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APELANTE(S)
APELADO(S)
Relatora Desembargadora NILSONI DE FREITAS CUSTODIO
Revisor Desembargador JESUINO RISSATO
Acórdão Nº 1617432
EMENTA
III - A prática de ato libidinoso contra menor de 14 (quatorze) anos de idade, comprovado o dolo de
satisfação da lascívia, configura o crime descrito no art. 217-A do CP, porquanto em casos dessa
natureza há presunção absoluta de violência, não havendo que se falar em desclassificação para o
ilícito previsto no art. 215-A, do CP.
IV - Afasta-se a avaliação desfavorável das consequências do crime, se o acervo probatório não revela
a existência de resultados que extrapolam os inerentes ao tipo.
ACÓRDÃO
RELATÓRIO
Em data que não se pode precisar, contudo durante o ano de 2018, entre os períodos matutino e
vespertino, na QR 313 [...], Samambaia/DF, o denunciado, com vontade livre e consciente, em
contexto de violência doméstica, praticou ato libidinoso diverso de conjunção carnal, com sua
sobrinha-neta M.E.F.S., nascida em 02.10.2007, à época com 10 a 11 anos de idade.
Segundo restou apurado, o denunciado, aproveitando-se do livre acesso que tinha à vítima, pois
costumava receber sua visita, praticou ato libidinoso diverso de conjunção carnal com M.
Assim, o denunciado, nas circunstâncias de tempo e local acima indicadas, valendo-se de uma ocasião
em que ficou a sós com a vítima, pediu que M. sentasse em sua cama e, em seguida, passou a mão na
vagina da criança, por cima de suas vestes.
Após o regular processamento do feito, adveio sentença (fls. 157/162) que julgou procedente a
pretensão punitiva para condenar o réu à pena de 11 (onze) anos de reclusão, em regime inicial
fechado. Foi concedido o direito de recorrer em liberdade.
A Defesa interpõe apelação por termo. (fl. 170). Em suas razões (fls. 180/197), alega que não há provas
suficientes para a condenação uma vez que ausente prova pericial para atestar a materialidade do
crime, bem como a palavra da vítima se mostra incoerente com as demais provas. Afirma que o
apelante é primário, de bons antecedentes e que a condenação por crimes tão graves não pode se
manter sem provas seguras. Sustenta que deve prevalecer o princípio in dubio pro reo, com
fundamento no inciso VII do artigo 386 do Código de Processo Penal.
Em alternativo, pede que a conduta seja desclassificada para a contravenção penal prevista no artigo 65
do Lei de Contravenções Penais.
Mantida a condenação, requer a fixação da pena-base no mínimo legal com o afastamento da valoração
desfavorável das consequências do crime. Na segunda fase, pugna pelo afastamento da agravante
prevista no artigo 61, inciso II, letra “f”, do Código Penal, e caso mantida, pede que o aumento seja na
fração de 1/6 (um sexto).
O Ministério Público, em contrarrazões, manifesta-se pelo não provimento do recurso (fls. 200/204).
É o relatório.
VOTOS
DA MATERIALIDADE E DA AUTORIA
A materialidade do delito está demonstrada pelo Relatório Multiprofissional (fls. 12/19) e pela prova
oral (fls. 53/54, 87/89 e 125/127).
Na audiência de produção antecipada de provas a vítima novamente afirmou (fls. 87/89) que o réu
passou a mão em sua vagina, por cima da roupa. Disse que costumava frequentar a casa dele e depois
do ocorrido sempre o via na rua, mas não frequentava mais sua residência. Disse que o fato ocorreu
apenas uma vez.
I.X.F., mãe da vítima, em seu depoimento judicial (fls. 126/128), narrou que foi informada pela
instituição que a menor frequentava que ela havia mudado o comportamento e narrado que o tio J.
havia passado a mão em sua vagina. Disse que o fato ocorreu apenas uma vez e procurou o Conselho
Tutelar, o qual informou que tomaria as medidas judiciais cabíveis ao caso.
O réu teve sua revelia decretada conforme decisão de fl. 123, pois devidamente intimado (fl. 106), não
compareceu em audiência.
