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NOVO

MENSAGENS
PORTUGUÊS 12.º ANO Célia Cameira
Alexandre Dias Pinto
Carla Cardoso
Índice geral
Unidade 2 Conto

«Famílias desavindas», de Mário de Carvalho

Educação Literária/Leitura Oralidade Escrita Gramática


6 Os semáforos e os semaforeiros Debate 11 Funções sintáticas
Os conflitos intergeracionais 8, 11
Coordenação
e subordinação
8
9 O conflito
Valor aspetual
8
Coesão textual
11

Ficha informativa
FI 1 História pessoal e história social: as duas famílias | Valor simbólico dos marcos históricos referidos 12
FI 2 A importância dos episódios e da peripécia final | A dimensão irónica 13
FI 3 Linguagem e estilo 14

15 Síntese

Unidade 3 Poetas contemporâneos

Poetas em opção

Educação Literária/Leitura Oralidade Escrita Gramática


18 Jorge de Sena
19 «Quem a tem»
20 «Sento-me à mesa»
21 «Camões dirige-se aos seus
contemporâneos»
22 «Carta a meus filhos sobre Texto de opinião 24 Funções sintáticas
os fuzilamentos de Goya» O mundo 24
contemporâneo
Coordenação
e subordinação
24
Referenciação anafórica
24

Ficha informativa
FI 1 Figurações do poeta | Arte poética 25
FI 2 Tradição literária | Representações do contemporâneo 26
FI 3 Linguagem, estilo e estrutura 27

2
Índice geral

Unidade 3 Poetas contemporâneos

Poetas em opção

Educação Literária/Leitura Oralidade Escrita Gramática


28 António Ramos Rosa
29 «A João Rui de Sousa» Apresentação oral 29
30 «Um caminho de palavras» «Traz outro amigo também»
31 «Caminhar. Habitar» (canção de Zeca Afonso)
32 «No silêncio da terra»

Ficha informativa
FI 1 Figurações do poeta | Arte poética 33
FI 2 Tradição literária | Representações do contemporâneo 34

Educação Literária/Leitura Oralidade Escrita Gramática


35 Alexandre O´Neill
36 «Autorretrato» Funções sintáticas
37 «Portugal» 38
39 «Perfilados de medo» Apresentação oral 39 Texto de opinião 40 Classes de palavras
40 «Fala!» Factos históricos Poética do autor 38

Ficha informativa
FI 1 Figurações do poeta | Arte poética | Tradição literária 41
FI 2 Representações do contemporâneo 42

Educação Literária/Leitura Oralidade Escrita Gramática


43 Herberto Helder
44 «Aos amigos» Funções sintáticas
45 «Sobre um poema» Apreciação crítica 49 44, 47, 49
46 «A paixão grega» Por falar de amor Coordenação
48 «Não sei como dizer-te» (comparação entre e subordinação
o trailer do filme 49
e o poema)

Ficha informativa
FI 1 Figurações do poeta | Arte poética 50
FI 2 Tradição literária | Representações do contemporâneo 51
FI 3 Linguagem, estilo e estrutura 52

Educação Literária/Leitura Oralidade Escrita Gramática


53 Ruy Belo Texto de opinião 56
54 «E tudo era possível» A importância
«Cinco palavras cinco pedras» da infância na formação
55
da personalidade
«Variações sobre “O jogador
56 (a partir de um vídeo
do pião”»
da Vodafone)
«Esta rua é alegre»
57 Texto de opinião 57
«Morte ao meio-dia»,
de Ruy Belo (a partir de
vídeo com declamação
de Mário Viegas)

Ficha informativa
FI 1 Figurações do poeta | Arte poética | Tradição literária | Representações do contemporâneo 58

3
Educação Literária/Leitura Oralidade Escrita Gramática
59 Luiza Neto Jorge
60 «O poema ensina a cair» Apresentação oral 64 Apreciação crítica 62 Funções sintáticas
61 «Eu, artífice» Pintura de René Magritte Poética da autora 60, 64
em comparação com Coordenação
62 «A magnólia»
a poesia da autora e subordinação
63 «Balada apócrifa»
61
Valor aspetual
61

Ficha informativa
FI 1 Figurações do poeta | Arte poética 65
FI 2 Tradição literária | Representações do contemporâneo 66

Educação Literária/Leitura Oralidade Escrita Gramática


67 Vasco Graça Moura
68 «Soneto do amor e da morte» Apresentação oral 70
69 «Soneto da poesia narrativa» Relação entre a música
e a poesia (a partir do poema
70 «gato manso das velhotas»
«Variações sobre um gato»,
71 «lamento para a língua de Vasco Graça Moura)
portuguesa»

Ficha informativa
FI 1 Figurações do poeta | Arte poética | Tradição literária 74
FI 2 Representações do contemporâneo 75
FI 3 Linguagem, estilo e estrutura 76

Educação Literária/Leitura Oralidade Escrita Gramática


77 Nuno Júdice
78 «A varanda de Julieta»
79 «Poética (variante com
construção civil)» Coordenação
80 «Pedro, lembrando Inês» e subordinação
81 «Verbo» 81

Ficha informativa
FI 1 Figurações do poeta | Arte poética | Tradição literária 82
FI 2 Representações do contemporâneo 83
FI 3 Linguagem, estilo e estrutura 84

85 Soluções

4
Conto
«Famílias desavindas»
EDUCAÇÃO LITERÁRIA
«Famílias desavindas», de Mário
de Carvalho
• História pessoal e histórica social:
as duas famílias
• Valor simbólico dos marcos históricos
referidos
• A dimensão irónica do conto
• A importância dos episódios
e da peripécia final
• Linguagem, estilo e estrutura
– o conto: unidade de ação; brevidade
narrativa; concentração de tempo
e espaço; número limitado de
personagens
– estrutura da obra
– discurso direto e indireto
– recursos expressivos

LEITURA
Textos informativos

COMPREENSÃO DO ORAL
Registos áudio e audiovisuais

EXPRESSÃO ORAL
Debate

GRAMÁTICA
Sintaxe
– funções sintáticas
– coordenação e subordinação
Semântica
– valor aspetual
– coesão textual

Amadeo de Souza-Cardoso, Arabesco Dynamico Real, Ocre Rouge Café,


Rouge, Cantante, Zig-Zag Couraceiro, Bandolim, Vibrações Metálicas
(Esplendor Mecano-Geométrico), c. 1916.
5
Mário de Carvalho,
«Famílias desavindas»
Nasceu em Lisboa em 25 de setembro de 1944.
Em 1969, licenciou-se em Direito na Faculdade de
Letras da Universidade de Lisboa. Por razões polí-
ticas esteve exilado em França e na Suécia, tendo
5 regressado a Portugal após a revolução de Abril de
1974.
Da leitura dos seus textos (contos, novelas,
romances, peças de teatro, guiões, um texto infan-
to-juvenil) sobressaem dois vetores fundamentais:
10 o uso heterodoxo da história e a atenção ao tri-
vial quotidiano, mascarado de pretensa seriedade.
A estratégia aglutinadora destas duas vertentes é,
sem dúvida, o uso da ironia e da paródia, que transformam o discurso supostamente
descritivo da realidade num vertiginoso patamar de significações transgressivas e
15 epistemologicamente estimulantes.
As obras que retratam o quotidiano sublinham esse primado do trivial, que
parece coexistir com uma seriedade raramente entrevista. Romances como Era bom
que trocássemos umas ideias sobre o assunto (1995) […] ou A arte de morrer longe
(2010) ilustram um tipo de narrativa que elimina qualquer sentimento trágico e
20 instaura uma análise desassombrada do dia a dia e das próprias técnicas romanescas,
que de tão ostentadas perdem expressividade. O mesmo se poderia dizer das várias
coletâneas de contos […].
Maria Isabel Rocheta & Serafina Martins (coord.), Conto português [séculos XIX-XXI]:
Antologia crítica, vol. 3, Porto, Caixotim, 2011, pp. 201-202.

PONTO DE PARTIDA

1. A partir do visionamento do excerto de uma notícia da SIC, «Espantalhos em Coimbra»,


discute com os teus colegas uma eventual relação entre o conto e o respetivo título –
«Famílias desavindas».

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Famílias desavindas
Os semáforos e os semaforeiros
Por uma dessas alongadas ruas do Porto, que sobe que sobe e não se acaba, há de
encontrar-se um cruzamento alto, de esquinas de azulejo, janelas de guilhotina1, telha-
dos de ardósia em escama. Faltam razões para flanar2 por esta rua, banal e comprida,
6
a não ser a curiosidade por um insólito dispositivo conhecido de poucos: os únicos
5 semáforos do mundo movidos a pedal, sobreviventes a outros que ainda funcionavam
na Guatemala, no início dos anos setenta.
No dobrar do século XIX, Gerard Letelessier, jovem engenheiro francês, fracas-
sou em Paris e em Lisboa, antes de convencer um autarca do Porto de que inventara
um semáforo moderno, operado a energia elétrica, capaz de bem ordenar o trânsito
10 de carroças de vinho, carros de bois e landós3 da sociedade. A autoridade gostou do
projeto e das garrafas de Bordéus que o jovem engenheiro oferecia. Os semáforos esti-
veram ensejados4 para a Ponte, mas, de proposta em proposta (sempre se tratava de
uma implantação experimental), acabaram na infrequentada Rua Fernão Penteado, na
interseção com a travessa de João Roiz Castelo Branco.
15 O sistema é simples e, pode dizer-se com propriedade, luminoso. Um homem
pedala numa bicicleta erguida a dez centímetros do chão por suportes de ferro. A cor-
rente faz girar um imã5 dentro de uma bobina. A energia gerada vai acender as luzes
de um semáforo, comutadas6 pelo ciclista. Durante a Primeira Guerra foi introduzida
uma melhoria. Uma inspeção da Câmara concluiu que a roda da frente era destituída
20 de utilidade. Foi retirada. 1 Janelas de guilhotina: tipo de
janelas que abrem e fecham
Houve muitos candidatos ao cargo de semaforeiro, embora um equívoco tivesse
deslizando em sentido vertical.
levado à exigência de que os concorrentes soubessem andar de bicicleta. A realidade 2 Flanar: andar ociosamente,
sem rumo nem sentido certo.
corrigiu o dislate7 porque acabou por ser escolhido um galego chamado Ramon, que
3 Landós: antiga carruagem
era familiar do proprietário dum bom restaurante e nunca tinha pedalado na vida. Mas de tração animal, de quatro
rodas, com dois bancos frente
25 Ramon era esforçado, cheio de boa vontade. A escolha foi acertada.
a frente.
Durante anos e anos o bom do Ramon pedalou e comutou. Por alturas da segunda 4 Ensejados: esperados; deseja-
dos.
Grande Guerra foi substituído pelo seu filho Ximenez, pouco depois da revolução de
5 Imã: íman.
Abril pelo neto Asdrúbal, e, um dia destes, pelo bisneto Paco. A administração continua 6 Comutadas: trocadas; permuta-
das.
a pagar um vencimento modesto, equivalente ao de jardineiro. Mas não é pelo orde-
7 Dislate: ação disparatada ou
30 nado que aquela família dá ao pedal. É pelo amor à profissão. Altas horas da madru- despropositada; disparate.
gada, avô, neto e bisneto foram vistos de ferramenta em riste a afeiçoar pormenores.
7
Mário de Carvalho – «Famílias desavindas»

Fizeram questão de preservar a roda de trás e opuseram-se quase com selvajaria a um


jovem engenheiro que considerou a roda dispensável, sugerindo que o carreto bastasse.
Os transeuntes e motoristas do Porto apreciam estes semáforos manuais, porque é
35 sempre possível personalizar a relação com o sinal. Diz-se, por exemplo, «Ó Paco, dá lá
um jeitinho!» e o Paco, se estiver bem-disposto, comuta, facilita.
Mário de Carvalho, «Famílias desavindas» in Contos vagabundos, Lisboa, Caminho, 2000, pp. 75-76.

1. A descrição inicial do espaço centra-se numa rua e num dispositivo que nela se encontra.
1.1 Indica a característica da rua que é posta em evidência, explicitando os elementos
linguísticos que estabelecem esse realce.
1.2 Explica a relação existente entre a descrição da rua e do dispositivo presente num
cruzamento da mesma.

2. Comenta o teor irónico do segundo parágrafo, evidenciando a(s) crítica(s) veiculada(s).


História pessoal e história
3. Esclarece a intenção subjacente à referência do parentesco de FI social: as duas famílias
p. 12
Ramon com o «proprietário dum bom restaurante» (l. 24).

4. As várias gerações de semaforeiros constituem uma personagem coletiva.


4.1 A partir da personagem Ramon, identifica os traços característicos das persona-
gens que comprovam a veracidade da afirmação anterior.

5. Infere acerca da intenção crítica implícita no modo como «transeuntes e motoristas do


Porto» (l. 34) encaram «estes semáforos manuais» (l. 34).

6. Comprova que esta primeira parte do conto apresenta uma estrutura completa, com
princípio, meio e fim, justificando o recurso à analepse.

GRAMÁTICA

1. Identifica as funções sintáticas desempenhadas pelas expressões Funções sintáticas


SIGA pp. 356-359
seguintes.
a) «de convencer um autarca do Porto» (l. 8).
b) «de que inventara um semáforo moderno» (ll. 8-9).
c) «de bem ordenar o trânsito de carroças de vinho» (ll. 9-10).

2. Classifica as orações subordinadas iniciadas por «que» nas seguin- Coordenação e subordinação
SIGA pp. 361-363
tes expressões.
a) «que o jovem engenheiro oferecia» (l. 11).
b) «que a roda da frente era destituída de utilidade» (ll. 19-20).
c) «que os concorrentes soubessem andar de bicicleta» (l. 22).
d) «que era familiar do proprietário dum bom restaurante» (ll. 23-24).

3. Indica o aspeto gramatical presente nas expressões que se seguem. Valor aspetual
SIGA p. 365
a) «A autoridade gostou do projeto» (ll. 10-11).
b) «(sempre se tratava de uma implantação experimental)» (ll. 12-13).
c) «O sistema é simples e, pode dizer-se com propriedade, luminoso.» (l. 15).
d) «A administração continua a pagar um vencimento modesto» (ll. 28-29).

8
Mário de Carvalho – «Famílias desavindas»

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

O conflito
Acontece que, mesmo à esquina, um primeiro andar vem sendo habitado por uma
família de médicos que dali faz consultório. Pouco antes da instalação dos semáforos
a pedal, veio morar o Doutor João Pedro Bekett, pai de filhos e médico singular. Che-
gou de Coimbra com boa fama mas transbordava de espírito de missão. Andava pelas
5 ruas a interpelar os transeuntes: «Está doente? Não? Tem a certeza? E essas olheiras, hã?
Venha daí que eu trato-o.» E nesta ânsia de convencer atravessava muitas vezes a rua.
O semáforo complicava. Aproximou-se do Ramon e bradou, severo: «A mim, ninguém
me diz quando devo atravessar uma rua. Sou um cidadão livre e desimpedido.» Ramon
entristeceu. Não gostava que interferissem com o seu trabalho e, daí por diante, passou a
10 dificultar a passagem ao doutor. Era caso para inimizade. E eis duas famílias desavindas.
Felizmente, nunca coincidiram descendentes casadoiros. Piora sempre os resultados.
Ao Dr. Pedro sucedeu o filho João, médico muito modesto. Informava sempre que o
seu diagnóstico era provavelmente errado. Enganava-se, era um facto. Mas fazia questão
de orientar os pacientes para um colega que desse uma segunda opinião. Herdou o ódio
15 ao semáforo e passava grande parte do tempo à janela, a encandear Ximenez com um
8 Sus: interjeição que exprime inci-
espelho colorido. tação.
Já entre o jovem médico Paulo e Asdrúbal quase se chegou a vias de facto. O médico 9 Galego: sentido depreciativo –
carregador; indivíduo que tra-
passava e rosnava «Sus8, galego9». E Asdrúbal, sem parar de dar ao pedal: «Xó, magarefe!10» balha arduamente, que realiza
Uma tarde, Asdrúbal levantou mesmo a mão e o doutor encurvou-se e enrijou o passo. trabalho pesado; indivíduo rude,
grosseiro; labrego.
20 Este Dr. Paulo era muito explicativo. Ouvia as queixas dos doentes, com impaciência, e 10 Magarefe: mau médico, em espe-
depois impunha silêncio e começava: cial cirurgião inábil; indivíduo
desonesto, biltre; patife, velhaco.
– As doenças são provocadas por vírus ou por bactérias. No primeiro caso, chamam-se 11 À puridade: em segredo; particu-
viróticas, no segundo, bacterianas. larmente.
12 Arrenego: detesto; amaldiçoo.
E estava horas nisto, até o doente adormecer. Colegas maliciosos sustentavam que ele
25 praticava a terapia do sono. Mas a maioria dos doentes gostava de ouvir explicar. Alguns
até faziam perguntas. Após a consulta, muito à puri-
dade11, o Dr. Paulo pedia aos clientes que passassem
pelo homem do semáforo e lhe dissessem: «Arre-
nego12 de ti, galego!» Isto foi assim com Asdrúbal e,
30 mais recentemente, com Paco.
Há dias, vinha do almoço o Dr. Paulo com uma
trouxa-de-ovos na mão, e já trazia entredentes o
«arrenego!» com que insultaria o semaforeiro,
quando aconteceu o acidente. Ao proceder a um
35 roubo por esticão, um jovem que vinha de mota
teve uns instantes de desequilíbrio, raspou por Paco
e deixou-o estendido no asfalto. Era grave. O Dr.
Paulo largou ódios velhos, não quis saber de mais
nada e dobrou-se para o sinistrado:
40 – Isto, em matéria de lesões, elas podem ser pro-
vocadas por três espécies de instrumentos: contun-
dentes, cortantes, ou perfurantes.
9
Mário de Carvalho – «Famílias desavindas»

Uma ambulância levou o Paco antes que o doutor tivesse entrado no capítulo das
«manchas de sangue».
45 Enganar-se-ia quem dissesse que o semáforo ficou abandonado. Uma figura de bata
branca está todos os dias naquela rua, do nascer ao pôr do Sol, a acionar o dispositivo,
pedalando, pedalando, até à exaustão. É o Dr. Paulo cheio de remorsos, que quer peni-
tenciar-se, ser útil, enquanto o Paco não regressa.
Mário de Carvalho, op. cit., pp. 76-78.

1. Preenche o esquema que se segue com expressões das duas partes do conto.

AÇÃO
Primeira parte − «Os semáforos e os semaforeiros»

Situação inicial: descrição de uma rua do Porto e


Presente da enunciação:
dos singulares semáforos a pedal, instalados num
«há de encontrar-se»
cruzamento dessa rua.

†
a) « » Complicação: a origem dos semáforos

†
Gerações de semaforeiros

b) « » e)
c) « » f)
d) « » g)
[até] «um dia destes» h)
Os semáforos a pedal: relação de Paco com os
transeuntes e motoristas do Porto.

Segunda parte − «O conflito»

Complicação: a origem do conflito – as gerações de


a) « »
médicos versus gerações de semaforeiros

b) « » i) e)
c) « » j) f)

d) « » vs. g)
k)
[até] «um dia destes» h)

†
l) « » Resolução: m) « »
†
Presente da enunciação: Situação final: a rua do Porto e os semáforos a pedal
n) « » acionados pelo Dr. Paulo.

1.1 Conclui acerca do paralelismo existente entre as duas partes relativamente ao


tempo da história.
10
Mário de Carvalho – «Famílias desavindas»

2. Refere, por palavras tuas, a origem do conflito entre as duas famílias.

3. Compara o estatuto social das várias gerações de médicos e o comportamento revelado


na quezília com os semaforeiros, salientando a função dos insultos utilizados.
A importância dos episódios
4. Explica o modo como se dá a progressão do conflito ao longo FI e da peripécia final
do texto e evidencia a importância da peripécia final ao nível p. 13

da estrutura do conto.

5. Estabelece uma relação entre o valor simbólico dos marcos Valor simbólico dos marcos
FI históricos referidos
históricos referidos na primeira parte do conto e o comporta- p. 12
mento das «famílias desavindas» ao longo da ação.
A dimensão irónica
6. Evidencia a dimensão irónica do conto. FI p. 13

7. Indica, de forma fundamentada, três características do conto presentes em «Famílias


desavindas».

GRAMÁTICA

1. Identifica as funções sintáticas desempenhadas pelas expres- Funções sintáticas


SIGA pp. 356-359
sões seguintes.
a) «dos semáforos a pedal» (ll. 2-3).
b) «errado» (l. 13).
c) «por vírus ou por bactérias» (l. 22).
d) «maliciosos» (l. 24).

2. Identifica os mecanismos de construção da coesão textual pre- SIGA Coesão textual


pp. 370-371
sentes nas seguintes expressões.
a) «Pouco antes da instalação dos semáforos a pedal» (ll. 2-3).
b) «Alguns até faziam perguntas.» (ll. 25-26).
c) «o Dr. Paulo pedia aos clientes que passassem pelo homem do semáforo e lhe dis-
sessem: […]» (ll. 27-28).
d) «Enganar-se-ia quem dissesse que o semáforo ficou abandonado. Uma figura de
bata branca está […] a acionar o dispositivo […]» (ll. 45-46).

ORALIDADE EXPRESSÃO ORAL

Debate

1. O conto «Famílias desavindas», de Mário de Carvalho, aborda o conflito entre duas


famílias, que passa de geração em geração, estendendo-se quase ao longo de um
século. Atualmente, estes conflitos familiares perderam alguma expressividade, no
entanto, outros se mantêm e se agudizam: os conflitos intergeracionais.

Prepara um debate, de vinte a trinta minutos, sobre este tema, apresentando uma ar-
gumentação adequada, exemplos e eventuais soluções para minimizar esta clivagem
entre gerações.

11
FICHA INFORMATIVA 1

História pessoal e história social: as duas famílias


Um dos aspetos mais curiosos deste conto de Mário de Carvalho consiste no acen-
tuado paralelismo entre as duas famílias que protagonizam a narrativa, tendo ambas
uma proveniência estrangeira: enquanto os semaforeiros são galegos e pertencem a
uma comunidade tradicionalmente ligada ao comércio de bebidas e produtos alimen-
5 tares, não nos sendo revelado qual o seu apelido, a família de médicos estabelecida num
dos prédios da esquina possui origem britânica, como pode concluir-se através do ape-
lido do Doutor João Pedro Bekett. Além dos nomes – sendo os médicos antecedidos
pelo título académico «Doutor» ou «Dr.» e os semaforeiros apenas como «galegos»,
com um sentido algo pejorativo – , a diferença de estatuto social entre estas duas linha-
10 gens corresponde a uma realidade que não parece ter sofrido grandes alterações desde
o século XIX, permanecendo pai, filho, neto e bisneto com a mesma profissão, o que
demonstra o imobilismo social deste bairro do Porto – cidade aliás familiarizada quer
com a presença de galegos em tasquinhas ou restaurantes populares, quer com uma
influente comunidade britânica ou luso-britânica que chegou a dar título a um célebre
15 romance de Júlio Dinis – Uma família inglesa.
Fernando Pinto do Amaral (texto inédito, 2017).

Valor simbólico dos marcos históricos referidos


No que toca à verosimilhança e à contextualização histórica, este conto torna-se
particularmente credível graças às referências a certos factos políticos ou científicos
evocados pelo narrador. Nesse sentido, adquirem especial relevância algumas informa-
ções aparentemente acessórias para o desenrolar da narrativa, mas que lhe conferem
5 um pano de fundo historicamente apoiado em acontecimentos reais, que todos conhe-
cemos. Entre tais fatores de credibilidade estão, por exemplo, a evolução técnica dos
semáforos e dos seus mecanismos de funcionamento, a presença do engenheiro francês
Gerard Letelessier «no dobrar do século XIX» – período em que outros engenheiros
franceses como Eiffel deixaram obra feita no Porto – , a alusão à Primeira Guerra
10 Mundial ou ainda a descoberta dos vírus já mais perto de nós, em meados do século
XX, permitindo ao Dr. Paulo dissertar sobre a diferença entre «infeções viróticas» e
«bacterianas». Referências deste género servem também para situar o leitor nos dife-
rentes tempos desta história que acompanha pelo menos três gerações de duas famílias
portuenses, numa cidade que evoluiu em múltiplos aspetos, mantendo-se porém a
15 presença daquele insólito semáforo movido a pedal, como um estranho anacronismo
a despertar a curiosidade dos transeuntes.
Fernando Pinto do Amaral (texto inédito, 2017).

12
21
21
Ficha informativa
FICHA INFORMATIVA 2

A importância dos episódios e da peripécia final


A sucessão dos episódios mais significativos deste conto mostra-nos o modo como
evolui o antagonismo entre duas famílias cuja proximidade contribui para agudizar
uma já antiga hostilidade mútua. Os diálogos ocasionalmente travados entre mem-
bros da família dos semaforeiros e dos médicos denotam uma inimizade que parece ir
5 crescendo geração após geração, patente também nas pequenas provocações entre uns
e outros, num clima de aceso despique. O leitor virá todavia a ser surpreendido pela
peripécia final, já que, apesar desse crescente antagonismo, o acidente sofrido por Paco
desencadeará no Dr. Paulo Bekett uma atitude radicalmente diferente, decidindo passar
a substituir o galego ao assumir o papel (temporário) de semaforeiro. Um desenlace
10 como este – marcado pela atitude final do Dr. Paulo – evidencia, afinal, a estreita ligação
que o tempo foi estabelecendo entre as duas famílias, para lá da sua aparente inimizade –
como se o remorso de tantas décadas de afastamento pudesse finalmente libertar-se.
Fernando Pinto do Amaral (texto inédito, 2017).

A dimensão irónica
Porque admiro tanto Mário de Carvalho enquanto escritor?
Em primeiro lugar porque lhe reconheço o talento singular e superior da ironia,
essa forma de sorrir em fino lume o que os outros queimam em fogo bruto, ou acal-
mam em lirismo doce. Admiro a sua forma de entrar pela realidade adentro com uma
5 das mãos enluvadas e outra descalça, o que faz com que a sua obra, desde os primeiros
textos aos últimos, se tenha transformado, entre nós, numa produção inconfundível.
[…] Mesmo sem recorrer ao sarcasmo, Mário de Carvalho costuma ser demolidor.
Demolidor, sobretudo, quando os laços sociais estão em jogo e a vítima e o vitimado
dançam para nós o seu teatro público.
10 […] A confusão do pequeno com o grande, do interesse particular com o geral, da
não derrota com a vitória, da chuva que cai com a nuvem que vai, revela em Mário de
Carvalho, ao mesmo tempo, um desejo de denúncia e um alinhamento com os que
ficam, na margem que a muitos comove. E, no entanto, que eu me lembre, a palavra 1 Escandida: destacada ou salien-
piedade não costuma ser escandida1 no seu texto. Não é esse o seu género de pessoa tada de maneira clara ou enfá-
tica.
15 nem a sua fórmula artística. 2 «É preciso não confundir o
O seu género, irónico e por vezes enigmático, é outro. Às vezes quase nem se sente. género humano com Manuel
Germano»: frase do livro Casos
Eduardo Prado Coelho […] admirava como a adoção da fórmula de que é preciso não do Beco das Sardinheiras, de
confundir o género humano com Manuel Germano2 constituía um programa de escrita, Mário de Carvalho, e que se
transformou numa expressão
uma espécie de síntese de distinção poética deste autor a vários títulos singular. idiomática.

Lídia Jorge, «Mário de Carvalho – O escritor da Ironia», in Mário de Carvalho: Homenagem à vida
e obra, 1.a edição da Escritaria 2013, Santo Tirso, Cão Menor, 2014, pp. 72-73.

13
3
1
FICHA INFORMATIVA 3

Linguagem e estilo
1. A arte de narrar
O que mais parece importar a Mário de Carvalho é o trabalho com a linguagem:
o alto sentido oficinal, aliado a um impressionante cabedal de leituras e ao correlato1
sentido de que provém de linhagens diversificadas, incluindo pesquisa de vocabulários
pertinentes (por exemplo, léxico da marinharia ou da guerra, calão prisional, registo
5 de termos do quotidiano banal), visa afinal, em cada caso, a produção da verosimi-
lhança. Dito de outro modo, a adequação do estilo à temática muito vária dos textos
longos ou breves conduz sempre a efeitos de reconhecimento e de realismo: o leitor
pode pensar «eu conheço isto, estas situações, estas pessoas ou outras parecidas», sem
se dar conta de que tal resulta de uma linguagem elaborada de modo a tornar credível
10 tanto o mundo interior das personagens como o universo em que se movem, mesmo
quando este não é realista mas criação, no limite do fantástico. Sem esquecer, claro, a
combinação entre o riso e o tom sério, criando clivagens entre o que as personagens
pensam, sentem e vivem e um nível superior, em que um narrador dá a ler outras pers-
petivas sobre o mesmo assunto, construindo pela ironia um patamar crítico que, sem
15 julgar, conduz o leitor a formar a sua própria opinião.
Paula Morão, «Lendo a liberdade do Pátio, de Mário de Carvalho», op. cit., p. 88.

