestionavelmente
relações interestatais no mundo fundamental nas relações internacionais,
contemporâneo. Para tanto, o esforço especialmente pela inexistência de algo
analítico centrará especialmente na que esteja investido de mais poder do que
importância das instituições supraestatais. os Estados nacionais. O princípio da
No aspecto teórico, as principais bases de soberania seria, em tese, um limite às
apoio serão, além das próprias ações por parte daqueles países dotados
contribuições de Althusser, a teoria do de maior poder militar, econômico e
sistema-mundo de Immanuel Wallerstein. político no sistema mundial. (TILLY,
Parece haver uma rica possibilidade de 1996).
estudo do moderno sistema mundial com Daí a relevância da ideologia em
base na interação entre a estrutura social salvaguardar o sistema interestatal
e a longa duração enquanto perspectiva de moderno e, quando necessário, justificar
análise da história. Repousaria na possíveis intervenções que, nele, se
estrutura todo um aparato institucional, realizem em nome de determinados
erigido ao longo dos séculos, destinado à interesses. Nos parece bastante adequada
garantia da paz ou pelo menos de relações uma análise que tome por base a história
interestatais o mais harmônicas possíveis estrutural de Fernand Braudel (2009), o
e, ao mesmo tempo, a longa duração seria estruturalismo crítico de Louis Althusser
o invólucro dessa estrutura, abarcando (2008), assim como as contribuições

126
advindas da teoria do sistema-mundo de tentáculos, ao contrário da concepção
Immanuel Wallerstein (2005). foucaultiana que privilegia os
Reconhece-se, no entanto, que a última micropoderes, exercidos para além das
derivou, pelo menos em parte, da história macroinstituições.
estrutural produzida pela escola dos
No trabalho em tela há uma nítida filiação
Annales.
ao estruturalismo althusseriano. Importa
As relações interestatais encarnam a compreender, contudo, que o sistema
intersecção entre variadas formações interestatal seria uma ideologia em
econômico-sociais. É tão complexo segundo grau tendo em conta que a
quanto necessário o arcabouço jurídico- própria existência do Estado implica na
político-institucional que assegure o existência de diversificadas formas de
equilíbrio do sistema mundial operação das ideologias e seus
contemporâneo. Ele demanda respectivos aparelhos. Todavia, a
sofisticados aparelhos ideológicos, os ausência de uma esfera acima dos Estados
quais poderiam, à guisa de implica no reconhecimento de que algo
conceitualização, serem assim está ausente e diante desta ausência
denominados: Aparelhos Ideológicos estaria presente uma ideologia suprema: a
Interestatais (AII), entendendo que tais soberania dos Estados nacionais.
aparelhos engendram relações de poder
Não é fortuito que os conflitos
que demarcam o modo pelo qual funciona
interestatais quando eclodem em guerras
uma ordem global conformada por
resultam no apelo às causas ou razões
relações interestatais.
também, por sua vez, mistificadoras e/ou
O que se segue é o passo que vai do ideológicas: etnia, nação, religião,
‘em-si’ ao ‘para-si’, para a ideologia tradição, valores comuns. Estas causas ou
em sua alteridade externalização, razões encerrariam qualquer
momento sintetizado pela noção questionamento da legitimidade do
althusseriana de Aparelhos
conflito ainda que sejam mistificadoras,
Ideológicos de Estado (AIE) que
apontam a existência material da afinal “não há ideologia que não se afirme
ideologia nas práticas, rituais e distinguindo-se de outra ‘mera
instituições ideológicos. (ZIZEK, ideologia”. (ZIZEK, 1996, p. 25). Elas
1996, p. 20). tendem a ser muito mais eficazes do que
o contrário, a exemplo da dificuldade que
A leitura de ideologia a partir de Zizek as nações tem em intervir em outras
suscita uma série de questões, dentre elas nações diante da prática de genocídio. O
a impossibilidade de fuga da ideologia e, cinismo da retórica é tamanho que
portanto, a necessidade, para seu estudo, Adorno (1995, pp. 40-41) fez a seguinte
de se considerar algum elemento sátira:
primordial a partir do qual toda a
realidade social se constituiria. Tal Um dia, talvez haja negociações na
elemento, como a luta de classes, desvela assembleia das Nações Unidas para
a própria cisão que ocorre no interior do determinar se alguma nova
atrocidade enquadra-se na categoria
real na medida em que implode com as
de genocídio, se as nações têm o
ideologias que sustentam as relações de
direito de intervir, um direito que de
poder entre as classes sociais no cerne dos qualquer modo elas não querem
modos de produção. Zizek aponta, ainda, exercer, e se diante da dificuldade
para a relevância do Estado na concepção imprevista de empregá-lo na prática,
althusseriana, ou seja, toda ideologia todo o conceito de genocídio não
deveria ser pensada a partir de seus deveria ser eliminado dos estatutos.

