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Leishmania spp. causa um amplo espetro de doenças conhecidas coletivamente como leishmaniose.
Leishmania bra- ziliensis é o principal agente etiológico da leishmaniose cutânea americana (LCA) e da leish-
maniose mucocutânea. No presente estudo, desenvolvemos um modelo experimental de infeção que se
aproxima da LCA causada por L. braziliensis. Para isso, camundongos BALB/c foram infectados na derme
auricular com 105 parasitas e aspectos distintos da infeção foram avaliados. Após a inoculação, a expansão do
parasita na derme auricular foi acompanhada pelo desenvolvimento de uma lesão dérmica ulcerada, que
cicatrizou espontaneamente, como observado pela presença de uma cicatriz. A análise histológica das orelhas
infectadas mostrou a presença de um infiltrado inflamatório misto constituído por células mononucleares e
polimorfonucleares. Nos gânglios linfáticos drenados, a replicação do parasita foi detectada durante toda a
infeção. A reestimulação in vitro das células dos gânglios linfáticos de drenagem, seguida de coloração
intracelular, revelou um aumento da produção de interferão gama (IFN-v) e da frequência de células T CD4+ e
CD8+ secretoras de IFN-v. A transcrição reversa-PCR das células das orelhas e dos gânglios linfáticos de
drenagem mostrou a expressão de quimiocinas CC. O modelo dérmico de infeção por L. braziliensis aqui
apresentado é capaz de reproduzir aspectos da infeção natural, como a presença de uma lesão ulcerada, a
disseminação do parasita para áreas linfóides e o desenvolvimento de uma resposta imune do tipo Th1. Estes
resultados indicam que este modelo será útil para abordar questões relacionadas à imunidade concomitante à
reinfeção e à persistência do parasita que leva à leishmaniose mucocutânea.
5827
5828 DE MOURA ET AL. INFECT. IMMUN.
MATERIAIS E MÉTODOS
Camundongos. Camundongos BALB/c fêmeas foram obtidos do Centro de
Pesquisas Gon¸calo Moniz/Funda¸c'ao Oswaldo Cruz, onde foram mantidos em
condições livres de patógenos. Os ratos foram utilizados para experiências com 6
a
8 semanas de idade por métodos aprovados pelo Comitê de Cuidados e
Utilização de Animais do CPqGM/FIOCRUZ.
Cultura do parasita, inoculação intradérmica e medição da lesão. A cepa
MHOM/BR/01/BA788 de L. bra- ziliensis foi isolada de um paciente com
leishmaniose cutânea do estado da Bahia (nordeste do Brasil) após breves (2-4)
passagens em meio de cultura. Esse isolado foi identificado como L. braziliensis
usando PCR (12) e anticorpos monoclonais (31). As formas promastigotas foram
cultivadas em meio Schnei- der (Sigma Chemical Co., St. Louis, MO)
suplementado com 100 U/ml de penicilina, 100 µg/ml de estreptomicina, 10%
de soro fetal de vitelo inativado pelo calor (todos da Life Technologies,
Rockville, MD) e 2% de urina humana estéril. As promastigotas em fase
estacionária (105 parasitas em 10 µl de solução salina) foram inoculadas na
derme da orelha direita de ratinhos BALB/c com a mesma idade, utilizando uma
agulha de calibre 27,5. O tamanho da lesão foi monitorizado semanalmente
durante 10 semanas utilizando um calibrador digital (Thomas Scientific,
Swedesboro, NJ).
Estimativa da carga parasitária. A carga parasitária foi determinada
utilizando um ensaio quantitativo de diluição limite, tal como descrito
anteriormente (48). Resumidamente, as orelhas infectadas e os gânglios linfáticos
de drenagem retromaxilares (LN) foram excisados assepticamente às 2, 4, 6, 8 e
10 semanas após a infeção e homogeneizados em meio Schneider (Sigma
Chemical Co., St. Louis, MO). Os homogenatos foram diluídos em série em
meio S c h n e i d e r suplementado como anteriormente e semeados em placas
de 96 poços contendo meio de ágar-sangue bifásico (Novy-Nicolle-McNeal). O
número de parasitas viáveis foi determinado a partir da diluição mais elevada em
que as formas promastigotas puderam crescer após um máximo de 2 semanas de
incubação a 25°C.
Análise histológica. As orelhas infectadas foram removidas post-mortem às 5
e 9 semanas pós-infeção e fixadas em formaldeído a 10%. Após 12 a 24 horas de
fixação, os tecidos foram processados e incluídos em parafina e secções de 5 µm
de espessura foram coradas com hematoxilina e eosina e analisadas por
microscopia ótica.