2. As palavras e os factos: um jogo, dois géneros


A arte narrativa de Mário de Carvalho é […] um desafio constante ao leitor, tem a
1 Correlato: relacionado; ligado. rara capacidade – quando este se deixa embalar na ductilidade2 de uma prosa brilhan-
2 Ductilidade: flexibilidade. tíssima e sedutora – de o surpreender pelo inusitado da narrativa, por esse exercício,
3 Desvelo: dedicação; zelo; cari-
nho. quase mágico, por certo virtuoso, do jogo e do modo lúdico de efabular. […]
4 Porrete: pancada de porrete – 5 As palavras, que são fêmeas, trata-as com desvelo3 de aplicado artesão; os factos, que
cacete com uma das extremi-
dades arredondada; moca. serão machos, podem sofrer porrete4 e cachaporra5 até se transformarem em estórias
5 Cachaporra: pancada de de deslumbre e inquietação – de gozo único e perene.
cachaporra – cacete; moca;
porrete. Mário de Carvalho sabe […] que a palavra como a lança, longe alcança, por isso a
6 Burilando: tornando mais apu- vai burilando6 até ao osso, ou seja, até alcançar a sua mais expressiva, reveladora essên-
rado; aprimorando, aperfei-
çoando. 10 cia. Sem facilitar. Para nosso permanente, deslumbrado prazer.
Domingos Lobo, «Rigor e reinvenção – O singular universo literário
de Mário de Carvalho», op. cit., pp. 48, 50.

CONSOLIDA

1. Explicita as características da linguagem e do estilo de Mário de Carvalho.

14 41
41
SÍNTESE
«Famílias desavindas», de Mário de Carvalho

História pessoal e social: as duas famílias

História pessoal

Gerações de semaforeiros Gerações de médicos

– 1.ª Geração: Ramon – 3.ª Geração: Asdrúbal – 1.ª Geração: João Pedro Bekett
– 2.ª Geração: Ximenez – 4.ª Geração: Paco – 2.ª Geração: João
– 3.ª Geração: Paulo

Apresentam em comum a profissão, mas desempe-


Família de galegos: personagem coletiva x têm em
nham-na de forma diferente: o avô é tão zeloso que
comum o amor à profissão, o esforço e a boa vontade
chega a incomodar as pessoas; o filho é inseguro, por
no seu desempenho e uma ligação obsessiva aos semá-
considerar os seus diagnósticos incorretos; e o neto é
foros.
extremamente explicativo, chegando a ser maçador.

História social

OS SEMÁFOROS Ódio aos semáforos = semaforeiros


1.ª Geração: origem do conflito pela prepo-
tência e presunção.
Apresentam a mesma atuação:
CONFLITO 2.ª Geração: encandeava Ximenez com um
complicam a passagem aos médicos.
espelho.
3.ª Geração: insultava e induzia os pacientes
Resolução: o acidente a insultar o semaforeiro.

Concórdia entre famílias

• Primeira e Segunda Guerras Mundiais: os dois grandes acontecimentos do século XX x conflitos entre
nações, mortes, destruição em massa, holocausto (Segunda Guerra) x concórdia entre nações.
• Revolução do 25 de Abril de 1974: o grande acontecimento do século XX em Portugal x a conquista
Valor simbólico dos pacífica da Liberdade, após 48 anos de ditadura.
marcos históricos ≠
• O conflito entre duas famílias originado pelos semáforos x a pequenez do ser humano que se entrega
a quezílias ridículas e insignificantes, prolongando-as ao longo de quase um século, perante o panorama
mundial e nacional x o egoísmo humano.

• Crítica ao provincianismo, à corrupção nos serviços públicos, ao facilitismo, ao exercício da profissão


Dimensão irónica de médico, ao comportamento dos médicos, que contrasta com o seu estatuto social e profissional.
do conto • A pequenez do conflito entre as duas famílias perante a magnitude dos acontecimentos mundiais
e nacional, a deixar transparecer uma censura ao egoísmo e à mesquinhez do ser humano.

• Os vários episódios são representativos de uma desavença entre duas famílias, ao longo de um século,
gerada por um insólito dispositivo: os semáforos a pedal.
A importância
• O acidente de Paco veio trazer a concórdia àquele conflito, ao fazer despontar a real faceta de médico
dos episódios e
do Doutor Paulo, que esquece o ódio de gerações para socorrer o semaforeiro.
da peripécia final
• No final do conto, coloca de parte todas as desavenças e o pretensiosismo, substituindo Paco nos semáfo-
ros, como forma de se redimir, não só pelo seu comportamento, mas também pelo do seu pai e do seu avô.

15
Poetas
contemporâneos
Poetas em opção
EDUCAÇÃO LITERÁRIA
• Jorge de Sena
• António Ramos Rosa
• Alexandre O’Neill
• Herberto Helder
• Ruy Belo
• Luiza Neto Jorge
• Vasco Graça Moura
• Nuno Júdice
– Figurações do poeta
– Arte poética
– Tradição literária
– Representações do contemporâneo
– Linguagem, estilo e estrutura

LEITURA
Fichas informativas

GRAMÁTICA
• Classes de palavras
• Funções sintáticas
• Coordenação e subordinação
• Referência deítica
• Coesão textual
• Valor aspetual

COMPREENSÃO E EXPRESSÃO ORAL


• Apresentação oral
• Texto de opinião

ESCRITA
• Apreciação crítica
• Texto de opinião René Magritte, O cavaleiro do pôr do sol (pormenor), 1965.
Jorge de Sena

Jorge Cândido de Sena nasceu em 1919,


em Lisboa. Depois de concluir os estudos
liceais, ingressou na Escola Naval, vindo,
porém, a formar-se em engenharia civil na Uni-
5 versidade do Porto. Durante os estudos uni-

versitários, publicou, sob pseudónimo, as suas


primeiras composições poéticas em revistas
como a Presença. Travou então conhecimento
com um grupo de poetas ligados aos Cadernos
10 de poesia: José Blanc de Portugal, Ruy Cinatti,

Alberto Serpa e Casais Monteiro, entre outros.


No âmbito das edições de Cadernos de poesia
foi publicada a sua primeira obra poética, Pere-
grinação, em 1942.
15 Afirmou-se, durante a década de 50, como uma das personalidades mais influen-
tes e complexas da cultura e literatura portuguesas, publicando algumas das suas mais
conhecidas obras poéticas e colaborando com diversas publicações literárias. Em 1959,
após o envolvimento numa tentativa falhada de golpe de Estado militar contra o regime
salazarista, optou por um exílio voluntário no Brasil, onde exerceu funções de docência
20 nos domínios da Literatura Portuguesa e da Teoria da Literatura.
A par da publicação de obras ensaísticas, desenvolveu intensa atividade como con-
gressista e, em 1960, publicou o seu primeiro livro de ficção, a coletânea de contos
Andanças do demónio. Cinco anos depois transferiu-se para os Estados Unidos, tendo
lecionado nas universidades do Wisconsin e Santa Bárbara, na Califórnia.
25 Após o 25 de Abril, recebeu várias homenagens públicas em Portugal, tendo sido
condecorado com a Ordem do Infante D. Henrique e, a título póstumo, com a Grã
Cruz da Ordem de Santiago e Espada.
Foi um dos mais influentes intelectuais portugueses do século XX, com vasta obra
de ficção, drama, ensaio e poesia, além de importante epistolografia com figuras tute-
30 lares da literatura portuguesa e brasileira. A sua obra de ficção mais famosa é o romance
autobiográfico Sinais de fogo, adaptado ao cinema em 1995 por Luís Filipe Rocha.
Grande parte da sua obra foi publicada postumamente por sua mulher, Mécia de Sena.

PONTO DE PARTIDA

1. Ouve atentamente a apresentação que é feita de Jorge de Sena e


os poemas declamados.
1.1 Regista os seguintes aspetos evidenciados:
a) apresentação que é feita de Jorge de Sena;
b) razões pessoais para o amor pela liberdade;
c) ideias para um mundo melhor.

18
Jorge de Sena

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Henri Le Sidaner, O Porto, 1923.


Quem a tem
Não hei de morrer sem saber
qual a cor da liberdade.

Eu não posso senão ser


desta terra em que nasci.
5 Embora ao mundo pertença
e sempre a verdade vença,
qual será ser livre aqui,
não hei de morrer sem saber.

Trocaram tudo em maldade,


10 é quase um crime viver.
Mas, embora escondam tudo
e me queiram cego e mudo,
não hei de morrer sem saber
qual a cor da liberdade.
Jorge de Sena, Poesia II, Lisboa, Edições 70, 1988.

1. O posicionamento político de Jorge de Sena, como manifestação ética e estética


daquilo que define como «testemunho», aparece como tema de boa parte da sua obra.
1.1 Tendo em conta a afirmação, indica o assunto deste poema.
Figurações do poeta
FI p. 25
1.2 Explicita as ideias desenvolvidas pelo sujeito poético relati-
vamente ao assunto identificado, recorrendo a uma ou outra
transcrição para justificar a tua resposta.
1.3 Apresenta uma justificação para a repetição dos versos 1 e 2.
1.4 Identifica o recurso expressivo predominante na última estrofe.

19
POETAS CONTEMPORÂNEOS

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Edvard Munch, O Sol, 1911.

Sento-me à mesa
Sento-me à mesa como se a mesa fosse o mundo inteiro
e principio a escrever como se escrever fosse respirar
o amor que não se esvai enquanto os corpos sabem
de um caminho sem nada para o regresso da vida.
5 À medida que escrevo, vou ficando espantado
com a convicção que a mínima coisa põe em não ser nada.
Na mínima coisa que sou, pôde a poesia ser hábito.
Vem, teimosa, com a alegria de eu ficar alegre,
quando fico triste por serem palavras já ditas
10 estas que vêm, lembradas, doutros poemas velhos.
Uma corrente me prende à mesa em que os homens comem.
E os convivas que chegam intencionalmente sorriem
e só eu sei porque principiei a escrever no princípio do mundo
e desenhei uma rena para a caçar melhor
15 e falo da verdade, essa iguaria rara:
este papel, esta mesa, eu apreendendo o que escrevo.
Jorge de Sena, Poesia I, Lisboa, Edições 70, 1988.

1. Este poema apresenta uma explicitação do conceito de poe- Arte poética


FI p. 25
sia. Transcreve dois versos que comprovem esta afirmação.

2. Refere a importância do ato poético para o sujeito.

3. Indica as ações que caracterizam o sujeito poético no ato da escrita.

4. Delimita os três momentos sucessivos em que se processa a eclosão da poesia.

5. Explica a afirmação «As homologias mesa-mundo e escrever- Linguagem, estilo e estrutura


FI p. 27
-respirar permitem a expansão espacial e temporal da escrita
poética».

20
Jorge de Sena

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Camões dirige-se aos seus


contemporâneos
Podereis roubar-me tudo:
as ideias, as palavras, as imagens,
e também as metáforas, os temas, os motivos,
os símbolos, e a primazia
5 nas dores sofridas de uma língua nova,
no entendimento de outros, na coragem
de combater, julgar, de penetrar
em recessos de amor para que sois castrados.
E podereis depois não me citar,
10 suprimir-me, ignorar-me, aclamar até
outros ladrões mais felizes. António Carneiro, Camões lendo Os Lusíadas, 1925-29.

Não importa nada: que o castigo


será terrível. Não só quando
vossos netos não souberem já quem sois
15 terão de me saber melhor ainda
do que fingis que não sabeis,
como tudo, tudo o que laboriosamente pilhais,
reverterá para o meu nome. E, mesmo será meu,
tido por meu, contado como meu,
20 até mesmo aquele pouco e miserável
que, só por vós, sem roubo, haveríeis feito.
Nada tereis, mas nada: nem os ossos,
que um vosso esqueleto há de ser buscado,
para passar por meu. E para outros ladrões,
25 iguais a vós, de joelhos, porem flores no túmulo.
Jorge de Sena, Poesia II, Lisboa, Edições 70, 1988.

1. Neste poema, encontramos uma espécie de monólogo dramático sugerindo o efeito de


biografia futura.
1.1 Explica esta afirmação.
1.2 Refere a intencionalidade do sujeito, oculto sob a máscara.

2. Salienta a importância da harmonia entre a ética e a estética, tal FI


Tradição literária
p. 26
como é sugerida pelas palavras do sujeito poético.

21
POETAS CONTEMPORÂNEOS

PONTO DE PARTIDA

1. Observa o quadro de Goya e descreve alguns aspetos que entrem em consonância com
o título do poema.

Francisco de Goya, O 3 de maio de 1808, 1824.

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya


Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso.
É possível, porque tudo é possível, que ele seja
aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo,
onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém
5 de nada haver que não seja simples e natural.
Um mundo em que tudo seja permitido,
conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer,
o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós.
E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto
10 o que vos interesse para viver. Tudo é possível,
ainda quando lutemos, como devemos lutar,
por quanto nos pareça a liberdade e a justiça,
ou mais que qualquer delas uma fiel
dedicação à honra de estar vivo.
15 Um dia sabereis que mais que a humanidade
não tem conta o número dos que pensaram assim,
amaram o seu semelhante no que ele tinha de único,
de insólito, de livre, de diferente,
e foram sacrificados, torturados, espancados,
20 e entregues hipocritamente à secular justiça,
para que os liquidasse «com suma piedade
e sem efusão de sangue.»
Por serem fiéis a um deus, a um pensamento,
a uma pátria, uma esperança, ou muito apenas
22
Jorge de Sena

25 à fome irrespondível que lhes roía as entranhas,


foram estripados, esfolados, queimados, gaseados,
e os seus corpos amontoados tão
anonimamente quanto haviam vivido,
ou suas cinzas dispersas para que delas não restasse memória.
30 Às vezes, por serem de uma raça, outras
por serem de uma classe, expiaram todos
os erros que não tinham cometido ou não tinham consciência
de haver cometido. Mas também aconteceu
e acontece que não foram mortos.
35 Houve sempre infinitas maneiras de prevalecer,
aniquilando mansamente, delicadamente,
por ínvios caminhos quais se diz que são ínvios os de Deus.
Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror,
foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha
40 há mais de um século e que por violenta e injusta
ofendeu o coração de um pintor chamado Goya,
que tinha um coração muito grande, cheio de fúria
e de amor. Mas isto nada é, meus filhos.
Apenas um episódio, um episódio breve,
45 nesta cadeia de que sois um elo (ou não sereis)
de ferro e de suor e sangue e algum sémen
a caminho do mundo que vos sonho.
Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém
vale mais que uma vida ou a alegria de tê-la.
50 É isto o que mais importa − essa alegria.
Acreditai que a dignidade em que hão de falar-vos tanto
não é senão essa alegria que vem
de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez alguém
está menos vivo ou sofre ou morre
55 para que um só de vós resista um pouco mais
à morte que é de todos e virá.
Que tudo isto sabereis serenamente,
sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição,
e sobretudo sem desapego ou indiferença,
60 ardentemente espero. Tanto sangue,
tanta dor, tanta angústia, um dia
− mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga −
não hão de ser em vão. Confesso que
muitas vezes, pensando no horror de tantos séculos
65 de opressão e crueldade, hesito por momentos
e uma amargura me submerge inconsolável.
Serão ou não em vão? Mas, mesmo que o não sejam,
quem ressuscita esses milhões, quem restitui
não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado?

23
POETAS CONTEMPORÂNEOS

70 Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes


aquele instante que não viveram, aquele objeto
que não fruíram, aquele gesto de amor, que fariam «amanhã».
E, por isso, o mesmo mundo que criemos
nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa
75 que não é nossa, que nos é cedida
para a guardarmos respeitosamente
em memória do sangue que nos corre nas veias,
da nossa carne que foi outra, do amor que
outros não amaram porque lho roubaram.
Jorge de Sena, Poesia II, Lisboa, Edições 70, 1988.

1. Este poema constitui-se como testemunho/testamento sobre Representações


FI do contemporâneo
a «fiel dedicação à honra de estar vivo». p. 26

1.1 Ouve o poema dito pelo ator Mário Viegas e identifica a razão que levou o sujeito
poético a redigir esta «carta».

2. Divide o poema em partes lógicas e atribui um título a cada uma.

3. Salienta as características do mundo que o sujeito poético aspira para os filhos.


3.1 Relaciona essas características com os valores considerados fundamentais para o
ser humano.

4. Identifica o recurso expressivo presente no verso 46.

GRAMÁTICA

1. Identifica o vocativo repetido ao longo do poema. Funções sintáticas


SIGA pp. 356-359

2. Classifica as orações destacadas nas frases seguintes. Coordenação e subordinação


SIGA pp. 361-363
a) Confesso que penso no horror de tantos séculos.
b) As suas cinzas foram dispersas para que delas não restasse memória.

3. Identifica o antecedente de cada pronome destacado nas Referenciação anafórica


SIGA p. 371
expressões seguintes.
c) «pode dar-lhes» (v. 70).
d) «nos cumpre tê-lo com cuidado» (v. 74).

ESCRITA

Texto de opinião Texto de opinião


SIGA pp. 344-345

1. Redige um texto de opinião, de duzentas a trezentas palavras, onde apresentes o teu


ponto de vista sobre um aspeto do mundo contemporâneo sobre o qual seja urgente
refletir. Podes associar um quadro ou uma música que apresente correlação com as
tuas ideias e que as sustente.

24
Ficha informativa

FICHA INFORMATIVA 1

Figurações do poeta
Este Jorge de Sena de fins de maio de 1974 já não é só o português que não queria
morrer sem saber qual seria a cor da liberdade no seu país, mas é o cidadão do mundo
que fala uma língua universal a ser escutada por todos. Por isso, em julho de 1998, eu
julguei que a sua voz poderia ser escutada também além-fronteiras, pelos italianos, por
5 exemplo, os quais viveram os anos do fascismo antes dos portugueses e só acabaram
com ele no fim de uma guerra sangrenta. Pareceu-me exemplar a parábola de um Jorge
de Sena que assiste de Santa Bárbara, com a paixão do cidadão, mas também com o
alheamento de quem está fora, ao ressurgir das antigas manhas de Portugal debaixo da
nova pele. E é então que ele apaixonadamente, em maio, avisa:
10 Liberdade, liberdade,
tem cuidado que te matam
E em junho:
Quem te amar, ó liberdade,
tem de amar com paciência.
Luciana Stegagno Picchio, Jorge de Sena e a cor da liberdade
(disponível em http://www.lerjorgedesena.letras.ufrj.br; consultado a 10 de junho de 2023).

Arte poética
Este é um estudo sobre a poesia e a poética de Jorge de Sena, fazendo um enqua-
dramento da sua obra a partir dos três vetores que dinamizam a sua poética: teste-
munho, metamorfose e peregrinação. Este trabalho constitui uma primeira tentativa
de visão integrada da sua obra de poeta, ficcionista e crítico. Através de um largo
5 comentário ao prefácio da 1.ª edição de Poesia-I (1961), em que Jorge de Sena
expõe a sua teoria do testemunho poético, este
estudo faz um enquadramento da sua obra a par-
tir dos três vetores que dinamizam a sua poética:
testemunho, metamorfose e peregrinação. Uma
10 poética da temporalidade, da transfiguração, do
devir e da errância que tem por base o tenso sis-
tema de relações que se estabelece entre o poeta,
o mundo e a linguagem. Sem esquecer, ao longo
desta dissertação, que a poesia de Jorge de Sena
15 tem no erotismo o seu princípio criativo e no exí-
lio a sua circunstância.
Jorge Fazenda Lourenço, A poesia de Jorge de Sena, Lisboa,
Guerra e Paz, 2010.

Henri Lebasque, Pôr-do-sol na Ponte Aven, 1894.

25
JORGE DE SENA

FICHA INFORMATIVA 2

Tradição literária
Resgatar do esquecimento através da poesia, através da arte: Metamorfoses, de Jorge
de Sena, obra publicada em 1963, é uma celebração do espírito humano, mais do que
uma reverência às obras de arte convocadas. É também a manifestação de uma angús-
tia face à mortalidade, que o autor assume em denegação. A morte sucede-se a cada
5 geração que passa, mas há uma cicatriz que não se apaga, e essa fica patente através das
obras de arte, que a palavra imortaliza. O diálogo com as obras de arte constitui uma
manifestação ecfrástica1 de converter imagens em palavras. Contudo, os poemas de
Sena que resultam desta técnica autonomizam-se. O tributo torna-se tributável, pois
os poemas de Metamorfoses ganham intensidades diferentes das obras plásticas convo-
10 cadas. Cumpre-se a máxima horaciana ut pictura poesis2, não implicando isso, porém,
que haja uma correspondência imediata entre a obra evocada e o poema.
Lígia Bernardino (Universidade do Porto), Arte e rememoração em Jorge de Sena
(disponível em https://formadevida.org; consultado a 15 de junho de 2023).

Representações do contemporâneo
O próprio termo, testemunho, implica, simultaneamente, vestígio e declara-
ção, presentificação de algo que transcende a linguagem pela mesma linguagem
ou, como dirá mais tarde Jorge de Sena, «a poesia como criação de linguagem é
suprarreal, isto é, engloba a realidade e a sua mesma representação linguística».
5 Apenas o faz através de um elemento catalisador, filtro e motor do processo, que é
o sujeito. O sujeito da lírica seniana vive na posição incómoda de toda a testemu-
nha: revelando, deixando passar através de si a realidade, toda a realidade, sofre um
apagamento extremo; mas, por outro lado, oferecendo-se como lugar de uma voz,
revelando-se ao revelar.
Fátima Freitas Morna, Poesia de Jorge de Sena, Lisboa, Editorial Comunicação, 1985.

CONSOLIDA

1. Seleciona, em cada texto, a palavra que melhor explicita a poética de Jorge de Sena.
1 Ecfrástica: que descreve lite-
rária ou pictoricamente e em
pormenor um objeto real ou Tópicos Palavra
imaginário. Para alguns estu-
diosos, o termo «écfrase» apli-
ca-se apenas à descrição de a) Figurações do poeta
obras de arte, com detalhes
visuais significativos.
2 Ut pictura poesis: a poesia é b) Arte poética
como a pintura (expressão que
o poeta latino Horácio usou na
sua Arte poética, referindo que
c) Tradição literária
um poema deve ser analisado
segundo as mesmas regras de
d) Representações do contemporâneo
uma pintura).

26
Ficha informativa

FICHA INFORMATIVA 3

Linguagem, estilo e estrutura


1. Uma multiplicidade de processos de escrita
Na obra de Jorge de Sena, destaca-se a poesia por ter um caráter que, ao mesmo
tempo, reflete o desejo de rompimento com pressupostos anteriores e a intenção de
fazer o homem refletir sobre os problemas relacionados com a sua existência. «Segundo
declarou numa entrevista, a sua poesia representa um desejo de independência parti-
5 dária da poesia social, um desejo de comprometimento humano de poesia pura» […].
Na sua poesia o escritor utiliza uma multiplicidade de processos de escrita que vão
desde a forma fixa (soneto) ao verso livre e a um vasto conjunto de recursos estilísticos,
que ele manobra com maestria. É frequente o uso de linguagem quotidiana a par de
uma sintaxe muito própria.
10 Os seus poemas constituem uma meditação sobre tudo o que diz respeito à condi-
ção humana, indo desde a política às artes, passando pela sexualidade e as relações entre
o poeta e o mundo.
Segundo o próprio, a sua poesia «é um combate antirromântico às conceções de
poesia como algo de inefável para iluminados, como coisa delicada para delicados, ou
15 algo que se aprenda ou ensine em cadeiras de letras» […].
Disponível em http://www.citi.pt;
consultado a 10 de junho de 2023.

2. Uma linguagem mais narrativa e próxima da prosa


Uma evidência disso é o facto de ser ele um poeta de referência admirado
por duas figuras tão diferentes como António Ramos Rosa (um dos críticos
e poetas mais importantes na configuração daquela poética dominante na
década de 60) e Joaquim Manuel Magalhães (que ocupa uma posição pare-
5 cida com a do primeiro, só que para a década de 70). Enquanto este último
irá elogiar em Sena a sua capacidade de «objetivar o subjetivo» através do
que chamou de «expressão enquadrada», capaz de condensar os excessos de
um lirismo expressivista através de uma linguagem mais narrativa e próxima
da prosa, o primeiro irá destacar justamente o uso dessa linguagem (que
10 prefere chamar de «concetual») não como um recurso de contenção, mas
antes como um exercício de liberdade (da liberdade livre), em que o pró-
prio aparelho concetual nos leva não a uma apreensão racional do discurso,
mas à sua própria negação – ou melhor, «não à transparência definitiva da
iluminação, mas à aproximação de uma evidência irredutível a que só a arte
15 e a poesia têm acesso». E a riqueza da poesia de Sena reside em que não se
pode dizer que nenhuma das duas leituras está errada.
Luca Argel, «Um baixo contínuo para Jorge de Sena», in João Pedro da Costa, Mathilde Ferreira
Neves e Rita Novas Miranda (eds.), ESC:ALA – Revista eletrónica de estudos e práticas interartes,
Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa (disponível em https://escalanarede.com; Victor Couto Diogo Vaz, Retrato de Jorge de Sena,
2015.
consultado a 15 de junho de 2023).

27
António Ramos Rosa

António Ramos Rosa, uma das mais


proeminentes figuras da literatura por-
tuguesa contemporânea, nasceu em
Faro, no dia 17 de outubro de 1924,
5 e faleceu a 23 de setembro de 2013.

Poeta, crítico, ensaísta e tradutor,


Ramos Rosa estudou em Faro, passou
pelo Movimento de Unidade Demo-
crática (MUD), contestando o Estado
10 Novo, o que deu origem à sua prisão

política. Trabalhou como empregado de


escritório e como tradutor, deu aulas de
português, inglês e francês, surgindo na
década de cinquenta do século passado
15 ligado a revistas, como Árvore, Castopeia

e Cadernos do meio-dia, nas quais pri-


mou pela qualidade literária e anunciou
a importância da poesia como grito de
liberdade.
20 Em 1951, em colaboração com os poetas António Luís Moita, José Terra, Luís
Amaro e Raul de Carvalho, tinha sido cofundador da revista Árvore, defendendo a
profundidade e expressividade do universo poético, a liberdade de pesquisa e de possi-
bilidades no seu plano da criação e da demanda social, a poesia como uma permanente
inquirição na dimensão do ser, tendo a palavra um determinante poder na fundação de
25 um real dificilmente dizível.
Autor de uma vasta obra, composta por mais de cinquenta títulos, António Ramos
Rosa iniciou as suas publicações em 1958, com o seu livro de poesia O grito claro,
a que se seguiram Viagem através duma nebulosa (1960), Voz inicial (1960), Sobre o
rosto da Terra (1961), Ocupação do espaço (1964), Nomes de ninguém (1997), O apren-
30 diz secreto (2001), O Sol é todo o espaço (2002), Génese (2005), Constelações (2005),
entre outros. […]
O escritor foi laureado com vários prémios de poesia, o primeiro dos quais pela
obra Viagem através duma nebulosa, partilhado ex-aequo com Henrique Segurado. Em
1980, o Prémio do Centro Português da Associação de Críticos Literários, pelo livro
35 O incêndio dos aspetos; em 1988, o Prémio Pessoa; em 1989, o Prémio APE/CTT, pela
recolha Acordes, e, em 1990, o Grande Prémio Internacional de Poesia, no âmbito dos
Encontros Internacionais de Poesia de Liège.

PONTO DE PARTIDA

1. Visiona a declamação do poema «O funcionário cansado» e a entrevista a António


Ramos Rosa e regista os aspetos comuns às mensagens dos dois vídeos:
a) espaço; c) sentimentos dominantes;
b) tempo propício à escrita; d) crítica social.
28
António Ramos Rosa

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Edvard Munch, O arco-íris, 1898.