127
Logo depois, haverá manchetes nas oriundos do campo das chamadas
páginas internas, em jargão ciências humanas.
jornalístico: Programa de genocídio
do Turquestão Oriental quase Por meio destes conhecimentos deu-se
completo. fundamental reverberação de alguns
ideais intrínsecos aos projetos de
Os AII forneceriam suporte aos interesses modernização e de desenvolvimento das
econômicos, culturais e políticos de sociedades periféricas. Ainda que as
alguns países e de seus aliados, ideias e as ideologias tenham sofrido
recorrendo, para tanto, ao apoio de alterações ao sabor das circunstâncias,
instituições localizadas “fora” dos entende-se que na esteira dos estudos
próprios Estados, ainda que de alguma promovidos com base na análise de
maneira a eles vinculadas, tais como sistemas-mundo, tais elaborações
organizações não governamentais, think vinculam-se à longa duração (longue
tanks, igrejas, empresas e bancos. durée).
Considere-se, ademais, o arcabouço
institucional erigido no pós-segunda Com efeito, independentemente da
guerra mundial, o qual reconhecemos formação econômico-social, a
como fundamental para a demarcação de propriedade privada, um dos pilares do
poder por parte, principalmente, dos modo de produção capitalista - senão o de
Estados Unidos. maior importância - tem perdurado desde
por volta do século XVI. Ela não foi
Desse arcabouço fazem parte o Fundo abolida, com exceção, é claro, das
Monetário Internacional, o Banco experiências comunistas. Nos demais
Mundial, a Organização do Tratado do casos, sua importância estrutural
Atlântico Norte (OTAN) e o Acordo ultrapassou as crises e ainda que tenha
Geral de Tarifas e Comércio (GATT). encontrado opositores, não ruiu.
Inegavelmente tais organismos e acordos Pelo contrário, foi compatibilizada por
destinaram-se à conformação de um algumas concessões, como a partilha da
arranjo interestatal e supraestatal de renda nacional, e criação de alguns
poder, dotando o sistema-mundo de direitos que contemplassem as demandas
regras e pactuações indispensáveis ao das camadas sociais desprivilegiadas. Ao
projeto de hegemonia perseguido pelos mesmo tempo, garantiu para si a
EUA. edificação de um aparelho estatal, cuja
tarefa coercitiva e cujos instrumentos
Conforme elucidado por Wallerstein promotores de coesão social tornaram-se
(2005, 2007), esse projeto de poder indispensáveis à medida em que
consistiu a um só tempo na produção de estreitava a relação de interdependência
uma realidade material e na edificação de entre o capital e o poder, entre o dinheiro
um programa epistemológico. O segundo e as armas (ARRIGHI, 1996).
– diga-se de passagem – foi fundamental
na empreitada europeia de colonização e Em termos científicos, a propriedade
de demarcação de seu domínio territorial, privada – a sua existência propriamente
o qual fora, também, cultural e dita – foi assegurada em dois campos:
ideológico. Atesta a relevância primeiro, no direito moderno, cujos
contemporaneamente exercida por ele o códigos tornaram-na uma garantia
papel a que se prestam os conhecimentos primordial; segundo, na economia
engendrados no âmbito da ciência política, cuja prática científica teve por
econômica, mas também aqueles resultado a autonomização da esfera do

128
mercado. Esta vinculação entre a que participavam da produção global de
superestrutura e a infraestrutura é um valor, seja por meio da remessa de bens
aspecto crucial na explicação dos primários, seja pela apropriação, por parte
sistemas sociais de produção. do capital estrangeiro, do valor produzido
pela força de trabalho nestas economias.