Deteção de citocinas intracelulares por citometria de fluxo. Os reagentes
para a coloração de marcadores de superfície celular e citocinas intracelulares
foram adquiridos da BD Bio- sciences, San Diego, CA. Suspensões de células
únicas de LNs drenantes foram preparadas assepticamente em 2, 4, 6 e 8 semanas
após a infeção com L. braziliensis ou após injeção intradérmica de solução salina
tamponada com fosfato (PBS). As células foram suspensas em RPMI 1640
suplementado com 2 mM de L-glutamina, 100 U/ml de penicilina, 100 µg/ml de
VOL. 73, 2005 MODELO DE LEISHMANIOSE
infectados CUTÂNEA
com L. braziliensis. AMERICANA
Para investigar 5829
se havia uma
A marcação foi efectuada em 106 células durante 30 minutos em gelo num
volume de 100 µl. As células foram duplamente coradas simultaneamente com correlação entre o desenvolvimento da lesão e a replicação
CD4 (L3T4) e CD8 (53-6.7) de superfície de ratinho conjugados com do parasita, a carga parasitária foi estimada tanto no local de
isotiocianato de fluoresceína e Cy-Chrome, r e s p e t i v a m e n t e . Para a inoculação quanto nos LNs de drenagem. Na derme da orelha
coloração intracelular de citocinas, as células foram permeabilizadas com
(Fig. 2), a expansão do parasita foi observada na semana 2 e
Cytofix/Cytoperm (BD Biosciences) e incubadas com os seguintes anticorpos
anti-citocinas conjugados com ficoeritrina: para interferão gama (IFN-γ), progrediu
XMG1.2; para interleucina-4 (IL-4), BVD4-1D11; para IL-5, TRFK-5; e para
IL-10, JES5-16E3. Os controlos de isótipos utilizados foram a imunoglobulina
de rato G2b (A95-1) e a imunoglobulina de rato G2a (R35-95). Após a
coloração, as células foram fixadas em paraformaldeído a 1% e, para cada
amostra, foram analisadas 104 células. Os dados foram recolhidos e analisados
utilizando o software CELLQuest e um citómetro de fluxo FACSort (Becton
Dickinson Immunocytometry System, San Jose, CA).
Deteção de citocinas por ELISA. Para a medição da p r o d u ç ã o d e
citocinas in vitro, foram preparadas assepticamente suspensões unicelulares de
LNs de drenagem às 2, 4, 6 e 8 semanas após a infeção. As células foram
diluídas para 5 × 106 células/ml em RPMI 1640 suplementado com 2 mM L-
glutamina, 100 U/ml de penicilina, 100 µg/ml de estreptomicina, 10% de soro fetal
de vitelo (todos da Life Technologies, Rockville, MD), e 0.05 M 2-
mercaptoetanol e dispensados em placas de 96 poços com ou sem promastigotas
de L. braziliensis em fase estacionária (cinco parasitas para uma célula) ou con-
canavalina A (10 µg/ml) (Amersham Pharmacia Biotech, Piscataway, NJ). As
culturas foram incubadas a 37°C em 5% de CO2 . Os sobrenadantes foram
colhidos às 48 h e testados para IL-4 e IL-10 ou às 72 h e testados para IFN-γ.
A presença de citocinas foi determinada por um ensaio de imunoabsorção
enzimática (ELISA) utilizando kits comerciais (BD Biosciences, San Diego,
CA). A produção de citocinas das células dos gânglios linfáticos de ratinhos
injectados com PBS foi inferior ao nível de deteção d o s kits utilizados: para
IFN-γ, 55 pg/ml; para IL-4, 5,5 pg/ml; para IL-10, 3 pg/ml.
Isolamento do ARN e deteção de quimiocinas por RT-PCR. As orelhas
infectadas e os LNs drenados foram excisados 2, 4, 6 e 8 semanas após a
infeção e o ARN total foi extraído com o reagente Trizol (Invitrogen, Carlsbad,
CA), conforme especificado pelo fabricante. A síntese do cDNA de primeira
cadeia foi efectuada em 1 µg de ARN total utilizando o SuperScript III First-Str
Synthesis System para t r a n s c r i ç ã o reversa (RT)-PCR (Invitrogen,
Carlsbad, CA). O cDNA resultante foi utilizado na PCR com primers para
CCL2/proteína quimioatraente de monócitos 1 (MCP-1), CCL3/proteína
inflamatória de macrófagos 1α (MIP-1α), CCL4/MIP-1β, CCL5/ RANTES
e β-actina, conforme descrito anteriormente (47). Os produtos de amplificação
foram visualizados em géis de poliacrilamida a 6% corados com brometo de
etídio.
Análise estatística. Os dados são apresentados como médias ± erros padrão
das médias. A significância dos resultados foi calculada por um teste não
paramétrico de análise de variância de uma via (Kruskal-Wallis) usando o Prism
(GraphPad Software, San Diego, CA), e um valor de P <0,05 foi considerado
significativo.