A João Rui de Sousa


Para um amigo tenho sempre um relógio
esquecido em qualquer fundo de algibeira.
Mas esse relógio não marca o tempo inútil.
São restos de tabaco e de ternura rápida.
5 É um arco-íris de sombra, quente e trémulo.
É um copo de vinho com o meu sangue e o sol.
António Ramos Rosa, Não posso adiar o coração,
Lisboa, Plátano, 1974.

1. Explicita a relação entre a dedicatória e o primeiro verso do poema.

2. Esclarece a possível simbologia do relógio neste contexto. Figurações do poeta


FI p. 33

3. Explica o significado do verso «São restos de tabaco e de ternura


rápida».

4. Comenta os dois últimos versos do poema, atendendo às expressões selecionadas para


definição da possibilidade de um encontro.

ORALIDADE EXPRESSÃO ORAL

Apresentação oral

1. Ouve a canção «Traz outro amigo também», de Zeca Afonso.


Apresenta à turma:
• a síntese das mensagens veiculadas pelos poemas de António Ramos Rosa
e de Zeca Afonso;
• o exemplo de outras obras ou outros textos sobre a amizade;
• o teu conceito de amizade.

Vhils, Mural Zeca Afonso, Escola Secundária


José Afonso Cavaquinhas, Seixal, 2014. 29
POETAS CONTEMPORÂNEOS

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

James Abbott McNeill Whistler, Noturno: Velha Ponte


Um caminho de palavras Battersea, s/d.

Sem dizer o fogo – vou para ele. Sem enunciar as pedras, sei que as piso – duramente,
são pedras e não são ervas. O vento é fresco: sei que é vento, mas sabe-me a fresco ao
mesmo tempo que a vento. Tudo o que sei, já lá está, mas não estão os meus passos
nem os meus braços. Por isso caminho, caminho, porque há um intervalo entre
5 tudo e eu, e nesse intervalo caminho e descubro o meu caminho.

Mas entre mim e os meus passos há um intervalo também: então invento os meus
passos e o meu próprio caminho. E com as palavras de vento e de pedra, invento o
vento e as pedras, caminho um caminho de palavras.

Caminho um caminho de palavras


10 (porque me deram o sol)
E por esse caminho me ligo ao sol
E pelo sol me ligo a mim

E porque a noite não tem limites


Alargo o dia e faço-me dia
15 E faço-me sol porque o sol existe

Mas a noite existe


E a palavra sabe-o.
António Ramos Rosa, Antologia poética, Lisboa, Dom Quixote, 2001.

1. Explica o «caminho» que o sujeito poético realiza na construção da sua arte poética.

2. Esclarece a relação entre o discurso parentético e o verso 9, «Caminho Arte poética


FI p. 33
um caminho de palavras».

3. Explicita a dicotomia noite/dia (sol) presente na penúltima estrofe do poema.

4. Comenta os dois versos finais do poema, tendo em atenção as duas estrofes anteriores.

5. Analisa a construção formal desta mensagem poética.

30
António Ramos Rosa

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Caminhar. Habitar
Se não tenho a força Ou algo mais neutro,
que é tão fácil, 30 uma pedra escura,
se não sei, não vejo, um calhau polido,
não posso e desejo. uma coisa opaca.
5 Se procuro, desfaço, Que a palavra tenha
me entrego, não vou, dureza de quina,
algo precipito, 35 firmeza de punho,
tão pouco, e já é tudo. que a palavra seja.
Entre nada e nada, Quem sou quando escrevo?
10 nada se passou, Quem sou? Eu vou ser
ou passou uma sombra algo que não sou.
e é o espaço. E sou. 40 Eu vou e já voo.
Aqui está a mão, Mas não vou e não voo
ali está a folha, porque sempre aqui estou
15 acendo o cigarro. onde o onde não é
Tudo começou. senão onde vou.
É a vida aberta? 45 Onde vou? Que ilusão
É a ilusão de ar, de algo vão?
da morte deserta. Mas que importa sabê-lo,
20 É o sim e o não. se isto é respirar!
É, não é ainda: Se isto é querer e andar,
mas o que vai ser 50 como o vento nas pedras,
e nunca será? e isto é desatar:
Aqui, não jazer. Caminhar. Habitar.
António Ramos Rosa, Antologia poética,
25 Eis a folha branca.
Lisboa, Dom Quixote, 2001.
Eis talvez o mar.
Contra ela, o quê?
Um barco uma caixa?

1. Explicita o significado do verso «Tudo começou.» (v. 16), tendo em consideração as


estrofes 4 a 7.

2. Explica a relação entre o eu lírico e a sua matéria poética.

3. Indica o tipo de frases dominantes na penúltima estrofe, esclarecendo o sentido que


adquirem no contexto global em que surgem.

4. Esclarece o valor expressivo da comparação presente na última estrofe.


Tradição literária
FI p. 34
5. Indica três características da lírica tradicional presentes no poema.

31
POETAS CONTEMPORÂNEOS

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

No silêncio da terra
No silêncio da terra. Onde ser é estar.
A sombra se inclina.
Habito dentro da grande pedra de água e sol.
Respiro sem o saber, respiro a terra.
5 Um intervalo de suavidade ardente e longa.
Sem adormecer no sono verde.
Afundo-me, sereno,
flor ou folha sobre folha abrindo-se,
respirando-me, fletindo-me
10 no intervalo aberto. Não sei se principio.
Um rosto se desfaz, um sabor ao fundo
da água ou da terra,
o fogo único consumindo em ar.
Eis o lugar em que o centro se abre
15 ou a lisa permanência clara,
abandono igual ao puro ombro
em que nada se diz
e no silêncio se une a boca ao espaço.
Pedra harmoniosa
20 do abrigo simples,
lúcido, unido, silencioso umbigo
António Carneiro, Paisagem (pormenor), 1897.
do ar.
Ai
o teu corpo
25 renasce
à flor da terra.
Tudo principia.
António Ramos Rosa, Antologia poética, Lisboa, Dom Quixote, 2001.

Representações do contemporâneo
1. Refere a expressividade inerente à presença dos quatro FI p. 34
elementos da Natureza, neste texto poético.

2. Explicita a relação entre o sujeito poético e a Terra.

3. Indica a sensação dominante ao longo do poema, justificando a sua expressividade.

4. Esclarece o valor expressivo da metáfora «Habito dentro da grande pedra de água e


sol.» (v. 3).

5. Comenta a diversidade de ritmos presentes no texto.

32
Ficha informativa

FICHA INFORMATIVA 1

Figurações do poeta
O construtor aspira a uma comunidade fraterna e solidária. Por isso, vive longe da
sociedade, convivendo apenas com alguns amigos e, quer solitário quer em companhia,
a sua construção é a constante renovação da sua vida. Se a existência é uma incessante
mudança, o móvel equilíbrio de ser implica uma abertura aos outros sem preconceitos
5 nem fantasias deformadoras. O deus do real não está no interior do sujeito, no círculo
fechado da confusa intimidade mas no rosto dos outros e é através desses rostos que
se perspetiva a construção humana de uma comunidade viva e essencialmente aberta.
Nas pulsações da convivência, o ser emerge dos seus obscuros labirintos e encontra o
polo do outro que o clarifica e assegura a sua móvel e aberta identidade. A verdadeira
10 origem solar reside neste encontro com o outro que, deste modo, ilumina o sujeito e o
erige em face da alteridade essencial. O deus da origem e do recomeço da vida revela,
assim, a sua integridade viva como ser da transformação e da mudança fértil do real.
O outro é uma condição inicial da construção e está sempre implícito nela mesmo
quando irrompe do círculo solitário do ser.
António Ramos Rosa, O aprendiz secreto, 2001 (disponível em http://antonioramosrosa.blogspot.pt/;
consultado a 15 de junho de 2023).

Arte poética
A atitude crítica que permanentemente exercitou sobre a sua própria palavra como
sobre a palavra alheia faz de António Ramos Rosa um dos mais esclarecidos críticos
portugueses contemporâneos, o que se manifesta em inúmeros artigos e recensões
sobre poetas portugueses e estrangeiros, bem como na publicação de vários ensaios
5 centrados na temática da poesia. António Ramos Rosa tem, no entanto, o cuidado de
separar de uma forma muito nítida a sua atividade de crítico, em que não pode deixar
de utilizar critérios e referências racionais, da sua atividade criadora: enquanto poeta
faz da ignorância e da radical suspensão de todos os saberes e hábitos adquiridos o
único método para a eclosão da sua palavra poética. Na verdade, a procura da palavra
10 justa para dizer as «coisas nuas» e a reflexão sobre a realidade e a possibilidade dessa
palavra é, talvez, o único tema desta poesia, na qual é, no entanto, possível assinalar
diferentes fases: recortando-se duma problemática neorrealista de solidariedade para
com o destino dos homens e do mundo, O grito claro (1958) e Viagem através duma
nebulosa (1960), utilizam uma linguagem e uma vivência ainda devedoras dessa esté-
15 tica, combinadas com uma imagética herdada do surrealismo. Mas encontramos já
de uma forma incipiente nessas primeiras recolhas algumas das constantes da obra do
poeta: um enraizamento pelo corpo na Terra, não numa Terra utópica e futura, mas na
materialidade mais originariamente primitiva da natureza; uma libertação, pela palavra
mais solitária, de todas as prisões e constrangimentos que a poderiam cercear; uma
20 permanente atenção à materialidade da própria linguagem poética, que a desliga tanto Armando Alves, Sem Título, 1954.
da sua função representativa como da sua função expressiva […].
Elídio Rocha (coord.), Dicionário cronológico de autores portugueses, Vol. V,
Lisboa, Europa-América, 1998.

33
ANTÓNIO RAMOS ROSA

FICHA INFORMATIVA 2

Tradição literária
Todo o ato de criação pressupõe a constituição ou autoconstrução do eu, como,
aliás, a sua relação com os outros. Esta relação com os outros pressupõe, por sua vez,
a participação numa certa ordem de valores morais, um plano de controlo e de reso-
lução cultural da vida instintiva. É, sem dúvida, a afetividade que está na origem da
5 realização humana como na da criação artística ou literária.
António Ramos Rosa, A parede azul: estudos sobre poesia e artes plásticas, Lisboa,
Caminho, 1991.

Representações do contemporâneo
Ramos Rosa foi um poeta eminentemente moderno, no sentido em que funda a
sua poesia numa certa consciência trágica própria da modernidade, a consciência da
ausência, de um intervalo insuperável entre as palavras e as coisas (por isso, o livro de
Foucault que traduziu o deve ter fascinado), da convicção de que a poesia só pode dizer
5 alguma coisa do mundo dizendo muito de si. Daí, a insistência no próprio ato do dizer
e da nomeação: «Digo árvore como um grito / ou chamo as folhas, o vento a terra o
fogo / Onde é que o pulso vibra com a tensão do nome? / Onde é que pedra a pedra se
diz o nome e a ferida?». Uma questão maior da poética de Ramos Rosa é precisamente a
da luta obstinada e inquieta com as palavras, a do caráter órfico da nomeação. Por isso,
10 escrever é em si mesmo um tema privilegiado, como acontece neste poema em prosa
que se chama «A superfície da página»: «Escrevo sem acreditar, escrevo, isto é, vou
de sombra em sombra, apago-me e apago a ordem do discurso, as perentórias leis dos
homens. Há uma palavra que viaja no mar, há uma palavra viva no espaço, no rumor da
vida, no silêncio inominável das coisas». Escrever, no infinitivo, remete para a origem e
15 não para o resultado, para a poesia como acontecimento puro e meio de reflexão e não
para o poema como cumprimento de um objetivo. Daí um paradoxo muito comum na
poesia de Ramos Rosa: o poema pretende ser anterior a si próprio e revelar o momento
em que era ainda ausente. Daí que ele seja muitas vezes uma interrogação de si mesmo.
É, como observou Eduardo Lourenço, uma «aventura ontológica».
António Guerreiro, «A poesia como imperativo», in Público, 25 de setembro de 2013
(disponível em https://www.publico.pt; consultado a 15 de junho de 2023).

CONSOLIDA

1. Elabora tópicos que sistematizem as ideias-


-chave dos textos.

Gustave Loiseau, Paisagem, 1907.


34
Alexandre O’Neill
Assinava O’Neill, o apelido que já seu pai
usara, herdado de um antepassado irlandês
fugido para Lisboa na década de 40 do século
XVIII. O nome completo era Alexandre
5 Manuel Vahia de Castro O’Neill de Bulhões.

Nasceu em Lisboa, a 19 de dezembro de 1924.


Ainda estudante do Liceu, Alexandre ini-
ciou-se na escrita. Em 1942, com dezassete
anos, publicou os primeiros versos num jornal
10 de Amarante, o Flor do Tâmega. Esta atividade

não foi grandemente incentivada pela família.


Apesar de ter recebido prémios literários no
Colégio Valsassina, no final da adolescência
Alexandre falhava nos estudos. Acabou por
15 abandonar o Curso Geral dos Liceus: queria dedicar-se à vida marítima. Fez exames
para a Escola Náutica, mas não prosseguiu estudos.
Data de 1947 o seu ardente envolvimento com o Surrealismo. Depois de um verão
de ativas experiências e leituras, o Grupo Surrealista de Lisboa nasce de um encontro
na pastelaria Mexicana, em outubro. Será constituído por Alexandre O’Neill, Antó-
20 nio Domingues, Fernando Azevedo, Vespeira, José-Augusto França, Mário Cesariny,
Moniz Pereira e António Pedro.
Em janeiro de 1949 realiza-se a Exposição do Grupo Surrealista de Lisboa, do qual,
entretanto, já se tinham afastado Mário Cesariny e António Domingues. Acompa-
nhando o seu progressivo afastamento do Grupo Surrealista de Lisboa, o poeta publica
25 em 1951 Tempo de fantasmas, em cujo prefácio se demarca claramente do Surrealismo1.
Neste primeiro livro de poesia inclui o poema que o tornou célebre «Um adeus portu-
guês», originado num episódio biográfico.
Sendo um oposicionista, não militou em nenhum partido político, nem durante o
1 Surrealismo: movimento literá-
Estado Novo, nem a seguir ao 25 de Abril – conhece-se-lhe uma breve ligação ao MUD rio e artístico, nascido das ideias
30 juvenil, na altura em que abandona o Grupo Surrealista de Lisboa. […] O seu empenho freudianas sobre o inconsciente
e o sonho como meios de liber-
era sobretudo cultural: apreciou o trabalho nas Bibliotecas Itinerantes porque ia «dis- tação das preocupações racio-
tribuir livros ao povo»; gostava de traduzir poetas nas suas crónicas jornalísticas, para os nais, morais, lógicas.

mostrar ao público em geral. Mas foi em 1958, com a edição de No reino da Dinamarca,
que Alexandre O’Neill se viu reconhecido como poeta […].
35 Morreu em Lisboa a 21 de agosto de 1986.
Maria Antónia Oliveira (disponível em http://cvc.instituto-camoes.pt;
texto adaptado, consultado a 14 de junho de 2023).

PONTO DE PARTIDA

1. Atenta nas palavras de Pedro Lamares e na declamação dos poemas «Por-


tugal» e «Um adeus português». Seguidamente, classifica as afirmações
como verdadeiras (V) ou falsas (F). Corrige as falsas.
a) O poema «Portugal» é uma sátira à inércia dos portugueses, no presente.
b) No poema «Portugal», o recurso expressivo predominante é a hipérbole.
c) O poema «Um adeus português» critica Portugal da década de 50. Recital de poesia
Pedro Lamares
d) Alexandre O’Neill foi impedido de sair de Portugal pelo Estado Novo.
35
POETAS CONTEMPORÂNEOS

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Autorretrato
O’Neill (Alexandre), moreno português,
cabelo asa de corvo; da angústia da cara,
nariguete que sobrepuja1 de través2
a ferida desdenhosa e não cicatrizada.
5 Se a visagem de tal sujeito é o que vês
(omita-se o olho triste e a testa iluminada)
o retrato moral também tem os seus quês
(aqui, uma pequena frase censurada...)
No amor? No amor crê (ou não fosse ele O’Neill!)
10 e tem a veleidade3 de o saber fazer
(pois amor não há feito) das maneiras mil
que são a semovente4 estátua do prazer. Amedeo Modigliani, Cabeça de Homem,
Mas sofre de ternura, bebe de mais e ri-se 1915.

do que neste soneto sobre si mesmo disse...


1 Sobrepuja: ergue, sobreleva.
Alexandre O’Neill, «Poemas com endereço», in 2 Través: lado, soslaio.
Poesias completas, Lisboa, Assírio & Alvim, 2012. 3 Veleidade: capricho.
4 Semovente: que se move por si
mesma.

1. Após a leitura do poema, completa o autorretrato de O’Neill, comprovando-o com


elementos do poema.

Autorretrato de Alexandre O’Neill

Característica Expressão
− moreno − «moreno português»
− cabelo preto −
Características físicas − −
− −
− −
− angustiado − «angústia da cara»
− − «a ferida desdenhosa»
Características psicológicas
− −
e morais
− −
− −

Figurações do poeta
2. Explicita a relação do sujeito poético com o amor. FI p. 41

3. Indica a importância do primeiro verso, relacionando-o com o título do poema.

4. Aponta o recurso expressivo presente na expressão «a ferida desdenhosa» (v. 4), explici-
tando o respetivo valor.

5. Explica o último verso do poema, atendendo à sua estrutura.

36
Alexandre O’Neill

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Portugal
Ó Portugal, se fosses só três sílabas,
linda vista para o mar,
Minho verde, Algarve de cal,
jerico1 rapando o espinhaço da terra,
5 surdo e miudinho,
moinho a braços com um vento
testarudo, mas embolado2 e, afinal, amigo,
se fosses só o sal, o sol, o sul,
o ladino3 pardal,
10 o manso boi coloquial,
a rechinante4 sardinha,
a desancada varina, António Carneiro, Contemplação, 1911.

o plumitivo5 ladrilhado de lindos adjetivos,


a muda queixa amendoada
15 duns olhos pestanítidos,
se fosses só a cegarrega6 do estio, dos estilos,
o ferrugento cão asmático das praias,
o grilo engaiolado, a grila no lábio,
o calendário na parede, o emblema na lapela,
20 ó Portugal, se fosses só três sílabas
de plástico, que era mais barato!

*
Doceiras de Amarante, barristas de Barcelos,
rendeiras de Viana, toureiros da Golegã,
não há «papo-de-anjo» que seja o meu derriço7, 1 Jerico: burro.
2 Embolado: arredondado.
25 galo que cante a cores na minha prateleira,
3 Ladino: vivo, esperto.
alvura arrendada para o meu devaneio, 4 Rechinante: que produz som
agudo.
bandarilha que possa enfeitar-me o cachaço.
5 Plumitivo: que está escrito.
6 Cegarrega: som produzido pela
cigarra.
Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo,
7 Derriço: escárnio, troça.
golpe até ao osso, fome sem entretém, 8 Rocim: cavalo.
30 perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes,
rocim8 engraxado,
feira cabisbaixa,
meu remorso,
meu remorso de todos nós...

Alexandre O’Neill, Poesias completas 1951/1986, Lisboa, IN-CM, 1995.

37
POETAS CONTEMPORÂNEOS

1. Justifica o título do poema.

2. Explica a intenção subjacente às expressões «se fosses só Arte poética


FI p. 41
três sílabas (v. 1), «se fosses só o sal» (v. 8) e «se fosses só a
cegarrega do estio» (v. 16).

3. Demonstra a existência de sentimentos antagónicos em relação à pátria.

4. Explicita o valor expressivo da antítese «feira cabisbaixa» (v. 32).

5. Esclarece de que modo o sujeito poético passa do individual ao coletivo, na conclusão


do poema.

GRAMÁTICA
Funções sintáticas
1. Assinala a opção correta nos itens que se seguem. SIGA pp. 356-359

1.1 O constituinte «Ó Portugal» (v. 1) desempenha a função sintática de


A. sujeito (simples).
B. complemento direto.
C. sujeito (composto).
D. vocativo.
1.2 O constituinte «com um vento / testarudo» (vv. 6-7) desempenha a função sintática
de
A. modificador.
B. complemento oblíquo.
C. complemento do nome.
D. modificador do nome restritivo.
1.3 O elemento destacado em «a muda queixa amendoada» (v. 14) desempenha a fun-
ção sintática de
A. modificador do nome restritivo.
B. modificador do nome apositivo.
C. modificador.
D. complemento do nome.
1.4 A oração subordinada adjetiva relativa «que possa enfeitar-me o cachaço» (v. 27)
desempenha a função sintática de
A. sujeito.
B. complemento direto.
C. modificador do nome restritivo.
D. modificador do nome apositivo.
1.5 A forma do verbo ser (v. 1) encontra-se no Classes e subclasses de palavras
SIGA pp. 351-355
A. futuro do indicativo.
B. condicional.
C. pretérito imperfeito do conjuntivo.
D. pretérito imperfeito do indicativo.

38
Alexandre O’Neill

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Perfilados de medo
Perfilados de medo, agradecemos
o medo que nos salva da loucura.
Decisão e coragem valem menos
e a vida sem viver é mais segura.

5 Aventureiros já sem aventura,


perfilados de medo combatemos
irónicos fantasmas à procura
do que não fomos, do que não seremos.

Perfilados de medo, sem mais voz,


10 o coração nos dentes oprimido,
os loucos, os fantasmas somos nós.

Emil Nolde, No inverno, 1907.


Rebanho pelo medo perseguido,
já vivemos tão juntos e tão sós
que da vida perdemos o sentido...
Alexandre O’Neill, Poesias completas 1951/1986,
Lisboa, IN-CM, 1995.

1. Comenta a expressividade do título do poema.

2. Explica, por palavras tuas, as ideias antitéticas presentes na primeira estrofe.

3. Explicita a atitude dos «Aventureiros já sem aventura» (v. 5).

4. Identifica dois recursos expressivos presentes na última estrofe, referindo o respetivo


valor.
Tradição literária
FI p. 41
5. Indica uma característica da lírica tradicional presente no texto.

ORALIDADE EXPRESSÃO ORAL

Apresentação oral

1. Pesquisa alguns dos factos históricos associados ao regime político fascista:


Estado Novo; Salazar; Censura; PIDE; Guerra Colonial; Mocidade Portuguesa; Educa-
ção durante o período do Estado Novo…

De acordo com as orientações do professor, apresenta um dos tópicos à turma. Even-


tualmente, poderás enriquecer a tua exposição com a apresentação de um excerto de um
documentário, de uma entrevista, de uma canção de intervenção…
Planifica a tua apresentação oral, estruturando-a com uma introdução, explanação do
tema e conclusão.

39
POETAS CONTEMPORÂNEOS

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Fala!
Fala a sério e fala no gozo
fá-la p’la calada e fala claro
fala deveras saboroso
fala barato e fala caro

5 Fala ao ouvido fala ao coração


falinhas mansas ou palavrão

Fala à miúda mas fá-la bem


Fala ao teu pai mas ouve a tua mãe

Fala franciú fala béu-béu

10 Fala fininho e fala grosso


Edvard Munch, Vida (pormenor), 1910.
desentulha a garganta levanta o pescoço

Fala como se falar fosse andar


fala com elegância muita e devagar.
Alexandre O’Neill, Poesias completas 1951/1986,
Lisboa, IN-CM, 1995.

1. Explicita a intenção subjacente ao recurso do imperativo dos verbos falar e fazer.

2. Comenta a expressividade do recurso expressivo presente ao longo de todo o poema.


Representações do contemporâneo
3. Indica as representações do contemporâneo presentes no FI p. 42
poema.

ESCRITA
Texto de opinião
SIGA pp. 344-345
Texto de opinião
«Que quis eu da poesia? Que quis ela de mim? Não sei bem. Mas há uma palavra
francesa com a qual posso perfeitamente exprimir o rompante mais presente em tudo
o que escrevo: dégonfler. Em português, traduzi-la-ia por desimportantizar, ou, em
certos momentos, por aliviar, aliviar os outros, e a mim primeiro, da importância que
julgamos ter.»
Alexandre O’Neill, por Maria Antónia Oliveira (disponível em http://cvc.instituto-camoes.pt;
consultado a 14 de junho de 2023).

1. Elabora um texto de opinião bem estruturado (introdução, desenvolvimento, conclu-


são), de duzentas a trezentas palavras, no qual apresentes a tua opinião sobre a poética
de Alexandre O’Neill.

40
Ficha informativa

FICHA INFORMATIVA 1

Figurações do poeta
Para escapar a essa «invenção atroz a que se chama o dia a dia», O’Neill viveu
intensamente, desregradamente, até ao osso, levando à letra aquele mandamento que
ele mesmo ditou para o Grupo Surrealista de Lisboa, em 1949, «quem se destrói não
se cansa», diz Maria Antónia Oliveira. Por isso, recusou sempre fazer da poesia uma
5 carreira, dizia que não trocava um copo com amigos por um poema. Por isso, desmul-
tiplicou-se em trabalhos, desde a secretaria da Caixa de Previdência de Trabalhadores
do Comércio, nos anos 40, até à escrita de textos televisivos para Florbela Queiroz, nos
anos 70. Por isso, riu de quem se ria dele, do meio literário que sempre olhou de lado
enquanto tentava, sem sucesso, arranjar um lugar onde coubesse o seu tom antilírico,
10 a sua ironia, os seus jogos de linguagem e, sobretudo, aquele mundo de gente e de
coisas que ele trazia para a poesia e que o meio considerava não serem «sérias», não
serem «poéticas», ou mesmo «de mau gosto».
Joana Emídio Marques, «Alexandre O’Neill, há 30 anos sem ti nesta feira cabisbaixa», 21 de agosto de
2016, Observador (disponível em http://observador.pt; consultado a 14 de junho de 2023).

Arte poética
E qual é o projeto de O’Neill? À partida, ele coincide com o programa do Sur-
realismo: a libertação total do Homem e a libertação total da arte. O que implica:
primeiro, uma poesia de «intervenção», exortando os Homens a libertarem-se de cons-
trangimentos de toda a ordem que os tolhem e os oprimem (familiares, sociais, morais,
5 políticos, psicológicos, quotidianos, etc.); segundo, a libertação da palavra de todas
as formas de censura (estética, moral, lógica, do bom senso). Como se vê, um projeto
revolucionário […]. A libertação da palavra funciona como sinédoque da libertação do
Homem.
Clara Rocha, prefácio de Poesias completas 1951/1986, Lisboa, IN-CM, 1995.

Tradição literária
O Autor apresenta, sempre de forma renovada e
muitas vezes […] de maneira sintética, temas essenciais,
procurando desfazer ideias-feitas, arredar lugares-co-
muns e rotas-batidas na apreciação das obras de certos
5 escritores ou relativamente a modos de sentir e de pen-
sar condicionantes de formas de agir, para os quais que-
ria atrair a atenção do maior número de leitores e/ou
ouvintes.
Laurinda Escoval Bom, Alexandre O’Neill, Prosas de um poeta,
Dissertação de Doutoramento, 2016.

Armando Alves, Sem Título, 1995.

41
ALEXANDRE O’NEILL

FICHA INFORMATIVA 2

Representações do contemporâneo
A postura de desdém irónico perante a instituição literária não é senão a outra face
da moeda de uma escrita poética fundamentada na recusa de qualquer misticismo,
transcendência ou hermetismo tradicional, todo ocupado no tricot das palavras ou no
fazer «bonito». As palavras são «animais doentes»: a consciência trágica do desgaste
5 da linguagem, do peso que o tempo veio acumulando sobre as palavras, transforma-a
O’Neill ironicamente em jogo – tudo é reconstruído, parodiado e reaproveitado: calão,
idiotismos, entoações. A representação exemplar do peso histórico da linguagem é,
sem dúvida, o lugar-comum – a sua fonte predileta de desconstrução. Neste sentido,
é uma poesia do quotidiano, o que não equivale a dizer que é uma poesia realista strictu
10 sensu. Talvez se lhe possa pôr o rótulo de realismo subversivo, um realismo transtor-
nado por um olhar alucinado simultaneamente por Cesário Verde e pela breve mas
fortíssima experiência surrealista.
«Sou parecidíssimo com a minha poesia. Mesmo no dia a dia, no próprio trabalho.
Entre a minha expressão coloquial e a minha expressão poética não há distância. A dife-
15 rença será de intensidade, ou ao que se pode chamar intensidade.»
Alexandre O’Neill, por Maria Antónia Oliveira (disponível em
http://cvc.instituto-camoes.pt; consultado a 14 de junho de 2023).