No cerne do pensamento marxista, (MARINI, 2000; DOS SANTOS, 2015).
propriedade privada e divisão do trabalho
dão origem às ideologias que passam a A condição estrutural de dependência
sustentar o modo de produção capitalista. daqueles países que faziam parte do então
Com base nesses elementos torna-se chamado terceiro mundo teve como
possível a exploração do trabalho característica a submissão político-
alienado e o Estado, por sua vez, é dotado ideológica aos países do então chamado
de um caráter singular em nome dos primeiro mundo. Especialmente no caso
interesses burgueses. “A existência do latino-americano, um importante canal de
Estado como um corpo estranho, que imposição de valores e disseminação de
submete a sociedade ao seu controle, práticas em matéria de política econômica
impondo a sua ordem, é um sintoma da foram os empréstimos concedidos por
alienação, do estranhamento [...]” fundos internacionais, mormente pelo
(KONDER, 2002, p. 31). Fundo Monetário Internacional ao longo
da década de 1980, circunstância histórica
Depreende-se que o modo de produção marcada pelo profundo endividamento
capitalista possui em seu substrato um das economias periféricas. (BORON,
ordenamento jurídico orientado aos 2002).
valores e interesses burgueses. Com isto,
todo o aparato legal do Estado se presta à Outro canal talvez mais sutil de
reprodução da sociedade capitalista, propagação da ideologia ocidental tenha
garantindo essencialmente a divisão das sido a tecnologia, cujas inovações
classes sociais e o modelo de produção e experimentadas nas últimas décadas
acumulação de valores de troca, isto é, de alteraram substancialmente os métodos
mercadorias. “A distorção ideológica de produção, estabelecendo uma nova
derivaria, assim, da fragmentação da divisão social e sexual do trabalho, e/ou
comunidade humana, do fato de os modificaram as relações sociais
homens não atuarem juntos [...] Os seres cotidianas. Em ambos os casos a ciência,
humanos não podem se reconhecer investida de poder, transportou para a
coletivamente, de maneira imediata, no periferia um modo de organização das
que fazem.” (KONDER, 2002, p. 41). pessoas e das coisas e com base nos quais
fomentou-se estilos de sociedades
Sobre a periferia/semiperiferia e a tipificadas como modernas. Grosso
ideologia do “progresso” modo, emergiram as denominadas
“sociedades burocráticas de consumo
A teoria da dependência, forjada com
dirigido” nos dizeres de Henri Lefebvre
base na experiência do
(1968).
subdesenvolvimento compartilhado pelas
economias periféricas, visou É importante observar que como o
compreender o modelo ou padrão de conceito de ideologia comporta várias
acumulação que vicejava em seus definições, a própria compreensão de que
territórios. Buscou apreender formações a ciência, em sua instrumentalização,
econômico-sociais bastante peculiares e reverbera determinada ideologia assume
que não comportavam os traços um sentido distinto da concepção original
constitutivos das economias centrais, mas do conceito segundo Marx. Não é

129
propósito desse trabalho, mas tal explicação fornecida para o fenômeno do
compreensão da ideologia teve como imperialismo com base na transferência
desdobramento, por um lado, na de valor.
sociologia do conhecimento, sendo
Mannheim um importante nome, bem A partir do século XIX e com a maior
como a Escola de Frankfurt em sua crítica integração dos mercados, a economia
da razão instrumental. (KONDER, 2002). internacional assumirá definitivamente o
liberalismo como prática comercial.