RESULTADOS
Camundongos BALB/c inoculados com L. braziliensis na
derme da orelha desenvolvem uma lesão ulcerada. Para
estabelecer um modelo natural de leishmaniose cutânea
americana causada por L. braziliensis, os parasitas foram
inoculados na derme auricular de camundongos BALB/c. Em
experimentos preliminares, observamos que a inoculação de
105 promastigotas em fase estacionária foi capaz de induzir
lesões ulceradas na maioria dos camundongos infectados.
Após a inoculação intradérmica, o tamanho da lesão foi
examinado semanalmente durante um período de 10 semanas.
Os ratinhos infectados desenvolveram uma lesão detetável na
semana 3 (Fig. 1A). O tamanho da lesão progrediu de forma
constante e atingiu um máximo de 1 mm na semana 5.
Posteriormente, o tamanho da lesão regrediu e a cicatrização
completa da orelha foi observada na semana 9 pós-infeção.
Não se observou endurecimento da orelha ou recidivas da
lesão até 9 meses após a infeção (dados não apresentados). A
lesão dérmica observada na semana 5 era nodular e ulcerada,
com bordas elevadas e uma cratera acentuada (Fig. 1B),
semelhante à lesão dérmica observada em pacientes com
leishmaniose cutânea causada por L. braziliensis.
A carga parasitária na derme auricular difere da carga
parasitária nos LNs de drenagem de camundongos
5830 DE MOURA ET AL. INFECT. IMMUN.
DISCUSSÃO
Atualmente, os modelos experimentais para o estudo da
leishmaniose cutânea causada por L. braziliensis envolvem a
inoculação de um grande número de parasitas na pata de
camundongos (14, 22, 35). No modelo da pata, os
camundongos desenvolvem uma lesão transitória que se
resolve espontaneamente devido ao desenvolvimento de uma
forte resposta imune do tipo Th1 após a infeção (18). Numa
tentativa de reproduzir a biologia natural da transmissão de
Leishmania, Belkaid et al. estabeleceram um modelo dérmico
de infeção em que um número reduzido de promastigotas de L.
major é inoculado na derme auricular de ratinhos (5). No
presente estudo, estabelecemos um modelo semelhante usando
L. braziliensis. Após a inoculação dos parasitas na derme
auricular, camundongos BALB/c desenvolvem uma lesão
cutânea semelhante àquela desenvolvida por pacientes com
FIG. 3. Aspectos histológicos das lesões auriculares em leishmaniose cutânea americana: localizada e ulcerada, com
camundongos BALB/c após inoculação intradérmica de L. braziliensis.
Camundongos BALB/c (cinco camundongos por grupo) foram
bordas elevadas e uma cratera acentuada (23, 28),
infectados com 105 promastigotas de L. braziliensis. As orelhas foram
removidas às 5 (A e B) e 9 (C e D) semanas após a infeção e coradas
com hematoxilina e eosina. (A) Lesão ulcerada mostrando
extensa necrose fibrinoide e infiltrado inflamatório que se estende até a
epiderme. Ampliação, ×40. (B) Macrófagos parasitados são indicados
por setas finas, e células polimorfonucleares são indicadas por setas
largas. Ampliação, ×1.000. (C) A reconstituição epidérmica
VOL. 73, 2005 MODELO DE LEISHMANIOSE CUTÂNEA AMERICANA 5833
acompanha o processo de cicatrização. Ampliação, ×100. (D) Os
macrófagos são indicados por setas finas e as células epitelioides são
indicadas por setas largas. Ampliação, ×400.
5834 DE MOURA ET AL. INFECT. IMMUN.
FIG. 6. Produção de citocinas em camundongos BALB/c após inoculação intradérmica de L. braziliensis. Os camundongos foram infectados com 105
L. braziliensis
promastigotas. Às 2, 4, 6 e 8 semanas após a infeção, as células dos gânglios linfáticos drenantes foram recolhidas e estimuladas (barras sólidas) ou
não (barras abertas) com
L. braziliensis por 48 h (IL-4 e IL-10) ou 72 h (IFN-γ). Os níveis de citocinas nos sobrenadantes foram determinados por ELISA. Os dados
representam as médias e os erros padrão das médias de três experiências independentes, cada uma realizada com cinco ratos por grupo.