CONSOLIDA

1. Com base nos textos que acabaste de ler, classifica as afirmações como verdadeiras (V)
ou falsas (F). Corrige as falsas.
a) Alexandre O’Neill não fez da poesia a
sua carreira porque ela não era con-
siderada «séria», «poética ou de bom
gosto».
b) A libertação da palavra e da poesia é
sinónimo de libertação do Homem.
c) O poeta recusava tratar temas já
muito discutidos e sobre os quais
havia já opinião muito marcada.
d) Alexandre O’Neill usava as palavras
5
em todas as suas formas, fugindo
à tradição, para falar das coisas do
quotidiano, do seu dia a dia.

Nikias Skapinakis, Paisagem,


1950.

42
Herberto Helder
Herberto Helder Luís Bernardes
de Oliveira nasceu a 23 de novembro
de 1930 no Funchal, ilha da Madeira.
Depois de vários estudos em Coimbra
5 e em Lisboa, em 1954, data da publica-

ção do seu primeiro poema, regressa à


Madeira onde trabalha como meteoro-
logista, seguindo depois para a ilha de
Porto Santo. Quando em 1955 regressa
10 a Lisboa, frequenta o grupo do Café

Gelo, de que fazem parte nomes como


Mário Cesariny, Luiz Pacheco, Antó-
nio José Forte, João Vieira e Hélder
Macedo. Três anos mais tarde, em 1958,
15 publica o seu primeiro livro, O amor em

visita. Durante os anos que se seguiram


vive em França, Holanda e Bélgica.
Repatriado em 1960, torna-se encarregado das bibliotecas itinerantes da Fundação
Calouste Gulbenkian, percorrendo as vilas e aldeias do Baixo Alentejo, Beira Alta e
20 Ribatejo. Nos dois anos seguintes publica os livros A colher na boca, Poemacto e Lugar.
Em 1963, começa a trabalhar para a Emissora Nacional como redator de noticiário
internacional, período durante o qual vive em Lisboa. Ainda nesse mesmo ano publica
Os passos em volta e produz A máquina de emaranhar paisagens.
Em 1970, viaja por Espanha, França, Bélgica, Holanda e Dinamarca e escreve Os
25 brancos arquipélagos. Em 1971, desloca-se para Angola onde trabalha como redator
numa revista. Enquanto repórter de guerra é vítima de um grave desastre tendo de ser
hospitalizado durante três meses. Regressa a Lisboa e parte de novo, desta vez para os
EUA, em 1973, ano durante o qual publica Poesia toda, obra que contém toda a sua
produção poética. Em 1975, passa alguns meses em França e Inglaterra, regressando
30 posteriormente a Lisboa onde trabalha na rádio e em revistas. Em 1994, foi-lhe atri-
buído o Prémio Pessoa, que recusou. Faleceu em Cascais, a 23 de janeiro de 2015.

PONTO DE PARTIDA

1. Visiona a notícia sobre o poeta Herberto


Helder com intervenção de Gastão Cruz e
Nuno Júdice.
1.1 Recolhe informação sobre as caracterís-
ticas do poeta e depois partilha-a com os
teus colegas.

Herberto Helder
SIC.

43
POETAS CONTEMPORÂNEOS

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Gustave Caillebotte, Três pescadores num barco, 1888.

Aos amigos
Amo devagar os amigos que são tristes com cinco dedos de cada lado.
Os amigos que enlouquecem e estão sentados, fechando os olhos,
com os livros atrás a arder para toda a eternidade.
Não os chamo, e eles voltam-se profundamente
5 dentro do fogo.
− Temos um talento doloroso e obscuro.
Construímos um lugar de silêncio.
De paixão.
Herberto Helder, «Ofício cantante», in Poesia completa, Lisboa,
Assírio & Alvim, 2009.

1. O sujeito poético exprime um sentimento face aos amigos. Figurações do poeta


FI p. 50
Refere-o e explica-o.

2. Caracteriza, por palavras tuas, os amigos que são convocados no poema.

3. Interpreta o uso do travessão no sexto verso.


Linguagem, estilo
4. Relaciona o «lugar de silêncio» com o fogo, a paixão. FI e estrutura
p. 52

GRAMÁTICA
Funções sintáticas
SIGA pp. 356-359
1. Identifica a função sintática da oração destacada.
a) «Amo devagar os amigos que são tristes com cinco dedos de cada lado.» (v. 1)

44
Herberto Helder

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Sobre um poema
Um poema cresce inseguramente
na confusão da carne,
sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,
talvez como sangue
5 ou sombra de sangue pelos canais do ser.

Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência


ou os bagos de uva de onde nascem
as raízes minúsculas do sol.
Fora, os corpos genuínos e inalteráveis
10 do nosso amor,
os rios, a grande paz exterior das coisas,
as folhas dormindo o silêncio,
as sementes à beira do vento
− a hora teatral da posse.
15 E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.

E já nenhum poder destrói o poema.


Insustentável, único,
invade as órbitas, a face amorfa das paredes, Mário Eloy, Sem título, s.d.

a miséria dos minutos,


20 a força sustida das coisas,
a redonda e livre harmonia do mundo.

− Em baixo o instrumento perplexo ignora


a espinha do mistério.
− E o poema faz-se contra o tempo e a carne.
Herberto Helder, «Ofício cantante», in Poesia completa, Lisboa, Assírio & Alvim, 2009.

1. Podemos afirmar que «Sobre um poema» corresponde a um «ato metapoético».


Arte poética
1.1 Explica esta afirmação. FI p. 50

2. Apresenta as razões pelas quais o «poema cresce inseguramente» (v. 1).

3. Interpreta os versos 15 e 16, explicitando em que consiste esse poder indestrutível do


poema.

4. Analisa a forma como é descrita a invasão do poema à «redonda e livre harmonia do


mundo» (v. 21).

5. Comenta o último verso do poema.

45
POETAS CONTEMPORÂNEOS

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

A paixão grega
Li algures que os gregos antigos não escreviam necrológicos1,
quando alguém morria perguntavam apenas:
tinha paixão?
quando alguém morre também eu quero saber
5 da qualidade da sua paixão:
se tinha paixão pelas coisas gerais,
água,
música,
pelo talento de algumas palavras para se moverem no caos,
10 pelo corpo salvo dos seus próprios precipícios
em destino à glória,
paixão pela paixão,
tinha?
e então indago de mim se eu próprio tenho paixão,
15 se posso morrer gregamente,
que paixão?
os grandes animais selvagens extinguem-se na terra,
os grandes poemas desaparecem nas grandes línguas
que desaparecem,
20 homens e mulheres perdem a aura
na usura,
na política,
no comércio,
na indústria,
25 dedos conexos,
há dedos que se inspiram nos objetos à espera,
trémulos objetos entrando e saindo
dos dez tão poucos dedos para tantos
objetos do mundo
30 e o que há assim no mundo
que responda à pergunta grega,
poder manter-se a paixão com fruta comida
ainda viva,
e fazer depois com sal grosso uma canção curtida
35 pelas cicatrizes,
palavra soprada a que forno com que fôlego,
que alguém perguntasse: tinha paixão?
1 Necrológicos: registos das pes-
soas falecidas em determinada afastem de mim a pimenta-do-reino,
data. o gengibre, o cravo-da-índia,
Henri Le Sidaner, Os enamorados – Grisors,
1912.

46
Herberto Helder

40 ponham muito alto a música e que eu dance,


fluido, infindável,
apanhado por toda a luz antiga e moderna,
os cegos, os temperados, ah não,
que ao menos me encontrasse a paixão
45 e eu me perdesse nela
a paixão grega.
Herberto Helder, A faca não corta o fogo:
súmula & inédita, Lisboa, Assírio & Alvim, 2008.

1. Refere em que consiste a presença da tradição grega neste poema. FI


Tradição literária
p. 51

2. Relaciona a posição do sujeito poético face a essa tradição.

3. Identifica expressões que contribuam para o conceito de figurações do ato poético


presentes no texto.

4. Salienta a importância que a ideia de morte desempenha no contexto Linguagem, estilo e estrutura
FI p. 52
do poema.

5. No final do poema, o sujeito poético manifesta uma aspiração.


5.1 Explicita-a e transcreve os versos em que a exprime.

GRAMÁTICA

1. Para responderes aos itens de 1.1 a 1.3, seleciona a única opção correta. Funções sintáticas
SIGA pp. 356-359

1.1 Em «também eu quero saber / da qualidade de uma paixão» (vv. 4-5),


os elementos destacados desempenham a função sintática de
A. predicativo do sujeito.
B. sujeito.
C. complemento direto.
D. modificador do grupo verbal.
1.2 Em «pelo talento de algumas palavras para se moverem no caos» (v. 9), os elemen-
tos destacados desempenham a função sintática de
A. modificador do grupo verbal.
B. modificador do nome restritivo.
C. modificador do nome apositivo.
D. sujeito.
1.3 Em «e então indago de mim se eu próprio tenho paixão» (v. 14), os elementos desta-
cados desempenham a função sintática de
A. modificador do grupo verbal.
B. predicativo do sujeito.
C. sujeito.
D. complemento direto.

47
POETAS CONTEMPORÂNEOS

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Não sei como dizer-te


Não sei como dizer-te que a minha voz te procura
e a atenção começa a florir, quando sucede a noite
esplêndida e casta1.
Não sei o que dizer, especialmente quando os teus pulsos
5 se enchem de um brilho precioso
e tu estremeces como um pensamento chegado. Quando
iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado
pelo pressentir de um tempo distante,
e na terra crescida os homens entoam a vindima,
10 – eu não sei como dizer-te que cem ideias,
dentro de mim, te procuram.

Quando as folhas da melancolia arrefecem com astros


ao lado do espaço
o coração é uma semente inventada
15 em seu ascético2 escuro e em seu turbilhão de um dia,
1 Casta: pura. tu arrebatas3 os caminhos da minha solidão
2 Ascético: prática do ascetismo,
como se toda a minha casa ardesse pousada na noite.
modo de vida contemplativo e
de perfeição espiritual. – E então não sei o que dizer
3 Arrebatas: arrancas com violên-
junto à taça de pedra do teu tão jovem silêncio.
cia.
20 Quando as crianças acordam nas luas espantadas
que às vezes caem no meio do tempo,
– não sei como dizer-te que a pureza,
dentro de mim, te procura.

Durante a primavera inteira aprendo


25 os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstrato
correr do espaço –
e penso que vou dizer algo cheio de razão,
mas quando a sombra vai cair da curva sôfrega
dos meus lábios sinto que me falta
30 um girassol, uma pedra, uma ave – qualquer
coisa extraordinária.
Porque não sei como dizer-te sem milagres
que dentro de mim é o sol, o fruto,
a criança, a água, o deus, o leite, a mãe,
35 o amor,

que te procuram.
Vincent van Gogh, O lote com girassol, 1887.
Herberto Helder, Poesia toda, Lisboa, Assírio & Alvim, 1996.

48
Herberto Helder

1. Este poema desenvolve-se em torno de uma ideia de impossibilidade.


Representações do contemporâneo
1.1 Indica em que consiste essa impossibilidade. FI p. 51

2. Caracteriza a relação eu-tu presente no poema.

3. Salienta características de uma poética amorosa e erótica e transcreve os versos mais


significativos.

4. Identifica dois recursos expressivos e salienta a sua expressividade.


Linguagem, estilo e estrutura
5. Explicita a utilização de elementos da natureza ao longo FI p. 52
do poema.

GRAMÁTICA
Funções sintáticas
1. Indica a função sintática que as orações destacadas SIGA pp. 356-359
desempenham.
a) «− eu não sei como dizer-te que cem ideias, / dentro de mim, te procuram.» (vv. 10-11).
b) «e penso que vou dizer algo cheio de razão» (v. 27).

2. Classifica as seguintes orações. Coordenação e subordinação


SIGA pp. 361-363
a) «que a minha voz te procura» (v. 1).
b) «quando sucede a noite / esplêndida e casta» (vv. 2-3).
c) «e tu estremeces» (v. 6).
d) «como se toda a minha casa ardesse» (v. 17).

ESCRITA

Apreciação crítica

1. Visiona o trailer do filme Por falar de amor (2013), Apreciação crítica


SIGA pp. 342-343
com Juliette Binoche, realizado por Fred Schepisi.

1.1 Elabora uma apreciação crí-


tica sobre o trailer e a sua rela-
ção com o poema de Herberto
Helder, tendo em conta o se-
guinte tópico.
• A importância da palavra
e das artes na vida.

Planifica, redige e revê o teu texto,


de modo a aperfeiçoares a sua versão Por falar de amor
REAL. Fred Schepisi
final.

49
HERBERTO HELDER

FICHA INFORMATIVA 1

Figurações do poeta
Um poeta do excesso, do verso longo, órfico1 e visionário2, trabalhador incansável
de metáforas e símbolos, mais voltado para os enigmas da vida do que para o banal
quotidiano. Herberto construiu uma obra que é um universo inteiro, viveu para o ofício
poético, estendeu a língua portuguesa a uma nova exuberância. A sua poesia, diz-nos o
5 escritor António Cabrita: «é um coração que tem que ser comido à mão».
Em 1964, numa das raras entrevistas que concedeu, Herberto Helder explica um
pouco a sua posição perante a poesia, que é também uma posição perante o mundo:
1 Órfico: com características de
Orfeu, músico excecional (e, «Os cinco livros que até hoje publiquei pouco significam agora para mim. O pouco
por isso, símbolo da música, significarem garante-me completa liberdade e isenção, em ordem a uma nova lingua-
da poesia e da arte) e também
revelador de mistérios sagrados. 10 gem […]. Interessa-me, portanto, chegado que sou à convicção de me haver limitado,
2 Visionário: aquele que julga ter
nos livros anteriores, a mover-me em círculo sobre uma linguagem esgotada – interes-
visões, que antecipa o futuro,
que tem ideias criativas e inova- sa-me, digo, muito menos executar uma gramática literária, destinada ao diálogo, do
doras. que perfazer um organismo internamente coerente e bastante. A comunicação será
3 Paramentos: adornos.
consequente, se for. De qualquer modo, bani a ideia do diálogo no meu estilo. Mas
15 sinto-me ligado aos escritos antigos como alguém se pode sentir ligado a um paciente
e doloroso erro…».
Joana Emídio Marques, «Herberto Helder: morreu o poeta que nunca se deixou capturar», 25 de março
de 2015 (disponível em http://observador.pt; consultado a 14 de junho de 2023).

Arte poética
O conceito célebre, celebérrimo, de que o poema é um objeto − bom, tornou-se
um lugar-comum, já nem sequer se pensa nisso, di-lo toda a gente: os poemas são
objetos −, ora esse conceito estabeleceu-se num terreno móvel, movediço; sim, obje-
tos, mas como paramentos3, ornamentos e instrumentos: as máscaras, os tecidos, as
5 peles e tábuas pintadas, os bastões, as plumas, as armas, as pedras mágicas. É prático
sempre o uso que deles se faz, uma resposta necessária ao desafio das coisas ou à sua
resistência e inércia. No entanto, repare, ou atuamos nas zonas do quotidiano de onde
não foi afugentado o maravilhoso ou existem outras zonas, um quotidiano da maravi-
lha, e então o poema é um objeto carregado de poderes magníficos, terríficos: posto
10 no sítio certo, no instante certo, segundo a regra certa, promove uma desordem e
uma ordem que situam o mundo num ponto extremo: o mundo acaba e começa. Aliás
não é exatamente um objeto, o poema, mas um utensílio: de fora parece um objeto,
tem as suas qualidades tangíveis, não é porém nada para ser visto mas para manejar.
Manejamo-lo. Ação, temos aquela ferramenta. A ação é a nossa pergunta à realidade;
15 e a resposta, encontramo-la aí: na repentina desordem luminosa em volta, na ordem
da ação respondida por uma espécie de motim, um deslocamento de tudo: o mundo
torna-se um facto novo no poema, por virtude do poema − uma realidade nova.
Herberto Helder, Público, 4 de dezembro de 1990 (disponível em http://www.porta33.com;
consultado a 14 de junho de 2023).
Gustave Loiseau, O Porto (pormenor),
1903.

50
Ficha informativa

FICHA INFORMATIVA 2

Tradição literária
Camões e Herberto são leitores da Bíblia. A diferença entre ambos provém, eviden-
temente, de que um fala do ponto de vista da crença e o outro da sua descrença. Podia
o ateísmo manifestar-se pelo ignorar o assunto, mas o que vemos são confrontações
com Deus e com Jesus, a renegação de princípios como o da alma, da ressurreição e
5 da salvação, e da tríade que o catolicismo reserva para eterna morada da alma: inferno,
purgatório e paraíso. De forma esquemática, diria então que Servidões se oferece à lei-
tura como um credo negativo. Este «Não creio» vai-se agravando até perto das páginas
finais, em que se revela o ponto mais alto da rebeldia herbertiana, a de uma escatologia1
no duplo sentido da palavra: «cheirava mal, a morto, até me purificarem pelo fogo, /
10 e alguém pegou nas cinzas e deitou-as na retrete e puxou o / autoclismo».
Maria Estela Guedes, «Na morte de Herberto Helder: o rio camoniano»,
Triplov de artes, religiões e ciências, N.º 51, abril-maio, 2015.

Representações do contemporâneo
FRM/JLA – Diga-nos se o seu livro de contos Os passos em volta constitui uma
experiência isolada ou representa uma continuação da sua obra restante.
HH – Esse livro pertence ao mesmo sistema de propostas e soluções dos outros.
Inscrevê-lo na designação de contos, ou chamar aos meus outros livros conjuntos de
5 poemas, significa apenas ausência de superfície às categorias estabelecidas. Não me
parece necessário referir a crise das classificações literárias. Caminha-se, sabemo-lo
todos, para uma visão total da obra literária, que se não podem adotar distinções afi-
nal nunca rigorosas, senão de um ponto de vista didático e, assim mesmo, somente
em determinado grau de didatismo, Os passos em volta são a minha primeira tentativa
10 para superar a dicotomia prosa-poesia. Marcam também o meu interesse, no momento
de referir algumas experiências de facto, em que a circunstância desempenhava papel
preponderante. Achei então que o poema, como eu o vinha praticando, não possuía
a elasticidade, o ritmo, o clima verbal, capazes de abranger, adequadamente, o tecido
temático e circunstancial que eu pretendia explorar. Aquele livro permitiu-me tal expe-
15 riência, tendo sido ele, afinal, um passo decisivo para a abolição dos preconceitos que
vinham limitando o meu trabalho.
Fernando Ribeiro de Mello (entrevista a Herberto Helder), Jornal de Letras e Artes, N.º 139, 17
de maio de 1964 (disponível em http://www.triplov.com; consultado a 14 de junho de 2023).

1 Escatologia: utilização de ou
gosto por expressões relacio-
nadas com fezes, imundície ou
CONSOLIDA obscenidades.

1. Sintetiza as ideias-chave dos quatro textos acima transcritos.

51
HERBERTO HELDER

FICHA INFORMATIVA 3

Linguagem, estilo e estrutura


Sendo Herberto Helder um dos maiores poetas europeus contemporâneos, a força
motriz da sua obra reside na inquietude da vigilância, na vontade de revisitação e de
questionamento incessante do seu ato poético. A sua poesia caracteriza-se por ser viva
e irrequieta, transbordando os limites daquilo que enuncia, extravasando-se para além
5 do seu contexto histórico-social e inaugurando novas zonas de exploração que lhe
concedem a designação de «poética de vanguarda».
Na poesia de Herberto Helder podemos distinguir três fases: a primeira é a da «iro-
nia mansa», onde se pode observar um desajuste entre expressão e problema, desajuste
esse que ajuda a desaprender para posteriormente se aprender uma outra coisa. Esta é
10 uma fase de confusão, onde o surrealismo e o anarquismo se entrelaçam; a segunda é a
correspondente à sua obra Electronicolírica, sendo que nesta fase se observa a combina-
ção de um número limitado de expressões e palavras mestras, criando uma linguagem
encantatória, ou seja, uma espécie de fórmula virtual mágica. Na segunda fase podemos
encontrar uma forte identificação com William Blake e Nietzsche; por fim, surge a
15 terceira fase, a dos «projetos da sensível inteligência do que nos vai acontecer», onde o
poeta descobre os vários graus de liberdade da sua poética, sendo esta uma fase ligada
ao signo da crença.
Os temas principais da obra de Herberto Helder − vida, morte, erotismo, poesia,
conhecimento e visão mágica do mundo − determinam, muito fortemente, o encanto
20 sentido pela imaginação e sensibilidade do leitor. A tendência fundamental do poeta é
para a identificação sistemática de quaisquer objetos, sendo assim impossível desenvol-
ver os assuntos em compartimentos distintos e rígidos, o que torna obrigatória uma
inter-relação. Herberto Helder utiliza também palavras quotidianas, como sal, camisa,
entre outras, que ocupam uma presença familiar nos seus textos, estabelecendo as áreas
25 lexicais privilegiadas pelo autor, fazendo do espaço verbal revelador do poder mágico
desencadeado pelos objetos e determinando a imagem que o poeta tem de si e do lugar
onde se movimenta. Pode também afirmar-se que a obra deste poeta reata e estabelece
laços com a secreta verdade dos seres, através de uma linguagem obscura, a fim de
exprimir o que de mais simples existe na sua existência. Os seus textos apresentam uma
30 inspiração tumultuosa, de ordem carnavalesca, que dá origem à multiplicação dos sinais
que o poeta deixa de si no poema.
«Universo poético de Herberto Helder» (disponível em http://www.citi.pt;
consultado a 15 de junho de 2023).

CONSOLIDA

1. De acordo com as ideias do texto, completa as frases seguintes.


a) A sua poesia caracteriza-se pela sua vivacidade e irrequietude por…
b) Na poesia de Herberto Helder podemos distinguir três fases. Na primeira…
c) Herberto Helder utiliza uma linguagem verbal quotidiana, que revela…

Pierre Bonnard, Sinfonia pastoral (pormenor),


1916.

52
Ruy Belo
Ruy de Moura Ribeiro Belo nasceu em
S. João da Ribeira, uma pequena aldeia do
concelho de Rio Maior, em 1933, e faleceu em
Queluz, em 1978. A sua infância decorreu no
5 Ribatejo. Estudou no Liceu Sá da Bandeira,

em Santarém, e prosseguiu estudos na Univer-


sidade de Coimbra, onde concluiu, em 1956,
o curso de Direito, e na Universidade de Lis-
boa, onde se licenciou em Filologia Româ-
10 nica, em 1967. O seu percurso académico

integra também o Doutoramento em Direito


Canónico, realizado na Pontifícia Universi-
dade de Estudos São Tomás de Aquino, em
Roma.
15 Ruy Belo foi diretor literário de uma edi-
tora, tradutor, advogado e professor na Escola Técnica do Cacém, tendo também
desempenhado funções de leitor de Português na Universidade de Madrid, a partir de
1971. Em 1977, regressou a Portugal, mas faleceu subitamente, no ano seguinte.
É um dos poetas mais relevantes da literatura portuguesa contemporânea, que
20 também se notabilizou como ensaísta e crítico literário, tendo colaborado em várias
revistas.
Da sua obra poética fazem parte Aquele Grande Rio Eufrates (1961), a sua primeira
publicação, a que se seguiram O problema da habitação – Alguns aspetos (1966), Boca
bilingue (1966), Toda a Terra (1976) e Despeço-me da Terra da Alegria (1978). Reuniu
25 também textos críticos em Na senda da poesia (1969).
Atualmente, a obra poética de Ruy Belo encontra-se reunida em dois volumes publi-
cados pela Editorial Presença, com organização e comentários de Joaquim Manuel
Magalhães.

PONTO DE PARTIDA

1. Atenta nas palavras de Luís Adriano Carlos sobre a poética de Ruy Belo.
1.1 Classifica as afirmações como verdadeiras (V) ou falsas (F). Corrige as falsas.
a) Ruy Belo afirmou que «os poetas não têm
biografia».
b) A poética de Ruy Belo apresenta uma
metafísica sublime.
c) Ruy Belo é um escritor inferior a Camões,
Pessoa e Jorge de Sena.
d) Ruy Belo optou pelo verso livre, com
grande força e energia.
e) O poeta usou sabiamente a linguagem
para abordar os grandes problemas exis- «No rasto da poesia de Ruy Belo»
tenciais. Ensina RTP

53
POETAS CONTEMPORÂNEOS

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

António Carneiro, Praia da Boa Nova,


1912.

E tudo era possível


Na minha juventude antes de ter saído
da casa de meus pais disposto a viajar
eu conhecia já o rebentar do mar
das páginas dos livros que já tinha lido

5 Chegava o mês de maio era tudo florido


o rolo das manhãs punha-se a circular
e era só ouvir o sonhador falar
da vida como se ela houvesse acontecido

E tudo se passava numa outra vida


10 e havia para as coisas sempre uma saída
Quando foi isso? Eu próprio não o sei dizer

Só sei que tinha o poder duma criança


entre as coisas e mim havia vizinhança
e tudo era possível era só querer
Ruy Belo, Obra poética, Lisboa, Presença, 1984.

Figurações do poeta
1. Identifica o momento da vida evocado pelo sujeito poético. FI p. 58

2. Explicita o sentido dos versos «eu conhecia já o rebentar do mar / das páginas dos livros
que já tinha lido» (vv. 3-4).

3. Refere a importância atribuída ao passado do sujeito lírico, relacionando-o com o título


do poema.

4. Identifica os sentimentos dominantes no sujeito poético.

5. Explica o significado dos versos «entre as coisas e mim havia vizinhança / e tudo era
possível era só querer» (vv. 13-14).

54
Ruy Belo

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Franz Marc, Grande estudo sobre


pedras, 1909.

Cinco palavras cinco pedras


Antigamente escrevia poemas compridos
Hoje tenho quatro palavras para fazer um poema
São elas: desalento prostração desolação desânimo
E ainda me esquecia de uma: desistência
5 Ocorreu-me antes do fecho do poema
e em parte resume o que penso da vida
passado o dia oito de cada mês
Destas cinco palavras me rodeio
e delas vem a música precisa
10 para continuar. Recapitulo:
desistência desalento prostração desolação desânimo
Antigamente quando os deuses eram grandes
eu sempre dispunha de muitos versos
Hoje só tenho cinco palavras cinco pedrinhas
Ruy Belo, Obra poética, Lisboa, Presença, 1984.

Arte poética
1. Explicita a relação passado/presente a que o sujeito poético faz referência. FI p. 58

2. Indica as palavras a que o sujeito poético se sente circunscrito, no presente.


2.1 Explicita a intenção subjacente à seleção dessas palavras.
2.2 Esclarece a relação entre essas palavras a que o sujeito lírico se refere e a expres-
são «e em parte resume o que penso da vida / passado o dia oito de cada mês»
(vv. 6-7).

3. Identifica o(s) recurso(s) expressivo(s) presente(s) no último verso da composição poé-


tica, explicando o(s) respetivo(s) valor(es).

4. Justifica o título da composição poética.

55
POETAS CONTEMPORÂNEOS

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Variações sobre «O jogador do pião»


Faz rodar o pião redondo tudo em volta
Atira a primavera e recupera o verão
Terras e tempos − tudo assume esse pião
que rodopia e rouba o chão à folha solta

5 Joga tudo no gesto ríspido de vida


Reergue o braço a prumo arrisca − nessa roda
possível da maçã ao muro – a infância toda
Tudo é redondo e torna ao ponto de partida

O sol a sombra a cal os pássaros os pés


10 o adro a pedra o frio os plátanos... Quem és?
Voltas? rodas? regressas? rodopias? − Nada

Edvard Munch, Crianças a brincar


Mão do breve pião, levanta ao céu a enxada (pormenor), s/d.
Passa o proprietário e já não reconhece
talvez o operário inútil sob a messe
Ruy Belo, Obra poética, Lisboa, Presença, 1984.

1. Delimita o texto em partes, fundamentando a tua resposta.

2. Explicita o significado do «pião», no poema.

3. Explica o sentido dos versos «Atira a primavera e recupera o verão / Terras e tempos –
tudo assume esse pião» (vv. 2-3).

4. Identifica os recursos expressivos presentes no primeiro terceto do poema.

5. Indica duas características da tradição literária presentes no texto. Tradição literária


FI p. 58

ESCRITA
Texto de opinião
Texto de opinião SIGA pp. 344-345

A partir do visionamento do vídeo da Voda-


fone, a propósito do Dia Mundial da Criança,
redige um texto de opinião bem estruturado,
de duzentas a trezentas palavras, no qual
apresentes uma reflexão sobre a importância
da infância na construção da personalidade
do indivíduo.