Com a chamada democratização ou Destinado sobretudo aos países
massificação do consumo se deu, “atrasados”, essa doutrina político-
também, o aumento vertiginoso dos econômica será a salvaguarda ideológica
fluxos de pessoas em todo o mundo. Se da hegemonia britânica, a qual teria
por um lado o capital demandou engendrado, segundo Gallagher e
contingentes populacionais em Robinson (1953), uma espécie de
determinadas partes do globo, por outro, “imperialismo de livre comércio”.
as imigrações clandestinas e a prática do
racismo e da xenofobia desnudaram a Como se sabe, a vigência da doutrina
incompatibilidade entre os desígnios da liberal com seus princípios de livre
acumulação de capital e sua expressão iniciativa, livre comércio e mercado
social numa escala planetária, autorregulado sucumbirá no limiar do
provocando uma polarização que é, século XX. Cabe reconhecer, contudo,
segundo Wallerstein (2007), ao mesmo que já no último quartel do século XIX
tempo política, social e cultural. tais premissas haviam sido contestadas
pelas práticas protecionistas e a formação
O movimento contraditório que ocorre de grandes monopólios em países que
entre a circulação das mercadorias e o tardiamente lograram o desenvolvimento
drama humanitário global contemporâneo de seus respectivos capitalismos, como a
expressa o funcionamento disruptivo da Alemanha e o Japão.
acumulação de capital, cujas crises são
reflexos da relação assimétrica entre É, contudo, apenas no contexto do pós-
distintas formações sociais, portanto entre segunda guerra mundial que os países
suas respectivas forças produtivas e suas periféricos tomarão para si a árdua tarefa
relações sociais de produção. Com efeito, de promoção do progresso, leia-se:
segundo Wallerstein (2001, p. 68): “o construção de suas bases industriais e
racismo foi o modo como vários acelerada urbanização. Passa a ter
segmentos da força de trabalho foram vigência a inabalável “ideologia do
obrigados a se relacionar uns com os progresso”, em parte propalada pelas
outros no interior de uma mesma estrutura burguesias nacionais, em parte
econômica.” preconizada pela política externa norte-
americana a fim de popularizar as
O fracionamento espacial da produção, as supostas maravilhas do capitalismo e
forças de atração e repulsão de concomitantemente disseminar uma
trabalhadores e os distintos padrões de inesgotável propaganda anticomunista.
acumulação correspondem à determinada
dinâmica de produção mundial de valor, A obra “The stages of economic growth”,
sendo que as relações interestatais de Walt Rostow, publicada em 1959 pode
consistem em última instância na ser considerada um manifesto-síntese da
repartição e apropriação da mais-valia “ideologia do progresso” destinada aos
global. Eis a principal contribuição da países subdesenvolvidos. Reúne as etapas
teoria marxista da dependência: a que, a rigor, deveriam ser trilhadas para

130
que fosse alcançada uma sociedade de tecnológicas direcionadas à indústria. À
consumo de massa. Trata-se de uma prática comercial será atribuída a
concepção evolucionista acerca dos suavidade na conduta dos indivíduos e
processos históricos, desprezando para assim o mercado governará os homens e
tanto qualquer abordagem crítica em não o contrário. Em “Sobre a
relação aos rumos do modo de produção. reprodução”, à propósito da ideologia,
Althusser (2008, p. 208) registra duas
No tocante ao sistema interestatal notações cruciais: 1. Toda prática existe
moderno, os seus pilares ideológicos por meio de e sob uma ideologia; 2. Toda
remetem inicialmente à paz de Westfália, ideologia existe pelo sujeito e para os
de 1648, por meio da qual se deu a sujeitos.
emergência do sistema de Estados
europeus. Remetem, ainda, ao Tratado de Com base nestas notações, podemos
Viena, de 1815, o qual selou o domínio afirmar que: a) há uma ideologia do modo
britânico face às pretensões geopolíticas de produção capitalista, esta ideologia é
da França sob Napoleão. E, finalmente, a regida pelo chamado mercado. b) como
constituição da ordem pós-revolução de decorrência da primeira afirmação, as leis
1848, marcada pelo centrismo liberal; de mercado é que explicam o
esta que, segundo Wallerstein, tratou-se funcionamento da sociedade capitalista e
da geocultura dominante do sistema elas encontram, na ciência econômica, o
mundial até 1968 quando irromperam veículo de suas ideologias travestidas de
movimentos revolucionários em várias ideias científicas.