Em ratinhos C57BL/6 resistentes, os neutrófilos impedem o resposta imunitária do tipo Th2 e resolução parcial das lesões
crescimento de L. major e a depleção de neutrófilos exacerba a nas patas (46). Por conseguinte, é possível que os neutrófilos
infeção (41). A ligação cruzada de CD28 nos neutrófilos tenham desempenhado ativamente um papel protetor no nosso
resulta na libertação de IFN-γ que, por sua vez, restringe a modelo experimental, tal como observado em ratinhos B6
replicação do parasita nos macrófagos (50). No entanto, em infectados com L. major. No entanto, ainda temos de
ratinhos BALB/c infectados com L. major, a depleção determinar como é que esta proteção é mediada.
transitória de neutrófilos leva a uma diminuição da Em modelos experimentais de leishmaniose cutânea, a
resistência depende do desenvolvimento de uma resposta Th1
predominante que leva ao controlo do crescimento do parasita,
à cicatrização da lesão e ao desenvolvimento de imunidade
protetora (29, 40, 42). A incapacidade de montar este tipo de
resposta resulta em doença progressiva. Assim, camundongos
BALB/c são relativamente resistentes à infeção por L.
braziliensis devido à potente resposta imune Th1 que se
desenvolve após a infeção, caracterizada por altos níveis de
IFN-γ e baixos níveis de IL-4 e IL-10 (18). Utilizando o
modelo de infeção por patas, foi demonstrado que as células T
CD8+ reativas à Leishmania são encontradas em maior
número em camundongos resistentes (49). O papel das células
T CD8+ foi recentemente reexaminado no contexto da infeção
dérmica com L. major, em que o desenvolvimento da lesão foi
acompanhado pela morte do parasita na derme auricular e este
resultado foi associado à acumulação de células T CD8+ na
pele e à sua capacidade de libertar IFN-γ após estimulação
(8). No presente estudo, a infeção da derme auricular em
ratinhos levou a uma forte produção de IFN-γ, segregada por
células T CD4+ e CD8+ . A presença precoce de IFN-γ
correlacionou-se com o controlo da replicação do parasita
na derme auricular e, consequentemente, com a cicatrização da
lesão. Uma vez que não foi observada qualquer patologia
evidente, concluímos que os efeitos pró-inflamatórios do IFN-
γ foram corretamente equilibrados pela presença de IL-4, IL-5
e IL-10, que também foram detectados durante a infeção. É
importante salientar que esta resposta imunitária foi eficaz na
eliminação de parasitas da derme da orelha; no entanto, foi
observada a persistência de parasitas nos gânglios linfáticos de
drenagem.
Utilizando o modelo do pedal, mostrámos recentemente que
FIG. 7. Expressão de mRNA de quimiocinas em camundongos
esta par-
BALB/c após inoculação intra-dérmica de L. braziliensis. Os
camundongos foram infectados com 105 promastigotas de L. Uma cepa específica de L. braziliensis induz a expressão de
braziliensis. Às 2, 4, 6 e 8 semanas pós-infeção, o RNA total foi obtido CCL2/ MCP-1, CCL3/MIP-1α e CXCL1/KC em
de orelhas agrupadas (A), linfonodos drenantes (B) e camundongos camundongos BALB/c (47). CCL2/MCP-1α e
não infectados (UN). O ARN total foi utilizado em RT-PCR para a CCL3/MIP-α são potentes quimioatraentes para monócitos
amplificação de CCL2/MCP-1, CCL3/MIP1-α, CCL4-MIP1-β,
CCL5/ RANTES e β-actina. Os dados apresentados são de uma (20, 25), e sua expressão na orelha e nos LNs de drenagem de
única experiência representativa de três experiências separadas, cada camundongos infectados com L. braziliensis pode recrutar
uma efectuada com cinco ratinhos. células hospedeiras, promovendo a multiplicação do parasita e
5836
o DE MOURAde
desenvolvimento ETlesões.
AL. Mais tarde, durante a infeção, a INFECT. IMMUN.
expressão de CCL2/MCP-1 na derme da orelha pode estar
relacionada com a cicatrização da lesão, uma vez que essa
quimiocina participa da indução de atividades leishmanicidas
em macrófagos murinos (9). A expressão de CCL3/MIP-
1α, CCL4/MIP-1β e CCL5/RANTES nos LNs drenantes
pode
VOL. 73, 2005 MODELO DE LEISHMANIOSE CUTÂNEA AMERICANA 5837
AGRADECIMENTOS
Agradecemos a Manoel Barral-Netto e Maria Jania Teixeira pela
leitura crítica do manuscrito. Agradecemos a Margarida Pompeu e
Wash- ington L. C. Dos-Santos pela ajuda na análise histológica.
Este trabalho é apoiado por bolsas da FAPESB, PAPES/ FIOCRUZ
e CNPq. T.R.d.M. foi apoiado por uma bolsa do CNPq;
F.O.N. e C.I.d.O. foram apoiados por bolsas da FAPESB. A. Barral e
C. Brodskyn são investigadores sénior do CNPq e do Instituto de
Investiga¸c˜ao em Imunologia (iii).
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