Planifica, redige e revê cuidadosamente o Há quanto tempo não brinca?


Vodafone
teu texto.

56
Ruy Belo

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Esta rua é alegre


Esta rua é alegre. Não é alegre uma rua anónima
mas a rua de são bento em vila do conde
vista por mim certa manhã após a chuva
e o nevoeiro a dissipar-se já junto de santa clara
5 E no entanto não é a rua de são bento que é alegre.
Alegre sou eu. E nem mesmo é que eu seja alegre.
Acontece simplesmente que me sirvo destas palavras
numa manhã de chuva para falar falar por falar
e não falar de mim ou de uma certa rua.
10 Não costumo por norma dizer o que sinto
mas aproveitar o que sinto para dizer alguma coisa
Isto, porém, são coisas que há já algum tempo se sabem
e talvez venham aqui para salvar este momento
para salvar romanticamente este momento
15 ou então para ilustrar um pouco desta vida que se perde
e não só ao viver-se mas ao pensar-se sobre ela
ao atraiçoá-la tantas vezes como condição indispensável do poema
Mas que dizia eu? Dizia apenas «esta rua é alegre»
O mais é só comigo e com a subjetiva forma como passo a minha vida
Ruy Belo, Obra poética, Lisboa, Presença, 1984.

1. Indica o espaço e o tempo a que o sujeito poético se refere.

2. Explica o paradoxo existente na utilização do adjetivo «alegre».

3. Indica três características das representações do contemporâneo presentes neste


poema. Representações do contemporâneo
FI p. 58

ORALIDADE EXPRESSÃO ORAL

Texto de opinião
Texto de opinião SIGA pp. 344-345

1. Após o visionamento do vídeo com a declamação do poema


«Morte ao meio-dia», de Ruy Belo, e registo de notas, apresenta à
turma a tua opinião sobre o poema, atendendo a:
a) tema;
b) crítica subjacente à política do Estado Novo;
c) impacto do texto no teu desejo de contribuíres para a constru-
ção de uma sociedade mais justa.

«Morte ao meio-dia», Ruy Belo


Mário Viegas

57
RUY BELO

FICHA INFORMATIVA 1

Figurações do poeta
As palavras são o espelho do homem, a manifestação de si perante os outros, aos
quais se expõe e a cujo julgamento se sujeita; têm elas portanto um conteúdo ético
[…].
Fala-se de terra, por exemplo, na utópica visão de «O Portugal futuro», nome e
sede simbólica do Bem, visto a partir do desalento (para usar uma das «Cinco palavras
5 cinco pedras») do Portugal de 1970, lugar em que coincidem a infância e a paz do
antigo tempo regido pelo «relógio da matriz».
Paula Morão, «Ruy Belo, questões de poética», Itinerário da poesia – Românica,
Lisboa, Edições Cosmos, 1999.

Arte poética
Na obra de Ruy Belo, a arte poética é explícita e consciente, apontando duas dire-
ções fundamentais. Uma delas estabelece-se no confronto e no reconhecimento da tra-
dição em que se apoia o ofício de poetar, relacionando-o com uma memória de textos
[…]. Chamarei a esta consciência da tradição a vertente de permanência da poética de
5 Ruy Belo. Em complemento desta, outra direção se desenha com clareza: Portugal, a
terra, o país, definem o tempo e o lugar que enquadram e conferem sentido ao eu […].
A este segundo trilho na poesia de Ruy Belo chamarei circunstância…
Paula Morão, «Ruy Belo, questões de poética», Itinerário da poesia – Românica,
Lisboa, Edições Cosmos, 1999.

Tradição literária
[A] escrita de Ruy Belo vai conciliar o rigor formal com a discursividade plena […].
Temos em Ruy Belo um caminhar para o centro das coisas, como no jogo do pião
sobre o qual ele escreve uma sequência de sonetos, que surge de um envolvimento da
realidade pelas palavras. Não saímos do plano do real mas a mimese é subvertida pela
5 incorporação do real no discurso que, deste modo, usurpa até a própria imagem do
poeta, prisioneiro de uma vivência que exige o verbo para se realizar. […]
Nuno Júdice, Viagem por um século de Literatura Portuguesa, Lisboa, Relógio d’Água, 1997.

Representações do contemporâneo
A compreensão de si, a escrita da pessoa enquanto busca de si ocupam o nó central
da poesia de Ruy Belo. […] Aqui reside o princípio pelo qual não há em Ruy Belo
[…] rompimento do decorum, do equilíbrio entre sentimento e mundo e palavra. Há,
muito pelo contrário, a busca de um equilíbrio novo, onde nem o mundo se sobre-
5 pusesse ao sentimento nem este ao mundo. […] Era necessário instaurar um diálogo
renovado entre a alma e o quotidiano, entre o espírito e a materialidade da terra. […]
A base do diálogo assenta na questão de saber se a linguagem pode ser meramente
expressiva ou se terá de ser expressivamente significativa. O próprio Ruy Belo conscien-
cializa esse diálogo em «Esta rua é alegre».
Henri Lebasque, Crianças junto à Joaquim Manuel Magalhães, posfácio ao Vol. 1, Ruy Belo, Obra poética, Lisboa, Presença, 1984.
água, 1907.

58
Luiza Neto Jorge
Poeta e tradutora. Frequentou a Faculdade de
Letras da Universidade de Lisboa, mas desistiu
do curso e foi viver para Paris, onde permaneceu
durante oito anos (1962-70).
5 Ainda hoje é considerada a personalidade de
maior destaque do grupo de poetas que se reuniu
em torno de Poesia 61, no âmbito do qual publi-
cou Quarta dimensão. Não foi essa, todavia, a sua
estreia literária. O primeiro livro foi Noite vertebrada
10 (1960), a que iria seguir-se uma obra escassa mas de

obrigatória referência.
Joaquim Manuel Magalhães assinala com veemência que, «numa geração que não
conseguiu escapar ao maneirismo gramatical, ao tédio de uma ausência de vocações
temáticas múltiplas, à insistente sobrevalorização da busca prosódica, a obra de Luiza
15 Neto Jorge representa um esforço e um conseguimento exemplares de amplidão ima-
ginativa, de renovação processual e de ímpeto transformador.»
Como tradutora deixou uma obra inigualável, nos domínios da poesia, da ficção e
do teatro.
Fez adaptações de textos para teatro (Diderot, etc.) e colaborou com alguns cineas-
20 tas, tendo escrito diálogos para filmes. Salvo poemas avulsos em algumas publicações,
como é o caso da revista Colóquio-Letras, não publicou nenhum livro nos últimos
dezasseis anos de vida.
Encontra-se representada em quase todas as antologias de poesia portuguesa con-
temporânea (editadas em Portugal e no estrangeiro) e tem grande parte dos poemas
25 traduzidos para diversos idiomas.
Morreu em Lisboa pouco antes de completar 50 anos. Quando em 1993 foi coli-
gida a obra completa, Fernando Cabral Martins, responsável pela sua criteriosa edição,
diz da sua poesia que «tudo o que está nela tem o seu tempo, esse não é só o tempo em
que viveu mas a falha do seu tempo e de todos os tempos».
Ilídio Rocha (coord.), Dicionário cronológico de autores portugueses,
Vol. VI, Lisboa, Europa-América, 1999.

PONTO DE PARTIDA

1. Observa atentamente o vídeo sobre Luiza Neto Jorge e regista algumas notas do dis-
curso de Manuel João Gomes, marido da escritora, tradutor e crítico de teatro.
Após o visionamento do vídeo, debate com os teus
colegas os seguintes aspetos:
• motivos que levam a que os escritores se ocupem
com trabalhos de tradução;
• vantagens e desvantagens desse trabalho;
• obstáculos ao exercício da arte de escrever;
• reconhecimento (ou não) do mérito dos escritores /
artistas.
Luiza Neto Jorge
REAL. RTP

59
POETAS CONTEMPORÂNEOS

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

O poema ensina a cair


O poema ensina a cair
sobre os vários solos
desde perder o chão repentino sob os pés
como se perde os sentidos numa
5 queda de amor, ao encontro
do cabo onde a terra se abate e
a fecunda ausência excede

até à queda vinda


da lenta volúpia de cair,
10 quando a face atinge o solo
numa curva delgada e subtil
uma vénia a ninguém de especial
ou especialmente a nós numa homenagem
póstuma.
Luiza Neto Jorge, Poesia (1960-1989),
Assírio & Alvim, Lisboa, 1993.
Pablo Picasso, Homem e mulher no café, 1903.

Figurações do poeta
1. Explica a possível «paixão» do sujeito poético pelo «poema», aten- FI p. 65
dendo aos dois primeiros versos.

2. Explicita o valor expressivo da comparação «desde perder o chão repentino sob os pés /
como se perde os sentidos numa / queda de amor» (vv. 3-5).

3. Identifica, na segunda estrofe, um outro significado para a palavra «queda».

4. Comenta os dois últimos versos da composição poética.

5. Procede à análise formal da composição poética.

GRAMÁTICA
Funções sintáticas
SIGA
1. Identifica as funções sintáticas dos elementos destacados. pp. 356-359

a) «O poema ensina a cair / sobre os vários solos» (vv. 1-2).


b) «ao encontro / do cabo onde a terra se abate» (vv. 5-6).
c) «quando a face atinge o solo / numa curva delgada e subtil» (vv. 10-11).

60
Luiza Neto Jorge

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Eu, artífice
Atento agora ao traço,
corrijo o mais da matéria,
ergo a minha arte do poço
onde flutua.

5 Como o brilho se desprende


do metal mais bravo,
no forro de cada um
o desgaste é tanto

que eu, artífice, colho


10 o que de mim alimenta,
falo do que estou sendo,
da sua mão em desordem,
dos passos, das lágrimas baixas
Amedeo Modigliani, O Violoncelista, 1909.
que se vão constituindo.
Luiza Neto Jorge, Poesia (1960-1989),
Assírio & Alvim, Lisboa, 1993.

1. Explica o significado da palavra «artífice» e relaciona-a com o conceito de poeta.

2. Refere o conceito de arte poética delineado ao longo do texto. Arte poética


FI p. 65

3. Indica o tempo verbal predominante no poema, justificando a sua rela-


ção com as formas verbais no gerúndio.

4. Identifica o recurso expressivo presente no verso «no forro de cada um», explicitando a
sua pertinência.

5. Comenta os dois últimos versos da composição poética, atendendo ao contexto em que


se integram.

GRAMÁTICA

1. Para responderes a cada um dos itens de 1.1 a 1.2, seleciona a opção correta.
1.1 Nos versos «o desgaste é tanto / que eu, artífice, colho» (vv. 8-9), é Coordenação
SIGA e subordinação
possível identificar uma oração subordinada pp. 361-363

A. substantiva completiva. C. adverbial consecutiva.


B. substantiva relativa. D. adverbial concessiva.

1.2 O complexo verbal «vão constituindo» (v. 14) expressa um valor aspe- FI
Valor aspetual
p. 365
tual
A. imperfetivo. C. habitual.
B. genérico. D. iterativo.

61
POETAS CONTEMPORÂNEOS

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

A magnólia
A exaltação do mínimo,
e o magnífico relâmpago
do acontecimento mestre
restituem-me a forma
5 o meu resplendor.

Um diminuto berço me recolhe


onde a palavra se elide
na matéria – na metáfora –
necessária, e leve, a cada um
10 onde se ecoa e resvala.

A magnólia,
o som que se desenvolve nela
quando pronunciada,
é um exaltado aroma
15 perdido na tempestade,
Paul Signac, A tempestade, Antibes, 1918-1919.

um mínimo ente magnífico


desfolhando relâmpagos
sobre mim.
Luiza Neto Jorge, Poesia (1960-1989),
Assírio & Alvim, Lisboa, 1993.

1. Delimita o texto em partes lógicas, fundamentando a tua proposta.


Tradição literária
2. Indica três sensações sugeridas na composição poética. FI p. 66

3. Justifica o título do poema.

ESCRITA

Apreciação crítica Apreciação crítica


SIGA pp. 342-343

1. Pesquisa e seleciona outros poemas de Luiza Neto Jorge.


1.1 Elabora uma apreciação crítica, de duzentas a trezentas palavras, sobre a poética
desta autora.

Faz a revisão do teu texto. Verifica a construção das frases, a clareza do discurso,
as repetições desnecessárias e a utilização dos conectores.

62
Luiza Neto Jorge

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Balada apócrifa
Olhai os lírios do campo
meninas de saia rodada
íris de teias de aranha
desvendam o mar nas searas

5 Olhai os lírios de pedra


em copos de limonada

Os soldados em manobras
enterram a sombra caiada
(bebei os lírios de água
10 com grandes bicos de aves)

Sofreram sempre derrota


deixaram mãos enforcadas
sem lençóis com clarins
grades de pernas doadas

15 Olhai os lírios do tempo


meninas virgens por dentro
Edvard Munch, Dois seres humanos, 1905.

Os soldados em manobras
têm noite por espingarda
colhei os lírios do corpo
20 meninas de saia travada
Luiza Neto Jorge, Poesia (1960-1989),
Assírio & Alvim, Lisboa, 1993.

1. Consulta o significado das palavras «balada» e «apócrifa».

2. Atenta nos versos: «Os soldados em manobras / enterram a sombra caiada» (vv. 7-8).
2.1 Comenta a referência a estas personagens, relacionando-as com as «meninas».

3. Transcreve um segmento textual que possibilite inferir Representações do contemporâneo


FI p. 66
o contexto histórico-político a que o sujeito poético se
reporta, justificando a tua opção.

4. Justifica o título da composição poética.

63
POETAS CONTEMPORÂNEOS

GRAMÁTICA

Funções sintáticas
1. Identifica as funções sintáticas dos elementos destacados. SIGA pp. 356-359

a) «olhai os lírios do campo / meninas de saia rodada» (vv. 1-2).


b) «colhei os lírios do corpo / meninas de saia travada» (vv. 19-20).

ORALIDADE EXPRESSÃO ORAL

Apresentação oral

1. Observa a pintura de René Magritte.

René Magritte, O decalque, 1966.

1.1 Prepara uma apresentação oral, de cinco a sete minutos, em que relaciones a pin-
tura de Magritte com a poesia de Luiza Neto Jorge.
Segue as seguintes diretrizes:
• faz uma breve descrição da pintura;
• relaciona a pintura com a poesia de Luiza Neto Jorge.

Para a tua apresentação deves, primeiramente, elaborar um plano com os tópicos e


argumentos que queres usar para cada ponto.
Não te esqueças de que o teu texto oral deve conter uma correta construção das fra-
ses, ser claro, evitar repetições e incluir conectores discursivos.

64
Ficha informativa

FICHA INFORMATIVA 1

Figurações do poeta
Herdeira e conhecedora profunda das poéticas simbolistas e surrealistas − como
pode ler-se pelos textos que cita, de Mallarmé a Cesariny−, pois viveu em Paris entre
1962 e 1970, e tendo traduzido autores como Breton, Luiza Neto Jorge manteve sem-
pre na sua poesia uma componente surrealista, recusando, por outro lado, o modelo do
5 neorrealismo, o que permitiu introduzir na sua escrita uma interpretação muito pessoal
e intensa, uma exaltação do mínimo, representando o inconsciente, e que se prende
com o querer dar conta do acontecer das coisas, do «miolo do mundo».
Maria João Cantinho, «Luiza Neto Jorge ou o corpo inenarrável», 30 de dezembro de 2016,
Caliban – Revista de artes e ideias (disponível em https://revistacaliban.net;
consultado a 14 de junho de 2023).

Arte poética
Falei da intensidade, das intensidades, da sua poesia − a intensidade das sensações,
a intensidade dos atos, a intensidade dos vocábulos, a intensidade do ritmo. Todo esse
projeto poético está delineado em mais esta arte poética, incluída no seu livro Terra
imóvel (1964):

5 Esclarecendo que o poema


é um duelo agudíssimo
quero eu dizer um dedo
agudíssimo claro
apontado ao coração do homem

10 falo com uma agulha de sangue


a coser-me todo o corpo
à garganta

e a esta terra imóvel


onde já a minha sombra
15 é um traço de alarme

[…] Luiza Neto Jorge não procura nem procurou nunca transmitir
essa força agressiva, essa ironia contundente e dolorosa, através de uma
adjetivação estereotipada, como o fazem certos outros criadores de uma
poesia violenta apenas na superfície. Em Luiza Neto Jorge, a violência
20 brota da própria dureza da prosódia repartida em unidades rítmicas bre-
ves, entrecortada de exclamações, vocativos, enumerações − e mergulha
profundamente num estrato de sentido pleno de fricções e contrastes e de
uma mitologia em torno da qual os motivos e os temas se aglutinam [...].
Armando Alves, Sem título, 1958.
Gastão Cruz, A poesia portuguesa hoje, Lisboa, Relógio d’Água, 1999.

65
LUIZA NETO
LUIZA NETOJORGE
JORGE

FICHA INFORMATIVA 2

Tradição literária
Escrever é, sem dúvida, dar conta do mundo, manifestá-lo ou apresentá-lo, para
seguir o preceito heideggeriano. Mas é, ao mesmo tempo, captar-lhe o devir e o movi-
mento, pelo que a palavra poética deve conter essa potencialidade de gerar campos
semânticos diversos, fazendo-os deslocar, dinamizando o corpo da escrita. Por isso, há
5 que deslocar o sentido e fazê-lo mover-se. […]
Atenta ao real como poucos poetas, Luiza Neto Jorge convoca todo o funciona-
mento dos dispositivos formais da poesia, recorrendo a todos os recursos poéticos
como o virtuosismo rítmico, a rima, a aliteração, a paronímia, a anáfora, para os con-
jugar num único objetivo: a transgressão das abordagens convencionais poéticas da
10 realidade.
Maria João Cantinho, «Luiza Neto Jorge ou o corpo inenarrável», 30 de dezembro de 2016,
Caliban – Revista de artes e ideias (disponível em https://revistacaliban.net;
consultado a 14 de junho de 2023).

Representações do contemporâneo
Talvez nenhuma outra nos dê uma imagem tão intensa do nosso tempo, ou melhor,
do que foi Portugal dos jovens da sua e minha geração − que é como quem diz, da
última década e meia do fascismo e da contestação movida aos valores impostos pelo
governo vigente e pelos seus apoiantes.
5 Guerra, opressões de todas as espécies − foi a luta contra isso, a recusa de tudo isso,
com indignação ou com sarcasmo [...], assim como a ilusão de que, exterminado o fas-
cismo, tudo o que detestávamos (a mentalidade reacionária, a direita política, o obscu-
rantismo cultural e ideológico) ruiria com ele. Liberdade e verdade, a rejeição de todos
os tabus, morais e ideológicos, são a tónica da obra de Luiza Neto Jorge. [...]
Gastão Cruz, A poesia portuguesa hoje, Lisboa, Relógio d’Água, 1999.

CONSOLIDA

1. Elabora tópicos com as principais características poéticas de Luiza Neto Jorge.

António Dacosta, Dois limões em festa


(pormenor), 1983.

66
Vasco Graça Moura
Vasco Graça Moura foi um escritor, tra-
dutor e político português. Nasceu no Porto,
em 1942, e morreu em Lisboa, no ano de
2014. Licenciou-se em Direito pela Universi-
5 dade de Lisboa.

É um dos nomes centrais da poesia por-


tuguesa da segunda metade do século XX,
sobretudo desde a publicação de Instrumen-
tos para a melancolia (1980), momento a
10 partir do qual a sua obra se impôs por um

classicismo de contornos eruditos, que não


rasura aspetos do quotidiano mais prosaico,
mas privilegia o diálogo com outras artes, em
particular a pintura.
15 Para Vasco Graça Moura, a poesia era a
«forma verbal de estar no mundo», como
confessou numa homenagem feita pela Fundação Calouste Gulbenkian, no ano em
que foi condecorado pelo Presidente da República com a Grã-Cruz da Ordem de San-
tiago de Espada. Uma carta no inverno, de 1997, valeu-lhe o prémio da Associação
20 Portuguesa de Escritores, ao qual juntou outras importantes distinções.
Traduziu peças de Racine, Molière e Corneille e a sua tradução da Divina comédia
de Dante valeu-lhe a medalha de ouro da Comuna de Florença, em 1998, e o Prémio
Pessoa, em 1995.
Por ocasião da sua morte, os seus pares lamentaram a perda de «uma grande figura
25 da cultura portuguesa» (Manuel Alegre); de um «poeta singularíssimo, um ensaísta de
referência, um romancista que irá ser redescoberto sucessivamente e um tradutor que
proporcionou versões de uma qualidade incomparável de alguns dos nomes maiores
da cultura clássica» (José Manuel Mendes, presidente da Associação Portuguesa de
Escritores); de «um homem cultíssimo, de uma cultura
30 vastíssima como é raro encontrar» (Fernando Pinto do
Amaral).

PONTO DE PARTIDA

1. Após o visionamento da entrevista a Vasco Graça Moura


sobre a Língua Portuguesa, realizada no cinquentenário
da sua atividade literária, regista as ideias-chave de cada
um dos seguintes tópicos:
a) conceção de poesia como «técnica e melancolia»;
b) criação literária − dor ou prazer?;
c) razões por que é fundamental ler livros.

José Rodrigues, Retrato de Vasco


Graça Moura.
67
POETAS CONTEMPORÂNEOS

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Soneto do amor e da morte


quando eu morrer murmura esta canção
que escrevo para ti. quando eu morrer
fica junto de mim, não queiras ver
as aves pardas do anoitecer
5 a revoar na minha solidão.

quando eu morrer segura a minha mão,


põe os olhos nos meus se puder ser,
se inda neles a luz esmorecer,
e diz do nosso amor como se não

10 tivesse de acabar, sempre a doer,


sempre a doer de tanta perfeição
que ao deixar de bater-me o coração
fique por nós o teu inda a bater, Edouard Vuillard, Mulher à janela com flor, 1897-1899.

quando eu morrer segura a minha mão.


Vasco Graça Moura, Antologia dos sessenta anos,
Porto, ASA, 2002.

1. Neste soneto, o sujeito poético assume-se como escritor de Figurações do poeta


FI p. 74
canções.
1.1 Salienta a importância desta canção na relação eu-tu.

2. O poema conjuga harmoniosamente duas realidades de cariz distinto: o amor e a


morte.
2.1 Explicita sucintamente a forma como o sujeito poético conjuga essas duas realida-
des.

3. A ideia de ausência pode ser contrariada pela ideia de permanência.


3.1 Comenta esta afirmação.
3.2 Transcreve do texto o verso que melhor traduz a ideia do amor como permanência e
traço de união.

4. Indica o elemento de que o eu se serve para transmitir a ideia Linguagem, estilo e estrutura
FI p. 76
de imortalidade do amor.

5. Regista as palavras ou expressões correspondentes à ideia de amor e de morte.

Palavras/expressões associadas ao amor Palavras/expressões associadas à morte

68
Vasco Graça Moura

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Armando Alves, Sem título, 2003.

Soneto da poesia narrativa


foi assim que cheguei à poesia narrativa:
nos poemas moviam-se figuras
e a essas figuras aconteciam coisas
e essas coisas tinham um sentido deslizante,
5 era uma espécie de hipálage do mundo:

com precisão a seta era dirigida


à maçã equilibrada na cabeça da criança,
mas devolvia-se ao arco, depois
de varar o coração dos circunstantes
10 e era a vibração do arco a derrubar o fruto,

num zunido do ar que a flecha deslocava 1 Num zunido do ar que a fle-


cha deslocava na sua trajetória.
na sua trajetória1. foi assim que cheguei Referência ao mito de Guilherme
à poesia narrativa: havia flores nos alpes Tell.
e a corda em vibração levava à música.
Vasco Graça Moura, Antologia dos sessenta anos, Porto, ASA, 2002.

1. Na estrofe introdutória, o sujeito anuncia o início de um pro- Arte poética


FI p. 74
jeto poético.
1.1 Identifica os elementos necessários para configurar esse projeto.

2. Salienta a importância da «seta» e da «vibração» na criação da poesia.

3. Apresenta uma definição de hipálage e relaciona-a com a uti- FI


Linguagem, estilo e estrutura
p. 76
lização do vocábulo no poema.

69
POETAS CONTEMPORÂNEOS

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

gato manso das velhotas


gato manso das velhotas
de alfama e da madragoa
dormitas sem cambalhotas
e nunca leste o pessoa.

5 quando ronronas não notas


tanto espreitar da patroa
nem quer’s saber das gaivotas
voando no céu à toa.

dos peixes só vês as rotas


10 pela espinha ou quando ecoa
o pregão com cheiro às lotas Pierre Bonnard, A mulher e o gato, 1912.

onde os despeja a canoa.

és livre e nisso te esgotas


sem remorso que te doa,
15 e ao peitoril não desbotas
e esta luz não te magoa,

nem vês corvos nem gaivotas


empoleirados na proa,
mas de corvos e gaivotas
20 faz-se o brasão de lisboa.
Vasco Graça Moura, Poesia 2001-2005, Lisboa, Quetzal, 2006.

1. Salienta a característica que, de acordo com o sujeito poético, melhor identifica o gato.
Tradição literária
2. Indica aspetos identificativos do espaço físico. FI p. 74

3. O gato sempre marcou presença na literatura, tornando-se uma das figuras mais
emblemáticas da tradição literária, influenciando a escrita de grandes autores nacio-
nais e universais.
3.1 Apresenta um argumento que sustente esta admiração pelo felino.

ORALIDADE EXPRESSÃO ORAL

Apresentação oral

1. Num outro poema, «variações sobre um gato», Vasco Graça Moura apresenta um gati-
nho que salta para o teclado do computador e inadvertidamente escreve «ba». Este
facto deixa o poeta perplexo com a possibilidade de no ecrã aparecer o nome «Bach».
1.1 Procede à audição do poema e estabelece uma relação entre a poesia e a música.

70
Vasco Graça Moura

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

lamento para a língua portuguesa


não és mais do que as outras, mas és nossa,
e crescemos em ti. nem se imagina
que alguma vez uma outra língua possa
pôr-te incolor, ou inodora, insossa,
5 ser remédio brutal, mera aspirina,
ou tirar-nos de vez de alguma fossa,
ou dar-nos vida nova e repentina.
mas é o teu país que te destroça,
o teu próprio país quer-te esquecer
10 e a sua condição te contamina
e no seu dia a dia te assassina.
mostras por ti o que lhe vais fazer:
vai-se por cá mingando e desistindo,
e desde ti nos deitas a perder
15 e fazes com que fuja o teu poder
enquanto o mundo vai de nós fugindo:
ruiu a casa que és do nosso ser
e este anda por isso desavindo 1 Lúgubres: fúnebres.
connosco, no sentir e no entender,
20 mas sem que a desavença nos importe
nós já falamos nem sequer fingindo
que só ruínas vamos repetindo.
talvez seja o processo ou o desnorte
que mostra como é realidade
25 a relação da língua com a morte,
o nó que faz com ela e que entrecorte
a corrente da vida na cidade.
mais valia que fossem de outra sorte
em cada um a força da vontade
30 e tão filosofais melancolias
nessa escusada busca da verdade,
e que a ti nos prendesse melhor grade.

bem que ao longo do tempo ensurdecias,


nublando-se entre nós os teus cristais,
35 e entre gentes remotas descobrias
o que não eram notas tropicais
mas coisas tuas que não tinhas mais,
perdidas no enredar das nossas vias
por desvairados, lúgubres1 sinais, Paul Cézanne, A casa abandonada,
1878-1879.

