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CESSÃO FINANCEIRA (“FACTORING”)

ENGRÁCIA ANTUNES, insere o contrato de cessão financeira na enorme mole


de contratos de crédito que são abrangidos pela categoria de contratos bancários,
colocando-os por sua vez na classe dos contratos normativamente empresariais.

Dizem-se contratos normativamente empresariais (também ditos


“necessariamente” empresariais) aquele conjunto de contratos típicos em que a empresa
surge como pressuposto normativo ou necessário do próprio tipo legal, ou seja, em que
o legislador elevou a empresa a requisito ou elemento constitutivo da própria “facti-
species” normativa do contrato em questão.

Os critérios clássicos da comercialidade encontram-se hoje postos em causa,


dado que os conceitos-chave centenários em que assentam – “ato de comércio” e
“comerciante” -, forjados para realidades económicas que distam de nós em mais de um
século e de há muito ultrapassadas, deixaram de conseguir retratar fielmente o universo
do Direito Comercial atual. Ora, este anacronismo dos critérios tradicionais da
mercantilidade não poderia deixar de se projetar também, e muito em particular,
naquele que constitui o primordial tipo de ato jurídico-comercial (“lato sensu”) – o
contrato comercial.

Relativamente à categoria dos contratos comercias “objetivos”, o elenco legal


previsto no Código Comercial de 1888, decorrido mais de um século sobre a sua
promulgação, representa hoje essencialmente uma venerável relíquia do passado,
totalmente incapaz de refletir a riqueza e complexidade do universo da contratação
mercantil na atualidade.1

Para tanto bastará recordar, entre os muitos fundamentos dessa desatualização,


que mais de metade das normas daquele elenco legal centenário foram revogados (dos
originários 389 preceitos, apenas subsistem hoje em vigor cerca de 151), que os tipos
contratuais mais relevantes nele previstos foram entretanto objeto de uma regulação
autónoma extremamente densa e complexa (é o caso do contrato de sociedade, dos

1
Esta vicissitude, aliás, não é um exclusivo lusitano, afetando também os elencos legais
previstos em outros Códigos europeus congéneres: assim, para o direito espanhol, a doutrina enfatiza
igualmente “a inadequação à realidade do tráfico atual de grande parte dos contratos contemplados no
Código Comercial vigente”.
contratos bancários e dos contratos de bolsa), e, sobretudo, que ele submergiu
completamente ante a massa verdadeiramente aluvional de novos contratos comerciais
progressivamente forjados na prática dos “mercatore” ou consagrados em legislação
mercantil extravagante (v.g. contratos de agência, concessão comercial, cessão
financeira, locação financeira, franquia, forfaiting, engineering, merchandising,
countertrade, know-how, e um imenso “et caetera”.

Denomina-se de cessão financeira – correntemente conhecido por “factoring” –


o contrato pelo qual uma das partes (cedente financeiro ou aderente) cede ou se obriga
a ceder a outra (cessionário financeiro ou “factor”), mediante remuneração, a
totalidade ou parte dos créditos de curto prazo de que é titular sobre um ou mais
terceiros (devedor cedido).

Tal como a locação, a cessão financeira é um mecanismo jurídico de


financiamento bancário extremamente divulgado, já que, pese embora alguns
inconvenientes (designadamente, os custos inerentes às comissões de cobrança e
garantia e a perda de autonomia da gestão financeira e comercial do aderente), apresenta
algumas importantes vantagens para o aderente, desempenhando simultaneamente uma
função de financiamento (ao permitir a transformação imediata de créditos em fundos
líquidos), de segurança (mormente no “factoring” próprio ou sem recurso, ao permitir a
transferência para o “factor” do risco do incumprimento ou insolvência dos devedores) e
de simplificação (libertando-o de tarefas e custos acessórios relacionados com a gestão e
cobrança dos créditos).2

O contrato de cessão financeira é um contrato legalmente atípico, embora


nominado e socialmente típico.3 Na verdade, o legislador português, no âmbito da
disciplina das chamadas sociedades de “factoring” prevista no DL n.º 179/95, de 18 de
julho, limitou-se, outrossim que atribuir-lhe um “nomen iuris”, a delimitar
genericamente o objeto (mediante a definição de atividade de cessão financeira ou
“factoring”: cf. art. 2.º, n.º 1) e a estabelecer alguns aspetos mínimos de regime jurídico
daquele contrato (arts. 7.º e 8.º).