Da análise dos autos, verifica-se que o depoimento da vítima prestado na fase inquisitorial, por meio
dos procedimentos de escuta especializada (fls. 53/54), cuja mídia consta nos autos, foi corroborado
pelas declarações prestadas por ela em Juízo. Além disso, foram confirmados pelas demais provas
colhidas sob o crivo do contraditório e da ampla defesa.
Da prova judicial, constata-se que J., utilizando-se da situação de proximidade familiar, quando a
vítima tinha entre 10 (dez) e 11 (onze) anos, passou a mão em sua vagina, por cima da roupa, para
satisfação da própria lascívia.
De acordo com o depoimento da vítima, bem como da genitora dela, a menor deixou de manter
contato com o réu e ficou amedrontada com a presença de homens por dado período.
Cumpre salientar que nos delitos contra a dignidade sexual, normalmente praticados às ocultas e sem
deixar vestígios identificáveis por exames periciais, como no caso sob exame, a palavra da vítima
possui especial relevância e pode fundamentar a condenação, principalmente quando corroborada
pelas demais provas dos autos.
Ressalte-se, ainda, que ausentes vestígios, o delito pode ser comprovado pela declaração firme da
vítima. Nesse sentido, confiram-se julgados do eg. Superior Tribunal de Justiça e desta Corte:
2. A jurisprudência desta Corte é no sentido de que, em razão das dificuldades que envolvem a
obtenção de provas de crimes contra a liberdade sexual - praticados, na maioria das vezes, longe dos
olhos de testemunhas e, normalmente, sem vestígios físicos que permitam a comprovação dos eventos
- a palavra da vítima adquire relevo diferenciado (AgRg no REsp n. 1.774.080/RS, Quinta Turma,
Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, DJe de 15/02/2019).
4. A jurisprudência pátria é assente no sentido de que, nos delitos contra a liberdade sexual, por
frequentemente não deixarem vestígios, a palavra da vítima tem valor probante diferenciado.
Precedentes.
5. Conforme orientação deste STJ, "o ato libidinoso diverso da conjunção carnal, que, ao lado desta,
caracteriza o crime de estupro, inclui toda ação atentatória contra o pudor praticada com o
propósito lascivo, seja sucedâneo da conjunção carnal ou não, evidenciando-se com o contato físico
entre o agente e a vítima durante o apontado ato voluptuoso" (AgRg REsp n. 1.154.806/RS,
Rel.Ministro Sebastião Reis Júnior, 6ª Turma, DJe 21/3/2012).
(HC 610.682/MS, Rel. Ministro RIBEIRO DANTAS, QUINTA TURMA, julgado em 20/10/2020,
DJe 22/10/2020);
6. A prática de atos libidinosos diversos da conjunção carnal contra Vítima menor de 14 (quatorze)
anos de idade, tal como ocorreu na hipótese dos autos, configura o tipo penal previsto no art. 217-A
do Código Penal, não sendo possível desclassificar a conduta para as preconizadas no art. 215-A do
mesmo Códex ou no art. 61 da Lei de Contravenção Penal.
(AgRg no AREsp 1702517/PR, Rel. Ministra LAURITA VAZ, SEXTA TURMA, julgado em
15/09/2020, DJe 29/09/2020);
Nos crimes contra a dignidade sexual, por ocorrerem geralmente às ocultas, sem a presença de
testemunhas oculares, e, por vezes, não deixarem vestígios capazes de serem identificados por exames
periciais, a palavra da vítima possui especial relevância, a qual, se harmônica e coesa com as demais
provas produzidas, é suficiente para embasar a condenação.
Com efeito, o crime de estupro de vulnerável está assim tipificado no artigo 217-A, caput, do Código
Penal:
Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos:
(Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos. (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
De acordo com a doutrina, o delito tutela os bens jurídicos da liberdade e dignidade sexual, sendo que
o dolo do agente consiste na prática de conjunção carnal ou qualquer outro ato libidinoso, para
satisfação da lascívia, com menor de 14 (quatorze) anos. Nesse delito, a violência é presumida.