71
POETAS CONTEMPORÂNEOS

40 mísera sorte, estranha condição,


por ser combate de armas desiguais.
matam-te a casa, a escola, a profissão,
a técnica, a ciência, a propaganda,
o discurso político, a paixão
45 de estranhas novidades, a ciranda2
de violência alvar que não abranda
2 Ciranda: dança popular. entre rádios, jornais, televisão.
3 Jade: pedra rija que risca o vidro
e o quartzo. e toda a gente o diz, mesmo essa que anda
4 Luminescências: emissões de luz por tal degradação tão mais feliz
através de um corpo.
5 Refugo: sobra, resto, ralé.
50 que o repete por luxo e não comanda,
com o bafo de hienas dos covis,
mais que uma vela vã nos ventos panda
cheia do podre cheiro a que tresanda.
foste memória, música e matriz
55 de um áspero combate: apreender
e dominar o mundo e as mais subtis
equações em que é igual a xis
qualquer das dimensões do conhecer,
dizer de amor e morte, e a quem quis
60 e soube utilizar-te, do viver,
do mais simples viver quotidiano,
de ilusões e silêncios, desengano,
sombras e luz, risadas e prazer
e dor e sofrimento, e de ano a ano,

65 passarem aves, ceifas, estações,


o trabalho, o sossego, o tempo insano
do sobressalto a vir a todo o pano,
e bonanças também e tais razões
que no mundo costumam suceder
70 e deslumbram na só variedade
de seu modo, lugar e qualidade,
e coisas certas, inexatidões,
venturas, infortúnios, cativeiros,
e paisagens e luas e monções,
75 e os caminhos da terra a percorrer,
e arados, atrelagens e veleiros,
pedacinhos de conchas, verde jade3,
doces luminescências4 e luzeiros,
que podias dizer e desdizer
80 no teu corpo de tempo e liberdade.
mas cá e lá do que eras tu te esvais,
agora que és refugo5 e cicatriz
Henri Lebasque, Veleiros (pormenor), c. 1907.
esperança nenhuma hás de manter:

72
Vasco Graça Moura

o teu próprio domínio foi proscrito6,


85 laje de lousa7 gasta em que algum giz
se esborratou informe em borrões vis.
de assim acontecer, ficou-te o mito
de haver milhões que te uivam triunfantes
na raiva e na oração, no amor, no grito
90 de desespero, mas foi noutro atrito
que tu partiste até as próprias jantes
nos estradões da história: estava escrito
que iam desconjuntar-te os teus falantes
na terra em que nasceste, eu acredito
95 que te fizeram avaria grossa.
não rodarás nas rotas como dantes,
quer murmures, escrevas, fales, cantes,

mas apesar de tudo ainda és nossa,


e crescemos em ti. nem imaginas
100 que alguma vez uma outra língua possa
pôr-te incolor, ou inodora, insossa,
ser remédio brutal, vãs aspirinas,
ou tirar-nos de vez de alguma fossa,
ou dar-nos vidas novas repentinas.
105 enredada em vilezas, ódios, troça,
no teu próprio país te contaminas
e é dele essa miséria que te roça.
mas com o que te resta me iluminas.
Vasco Graça Moura, Antologia dos sessenta anos, Porto, Edições ASA, 2002.

Representações do contemporâneo
1. Neste longo poema, o sujeito poético assume o duplo FI p. 75
6 Proscrito: proibido.
7 Lousa: pedra que cobre a sepul-
papel de observador e utente da língua para constatar:
tura.
– o estado «destroçado» a que chegou a língua portuguesa;
– a vontade de, apesar de tudo, se servir dela, do que dela resta e do muito que nela
existe, em latência, como fonte que alimenta um outro uso possível.
1.1 Explica em que consiste esse duplo papel assumido pelo sujeito.
1.2 Transcreve do texto as expressões que melhor o exemplificam.

2. Identifica os versos que transmitem a ideia de que o uso poético é um fator de renova-
ção e de conservação da memória da língua.

3. De acordo com as tuas vivências, refere se haverá razão para o lamento expresso pelo
sujeito poético logo no título do poema.

73
VASCO GRAÇA MOURA

FICHA INFORMATIVA 1

Figurações do poeta
[S]e escrevo, entre outras coisas, poesia, não o faço para pôr a vida em palavras, mas
para me servir da vida das palavras enquanto ela possa ser também elemento especi-
ficamente expressivo e qualificativo de uma outra dimensão da minha própria vida.
[R]einventei-me as vezes que foi preciso e fi-lo tão deliberadamente quanto esteve ao
5 meu alcance.
Vasco Graça Moura, Poesia 1963/1995, Lisboa, Quetzal, 2007.

Arte poética
Neste sentido, o poeta assume-se, portanto, como «aquele que por via da palavra
poética e da perceção do mundo cria uma manipulação do mesmo», distanciando-se
da aceção pessoana do poeta como um «fingidor» e aceitando o sujeito de enunciação
como um «figurador», que confere uma «dimensão ontológica» à sua escrita poética,
5 na senda de abrir «caminho para a revelação do real» e explicar o mundo ao seu leitor.
Na verdade, Vasco Graça Moura assume na sua ars poetica esta preocupação com o seu
poema, que provém do «trabalhar o mundo, [...] as relações de vizinhança / entre os
seres e as coisas, no intervalo exato / da sua infelicidade constritiva […]», e com os seus
leitores, estabelecendo uma relação de proximidade (e até familiaridade) com eles e
10 tentando guiá-los a «[…] encontrar o que te leva / a dar essa ênfase à palavra, ou a tirar-
-lha / sempre que o sintas oportuno, calibrando-a / em nome […] de uma experiência
única / no emaranhar das sombras e das vozes […]».
Vincent van Gogh, O pintor a caminho Andreia Cristina Nóbrega Brites, Murmúrios [im]possíveis – O desafio dialogante entre poesia e artes plásti-
do trabalho, 1888. cas em Vasco Graça Moura, Dissertação de Mestrado, Funchal,
Universidade da Madeira, 2012, p. 66.

Tradição literária
Em sua busca Graça Moura persegue os textos dos outros e engendra os seus, eterno
Ulisses navegando em busca daquilo que, já vimos, só a arte, chame-se poesia, pintura,
música, pode dar e que o poeta sintetiza magistralmente no poema «ut pictura poesis»
(Poemas com pessoas, p. 99), que expressamente retoma no título a afirmação de Horá-
5 cio na sua Arte poética, «A poesia é como a pintura». O que procura o poeta na pintura,
na poesia? «busco / uma medida humana da representação, / mesmo que ela flutue
numa irrealidade palpável / em que também posso reconhecer as dimensões efémeras /
1 Sinópias: esboços realizados no
do que sou, contraditórias, obscuramente pressentidas, quantas vezes informuladas ou
próprio suporte e à escala real
antes de o artista realizar a pin- desfiguradas / nas sinópias1 da alma».
tura mural. Tal permitia verifi-
10 É a rota dessa ítaca que Graça Moura peregrinante busca em Camões, busca nos
car a legibilidade da obra.
clássicos.
Isabel Pires de Lima, «Referências clássicas na poesia de Vasco Graça Moura», in Imprensa da Univer-
sidade de Coimbra (coord.), Fluir Perene – A cultura clássica em escritores portugueses contemporâneos,
Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2004, p. 123
(disponível em https://digitalis-dsp.uc.pt; consultado a 6 de junho de 2023).

74
Ficha informativa

FICHA INFORMATIVA 2

Representações do contemporâneo
A poesia de Vasco Graça Moura constitui uma das mais prolíferas manifestações
interartísticas na poesia portuguesa contemporânea. Alicerçando os seus textos numa
vasta tradição artístico-literária, as suas composições constituem uma tessitura poli-
fónica sustentada por um amplo campo referencial. Da pintura até à escultura, pas-
5 sando pela música e pela fotografia, a poesia de Graça Moura carrega a marca indelével
das artes particularmente evidenciada através de uma propensão para o exercício da
ekphrasis, inclinação que, como o próprio autor refere, se manifesta a partir da recom-
posição verbal de um elemento visual: «creio que a raiz mais funda dessa tendência tem
a ver com uma preocupação mais genérica da restituição do visual através do verbal».
10 A transposição intermediática já referida resulta numa inquietação poética que se tra-
duz em constante exercício compositivo, evidenciando a busca da «restituição» e cons-
tituindo-se como um espaço de interseção transmedial.
Daniel Tavares, Revista diacrítica, vol. 28, N.º 3, Braga, 2014.

CONSOLIDA

1. Com base nos textos que acabaste de ler, classifica as afirmações como verdadeiras (V)
ou falsas (F). Corrige as falsas.
a) Vasco Graça Moura afirma que se reinventou de forma deliberada todas as vezes em
que escreveu poesia.
b) Na conceção de Vasco Graça Moura, o poeta é um «fingidor» porque manipula o
mundo através da palavra poética.
c) O poeta tenta ser original, abolindo a herança de outros que remoem no seu íntimo.
d) A presença de outras artes (pintura, música) é um elemento caracterizador da sua
poética.
e) O poeta busca nas artes uma medida humana de representação do mundo.
f) A poesia de Vasco Graça Moura constitui
uma das mais tradicionais manifestações
do lirismo português, alicerçada numa tes-
situra onde não se ouvem outras vozes artís-
ticas.
g) A poesia de Vasco Graça Moura evidencia
uma preocupação genérica de restituição
do visual através do verbal.

Gustave Loiseau, Campos de trigo


e papoilas, s/d.

75
UnidadeGRAÇA
VASCO MOURA
3 // MIGUEL TORGA

FICHA INFORMATIVA 3
1

Linguagem, estilo e estrutura


1. A importância da técnica
A técnica parece ser, então, um dos alicerces basilares da (re)criação poética em
Vasco Graça Moura, o que imputa à própria poesia uma outra função, a de se tor-
nar percetível e compreensível perante o seu leitor mais elementar. Ou seja, a poesia
tem de conseguir explicar-se e simplificar-se, descurando artifícios literários como a
5 metáfora, a erudição e a intertextualidade dialogante com outros autores, de modo
a ser assimilada por um leitor de habilitações académicas mais humildes e detentor de
uma memória histórico-cultural mais restrita. No poema «do estilo», integrado n’«os
instrumentos para a melancholia», o sujeito lírico denuncia a sua preocupação com o
leitor, ou melhor, revela a consciência de Vasco Graça Moura face ao importante papel
10 que o leitor desempenha na receção das suas construções poéticas.
Andreia Cristina Nóbrega Brites, Murmúrios [im]possíveis – O desafio dialogante entre poesia
e artes plásticas em Vasco Graça Moura, Dissertação de Mestrado, Funchal,
Universidade da Madeira, 2012, p. 70.

2. O culto esteticizante da escrita


[A] obra poética de Vasco Graça Moura revisita sob um olhar culto e esteticizante as
relações entre a poesia e certas artes como a pintura e a música, de cujos labirintos tão
fascinantes colhe muitas vezes preciosas fontes para a génese dos poemas, sempre man-
tendo a consciência de que tudo se confunde num emaranhado de tempos, espaços e
5 vozes, a escrita permite reter alguns breves acordes de uma melodia irremediavelmente
destinada a perder-se na historicidade dos gestos e fragmentos das nossas vidas.
Fernando Pinto do Amaral, «A poesia neomaneirista de Vasco Graça Moura», in Vasco Graça Moura,
Poesia 1963/1995, Lisboa, Quetzal, 2007.

3. Um aturado trabalho oficinal


Esta vasta obra é construída − e acentuo a palavra construída − sobre um aturado
trabalho oficinal, visível a diversos níveis e desde logo, no que à poesia diz respeito,
num tratamento do ritmo, da rima, da assonância ou da paranomásia1 que contribuem
muitíssimo para uma limpidez que a percorre e para uma inteligibilidade nem sempre
5 imediatamente discernível mas sempre por essa via imediatamente pressentida e como
que oferecida ao ouvido e ao fôlego do leitor.
1 Paranomásia: figura de retórica
que consiste no uso, na mesma Isabel Pires de Lima, «Referências clássicas na poesia de Vasco Graça Moura», in Imprensa da Univer-
frase, de palavras semelhantes em sidade de Coimbra (coord.), Fluir perene – A cultura clássica em escritores portugueses contemporâneos,
termos de som e grafia, mas de Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2004, p. 112
sentidos diferentes. (disponível em https://digitalis-dsp.uc.pt; consultado a 6 de junho de 2023).

CONSOLIDA

1. Elabora tópicos que sistematizem as ideias-chave dos textos 1, 2 e 3.

76
Nuno Júdice
Nuno Júdice nasceu na Mexilhoeira
Grande, Algarve, em 1949. É poeta,
ensaísta e ficcionista. Formou-se em
Filologia Românica pela Universidade
5 Clássica de Lisboa. É professor asso-

ciado da Universidade Nova de Lis-


boa, onde se doutorou, apresentando,
em 1989, uma dissertação sobre
Literatura Medieval. Desempenhou
10 as funções de Conselheiro Cultural

da Embaixada de Portugal e Diretor


do Instituto Camões em Paris (entre
1997 e 2004). Foi comissário para a
área da Literatura da representação
15 portuguesa à 49.ª Feira do Livro de

Frankfurt. Dirigiu, até 1999, a revista


Tabacaria da Casa Fernando Pessoa.
Em 2009 assumiu a direção da revista
Colóquio-Letras da Fundação Calouste
20 Gulbenkian. É autor de uma vasta obra que abarca a poesia e a prosa. A sua estreia lite-
rária deu-se com A noção de poema (1972). Tem recebido os mais importantes prémios
literários, tanto em Portugal como no estrangeiro. Em 1985, recebeu o prémio Pen
Clube e, em 1990, o prémio D. Dinis da Casa de Mateus. Os mais recentes foram o Pré-
mio Reina Sofia de Poesia Ibero-Americana (Madrid), Património Nacional e Univer-
25 sidade de Salamanca, em 2013, o Prémio de Poesia del Mundo Latino (Universidade
de Aguascalientes, México), em 2014, e o Prémio Argana da Maison de la Poésie de
Marrocos, já em 2015. Tem obras traduzidas em Espanha, Itália, Venezuela, Inglaterra
e França.

PONTO DE PARTIDA

1. Após o visionamento da entrevista a Nuno


Júdice, regista as ideias-chave de cada um dos
seguintes tópicos:
a) definição de poema;
b) diferença entre poesia e ficção;
c) existência de poemas que podem ser consi-
derados narrativas;
d) o que é escrever.

77
POETAS CONTEMPORÂNEOS

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

A varanda de Julieta
Uma vez, entrei em verona para não entrar
em veneza. Entre o vê de verona e o vê
de veneza optei por ver verona. Gostei da
coincidência das consoantes na janela
5 de julieta; e sei que em veneza não ouviria
o vento da vingança, nem provaria o veneno
de uma volúpia que só em verona se
desvanece com a vida. Não há canais em
verona, como em veneza; nem há janelas
10 em veneza, como em verona; mas Julieta
espreita a rua, da janela que é sua, e se
ninguém diz a senha que só ela sabe, agita
o lenço molhado pelas lágrimas que as
nuvens bebem, levando-as de verona até
15 veneza, onde a chuva as deita nos canais.
Nuno Júdice, Pedro, Lembrando Inês, Lisboa,
Dom Quixote, 2001.

Edvard Munch, O beijo, 1892.

1. Neste poema, duas cidades italianas disputam um lugar na preferência do sujeito poé-
tico.
1.1 Identifica-as.
1.2 Indica a opção do sujeito por uma delas.
1.3 Apresenta as razões dessa preferência.

2. No início do poema, o sujeito poético joga com uma consoante e com um verbo.
2.1 Indica em que consiste.

3. Explica os versos seguintes:


3.1 «Gostei da / coincidência das consoantes na janela / de Julieta».
3.2 «em veneza não ouviria / o vento da vingança».
3.3 «se / ninguém diz a senha que só ela sabe».

4. No final do poema, as duas cidades apresentam um ponto de Figurações do poeta


FI p. 82
contacto.
4.1 Demonstra a veracidade desta afirmação.

78
Nuno Júdice

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Poética (variante com construção civil)


Escrevo por entre andaimes,
ando por entre versos. Uma ideia de
construção ergue-se no
meio de palavras e tijolos. O muro
5 do verso separa-me da vida; mas
subo o escadote da estrofe, espreito
o outro lado − e vejo-te.

Pareces calma, com o teu vestido


amarelo, e o sol a entrar-te pelos
10 cabelos. Eu vou a reboque do tempo;
e tu, com os pés assentes na terra
do campo, podias ser mais uma dessas
flores que crescem, nesta
estação, amarelas como o teu vestido.

15 Começo, então, a tirar os


andaimes. As vogais aguentam-se, com
o seu reboco de gesso e
consoantes. Abro-te a porta. Tu,
entras no poema; e ficamos aí os dois,
20 ouvindo a sua música. Edouard Vuillard, Mulher de vestido amarelo, 1890.
Nuno Júdice, &DUWRJUD¿DGHHPRo}HV, Lisboa,
Dom Quixote, 2001.

1. Explica o título do poema.

2. Identifica o tema do poema.

3. Divide o poema em partes, atribuindo um título significativo a cada uma.

4. Explicita a forma como é aqui encarado o ato poético.


4.1 Transcreve os versos que comprovam as tuas afirmações.

5. Explica a presença de uma figura feminina a partir da segunda estrofe.

6. Comenta a seguinte afirmação, apoiando-te em exemplos do texto: FI


Arte poética
p. 82

«O que gera e move o poema não se situa na realidade sensível.»

79
POETAS CONTEMPORÂNEOS

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Pedro, lembrando Inês


Em que pensar, agora, senão em ti? Tu, que
me esvaziaste de coisas incertas, e trouxeste a
manhã da minha noite. É verdade que te podia
dizer: «Como é mais fácil deixar que as coisas
5 não mudem, sermos o que sempre fomos, mudarmos
apenas dentro de nós próprios?» Mas ensinaste-me
a sermos dois; e a ser contigo aquilo que sou,
até sermos um apenas no amor que nos une,
contra a solidão que nos divide. Mas é isto o amor:
10 ver-te mesmo quando te não vejo, ouvir a tua
voz que abre as fontes de todos os rios, mesmo
esse que mal corria quando por ele passámos,
subindo a margem em que descobri o sentido
de irmos contra o tempo, para ganhar o tempo
15 que o tempo nos rouba. Como gosto, meu amor,
de chegar antes de ti para te ver chegar: com
a surpresa dos teus cabelos, e o teu rosto de água
fresca que eu bebo, com esta sede que não passa. Tu:
a primavera luminosa da minha expectativa,
António Carneiro, Sinfonia azul, 1920.
20 a mais certa certeza de que gosto de ti, como
gostas de mim, até ao fim do mundo que me deste.
Nuno Júdice, Pedro, Lembrando Inês, Lisboa,
Dom Quixote, 2001.

1. Identifica o sujeito da enunciação.

2. Explica a interrogação que surge entre aspas no interior do poema (vv. 4-6).

3. Explicita o conceito de amor que é apresentado pelo sujeito poético.

4. Caracteriza o sujeito e o destinatário do discurso.

5. Transcreve do texto uma metáfora caracterizadora do tu.


Tradição literária
6. Comprova que este poema sugere uma incursão no universo da tradi- FI p. 82
ção histórica e literária portuguesa, fundamentando a tua resposta.

80
Nuno Júdice

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Verbo
Ponho palavras em cima da mesa; e deixo
que se sirvam delas, que as partam em fatias, sílaba a
a sílaba, para as levarem à boca − onde as palavras se
voltam a colar, para caírem sobre a mesa.

5 Assim, conversamos uns com os outros. Trocamos


palavras; e roubamos outras palavras, quando não
as temos; e damos palavras, quando sabemos que estão
a mais. Em todas as conversas sobram as palavras.

Mas há palavras que ficam sobre a mesa, quando


10 nos vamos embora. Ficam frias, com a noite; se uma janela
se abre, o vento sopra-as para o chão. No dia seguinte,
a mulher a dias há de varrê-las para o lixo.

Por isso, quando me vou embora, verifico se ficaram


palavras sobre a mesa; e meto-as no bolso, sem ninguém
15 dar por isso. Depois guardo-as na gaveta do poema. Algum
dia, estas palavras hão de servir para alguma coisa.
Nuno Júdice, As coisas mais simples, Lisboa, Dom Quixote, 2006.

1. Atribui um sentido ao facto de o sujeito poético pôr palavras «em cima da mesa».

2. Refere a importância da palavra na comunicação, tal como é sugerida no poema.

3. Explica a presença da «mulher a dias» e da «gaveta» na terceira e quarta estrofes do


poema, respetivamente.

4. Explicita o sentido de «Algum / dia, estas palavras hão de servir para alguma coisa»
(vv. 15-16).

5. Relaciona a metáfora da poesia como alimento com as Representações do contemporâneo


FI p. 83
ideias transmitidas neste poema.

GRAMÁTICA

1. Classifica as orações destacadas da terceira estrofe. Coordenação e subordinação


SIGA pp. 361-363
a) «Mas há palavras» (v. 9).
b) «que ficam sobre a mesa» (v. 9).
c) «quando / nos vamos embora. Ficam frias, com a noite» (vv. 9-10).
d) «se uma janela / se abre» (vv. 10-11).
e) «o vento sopra-as para o chão» (v. 11).

81
NUNO JÚDICE

FICHA INFORMATIVA 1

Figurações do poeta
Nuno Júdice é uma das mais representativas vozes no panorama poético de Portugal
a partir da década de setenta, com uma escrita que tensiona os limites (limites?) entre
modernismo e pós-modernismo, configurando o que poderíamos nomear de uma poé-
tica da melancolia. O tom dessa poesia é frequentemente pessimista; no entanto, essa
5 afirmação deve ser relativizada porque, de facto, não é seu tom único, e sim expressão
variável de diferentes sujeitos poéticos que vão aparecendo na cena do poema, repre-
sentando um «drama em gente» a falar da condição humana no mundo contemporâ-
neo, em meio a ruínas, fragmentos e vestígios da memória. Escrita perpassada de ironia,
criticamente relendo a tradição poética ocidental, muitas vezes enfrenta a melancolia
10 com um breve sorriso de quem sabe que o canto se faz de ficções e que é, apesar de sua
desilusão, uma janela aberta, mirando o horizonte para além das ruínas deste mundo.
Ida Ferreira Alves, «Nuno Júdice: arte poética com melancolia», Boletim de Pesquisa NELIC –
Poesia: passagens e impasses, vol. 6, N.º 8/9, Santa Catarina, Universidade Federal de Santa Catarina,
2006 (disponível em https://periodicos.ufsc.br; consultado a 15 de junho de 2023).

Arte poética
O «tema» fundamental da poesia de Nuno Júdice é a própria constituição do poema
e a (im)possibilidade dessa constituição. E o que gera e move o poema não se situa na
realidade sensível nem tem como ponto de partida qualquer afeto anterior à materiali-
zação verbal do poema.
António Ramos Rosa, $SDUHGHD]XOí(VWXGRVVREUHSRHVLDHDUWHVSOiVWLFDV,
Lisboa, Caminho, 1991.

Tradição literária
[O seu] universo poético é marcadamente erudito, havendo em torno da sua obra
todo um conjunto de referentes que nos abrem o mundo dos seus textos para outros
textos da tradição literária ocidental a partir dos quais, consciente ou inconsciente-
mente, o poeta se entrega à poesia. [...] Quanto aos poemas, eles são, com efeito,
5 produto das mais diversas vivências.

O cuidado com a rima, a forma refle-


xiva sobre o tempo, a mudança, as mais
diversas ocorrências quotidianas [...],
uma linguagem ora irónica, ora mais
10 meditativa (e divagativa até); tudo serve

o propósito de Júdice se mostrar na


letra que é sua.
António Carlos Cortez, Jornal de Letras,
30.03.2010.

Edvard Munch, Melancolia, s/d.

82
Ficha informativa

FICHA INFORMATIVA 2

Representações do contemporâneo
Retoricamente, porém, em Júdice a escrita, a forma, é conteúdo e o conteúdo extra-
vasa a mera circunstância (uma paisagem, uma música, um café...), denotando outra
das marcas deste autor: a irrupção do prosaísmo como modo de contar o que se vive o
que se vê. Para além do reconhecido verso longo, dos poemas torrenciais a que Júdice
5 já nos habituou, em Guia de conceitos básicos sobrepõem-se registos vários: do mais
intimista e lírico, ao irónico (como se lê no poema «Centro Comercial», possível pará-
frase de muita poesia recente, literal e rasa...), aos mais reflexivamente metapoéticos
(e são muitos), e através dos quais se vê a unidade deste volume, pois eles vão pon-
tuando o livro, marcando um ritmo de leitura que exige concentração, respiração
10 longa, fôlego. Mesmo alguns textos aparentemente mais imediatos (como «Salada
russa com tomate») acabam por ser conduzidos à mesma fonte original de onde vem a
poesia de Nuno Júdice: ao problema de saber as relações entre sujeito e mundo, entre
ser e natureza; entre sensação e pensamento. Em pano de fundo, a nostalgia de um
tempo imemorial, quando o Homem, antes da crise da linguagem teria um contacto
15 íntimo, não mediatizado pelos símbolos, pelos signos.
António Carlos Cortez, Jornal de Letras, 30.03.2010.

CONSOLIDA

1. Com base nos textos que acabaste de ler, classifica as afirmações como verdadeiras (V)
ou falsas (F). Corrige as falsas.
a) A poesia de Nuno Júdice configura o que
poderíamos designar por uma poética da
melancolia.
b) O tom dessa poesia é sempre pessi-
mista, fruto de um sujeito poético que
aparece em cena.
c) A escrita relê de forma crítica a tradição
poética ocidental, usando a ironia como
uma janela sobre o mundo.
d) O que gera o poema é a reflexão sobre a
sua própria constituição, sem qualquer
outro ponto de partida.
e) Há, em torno da obra de Nuno Júdice,
um conjunto de referentes, todos anco-
rados na tradição literária ocidental.
f) O prosaísmo limita a linguagem erudita
do escritor, sendo por isso apenas usado
espontaneamente.
g) Os poemas de Nuno Júdice conduzem
ao problema de se saber as relações
entre sujeito e mundo, entre ser e natu-
reza; entre sensação e pensamento. Edouard Vuillard, Paisagem (pormenor), c. 1896.

83
NUNO JÚDICE

FICHA INFORMATIVA 3

Linguagem, estilo e estrutura


1. Escrita e conhecimento
Uma das marcas dominantes, ou talvez a marca dominante da sua produção lírica,
é a persistente reflexão sobre a prática literária e as reflexões entre escrita e conheci-
mento no âmbito da literatura e cultura em língua portuguesa no seu «obrigatório» diá-
logo com a cultura ocidental [...]. Assiste-se a uma permanente reflexão, intercruzada
5 entre literatura e ciência, poesia e filosofia, onde o poético indaga permanentemente
a função do ser, a temporalidade e a existência num mundo de uma «globalização» em
que encontramos «pregados ou crucificados». Logicamente, muitas dessas reflexões
e indagações vêm impregnadas de ironia e sobretudo do fingimento pessoano, uma
vez que a refiguração do mundo e da própria linguagem é encenada no próprio texto
10 poético e literário [...].
Nuno Júdice, permanentemente em busca do «espírito» da poesia, normalmente
constrói o poema analisando os mecanismos de construção e relações do mesmo.
É como se utilizasse uma estratégia que nos levasse a viajar por dentro do poema, como
se nos fundíssemos nas suas múltiplas e complexas opções, como se aparentemente, até
15 porque não é isso que o poeta pretende na realidade (ou será?), caminhássemos sabedo-
res tanto do que o autor percorreu e escolheu, como do que ele excluiu, num processo
de escrita que, para além da qualidade, é bafejada pela originalidade.
João Rasteiro, «Nuno Júdice» (disponível em http://www.triplov.com;
consultado a 15 de junho de 2023).

2. A imagem na poesia
«Não me costumo reler, e se há temas recorrentes deixo ao crítico o trabalho de os
encontrar. [...] Vejo a minha poesia como um longo poema que terá começado entre
meados e fins da década de 1960, e ainda não acabou. Quanto a mudanças, não há nada
pior do que pretender mudar. Escrevo, reescrevo, rasuro: é este o meu trabalho.»
5 [...] O conceito de imagem é fundamental na abordagem da poética deste autor.
A formulação horaciana de «ut pictura poesis» a que Júdice se junta influencia mui-
tos dos seus poemas onde a imagem que descreve, isto é, a apreensão mental de uma
realidade sensível, se encontra nas formas mais variadas, desde outras obras de arte
(e aqui podemos dizer que a este autor em particular interessam muito as artes visuais,
10 sobretudo a pintura e a fotografia) até às coisas banais do quotidiano. A poesia de Nuno
Júdice é, de forma geral, uma poesia contrastiva, de espelhos poliédricos1, pondo a
funcionar essa dialética a diversos níveis. Em primeiro lugar, na forma do poema há uma
António Dacosta, Sem título
(pormenor), 1978. variação entre uma estrutura discursiva e uma estrutura contida e depurada, muitas
vezes apenas numa única estrofe. O estilo narrativo verifica-se desde os primeiros livros,
15 mas é nos últimos que a convivência entre estes dois paradigmas se verifica mais.
1 Poliédricos: que têm forma
Ricardo Marques, «1972-2012: Um registo poético de quatro décadas», Revista do CESP, vol. 32,
de poliedro, sólido geomé-
N.º 48, jul.-dez. 2012, pp. 21-35 (disponível em http://www.periodicos.letras.ufmg.br;
trico com muitas faces planas.
consultado a 16 de junho de 2023).