partes do globo. Podemos apresentar a conjunção entre
estrutura e prática, fornecendo, para
É curioso observar, contudo, que mesmo
efeitos comparativos, dois exemplos que
sob a vigência de alguns traços do ideário
ilustram sociedades distintas, uma
liberal e os apelos ao livre comércio, por
considerada primitiva e outra complexa.
exemplo, sempre voltam à baila o
Tomaremos de empréstimo a exposição
nacionalismo e a defesa de políticas de
que o antropólogo Claude Lévi-Strauss,
proteção às indústrias nacionais.
importante nome do estruturalismo, fez
Robinson (1979) tinha bastante razão ao
dos povos da Melanésia. Ao abordar a
afirmar que a natureza da Economia deve
“razão econômica” investida na
ser buscada no nacionalismo. É fruto do
elasticidade do rendimento da produção
processo dialético da acumulação a
agrícola destes povos, Lévi-Strauss
defesa, ora das iniciativas locais, ora dos
(2017) registrou que a produção em
esforços globalizantes. Esse aparente
abundância se destinava às exibições de
paradoxo apenas manifesta a permanente
prestígio e trocas cerimoniais.
colisão de interesses de determinados
grupos sem impingir, no entanto, Em lado oposto, e contrariando qualquer
qualquer ameaça ao sistema interestatal. princípio de bom senso e de humanidade,
sabe-se que durante a grave crise de 1929
Os AII e o moderno sistema-mundo uma das medidas tomadas a fim de conter
É no comércio, na liberdade de seu a queda dos preços de alguns produtos, a
emprego, que o sistema interestatal exemplo do café brasileiro, consistiu na
moderno encontrará seu porto seguro. Ao queima de estoques. Tal medida tratou-se
comércio será vinculada a paz e a de um expediente que, embora adequado
civilização dos costumes. Ele fornecerá o às leis de mercado, subvertia
substrato ideológico do progresso, mas integralmente a necessidade coletiva por
também as próprias inovações alimento.

131
No primeiro caso, o que dita as regras da motivações dos agentes são convertidas
conduta social são as carências coletivas em pontos da curva e quaisquer desvios
e os dispositivos da cultura. No segundo, são, no devido prazo, perfeitamente
as práticas são subjugadas às expectativas ajustáveis. Nestes termos, a matemática,
por lucros e qualquer pendor coletivista ao lado da verdade e do progresso,
ou humanitário é problema da benfazeja encarnaria o terceiro fantasma que
ação do filantropo ou, quando sob grave assombra a economia e faria regozijar,
crise social, dos departamentos de dos Estados Unidos à África do Sul, da
assistência pública dos governos. China ao Uruguai, os apologetas do
Ademais de tal feito, no segundo caso, mercado (HAGGE, 1995).
tanto para a decisão econômica tomada,
O centro difusor destas ideias,
quanto para a solução da miséria que dela
pretensamente verdadeiras e, por isso,
advém, quando não há tentativa de
salvaguardas para o progresso, foram os
minorá-la, recorre-se à determinados
Estados Unidos, com o que acabaram se
agrupamentos de conhecimento a que se
convertendo em modelo mundial de
atribuem o estatuto de ciências. E, assim,
política e sociedade, pelo menos assim
a trama ideológica está completa e, com
pretenderam desde que assumiram a
ela, o circuito de reprodução das relações
condição de maior economia do globo.
sociais de produção da sociedade
Visaram, com isto, impor suas regras em
capitalista.
matéria de ciência, de cultura e de
A aparente não-ideológica teoria organização política, o que tem se dado
econômica sobre a qual versam os não apenas por meios violentos, mas
modelos econômicos dos liberais, uma principalmente por mecanismos
vez que desprovidas de qualquer ideológicos bastante sofisticados. É
argumentação política e calcadas na ação preciso compreender que “na verdade, a
do indivíduo – ou melhor, do agente – ideologia não é ilusão nem superstição
torna-se pedra de toque da ideologia de religiosa de indivíduos mal orientados,
mercado, fundamentada no auto interesse, mas uma forma específica de consciência
de onde se extrai sua extraordinária social, materialmente ancorada e
importância e sua generalização nas sustentada.” (MÉSZÁROS, 2014, p. 65).