No que diz respeito à contravenção penal de perturbação da tranquilidade (art. 65 da LCP), trata-se de
tipo que foi revogado pela Lei nº 14.132/2021.
A respeito do crime de importunação sexual, previsto no artigo 215-A do Código Penal, trata-se de
conduta praticada para satisfazer a própria lascívia sem o consentimento da vítima, porém não prevê
violência. É delito subsidiário, que somente se materializa se não configurado outro mais grave.
O entendimento prevalente no eg. Superior Tribunal de Justiça é de que não se aplica o dispositivo do
artigo 215-A do Código Penal a crimes sexuais praticados contra menor de 14 (quatorze) anos, em
relação aos quais há presunção absoluta de violência. Senão vejamos:
(HC 609.855/SP, Rel. Ministro RIBEIRO DANTAS, QUINTA TURMA, julgado em 23/02/2021, DJe
26/02/2021);
1. Não se verifica manifesta ilegalidade se a tipificação do delito foi devidamente fundamentada com
base nas provas colhidas nos autos, as quais indicaram a prática, por parte do paciente, de condutas
mais gravosas do que a importunação sexual, consubstanciadas em passar as mãos no corpo e nos
seios, bem como tentar colocar a mão por dentro da roupa e beijar a vítima da boca, sua filha menor
de 14 anos, com propósito lascivo, conduta que se amolda ao crime de estupro de vulnerável.
2. Nos termos da jurisprudência desta Corte Superior, o art. 215-A do CP descreve tipo penal
relacionado às condutas praticadas sem violência ou grave ameaça, não tendo aplicação nas
hipóteses referentes à prática de atos libidinosos diversos da conjunção carnal com menores de 14
anos, tendo em vista que, nesses casos, a presunção violência ou grave ameaça é absoluta,
amoldando-se ao art. 217-A do CP.
O referido entendimento também já foi objeto de manifestação por esta Corte de Justiça:
3.O crime de estupro de vulnerável consuma-se com a prática de qualquer ato libidinoso ofensivo à
dignidade sexual da vítima menor de catorze anos, sendo a violência presumida de forma absoluta
(art. 217-A, CP). Dessa forma, inviável o pleito desclassificatório para o crime de importunação
sexual (artigo 215, CP), uma vez que, para caracterização do delito menos grave, não poderia haver
violência.
1. A consumação do delito de estupro de vulnerável (art. 217-A, caput, do Código Penal) se dá com a
prática de atos libidinosos diversos da conjunção carnal com menor de 14 (quatorze) anos. 2. "O STJ
pacificou orientação quanto à impossibilidade de desclassificação da figura do estupro de vulnerável
para o art. 215-A do Código Penal, uma vez que referido tipo penal é praticado sem violência ou
grave ameaça, e o tipo penal imputado ao agravante (art. 217-A do Código Penal) inclui a presunção
absoluta de violência ou grave ameaça, por se tratar de menor de 14 anos." (AgRg no REsp
1854904/SC, Rel. Ministro RIBEIRO DANTAS, QUINTA TURMA, julgado em 20/02/2020, DJe
28/02/2020)
No caso dos autos, inviável a desclassificação da conduta, porquanto a vítima era menor de 14
(quatorze) anos de idade quando sofreu o abuso.
Diante do exposto, preservo a condenação de J.M.S. pela prática do crime de estupro de vulnerável
(art. 217-A do CP), cometidos sob a égide da Lei Maria da Penha, diante da relação de parentesco por
afinidade.
DA DOSIMETRIA
Não se olvida que os abalos decorridos de crime da natureza do examinado são sérios e indesejáveis.
Ocorre que as consequências do crime somente podem sofrer avaliação negativa quando ficar
demonstrado que a vítima sofreu abalos psicológicos que ultrapassam aqueles próprios da espécie.
Nesse sentido:
4. Para justificar o aumento da pena-base, asconsequênciasdo crime devem estar comprovadas nos
autos, não bastando a fundamentação genérica de que o crime acarretou abalo psicológico à vítima,
ínsito aos crimes dessa espécie.