2
Diferentemente, embora vizinho, é o chamado “confirming”, negócio atípico mediante o qual
uma instituição bancária ou financeira especializada providencia um serviço consistente na gestão do
pagamento das dívidas de um empresário perante os respetivos fornecedores.
3
Qualificando-o como um contrato atípico misto, vide o Ac. RL de 27-5-2001, Salvador da
Costa.
Conquanto assente sobre a figura geral da cessão de créditos – cujas regras lhe
são, em princípio, supletivamente aplicáveis (arts. 577.º e segs. CC) 4 -, este contrato
exibe características distintivas próprias: no essencial, encontramo-nos
predominantemente diante de um contrato-quadro¸ celebrado entre um banco ou
instituição creditícia especializada (sociedade de “factoring”: cf. arts. 3.º, h) e 4.º, n.º 1,
b) de RGIC) e uma empresa, que regula e baliza a celebração futura de uma
multiplicidade de contratos individuais de cessão de créditos entre cedente de
cessionário financeiros.5 A cessão financeira ou “factoring” pode revestir diferentes
modalidades: fala-se assim em cessão financeira doméstica ou internacional (consoante
o aderente se obriga a ceder ao “factor” créditos decorrentes de contratos celebrados
com um sujeito do mesmo ou de outro Estado) 6, incompleta ou completa (também
designada “maturity” e “conventional factoring”, consoante o “factor” apenas se dispõe
a prestar ao aderente os seus serviços de cobrança e gestão de créditos, ou também um
serviço de financiamento, concedendo-lhe antecipações sobre o valor nominal dos
créditos cedidos), própria ou imprópria (também designada sem ou com recurso,
consoante o “factor” assume o risco de incumprimento dos devedores cedidos ou não), e
aberta ou fechada (consoante postula ou não a notificação do devedor cedido pelo
aderente). Finalmente, no que concerne ao seu regime jurídico, são múltiplos os aspetos
a considerar, que aqui não podem ser analisados exaustivamente: quanto à sua
formação, os contratos de cessão financeira devem revestir forma escrita (art. 7.º, n.º 1,
“ab initio”), consistindo caracteristicamente em contratos de adesão sujeitos ao controlo
da LCCG; quanto ao seu conteúdo, eles devem integrar a disciplina do conjunto das
relações entre o “factor” e o aderente “art. 7.º, n.º 1 in fine), de entre as quais merecem
destaque, por parte do aderente, as obrigações de exclusividade (apenas pode ter único
“factor”), de notificação (dos devedores cedidos) e de remuneração (“máxime”,
comissões de cobrança), e, por parte do “factor”, as obrigações de prestação de serviços
de cobrança, gestão de créditos e outros, de creditação em conta-corrente do aderente
dos montantes dos créditos vencidos, de antecipação de pagamentos de créditos não
vencidos (art.º 8, n.ºs 2 e 3, todos do Decreto-Lei nº. 179/95, de 18 de julho) e de
4
Atribuindo a este contrato a natureza de uma cessão de créditos, vide os Acórdãos do STJ de 1-
6-2000 (Simões Freire) e STJ, 27-4-2004 (Azevedo Ramos).
5
Em abstrato, a operação de cessão financeira pode ser estruturada segundo um modelo monista
(cessão global de créditos presentes e futuros) ou dualista (celebração de um negócio inicial pelo qual o
aderente se obriga a ceder ao “factor” os créditos de que venha a ser titular sobre certos clientes seus).
6
A crescente importância do “factoring” no seio das transações internacionais levou mesmo à
elaboração da “Convenção sobre o Factoring Internacional” de 1988, a qual, no essencial, contém um
conjunto de regras materiais uniformes diretamente aplicáveis ao contrato em apreço.
assunção do risco de incumprimento do devedor cedido (salvo cláusula de cessão com
recurso ou “pro solvendo”).7

O contrato de cessão financeira poderá confundir-se com o contrato de forfaiting


[contrato pelo qual uma entidade (usualmente empresa) transmite a um banco ou
instituição financeira determinados créditos pecuniários a prazo de que é titular sobre
um terceiro (geralmente, incorporados em títulos de crédito e emergentes de contratos
celebrados com este), recebendo em contrapartida uma quantia em dinheiro], no
entanto, distinguem-se porque no contrato cessão financeira o objeto é a disciplina-
quadro de um conjunto de contratos de cessão de créditos de curto prazo e não um
determinado crédito concreto de médio ou longo prazo, como sucede no forfaiting.

Apresenta-se como fonte internacional de direito a Convenção de Otawa de


1988, que regula os contratos internacionais de “factoring” e “leasing”.

7
Jurisprudência relevante: oponibilidade da compensação – ac. STJ, 6-10-1998, Fernandes de
Magalhães; cessões sucessivas do mesmo crédito, ac. STJ, 25-5-1999, Torres Paulo; natureza jurídica –
STJ, 1-5-2000, Simões Freire.

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