economias capitalistas da segunda metade
Tomemos a ciência dedicada ao estudo da
do século XX.
economia-mundo, a chamada economia
É em termos de curvas com base em internacional. Não por acaso os manuais
propensões tendendo ao equilíbrio geral trazem, na sessão dedicada às teorias do
que tais modelos são desenhados e é em comércio internacional, o famoso modelo
nome deles que os últimos laços de ricardiano das vantagens comparativas e
solidariedade social são desatados, seus não menos reconhecidos trade-offs.
desestruturando formas comunitárias de Nos manuais tudo se passa como se àquilo
vida. É claro que estas mudanças se que determinado país produz, como
deram no decurso de praticamente quatro produz, e para quem produz, fosse reflexo
séculos, conforme mostra Polanyi (2000), de uma decisão racional dos agentes,
até que emergisse o capitalismo industrial visando promover o uso mais eficiente
moderno e se desse a completa conversão dos recursos dada uma certa dotação de
da natureza e dos homens em fatores.
mercadorias.
À exceção da abordagem dada pela
Dificilmente a ciência encontraria álibi economia política internacional,
melhor para suas motivações, dado que as frequentemente estudada nos cursos de

132
relações internacionais, a dimensão do filantrópicas, como a Fundação Ford e a
poder é absolutamente desconsiderada, Fundação Rockefeller, promovem, desde
dando lugar às dimensões geográfica e o início do século XX, projetos nas áreas
populacional. Uma teoria do comércio de saúde pública, cultura, arte e educação
internacional é pouco aderente à realidade em vários países subdesenvolvidos.
se vazia dos aspectos geopolíticos que
envolvem as relações interestatais. Com os investimentos, o comércio e as
Porém, bastante útil se o seu objetivo é finanças também afluem as ideias e suas
inculcar que as coisas devam ser como ideologias, o modelo americano de
são e não diferentes. organização social e sua economia de
mercado, a benevolência filantrópica e as
Quanto a isso os manuais cumprem bem estratégias geopolíticas e geoculturais do
o seu papel e as grandes editoras que os assim chamado centro hegemônico senão
produzem são apenas uma etapa de um que “la economia del mundo capitalista
processo bem mais amplo e complexo, necesita de los estados, necessita del
cujo limite é a reprodução de um sistema interestatal y necesita de la
paradigma do conhecimento e, no bojo aparición periódica de poderes
dessa reprodução de conhecimento, a hegemónicos” (WALLERSTEIN, 2005,
reprodução das relações sociais de p. 85). Nos dizeres de Joan Robinson,
produção numa escala mundial. Tais uma antimarxista insuspeita, e conforme
editoras e as universidades, as parcerias o contexto de sua obra: “É verdade que a
internacionais que promovem, economia internacional tem mostrado,
intercambiando ideias, modelos, nos tempos atuais, uma grande
categorias e conceitos, fomentam – quantidade de benevolência, mas ela é
também - os AII e suas políticas. sempre justificada na base de um
interesse nacional” (ROBINSON, 1979,
Deve-se reconhecer, contudo, que,
p. 106).
especialmente no campo das ciências
sociais e das humanidades, não raro as A ideologia do sistema-mundo
Universidades tem sido palco de contemporâneo
resistências, o que tem se dado tanto a
partir da elaboração e difusão de um O fato é que os interesses nacionais das
conhecimento crítico quanto por meio do economias centrais prevalecem diante dos
seu imbricamento à sociedade civil, interesses das economias periféricas e
fomentando debates e contribuindo com semiperiféricas, cujos Estados-nacionais
movimentos sociais ligados às mais não são providos da mesma capacidade
diversas pautas. financeira e militar, padecendo daquilo
que Jaime Osório nominou de
No que concernem as ideias defendidas “subsoberania”. Com isto, não existe tal
no interior dos AII, elas podem oscilar coisa como a luta por soberania por parte
conforme os ventos da economia-mundo das classes dominantes nestes países,
e as circunstâncias políticas. Assim, a considerando que a subsoberania é
exemplo das think tanks, existem aquelas produto da forma heterógena que o
que disseminam o ideário liberal numa capitalismo assume no sistema-mundo.
perspectiva mais integracionista, Exatamente por essa razão, a revolução
enquanto outras advogam o nacionalismo torna-se uma necessidade permanente no
e o livre mercado, como a The Heritage Estado dependente (OSÓRIO, 2020).