3. O abalo emocional causado à ofendida é ínsito ao delito em questão, já sendo por isso mesmo
apenado de forma mais severa, e somente justifica a mácula das consequências do crime quando
gerou um prejuízo psicológico de grandes proporções, ou seja, situações extremadas, o que não foi o
caso dos autos. Valoração negativa das consequências do crime afastada.
4. A referência, de forma genérica, ao abalo psicológico suportado pela ofendida, em razão do delito,
não é suficiente para avaliar desfavoravelmente as consequências do crime, porquanto não há nos
autos contornos mais nítidos ao caso concreto a ponto de justificar uma exasperação punitiva por
esta circunstância judicial, devendo ser decotada.
(Acórdão 1354239, 07033295220208070019, Relator: ROBSON BARBOSA DE AZEVEDO, 2ª
Turma Criminal, data de julgamento: 8/7/2021, publicado no PJe: 21/7/2021. Pág.: Sem Página
Cadastrada).
No presente caso, o acervo probatório não revela a existência de abalo extremado, muito além
daquele, repita-se, totalmente indesejado, mas comum à espécie de delito em análise. A genitora da
vítima afirmou que recorreu a acompanhamento psicológico para a menor logo após o fato, mas
atualmente ela não demonstra sequelas graves. Assim, deve ser afastada a avaliação desfavorável das
consequências do crime.
Favoráveis ao réu todas as circunstâncias judiciais, fixo a pena-base no mínimo legal, 8 (oito) anos de
reclusão.
Na segunda fase, não há circunstância atenuante. Diante da circunstância agravante descrita no artigo
61, inciso II, alínea “f”, do Código Penal, que está devidamente configurada nos autos.
Com efeito, ficou demonstrado que o réu é tio-avô da vítima, a qual afirmou que ia sempre à casa
dele, o que foi confirmado pela genitora dela. I.X.
A relação próxima de parentesco e a convivência demonstram sem qualquer dúvida que o réu se
prevaleceu “de relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade, ou com violência contra a
mulher na forma da lei específica;”
No que tange ao patamar de aumento, não havendo parâmetro legal, a jurisprudência consolidou o
entendimento de que a fração adequada para redução ou aumento em razão de atenuantes ou
agravantes, será de 1/6 (um sexto) sobre a pena fixada na primeira fase, como se depreende dos
seguintes julgados:
(AgRg no HC 558.582/SP, Rel. Ministra LAURITA VAZ, SEXTA TURMA, julgado em 26/05/2020,
DJe 02/06/2020 – grifo nosso);
Para o aumento da pena na segunda fase da dosimetria, é adequada a fração de 1/6 (um sexto) da
pena-base em face da circunstância agravante.
Deste modo, reconhecida uma circunstância agravante, aplico a fração de 1/6 (um sexto) e estabeleço
a pena intermediária em 9 (nove) anos e 4 (quatro) meses de reclusão.
Na terceira fase, à míngua de causas de diminuição ou de aumento, fixo pena definitiva em 9 (nove)
anos e 4 (quatro) meses de reclusão.
A respeito do regime, deve ser iniciado o cumprimento da pena no modo inicial fechado, diante do
quantum aplicado, nos termos do artigo 33, § 2º, alínea “a”, do Código Penal.
Inviável a substituição das penas privativas de liberdade por restritivas de direitos, porquanto não
estão presentes os requisitos do artigo 44 do Código Penal.
Ante o exposto, DOU PARCIAL PROVIMENTO ao recurso, para afastar a análise desfavorável das
consequências do crime, em vista do que, reduzo a pena fixada em 11 (onze) anos de reclusão para 9
(nove) anos e 4 (quatro) meses de reclusão.
Comunique-se ao Cadastro Nacional de Condenados por ato de Improbidade Administrativa e por ato
que implique Inelegibilidade – CNCIAI, conforme Resolução nº 172, de 8 de março de 2013, do
Conselho Nacional de Justiça e Portaria Conjunta nº 60, de 9 de agosto de 2013, deste Tribunal.
É como voto.
DECISÃO