84
Soluções

SOLUÇÕES
Unidade 2 Conto

«Famílias desavindas», de Mário 4.1 A caracterização inicial de Ramon, enquanto esforçado e cheio de
boa vontade, comprova, por um lado, que a sua escolha fora acertada
de Carvalho e, por outro, que estes eram traços característicos que se estendem
aos representantes de cada geração de semaforeiros, pelo amor quase
obsessivo e irracional pelos semáforos, evidente no trabalho fora de
Os semáforos e os semaforeiros – (p. 6) horas para «afeiçoar pormenores», não justificado pelo parco salário
Oralidade (CO) e (EO) que auferiam, e na forma como se insurgiram contra o jovem enge-
AE nheiro que apresentou uma sugestão mais do que válida.
3.
5. Critica-se a procura do facilitismo para proveito próprio, aqui pre-
Educação Literária
sente na possibilidade de «personalizar a relação com o sinal», bas-
1; 4; 5; 6. tando ser-se simpático com Paco, pedindo-lhe «um jeitinho».
Gramática 6. O excerto apresenta uma estrutura completa, correspondendo o
4; 6. primeiro parágrafo à introdução, na qual se descreve, no presente da
enunciação, uma hipotética rua do Porto e um cruzamento da mesma,
onde se situam uns semáforos sui generis, por serem movidos a pedal.
No segundo parágrafo, tem início o desenvolvimento, recorrendo-se à
▪ Link analepse para narrar a origem dos semáforos, que teve lugar no dobrar
– Vida e obra de Mário de Carvalho do século XIX, descrever o funcionamento do dispositivo e indicar
– Ler Mais e Melhor – «Mário de Carvalho» como se processou a seleção do primeiro semaforeiro. A ação avança
▪ Link temporalmente ao longo de um século, sendo apresentadas as várias
Notícia da SIC, «Espantalhos em Coimbra» (15-10-2016) gerações de semaforeiros até à atualidade. Finalmente, e voltando ao
Ponto de Partida presente da enunciação, surge a conclusão, retomando-se o início do
1. A notícia apresenta um carrossel movido a pedais, o que, associado excerto: os semáforos com o atual semaforeiro e a forma como os cida-
ao conto, nos indica que algo, no mesmo, será acionado por este meio e dãos encaram este dispositivo.
que, provavelmente, irá originar desavenças entre famílias.
Gramática
Educação Literária
1. a) complemento do advérbio; b) complemento oblíquo; c) comple-
1.1 O comprimento da rua é evidenciado na descrição inicial, como se mento do adjetivo.
pode verificar pela utilização dos adjetivos «alongada» e «comprida», 2. a) adjetiva relativa restritiva; b) substantiva completiva; c) substan-
pela reiteração da expressão «que sobe», a transmitir a ideia de conti- tiva completiva; d) adjetiva relativa explicativa.
nuidade, de prolongamento, reforçada pela hipérbole «e não se acaba».
3. a) valor perfetivo; b) valor imperfetivo; c) situação genérica;
1.2 O dispositivo, por ser «insólito», algo invulgar e singular, contrasta d) situação habitual.
com a descrição da rua onde se encontra, pois esta não apresenta
pontos de interesse para ser um local de passeio, sendo igual a tantas
outras («uma dessas alongadas ruas do Porto») e, por tal, caracterizada O conflito – (p. 9)
como «banal», vulgar.
Educação Literária
2. O segundo parágrafo desenvolve-se em torno da ironia presente AE
1; 4; 5; 6.
na apresentação do semáforo pelo jovem engenheiro como algo
«moderno, operado a energia elétrica», quando, na verdade, era movido Gramática
a pedal. O facto de Gerard Letelessier não ter obtido sucesso em Paris e 6.
em Lisboa, portanto, numa das principais cidades da Europa e na capital Oralidade (EO)
do país, e de ter conseguido o seu intento no Porto deixa transparecer Retoma.
uma crítica a um certo provincianismo por parte do autarca portuense,
aliado à facilidade com que se deixa corromper, neste caso, por «umas Educação Literária
garrafas de Bordéus». 1. a) «No dobrar do século XIX»; b) «Durante a Primeira Guerra»;
3. A referência veicula uma crítica a um certo «tráfico de influências», c) «Por alturas da Segunda Grande Guerra»; d) «pouco depois da revo-
ainda que em menor escala, na seleção de pessoas sem as qualifica- lução de Abril»; e) Ramon; f) Ximenez; g) Asdrúbal; h) Paco; i) Doutor
ções exigidas para a ocupação de determinados cargos: insinua-se João Pedro Bekett; j) João (médico); k) Dr. Paulo; l) «Há dias»; m) «o
que Ramon foi escolhido para desempenhar as funções de semafo- acidente»; n) «todos os dias».
reiro, não por reunir as condições exigidas (era imperativo saber andar 1.1 Verifica-se, entre as duas partes, uma sobreposição cronológica,
de bicicleta), mas por ser familiar do proprietário de um bom restau- isto é, do tempo da história, dado as referências temporais, presen-
rante do Porto e, como tal, teria alguma influência e poderia fornecer tes na primeira parte, se repetirem de forma implícita na segunda,
contrapartidas. nomeadamente na referência ao período em que o primeiro médico

85
Soluções

se instalou naquela rua («Pouco antes da instalação dos semáforos» – 2. a) coesão gramatical temporal; b) coesão gramatical referencial;
l. 2 da segunda parte) e na relação que se estabelece entre cada gera- c) coesão gramatical interfrásica; d) coesão lexical: sinonímia.
ção de semaforeiros, apresentados na primeira parte, e a respetiva
geração de médicos que surgem na segunda parte.
2. O conflito surgiu logo na primeira geração de médicos e de semafo-
reiros, pois o Doutor João Pedro Bekett, extremamente zeloso da sua ▪ PowerPoint®
Proposta de correção da atividade de Oralidade
missão enquanto médico, interpelava as pessoas que passavam para
verificar se se encontravam doentes, tendo, para tal, de atravessar
a rua muitas vezes, ato dificultado pela presença dos semáforos. Fichas informativas 1 e 2 – (pp. 12-13)
Assim, a dada altura, dirigiu-se austeramente a Ramon, dizendo-lhe
que ninguém o podia impedir de atravessar a rua quando quisesse, Leitura
AE
atitude que desagradou de tal forma ao semaforeiro que, a partir daí, 3.
procurou complicar a passagem do médico.
3. Existe um contraste entre o comportamento e o seu estatuto
social, pois a profissão de médico sempre foi encarada como superior Ficha informativa 3 – (p. 14)
às demais, pela importância que assume para o ser humano, salien-
tando-se socialmente. O pretensiosismo do primeiro médico, a infan- Consolida
tilidade do segundo e a intriguice e a má educação do terceiro, que 1. A verosimilhança dos textos de Mário de Carvalho é habilmente con-
quase chegou «a vias de facto» com Asdrúbal, são reveladores deste seguida a partir da adequação da linguagem às várias temáticas abor-
contraste. Estas características surgem implicitamente nos insul- dadas pelo escritor. Esta adequação advém de uma seleção criteriosa
tos utilizados: o termo «galego» com duplo sentido, salientando-se do vocabulário e de um estudo prévio e aprofundado das situações
o depreciativo, a exprimir a superioridade sentida relativamente aos a narrar, conduzindo o leitor a reconhecer e a reconhecer-se nessas
semaforeiros, e a impropriedade da linguagem, e o ato de amaldiçoar, situações e nas personagens, sem se aperceber de todo o trabalho rea-
presente no uso de «Arrenego», ambos totalmente inadequados ao lizado pelo escritor.
estatuto referido. O recurso em paralelo ao humor e ao tom sério confere um sentido
4. O conflito vai-se adensando e agravando de geração em geração: irónico ao texto, sem se assumirem juízos de valor, sendo o leitor condu-
tem início com o Doutor João Pedro Bekett, que se dirige indelica- zido a formar a sua própria opinião.
damente a Ramon, passando a ter a sua vida dificultada por este; de As palavras são engenhosamente selecionadas, dando origem a «uma
seguida, o seu filho João tenta boicotar o trabalho de Ximenez, pro- prosa brilhantíssima e sedutora», em consonância e adaptável às várias
curando encandeá-lo com um espelho; por sua vez, o Dr. Paulo troca «estórias» narradas, maioritariamente situações insólitas, capazes de
insultos, primeiro com Asdrúbal e depois com Paco. A instigação surpreender, de deslumbrar e de inquietar o leitor.
dos pacientes para insultarem o semaforeiro adensa o conflito que
quase envolveu um confronto físico, quando Asdrúbal levanta a mão
para atingir o médico. A peripécia final, ou seja, o acidente de Paco e
a mudança radical do comportamento do Doutor Paulo, é reveladora
da futilidade e da inutilidade do conflito entre as duas famílias, pois, Unidade 3 Poetas contemporâneos
de um momento para o outro, tudo se altera e a paz é restabelecida.
5. Os marcos históricos encerram uma simbologia que contrasta
nitidamente com o comportamento das «famílias desavindas». As
consequências catastróficas das duas Grandes Guerras, a morte, a Poetas em opção
destruição, o sofrimento, o horror do holocausto da Guerra de 1939-
-1945, o exemplo da Revolução de Abril de 1974, com a conquista da Jorge de Sena – (p. 18)
liberdade através de um ato pacífico, tornam o conflito entre médicos
e semaforeiros ridículo e insignificante. Educação Literária
AE
1; 2; 3; 4.
6. A ironia está presente ao longo de todo o conto, desde a crítica ao
provincianismo, à corrupção e ao facilitismo, já referidos, à forma Oralidade (EO) e (CO)
como os médicos são caracterizados, ao contraste entre o seu esta- 3.
tuto social e o seu comportamento e, essencialmente, à pequenez
do conflito entre as duas famílias perante a magnitude dos aconte- Ponto de Partida
cimentos mundiais e nacional, a deixar transparecer uma censura ao
egoísmo e mesquinhez do ser humano.
7. Nota: Cenário de resposta disponível em AulaDigital. ▪ Link
Poemas «Felicidade»; «Quem a tem...» e «Carta a meus filhos sobre
os fuzilamentos de Goya», de Jorge de Sena (interpretados por Nuno
Meireles)
▪ PowerPoint®
Proposta de correção da questão 7 1.1 a) Jorge de Sena como académico, mas sobretudo como criador,
artista, poeta (conjugação harmoniosa das duas facetas). b) Esteve
Gramática expatriado, exilado, foi malquerido e morreu triste. c) Todas as ideias
1. a) complemento do nome; b) predicativo do sujeito; c) comple- que apresenta no poema «Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos
mento agente da passiva; d) modificador do nome restritivo. de Goya».

86
Soluções

«Quem a tem» – (p. 19) 1.2 O sujeito, oculto sob uma máscara particularmente produtiva,
inflete sobre um destino particular, que, contudo, nos soa a nós, leito-
Educação Literária res, como a voz do destino que ajuíza os homens e as suas ações.
AE
1; 2; 3; 4. 2. A tradição regista que Camões enfrentou a inveja e uma espécie de
preconceito dos poetas seus contemporâneos. É essa tradição que
Educação Literária
está presente no poema, em que os poetas da época são acusados de
1.1 O assunto é a liberdade (o poema foi escrito durante o período fas-
terem roubado as ideias e as palavras do poeta, e também de não o
cista, antes do 25 de Abril de 1974).
terem citado, suprimindo-o e aclamando «outros ladrões mais felizes».
1.2 As ideias desenvolvidas pelo sujeito poético constituem uma forma A noção de criador original que perpassa da modernidade artística e
de expressão do desejo de ver o seu país livre, sem medo de viver («é a do reconhecimento da sua obra pelos outros são fulcrais na leitura
quase um crime viver», v. 10) e com liberdade de expressão («e me quei- deste poema, onde ética e estética se (con)fundem.
ram cego e mudo», v. 12).
1.3 O mote é repetido nas estrofes para acentuar e reforçar a ideia
principal. «Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de
1.4 O recurso expressivo é a hipérbole. Goya» – (p. 22)
Sugestão ao professor: Educação Literária
AE
− Escrita de um breve texto pelos alunos que dê continuidade à ideia 1; 2; 3; 4.
expressa no título do poema: «Quem a tem». Gramática
(A sequência lógica do título do poema parece ser a de que «quem
2; 3; retoma.
a tem» deve saber valorizá-la e não deixar prevalecer as ameaças que
constantemente a rodeiam. O aluno deve escrever um breve texto onde Escrita
explicita as suas ideias.) 1; 2; 3; 4; 5.
− Relacionar uma cor com a ideia de liberdade e pesquisar no Dicionário
de símbolos o seu significado para justificarem as suas escolhas.
Ponto de Partida
(A cor que mais frequentemente se relaciona com a ideia de liberdade 1. Trata-se de um quadro marcadamente expressionista, caracterizado
é o vermelho, a cor das revoluções. O Dicionário de símbolos aponta-a
pela liberdade do cromatismo e pelos dramáticos contrastes de luz e
como uma cor que indica coragem e força.)
sombra. Representa uma cena noturna onde dois setores se destacam:
a coluna de soldados (franceses), imersos em sombra, que contrasta
«Sento-me à mesa» – (p. 20) com o grupo de condenados, inundados por uma intensa luz, que deixa
realçar a camisa branca de um deles. O jogo simbólico de luz e sombra
Educação Literária sublinha a posição do pintor relativamente aos agressores e aos márti-
AE
1; 2; 3; 4. res, representando-se, assim, o 3 de maio de 1808.

Educação Literária Sugestão ao professor:


1. De facto, este poema reflete a atitude do sujeito relativamente à Visionamento do filme Os fantasmas de Goya (2006), de Milos Forman,
poesia. Os dois versos são, por exemplo: «e principio a escrever como se sobre a época em que o pintor Goya viveu, da Inquisição.
escrever fosse respirar», v. 2; «e falo da verdade, essa iguaria rara», v. 15.
2. O ato poético adquire uma dimensão vital: como se escrever fosse Educação Literária
respirar; a mesa em que os homens comem.
3. Sentar à mesa; principiar a escrever; ficar espantado; estar preso
à mesa em que os homens comem; falar verdade; apreender o que ▪ Link
escreve. «Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya», de Jorge de
4. Os três momentos avançam num crescendo até eclodir a poesia − 1.o Sena, por Mário Viegas
momento: «principio a escrever»; 2.o momento: «à medida que escrevo,
vou ficando espantado»; 3.o momento: «apreendendo o que escrevo». 1.1 O sujeito poético dirige uma «carta» aos seus filhos para desejar que
a sua vida cresça num mundo melhor, pautado por valores fundamen-
5. As homologias mostram um sujeito poético a dizer de si e do modo
como vive o momento da criação como expressão vital. Mas o poeta tais, e que eles preservem e amem esse novo mundo.
é também o que condensa a experiência milenária da humanidade, 2. Divisão do texto em partes e título (sugestão):
salientando a importância de estar preso à «mesa em que os homens 1.a − Anseio de um mundo melhor como desejo do pai para os filhos
comem» e da relação profícua do poeta com o mundo. (versos 1 a 14);
2.a − Hino aos que se sacrificaram em defesa dos direitos humanos
(versos 15 a 35);
«Camões dirige-se aos seus contemporâneos» – (p. 21) 3.a − Apresentação do contexto do quadro de Goya (versos 36 a 45);
Educação Literária 4.a − Apelo à defesa do valor da vida (versos 46 a 61);
AE 5.a − Dúvida sobre o valor do sacrifício humano e confirmação do valor
1; 2; 3; 4.
da vida (versos 62 a 71).
Educação Literária 6.a − Em defesa e memória da nossa humanidade (versos 72 até ao
1.1 No poema, uma voz que identificamos no título, com um discurso fim).
próprio, de vibrante oralidade, interpela os seus contemporâneos para 3. Características: um mundo natural e simples, de liberdade e de igual-
lhes mostrar o que o destino lhes reserva. dade, sem sacrifício e discriminação, no qual a vida seja respeitada.

87
Soluções

3.1 Valores relacionados com os mais fundamentais direitos huma- Ponto de Partida
nos, sem opressão nem atropelos à liberdade individual.
4. A enumeração em «de ferro e de suor e sangue e algum sémen»
serve o propósito de reforçar a ideia que se quer evidenciar. ▪ Links
Programa Ensina RTP − «O funcionário cansado», António Ramos
Gramática Rosa»
1. O vocativo repetido é «meus filhos». Programa Ensina RTP − «Nas Palavras de António Ramos Rosa»,
2. a) oração subordinada substantiva completiva; b) oração subordi- entrevista a António Ramos Rosa
nada adverbial final.
3. a) «meus filhos»; b) «ao mundo». «O funcionário cansado»
a) espaço: quarto, espaço de solidão («estou num quarto só num quarto
só»), e o escritório, espaço de opressão («Sou um funcionário apagado /
Fichas informativas 1 e 2 – (pp. 25-26) um funcionário triste / a minha alma não acompanha a minha mão /
Débito e Crédito Débito e Crédito»); b) tempo propício à escrita: a
Leitura «noite», tempo de reflexão e de solidão: «A noite trocou-me os sonhos
AE
3. e as mãos / dispersou-me os amigos»; c) sentimentos dominantes:
solidão, nostalgia, desejo de evasão através da escrita; d) crítica
social: denúncia da frustração de pessoas que têm de se submeter
Consolida
a trabalhos rotineiros e que são penalizadas pelo seu alheamento da
1. a) Liberdade; b) relações; c) metamorfose; d) testemunho.
realidade em momentos de criação artística («o chefe apanhou-me
com o olho lírico na gaiola do quintal em frente / e debitou-me na
Sugestão ao professor:
minha conta de empregado»).

Entrevista a António Ramos Rosa


▪ Link a) espaço: quarto do Lar da Santa Casa da Misericórdia, onde o escri-
Programa Ensina RTP − «Ler Camões com Jorge de Sena» tor vivia aos 77 anos; b) tempo propício à escrita: referência ao dia e
à noite, ou seja, à ocupação temporal permanente e obsessiva com
Ouvir o programa Ensina RTP, sobre Jorge de Sena, para que os alunos a escrita; c) sentimentos dominantes: solidão, marcada pelo isola-
sintetizem as ideias de acordo com os seguintes tópicos: mento e afastamento das realidades, pois o poeta não tem televisão
a) Comemorações de Camões; b) Formas de tornar Camões «vivo»; nem rádio no quarto; d) crítica social: evocação do tempo em que
c) Formas de ler Camões; d) Camões como principal personagem de trabalhou na empresa de camionagem, momento em que escreveu
Os Lusíadas. o poema «O funcionário cansado», criticando o horário preenchido e
rotineiro que não permitia que os funcionários contactassem com o
Sugestão de resposta: cosmos; inferência relativamente ao isolamento e à solidão das pes-
a) Jorge de Sena está em Portugal para participar nas comemorações soas que se encontram na terceira idade.
de Camões; b) Existem, segundo Jorge de Sena, duas formas de tornar
Camões vivo: − colocá-lo na sua perspetiva e circunstância histórica;
− lê-lo com os olhos da nossa contemporaneidade. c) É preciso ler «A João Rui de Sousa» – (p. 29)
nas entrelinhas, tanto na épica como na lírica. d) Camões é, segundo
Educação Literária
Jorge de Sena, a personagem principal de Os Lusíadas por poder ser AE
1; 2; 3; 4.
identificado com o destino do homem português.
Oralidade
3.
Ficha informativa 3 – (p. 27)
Leitura Educação Literária
AE 1. O sujeito poético apresenta como frontispício do poema a dedica-
3.
tória a um dos seus amigos, João Rui de Sousa, o que nos permite a
identificação do respetivo destinatário e a localização temporal/
Sugestão ao professor: cronológica da mensagem poética. No entanto, o primeiro verso, refe-
Explorar com os alunos os seguintes tópicos: rindo indefinidamente «um amigo», sugere uma maior abrangência
a) A intenção da poesia de Jorge de Sena; b) A multiplicidade de pro- daqueles a quem ele poderá dedicar a sua solidariedade e o seu afeto,
cessos de escrita; c) A riqueza da poesia de Jorge de Sena. em qualquer tempo e em qualquer espaço.
2. O relógio, neste contexto, é símbolo de um tempo circunscrito, ou
seja, traduz os momentos de que o sujeito lírico dispõe para atender
António Ramos Rosa – (p. 28) às necessidades dos seus amigos, as cedências que eventualmente
poderá fazer da sua vida pessoal para apoiar um amigo, sendo que o
Educação Literária relógio não marca um tempo inútil.
AE
1; 2; 3; 4. 3. Ainda que não tenha o tempo desejável, o sujeito poético encon-
Oralidade (EO) e (CO) trará sempre alguns momentos para se dedicar aos que requerem o
3. seu carinho e a sua solidariedade.

88
Soluções

4. O tempo final da consagração e da comunhão do encontro sele- folha branca. / Eis talvez o mar. / Contra ela, o quê? / Um barco uma
ciona as expressões «arco-íris», «copo de vinho», «sangue» e «sol», caixa?»; Quem sou quando escrevo? / Quem sou?».
que conotam positivamente esse momento de dádiva total, no qual o 3. Na penúltima estrofe, há duas frases interrogativas e uma frase
«sol» ilumina e conforta uma genuína amizade. exclamativa. As primeiras assinalam o questionamento do sujeito
poético sobre o caminho a seguir e a possibilidade de tudo ser mera
ilusão. No entanto, a frase exclamativa iniciada pela adversativa
«mas», a sugerir a ideia de oposição, permite a confirmação de que a
▪ Link escrita é vida («respirar») para o sujeito poético.
Canção «Traz outro amigo também», Zeca Afonso
4. A comparação «Se isto é querer andar, / como o vento nas pedras»
▪ Documento sugere a ideia de transitoriedade e permanência na escrita, o que
Letra da canção «Traz outro amigo também»
é confirmado no verso final que dá o título ao poema: «Caminhar.
Habitar».
«Um caminho de palavras» – (p. 30) 5. Duas características formais da lírica tradicional: o recurso à qua-
dra e aos versos em redondilha menor (cinco sílabas métricas: «Se/
Educação Literária não/te/nho a/for/ça». Do ponto de vista temático, o sujeito poético
AE
1; 2; 3; 4. coloca a possibilidade de que a sua matéria poética seja o mar, tema
Educação Literária tratado na lírica portuguesa desde os primórdios da sua existência.

«No silêncio da Terra» – (p. 32)


▪ Link
Educação Literária
Poema «Um caminho de palavras», de António Ramos Rosa AE
1; 2; 3; 4.
1. O sujeito poético (re)inventa a realidade através das palavras. O seu Educação Literária
percurso é a recriação do real transfigurado pela arte poética («com 1. Os quatro elementos primordiais da Natureza remetem-nos para
as palavras de vento e de pedra, invento o vento e as pedras, caminho a génese da vida, sendo a Terra o espaço onde «ser é estar». Porém,
um caminho de palavras»).
todos os outros se conjugam harmoniosamente, como podemos veri-
2. O verso «(porque me deram o sol)» constitui uma espécie de aparte e ficar no final da primeira estrofe: «um sabor ao fundo / da água ou da
de justificação do sujeito poético, que se sente abençoado/iluminado terra, / o fogo único consumindo em ar».
por ter o privilégio de seguir esse caminho de reinvenção da realidade
2. Entre o sujeito poético e a Terra existe uma perfeita osmose: é o
através da escrita.
espaço «onde ser é estar», «respira a terra», afunda-se sereno, «abrin-
3. O dia/sol e a noite são polos antagónicos, pelo que o sujeito lírico do-se», «respirando», «fletindo».
sente necessidade de ampliar o dia, momento associado à plenitude
3. No poema, predomina a sensação auditiva na referência ao silên-
cósmica que o sol lhe proporciona. Este prolongamento do dia traduz
cio, que nos remete para a ideia de tranquilidade que a Natureza/Terra
a ideia de triunfo da palavra/poesia em relação à escuridão da noite.
proporciona ao sujeito poético («No silêncio da Terra»; «em que nada
4. O dístico que encerra este texto poético funciona como uma se diz / e no silêncio se une a boca ao espaço»).
espécie de conclusão. A conjunção coordenativa adversativa «mas»
4. A metáfora realizada pelo verbo habitar «dentro da grande pedra
sugere a ideia de oposição e, consequentemente, a consciência de que
de água e sol» remete para a ideia de «estar» num espaço purificador/
é impossível conseguir evitar a perturbação da escuridão inerente à
iluminado («sol») de vida («água»).
noite.
5. A diversidade de ritmos é marcada por versos longos, alternados
5. Constatamos que existe uma progressiva redução da estrutura do
com versos curtos. O primeiro verso do poema (longo) traduz uma
texto, inicialmente constituído por dois fragmentos em prosa poé-
ausência do saber («Não sei se principio», v. 10) e o último verso (curto)
tica e, seguidamente, por três estrofes, sendo a última a mais breve,
a afirmação desse saber, que poderá corresponder ao encontro do
a sugerir uma espécie de afunilamento, que traduz a inevitabilidade
sujeito poético com a verdade que persegue.
das trevas.

«Caminhar. Habitar» – (p. 31) Fichas informativas 1 e 2 – (pp. 33-34)

Educação Literária Leitura


MC AE
1; 2; 3; 4. 3.

Educação Literária Consolida


1. O verso «Tudo começou» assinala o início da aventura da escrita. 1. Figurações do poeta – o poeta vive mais isolado da sociedade para
O sujeito poético acende um cigarro, tem a folha em branco à sua viver melhor na sua comunidade e junto dos mais próximos.
frente e questiona-se sobre as possibilidades de matéria para o seu O outro permite ao poeta iniciar a construção humana, que está
poema. dependente do encontro dos dois, e ter abertura aos que o rodeiam.
2. O eu lírico manifesta dúvidas sobre o que poderá escrever e sobre Arte poética – a poesia de António Ramos Rosa pode caracterizar-
a sua identidade no momento da escrita, através de um conjunto -se pela procura da palavra certa para referir coisas despidas de
de interrogações retóricas que traduzem essa reflexão: «É a vida nomeações e consequentemente levar à reflexão sobre elas e a sua
aberta?»; «É, não é ainda: / mas o que vai ser / e nunca será?»; «Eis a mensagem.

89
Soluções

Tradição literária – toda a criação faz parte da origem do homem e, que considera menos favoráveis no seu aspeto físico e/ou no seu cará-
por isso, também a criação poética. ter e que enalteçam os traços de que mais se orgulha.
Representações do contemporâneo – o objetivo da poesia de
António Ramos Rosa é impelir-nos para a reflexão da sua palavra poé-
«Portugal» – (p. 37)
tica, e não para olhar para o poema como objeto final.
Educação Literária
AE
Alexandre O’Neill – (p. 35) 1; 2; 3; 4.
Gramática
Educação Literária 2; retoma.
AE
4.