Foundation, a qual tem destacado papel
nos EUA desde os anos Reagan. Além das Tal revolução, ou pelo menos seus
think tanks, grandes instituições princípios, teriam que ser cuidadosa e

133
estrategicamente engendrados, pelo rearranjo político-institucional desse
comportariam a adoção de uma sistema.
unidisciplinaridade1 enquanto modo de
Isto significa que está aberta a via para
conhecimento, e seria orientada segundo
uma novo sistema-mundo. Será ele
os movimentos anti-sistêmicos. Faria
marcado pela hegemonia chinesa, a qual
contraposição às formas ideológicas
seria sucedânea das três hegemonias do
assumidas pelo neoliberalismo,
capitalismo histórico (Países Baixos,
especialmente nos países periféricos e
Inglaterra e Estados Unidos) segundo
semiperiféricos. Alguns acontecimentos
Arrighi (1996)? Em todo caso, e a
que se deram no início do século XXI e
despeito das dificuldades, é bastante
tiveram lugar nestes países apontaram
válida a missiva de Wallerstein (2005, p.
alguma reorientação política.
122): “Pero nos ofrecen, individual y
colectivamente, la posibilidad de la
Em alguns casos, como na Venezuela e na creación, o al menos de contribuir a la
Bolívia, isto se deu com maior ímpeto, creación de algo que pueda satisfacer más
ensejando maior atuação do Estado em plenamente nuestras posibilidades
setores econômicos estratégicos. Noutros, colectivas”.
como no Brasil e na Argentina, essa
reorientação apenas colocou um relativo Até aqui o que visualizamos é a
freio nas reformas neoliberais, sem, no inequívoca derrocada do poder norte-
entanto, promover rupturas com as americano, as graves consequências da
políticas econômicas desenhadas desde o crise econômica de 2008, o paulatino
chamado Consenso de Washington. Em poder econômico e político da China,
todos eles, contudo, os ventos da cujos gastos militares têm sido crescentes,
globalização se mostraram com menor ademais da preeminência de debates
vigor e socialmente contestáveis por uma públicos em variadas partes do globo em
série de lutas advindas especialmente de torno de questões candentes de nossa
grupos sociais historicamente alijados de época, tais como a crise climática, a
direitos. destruição dos recursos naturais numa
velocidade sem precedentes e a
emancipação de grupos sociais
Tal movimento parece tratar-se de um
minoritários. Somem-se a estas pautas o
sintoma do esgotamento dos fundamentos
debate, não menos relevante, sobre o
ideológicos do sistema-mundo
racismo na sociedade norte-americana e a
contemporâneo, pelo menos daqueles que
grave crise migratória nos países
constituem suas bases hegemônicas. Com
europeus.
ele também emerge com toda força o
conservadorismo e, em determinados Tais questões, podemos inferir, tem
casos, agremiações políticas com traços conformado o arcabouço ideológico do
fascistas. Com efeito, a ascensão sistema-mundo contemporâneo, ditando,
econômica da China, mas também da em alguma medida, os rumos da
Índia, o arrefecimento do poder norte- geopolítica, das empresas e dos governos.
americano, a crise da União Europeia e as De algum modo, os AII têm assimilado e
insurgências populares nos países árabes, propugnado as pautas do meio ambiente,
inevitavelmente serão acompanhados dos direitos humanos, dentre outras, mais
1
Segundo Wallerstein (2005, p. 138-139): “La distinguir a las diferentes disciplinas, y que por el
unidisciplinariedad hace referencia a la creencia contrario, todo el trabajo deberia ser condiderado
de que por lo menos en las ciencias sociales no parte de una única disciplina, a veces denominada
existen hoy suficientes motivos intelectuales para ciencias sociales históricas.”

134
com o propósito de escamotear sua LÉVI-STRAUSS, C. Antropologia estrutural
ofensiva sobre os trabalhadores e os dois. São Paulo: Ubu Editora, 2017.
recursos naturais em países periféricos do MARINI, R. M. O ciclo do capital na economia
que propriamente garantirem a sua dependente. In: Ferreira, C; Osório, J; Luce, M.
(orgs.). Padrão de reprodução do capital:
defesa. Tratando-se de pautas universais,
contribuições da teoria marxista da dependência.
ao menos no plano das aparências, daí o São Paulo: Boitempo, 2012. p. 21-35.
seu caráter fundamentalmente ideológico
MARINI, Ruy Mauro. Dialética da
e altamente necessário às burguesias tanto dependência: uma antologia da obra de Ruy
dos países ricos quanto dos países pobres Mauro Marini. Organização de Emir Sader.
ou, eufemisticamente/ideologicamente, Petrópolis, RJ: Vozes; Buenos Aires: CLACSO,
daqueles em vias de desenvolvimento. 2000.
MÉSZÁROS, István. O poder da ideologia. São
Paulo: Boitempo, 2014.
Referências
OSÓRIO, J. Sobre o Estado, o poder político e o
ADORNO, T. Mensagens numa garrafa. In: Estado dependente. In: Santos, R; Villarreal, M;
Theodor Adorno [et. al.]. Slavoj Zizek (org.). Um Pitillo, J. C. América Latina na encruzilhada:
mapa da ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto, lawfare, golpes e luta de classes. São Paulo, SP:
1996. Autonomia Literária, 2020. p. 38-65.
ALTHUSSER, L. Sobre a reprodução. 2ª ed. POLANYI, K. A grande transformação: as
Petrópolis, RJ: Vozes, 2008. origens da nossa época. Rio de Janeiro: Campus,
ARRIGHI, G. O longo século XX: dinheiro, 2000.
poder e as origens de nosso tempo. Rio de Janeiro: ROBINSON, J. Filosofia econômica. Rio de
Contraponto; São Paulo: Editora UNESP, 1996. Janeiro: Zahar Editores, 1979.
BORON, A. Estado, capitalismo e democracia ROSTOW, W. Etapas do desenvolvimento
na América Latina. São Paulo, SP: Paz e Terra, econômico. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1961.
2002.
TILLY, C. Coerção, capital e estados europeus.
BRAUDEL, F. Civilização material, economia e São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo,
capitalismo: séculos XV-XVIII. O tempo do 1996.
mundo. 2ª ed. São Paulo: Editora WMF Martins
Fontes, 2009. Volume 3. WALLERSTEIN, I. O universalismo europeu: a
retórica do poder. São Paulo: Boitempo, 2007.
DOS SANTOS, Theotonio. Teoria da
dependência: balanço e prespectivas. Obras WALLERSTEIN, I. Análisis de sistemas-
escolhidas, Vol. 1. Florianópolis: Insular, 2015. mundo: una introducción. México: Siglo XXI,
2005.
GALLAGHER, J.; ROBINSON, R. The
imperialism of free trade. The Economic History WALLERSTEIN, I. Capitalismo histórico e
Review, New Series, Vol. 6, No. 1, p. 1-15, 1953. civilização capitalista. Rio de Janeiro:
Contraponto, 2001.
HAGGE, W. A agonia de Athena: razão x
história no pensamento econômico clássico. WOLF, E. A Europa e os povos sem história.
1995. 324 f. Tese (Doutorado). Instituto de São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo,
Economia Industrial. Universidade Federal do Rio 2005.
de Janeiro, Rio de Janeiro,1995. ZIZEK, Slavoj. O espectro da ideologia. In:
KONDER, L. A questão da ideologia. São Paulo: Theodor Adorno [et. al.]. Slavoj Zizek (org.). Um
Companhia das Letras, 2002. mapa da ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto,
1996.
LEFEBVRE, H. La vie quotidienne dans le
monde moderne. Paris: Gallimard, 1968.
Recebido em 2021-10-05
Publicado em 2022-07-01

135

Você também pode gostar