Sugestão ao professor:
Ponto de Partida

▪ Link
▪ Link Declamação do poema «Portugal», de Alexandre O’Neill, por Rui
Recital de Poesia − Declamação dos poemas «Portugal» e «Um adeus Spranger (Um Poema por Semana − RTP)
português», por Pedro Lamares
1. a) V; b) F. No poema «Portugal», o recurso expressivo predominante é Educação Literária
a ironia; c) V; d) V. 1. O título «Portugal» está perfeitamente de acordo com o assunto
da composição poética, uma vez que o sujeito poético apresenta o
imaginário parodiado do país, através de sucessivas enumerações
«Autorretrato» – (p. 36) que apontam ironicamente para aspetos geográficos e culturais de
Portugal, mas também para uma realidade, cujo desenvolvimento
Educação Literária político-social não corresponde às suas expectativas.
AE
1; 2; 3; 4.
2. As frases iniciadas pela conjunção subordinativa condicional apon-
tam uma hipótese que seria desejável: um país onde se vivesse em
Educação Literária liberdade, no qual fosse possível desfrutar plenamente da sua beleza
1. Características físicas: natural.
− cabelo preto / «cabelo asa de corvo»; 3. O sujeito poético apresenta uma perspetiva simultaneamente
− nariz saliente / «nariguete que sobrepuja de través»; sarcástica e ternurenta. Apesar da fome e da ausência de liberdade,
− ferida não cicatrizada no rosto / «a ferida […] não cicatrizada»; Portugal é apresentado como um país pitoresco e com elementos
− testa brilhante / «testa iluminada». simbólicos que integram a cultura do país.
Características psicológicas e morais: 4. A antítese «feira cabisbaixa» contribui para intensificar os senti-
− irónico / sarcástico / «a ferida desdenhosa»; mentos antagónicos do sujeito poético e a sua insatisfação relativa-
− nostálgico / amargurado / «olho triste»; mente à estagnação do país.
− inteligente / «testa iluminada»; 5. O desconforto relativamente à insuportável estagnação da pátria
− afetuoso / carente / «sofre de ternura». é uma questão que afeta o sujeito poético («questão que eu tenho
2. O sujeito poético acredita no amor, crê nas suas capacidades para comigo mesmo», v. 28), a qual, no entanto, também é extensível a
amar e proporcionar prazer («No amor crê (ou não fosse ele O’Neill!) / todos os portugueses («meu remorso de todos nós», v. 34).
e tem a veleidade de o saber fazer»), mas sente-se carente de afeto
(«sofre de ternura»). Gramática
1.1 D; 1.2 C; 1.3 A; 1.4 C; 1.5 C.
3. O poema é um retrato físico e psicológico do sujeito poético, que
começa por se apresentar no primeiro verso, referindo o seu nome e a
sua nacionalidade, pelo que há uma perfeita relação entre o título e o «Perfilados de medo» – (p. 39)
início da composição poética.
4. A hipálage, na expressão «a ferida desdenhosa», põe em evidência o Educação Literária
AE
humor e o sarcasmo do sujeito poético. 1; 2; 3; 4.
5. O sujeito poético, no último verso, classifica o seu poema como Oralidade (EO)
soneto. De facto, apesar de o poema não apresentar a estrutura fixa 3.
do soneto quinhentista, o poema está implicitamente organizado em
duas quadras e dois tercetos, terminando com um pensamento ele-
vado, pelo que poderíamos fazer corresponder os dois últimos versos Educação Literária
à chave de ouro ou chave do soneto. 1. O título do poema é bastante sugestivo, remetendo-nos, à partida,
para ideias antagónicas como a coragem inerente a um exército que
Sugestão ao professor: se prepara corajosamente para o combate e o sentimento de medo.
Escrita de autorretrato em poema, à semelhança de Alexandre Constatamos que está em perfeita consonância com o desenvolvi-
O’Neill, no qual cada aluno apresente o seu autorretrato físico e psico- mento do tema da opressão ditatorial.
lógico, recorrendo, pelo menos, a três recursos expressivos que colo- 2. Na primeira estrofe, o sujeito poético refere que o medo é agra-
quem em evidência o seu humor a sua capacidade de rir dos atributos decido, porque impede a loucura, uma vez que a coragem e a

90
Soluções

determinação não têm qualquer significado naquele clima opressivo «Aos amigos» – (p. 44)
em que se vivia.
Educação Literária
3. Aventureiros frustrados, os portugueses vivem no alheamento, AE
refugiados num passado inexistente e sem perspetivas de futuro. 1; 2; 3; 4.
4. Na última estrofe do poema, a metáfora «rebanho» e a antítese Gramática
«vivemos juntos tão sós» sugerem um povo que sente a impossibili- 2.
dade de luta pela liberdade e, por isso, vive em comunidade, mas sem
possibilidade de comunicação e regido por uma só voz ditatorial. Sugestão ao professor:
5. O poema é um soneto, apresentando as características formais do
soneto quinhentista de origem italiana, género que foi muito culti-
vado por Camões e por Bocage. Está organizado em duas quadras e
dois tercetos em versos decassilábicos. ▪ Link
Audição do poema cantado por Vitorino

«Fala!» – (p. 40) Educação Literária


1. O sentimento é o amor, mas brando, sem agitações nem desassosse-
Educação Literária gos («Amo devagar»).
AE
1; 2; 3; 4. 2. Os amigos são tristes, estão sentados e enlouquecem, fecham os
Escrita olhos talvez lembrando tudo o que aprenderam, escreveram ou viven-
1; 2; 3; 4. ciaram. Partilham com o sujeito poético o facto de terem um talento,
aqui designado de «doloroso e obscuro», o dom da criação poética, lugar
de silêncio e de paixão.
Educação Literária 3. Na medida em que os amigos se voltam para partilhar o fogo, o tra-
1. O imperativo «fala» começa logo por ser o título do poema e per- vessão pode dar entrada à presença de vozes em uníssono.
mite, posteriormente, apresentar o texto como um lugar de jogo com
4. A construção do «lugar de silêncio» opõe-se à forma estática com
as palavras, designadamente com o verbo fazer, agregado ao pro-
que os amigos são apresentados inicialmente («estão sentados»). Esta
nome pessoal com função sintática de complemento direto, o que construção faz-se «dentro do fogo» e com «um talento doloroso e obs-
resulta numa combinação perfeita de homofonia. curo». Esta obscuridade opõe-se à luminosidade, logo o fogo é doloroso
2. Ao longo do poema, está presente a anáfora, a intensificar o jogo de e queima. No entanto, sendo um símbolo regenerador e purificador,
palavras e, sobretudo, a importância da liberdade de uso das palavras. simboliza renascimento e renovação, conhecimento intuitivo, ilumina-
3. O poema contém várias características que nos reenviam para a ção, paixão.
contemporaneidade, nomeadamente, a influência de práticas dos
anos de contacto com o Surrealismo. Os jogos e trocadilhos estão ao Gramática
serviço da liberdade linguística, da espontaneidade, da diversão, da 1. a) Modificador do nome restritivo.
exploração das potencialidades da linguagem.
«Sobre um poema» – (p. 45)
Fichas informativas 1 e 2 – (pp. 41-42) Educação Literária
AE
Leitura 1; 2; 3; 4.
AE
3.
Educação Literária
1.1 «Podemos chamá-lo metapoético, visto que procura explicar o que
Consolida é um poema e reflete sobre o modo como o poema nasce e sobre o
1. a) F. […] por opção, para poder viver de forma intensa a vida; b) V; processo como ele se manifesta. Isto leva a interpretá-lo sob a perspe-
c) F. O poeta levava para a sua poesia temas já muito discutidos […]; tiva de arte poética sobre o nascimento do poema e a sua projeção no
d) V. espaço e no tempo.
2. O poema «cresce inseguramente» porque o poeta jamais poderá ter
Herberto Helder – (p. 43) a certeza de que o ímpeto o levou a escrever, ímpeto «na confusão da
carne» que ainda se encontra no reino abstrato e no pulsar imediato dos
Educação Literária sentidos e que se virá a realizar como um corpo total e íntegro: o poeta
AE
1; 2; 3; 4. não sabe praticamente nada daquele poema. Podemos então dizer que
a escrita de um poema é sempre um ato misterioso.
Oralidade (CO) e (EO)
3. 3. Depois de se libertar do círculo do silêncio, o poema absorve o mundo
com o seu material de construção, que é a palavra. Nomeia as coi-
sas como forma de testemunhar o mundo. E esse testemunho passa
Ponto de Partida de mão em mão e nunca morre, tornando-se, assim, indestrutível.
Simultaneamente, o poema tem o poder de reinventar outro mundo
dentro do círculo poético.
4. No mundo do poema e no mundo real de que o poema partiu, tudo
▪ Link
existe em harmonia: a harmonia do Ser. Destruição e construção, morte
Notícia «Herberto Helder, relatos de quem convive de perto com o
poeta» (SIC)
e nascença, ausência e presença, negativo e positivo completam-se e

91
Soluções

complementam-se. Com a redonda harmonia do mundo deve-se com- Sugestão ao professor:


preender o mundo em toda a sua dimensão e totalidade, que é a esfera Audição do poema «Não sei como dizer-te», de Herberto Helder, por
da arte e da poesia. José-António Moreira
5. O poema, que «cresceu inseguramente», insurge-se, agora, contra o
tempo e a carne. Isto acontece porque ele transcende a capacidade da Educação Literária
lógica racionalista e histórica do ser humano. O poema transforma tudo 1.1 O sujeito poético inicia e desenvolve o poema em torno da incapaci-
quanto toca, é contínua transformação, mas conserva em si a magia dade de verbalização de determinadas circunstâncias ou situações que
das origens. Deixa-nos compreender o mundo à luz da lógica da pala- o ligam ao destinatário do poema.
vra poética, que, embora nascendo e se processando num determinado 2. A relação eu-tu pauta-se pela expressão da procura do outro, reitera-
tempo e espaço históricos, os transcende sempre, ou seja, é uma lin- damente repetida pelo sujeito poético, que procura explicitar as formas
guagem intemporal, transcendente e cósmica. e o empenho nessa demanda: a voz, cem ideias, a pureza, o sol, o fruto, a
criança, a água, o deus, o leite, a mãe, o amor, que procuram.
«A paixão grega» – (pp. 46-47) 3. No corpo mesmo do poema, como no da mulher, vai-se escrevendo
a poética amorosa e erótica de Herberto Helder, feita da confluência
Educação Literária permanente do Eros (deus do Amor) e de Tánatos (deus da Morte), nas
AE
1; 2; 3; 4. suas pulsões contraditórias mas convergentes no momento extático
Gramática da união dos corpos. O amor e o erotismo são aqui a expressão de uma
2. beleza imagética, rítmica e luminosa como a primavera (ex.: «aprendo /
os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstrato / correr do espaço»).
4. Por exemplo: Comparação − «e tu estremeces como um pensamento
Educação Literária
chegado»; metáfora − «o coração é uma semente inventada»; enume-
1. O poema contém uma explícita inspiração grega, evidenciada pela
sabedoria dos «gregos antigos», referida no primeiro verso mas ins- ração − «o sol, o fruto, a criança, a água, o deus, o leite, a mãe, o amor»;
crita, desde logo, no título, como epígrafe, como axioma e como critério aliteração de (t) − «junto à taça de pedra do teu tão jovem silêncio».
para compreender o sentido da vida. A memória dos «gregos antigos» 5. Os elementos da natureza compõem a realidade metafórica e sim-
parece abrir uma clivagem entre antigos e modernos relativamente ao bólica expressa no poema, tais como a flor, o fruto, o sol, a lua, configu-
assunto do poema. Segundo a tradição grega, quando alguém morria, rando os elementos plásticos e sensoriais que conferem à poesia um
não se escrevia necrológicos, apenas se perguntava se tinha paixão. caráter elemental num constante apelo ao regresso às origens.
2. De acordo com a tradição grega, que coloca a paixão no topo de todos
os princípios existenciais, o sujeito poético também quer saber da qua- Gramática
lidade da paixão das pessoas que morrem. 1. a) complemento direto; b) complemento direto.
3. Expressões: «pelo talento de algumas palavras para se moverem 2. a) oração subordinada substantiva completiva; b) oração subordi-
no caos»; «há dedos que se inspiram nos objetos à espera»; «palavra nada adverbial temporal; c) oraçao coordenada copulativa; d) oração
soprada a que forno com que fôlego»; «apanhado por toda a luz antiga subordinada adverbial comparativa.
e moderna».
4. No contexto do poema, a ideia de morte aparece como etapa de fazer Escrita
o balanço da vida, surgindo esta como uma exaltante alegria vivenciada
pela paixão. A pergunta que os gregos fazem na hora da morte leva à
reflexão sobre o mundo e sobre o eu no mundo: «e o que há assim no ▪ Vídeo
mundo / que responda à pergunta grega». A morte parece ser uma das Trailer do filme Por falar de amor
fontes primeiras de inspiração.
5.1 O sujeito poético aspira encontrar a paixão grega, sinónimo de ener-
gia criativa («ponham muito alto a música»), de movimento («e que eu Fichas informativas 1 e 2 – (pp. 50-51)
dance»), de fluidez («fluido»), de conhecimento universal («apanhado
Leitura
por toda a luz antiga e moderna») e de plenitude do ato poético («infin- AE
dável»; «e eu me perdesse nela»). 2.

Gramática Consolida
1.1 C; 1.2 B; 1.3 D. 1. Figurações do poeta: o texto realça o poeta como construtor de um
universo voltado para os enigmas da vida, artífice de metáforas e sím-
Sugestão ao professor: bolos que se pretende mover em liberdade e isenção e cuja posição
Pesquisar sobre a influência da cultura grega em Portugal e apresentar perante a poesia coincide com a sua posição perante o mundo.
o resultado dessa pesquisa aos colegas da turma.
Arte poética: reflexão sobre o conceito de poema como objeto que car-
rega em si a dicotomia de um poder magnífico e terrífico e promove,
«Não sei como dizer-te» – (pp. 48-49) simultaneamente, uma ordem e uma desordem no modo como situa o
mundo. Dentro do poema, o mundo é sempre uma realidade nova.
Educação Literária
AE Tradição literária: o texto sublinha as diferenças entre Camões e
1; 2; 3; 4.
Herberto Helder, salvaguardando o respeito pela tradição literária mas
Gramática revelando aquela espécie de rebeldia que tanto caracteriza o autor de
2; 4. Servidões.
Escrita Representações do contemporâneo: nesta entrevista, o poeta salienta
1; 2; 3; 4. o hibridismo literário, afastando as categorias de distinção de géneros

92
Soluções

que só são úteis do ponto de vista didático. Superar a dicotomia prosa- 4. O sujeito poético exterioriza saudade da sua juventude e nostalgia
-poesia foi a meta que permitiu a exploração, como tentativa, de um por não poder recuperar esse passado distante («Quando foi isso? Eu
caminho novo no livro Os Passos em volta. próprio não o sei dizer», v. 11), compreendendo que, no presente, perdeu
capacidade de sonhar.
Por oposição a essa nostalgia no presente, devido à consciência de que
Ficha informativa 3 – (p. 52) esse tempo da infância/juventude é irrecuperável, o eu manifesta sen-
timentos de alegria e felicidade relativamente a esse passado.
Leitura
AE 5. Estes versos encerram o soneto com um pensamento elevado e
2.
retomam o título da composição poética, de modo a reiterar a felici-
dade desse passado distante, ou seja, a infância irrecuperável, tradu-
Consolida zindo a ideia de que, quando se é criança, parece que não existe nada
1. que seja impossível de concretizar.
a) transbordar os limites do que enuncia e inaugurar novas zonas de
exploração; b) entrelaçam-se surrealismo e anarquismo, na confusão
de uma ironia mansa; c) as áreas lexicais privilegiadas pelo autor, deter- «Cinco palavras cinco pedras» – (p. 55)
minando a imagem que o poeta tem de si e do lugar onde se movimenta. Educação Literária
AE
1; 2; 3; 4.
Ruy Belo – (p. 53)
Educação Literária
Educação Literária
AE 1. O sujeito poético situa-nos no tempo, iniciando o poema com o advér-
1; 2; 3; 4. bio com valor temporal «antigamente», remetendo-nos para o pas-
Oralidade (CO) e (EO) sado, momento em que escrevia «poemas compridos». Seguidamente,
3. reporta-se ao presente, através do advérbio com valor temporal
«hoje», ideia que perpassa todo o poema e que é reiterada no último
verso, para referir o seu desencanto com a vida.
Ponto de Partida
2. No presente, o sujeito poético sente que só tem cinco palavras para
fazer um poema e que delas se rodeia: «desalento», «prostração»,
«desolação», «desânimo» e «desistência».
▪ Link 2.1 A seleção dessas cinco palavras contém alguma ironia por parte do
«No rasto da poesia de Ruy Belo», Ensina RTP sujeito poético, uma vez que optou por palavras que são sinónimas e
a) F − Fernando Pessoa afirmou que «os poetas não têm biografia.»; b) V; que traduzem a ideia de desalento e de frustração perante a vida.
c) F − Ruy Belo é um escritor com tanto mérito como Camões, Pessoa e 2.2 Provavelmente, o desânimo no sujeito poético acentuava-se no
Jorge de Sena; d) V; e) V. momento em que cumpria os seus pagamentos e, consequentemente,
ficaria mais despojado de dinheiro.
«E tudo era possível» – (p. 54) 3. No último verso do poema, a expressão «cinco pedrinhas» realiza
a metáfora e a ironia, através da utilização do diminutivo, recursos
Educação Literária expressivos que sugerem, neste contexto, os obstáculos da vida.
AE
1; 2; 3; 4. 4. O título da composição poética sugere metaforicamente os obstá-
culos da vida que levam à frustração e à desistência do sujeito poético,
temática desenvolvida ao longo de todo o poema.
Sugestão ao professor:
Audição do poema «E tudo era possível», de Ruy Belo
«Variações sobre "O jogador do pião"» – (p. 56)
Educação Literária
AE
▪ Link 1; 2 ;3; 4.
Poema «E tudo era possível», Ruy Belo
Escrita
1; 2; 3; 4.
Educação Literária
1. O sujeito poético evoca a sua juventude, antes de ter saído da casa
dos pais, reportando-se afetivamente a um momento do seu passado Educação Literária
(«Na minha juventude antes de ter saído / da casa de meus pais»). 1. O poema pode dividir-se em duas partes lógicas. A primeira abrange
2. Quando o sujeito poético partiu da casa dos pais para viajar, tinha as duas quadras e o primeiro terceto, apresentando a evocação da
realizado várias leituras, que lhe permitiram confirmar experiencial- infância através do jogo metafórico do pião. A segunda parte corres-
mente as histórias que lera durante a infância/juventude e que lhe ponde ao último terceto, no qual o sujeito poético faz a transposição
tinham despertado sensações, nomeadamente, visuais e auditivas para o presente duro, simbolizado pela «enxada», pelo «proprietário»
relativamente ao «rebentar do mar». e pelo «operário».
3. O eu considera esse momento da sua vida muito importante, salien- 2. O pião é a imagem de um objeto giratório que possibilita, através
tando metaforicamente que «era tudo florido» (v. 5) e que «havia para da imaginação, recuperar o ponto de partida existencial, ou seja, a
as coisas sempre uma saída» (v. 10). Era um tempo de plena capacidade infância.
de sonhar e de concretizar sonhos, o que se relaciona com o título «E 3. O pião conota a vida alegre da infância, o regresso às origens e a um
tudo era possível», que aponta para a inexistência de limites. tempo passado.

93
Soluções

4. A enumeração e as sucessivas interrogações retóricas sugerem o Ponto de Partida


desejo de regresso a um espaço carregado de afetividade e de memó-
ria, mas também a impossibilidade desse retorno.
5. Do ponto de vista formal, o poema é um soneto, estrutura poética ▪ Link
com longa tradição na lírica portuguesa. No que respeita ao tema, a Apresentação de Luiza Neto Jorge (Arquivo RTP)
infância, nostalgia de um bem perdido, também se constitui como uma
vertente que representa influências da tradição poética. 1. Sugestões de resposta:
− Instabilidade económica dos escritores e necessidade de obter um
Escrita
meio de sobrevivência através de um trabalho que está próximo da
sua atividade preferida.
− Vantagens: contacto com a obra de outros autores, o que lhes
▪ Vídeo permite ampliar a sua cultura; remuneração pelo trabalho que
Há quanto tempo não brinca? realizam…
− Desvantagens: trabalho moroso, que lhes tira tempo para realizarem
a sua arte; trabalho mal remunerado e rotineiro; limitação da criativi-
«Esta rua é alegre» – (p. 57) dade do escritor…
Educação Literária − Trabalho mal remunerado, o que leva a que não seja possível uma
AE dedicação total por parte dos escritores; dificuldade em publicar
1; 2; 3; 4.
as obras e fazê-las chegar ao público; as mulheres, por exemplo,
Oralidade (EO) têm menos tempo para escrever, porque desempenham múltiplas
2; 3; 4. tarefas…
− Na maior parte das vezes, os escritores, e os artistas em geral, só são
Educação Literária reconhecidos postumamente…

«O poema ensina a cair» – (p. 60)


▪ Link Educação Literária
Poema «Esta rua é alegre», de Ruy Belo (homenagem da Câmara de AE
1; 2; 3; 4.
Vila do Conde)
Gramática
1. O sujeito poético refere-se à rua de São Bento, em Vila do Conde, 2.
espaço que ele observou numa «certa manhã», após a chuva e com o
«nevoeiro a dissipar-se».
Educação Literária
2. O sujeito lírico faz um jogo com o adjetivo «alegre», começando por
1. Para o sujeito poético, a escrita constitui-se como uma proteção,
utilizá-lo para caracterizar a rua, mas admitindo que essa seria uma
característica sua e não do espaço. Porém, admite que nem ele próprio uma defesa das agruras da vida, uma espécie de amparo perante os
é «alegre». Contudo, serve-se dessas palavras. infortúnios da vida («vários solos»).
3. O poema apresenta várias características da inovação e moderni- 2. Uma das possibilidades de «queda» é a desilusão na relação amo-
dade da poesia em Ruy Belo: expressivos versos longos, irregularidade rosa, sendo a comparação bastante sugestiva da ideia de refúgio na
métrica, uma só estrofe constituída por vinte versos, letras minúscu- poesia, num momento de frustração de um amor que termina ou que
las em nomes próprios («vila do conde») e um parco recurso a sinais de não é correspondido, por exemplo.
pontuação. 3. Na segunda estrofe, a «queda» poderá associar-se ao desejo de
entrega, à sensualidade, porque se trata «da lenta volúpia de cair».
Oralidade 4. Nos dois últimos versos da composição poética, está implícita a ideia
de que o poema também se pode constituir como uma homenagem ao
próprio poeta, depois da morte, já que nem sempre lhe é reconhecido
▪ Link mérito em vida. Daí que a palavra «póstuma» se constitua como um
Poema «Morte ao meio-dia», de Ruy Belo, por Mário Viegas verso de fecho do poema.
5. Formalmente, o poema é constituído por duas estrofes de sete ver-
sos (sétimas), sem rima e com métrica irregular.
Ficha informativa 1 – (p. 58)
Leitura Gramática
AE 1. a) modificador do grupo verbal; b) complemento do nome; c) modifi-
2.
cador do nome restritivo.

Sugestão ao professor:
Luiza Neto Jorge – (p. 59)
Educação Literária
AE
1; 2; 3; 4.
▪ Link
Oralidade (CO) e (EO) «O poema ensina a cair», de Luiza Neto Jorge, apresentado por Cata-
3. rina Furtado, no programa Voz, Ensina RTP

94
Soluções

− Pesquisa de poemas da autora e posterior criação de um vídeo para 3. «A magnólia» é a flor escolhida pelo sujeito poético para exaltar a
apresentar à turma, com música de fundo e cenário criativo, que beleza e a efemeridade da vida. Metáfora do belo, a magnólia desfolha-
poderá eventualmente ser um dos monumentos ou local da cidade -se, qual ser humano, cuja vida é transitória.
do aluno.
«Balada apócrifa» – (p. 63)
«Eu, artífice» – (p. 61)
Educação Literária
AE
Educação Literária 1; 2; 3; 4.
AE
1; 2; 3; 4. Gramática
Gramática 2.
3; retoma. Oralidade (EO)
1; 3; 4.
Educação Literária
1. Um artífice é um artesão, ou seja, alguém que manufatura um Educação Literária
objeto. Assim, o sujeito poético identifica-se com um artífice, porque 1. «Balada»: poesia narrativa de lendas; canção de caráter sentimental;
constrói a sua poética através de um trabalho paciente, metaforica- «Apócrifa»: que é considerada falsa.
mente artesanal. 2.1 Os soldados poderiam ser os namorados das meninas, ausentes em
2. O poema emerge do «interior» do sujeito poético, como se saísse de combate. Por isso, a antítese «sombra caiada» poderá sugerir a ideia de
«um poço / onde flutua», ganhando forma através do trabalho artístico morte e de pureza/amor.
do «eu artífice» que escreve («traço») e corrige («corrijo») a criação lite- 3. Os versos «Os soldados em manobras / […] Sofreram sempre derrota /
rária que desponta do seu estado de espírito («que eu, artífice, colho / o
deixaram mãos enforcadas / […] grades de pernas doadas» localizam-
que de mim alimenta, / falo do que estou sendo»).
-nos num tempo histórico-político, o Estado Novo, durante o qual existiu
3. No poema, predomina o presente do indicativo («Atento», «corrijo», a guerra colonial e muitos soldados partiam da pátria para combater,
«ergo», flutua», «desprende», «colho», «alimenta») articulado com o regressando, por vezes, mutilados. Assim, as «meninas de saia rodada»
gerúndio nos complexos verbais («estou sendo» e «vão constituindo»), aspiravam a um amor que nem sempre era concretizável.
o que sugere o presente da escrita, num ato continuado.
4. Esta balada, que evoca lendas e sentimentos, é falsa porque o amor
4. A expressão «no forro de cada um» realiza uma metáfora que sugere das puras meninas é reprimido pela ausência e impossibilidade de con-
o interior, os sentimentos de cada pessoa.
tacto com os soldados que tinham «noite por espingarda».
5. Os dois últimos versos da composição poética traduzem o estado
de nostalgia do sujeito poético, no momento da sua produção poética. Gramática
1. a) modificador do nome restritivo; b) modificador do nome restritivo.
Gramática
1.1 C; 1.2 A. Oralidade

«A magnólia» – (p. 62)


Educação Literária ▪ Imagem
AE O decalque, de René Magritte
1; 2; 3; 4.
Escrita
1; 2; 3; 4. Fichas informativas 1 e 2 – (pp. 65-66)
Leitura
Sugestão ao professor: AE
2.

Consolida
▪ Link 1. Figurações do poeta − Poesia de componente surrealista e de recusa
Audição do poema «A magnólia», de Luiza Neto Jorge, música de ao neorrealismo.
Rodrigo Leão & Gabriel − Escrita intensa, representando o inconsciente para falar das coisas do
1. O poema poderá dividir-se em três partes lógicas. A primeira corres- interior do mundo.
ponde à primeira estrofe, uma espécie de introdução, que justifica que Arte poética − Poesia intensa nas sensações, atos, vocábulos e ritmo.
o ato de escrita se constitui na «exaltação do mínimo» e que é nessa – A poesia é um dedo apontado ao coração do Homem, ao centro das
singeleza que o sujeito poético tem o seu «resplendor». A segunda problemáticas.
parte é a segunda estrofe, onde o eu explicita a relevância da metáfora − A dureza e intensidade da sua poesia são conseguidas através de
na recriação da palavra e na construção de sentidos implícitos. unidades rítmicas breves, com exclamações inseridas, vocativos e
Por fim, a última parte engloba as duas últimas estrofes, nas quais enumerações.
aparece, pela primeira vez, a expressão que dá o título ao poema («A Tradição literária − A escrita desde todos os tempos dá conta do
magnólia»). É o pronunciar da palavra, é o aroma da flor, «um mínimo mundo, manifesta e apresenta o que nos rodeia; e a poesia fá-lo
ente magnífico» que desencadeia sensações no sujeito lírico. gerando campos de sentidos diversos.
2. Sensações auditivas: «o som que desenvolve nela / quando pronun- − Luiza Neto Jorge recorre a vários recursos para falar do mundo em que
ciada»; sensações olfativas: «é um exaltado aroma»; sensações visuais estava inserida, indo além da abordagem tradicional, convencional –
e táteis: «desfolhando relâmpagos / sobre mim». ritmo, rima, aliteração, paronímia e anáfora.

95
Soluções

Representações do contemporâneo − A autora dá da sua época, Educação Literária


daquilo que foi Portugal por altura do fascismo, uma representação/ 1.1 Esse projeto poético corresponde à escrita de poesia narrativa, onde
imagem particularmente intensa. se movem pessoas em determinados tempos e lugares, elementos que
− A sua poesia é uma luta contra a guerra, contra a agressão de todo o se enquadram nas categorias da narrativa, figuras e movimento, coisas e
tipo, contra o fascismo e o que este representava. acontecimentos e um «sentido deslizante», que não se deve às palavras,
− A sua poesia é uma busca ilusória de tempos de liberdade e verdade, mas sim ao próprio mundo das coisas.
findo o fascismo, e de rejeição a todos os tabus. 2. Da «vibração», fala-nos a última estrofe, obedecendo à estrutura do
soneto numa espécie de conclusão. Na poesia narrativa, não interessa
o momento feliz de salvação mas a vibração «num zunido do ar», esse
Vasco Graça Moura – (p. 67) movimento invisível que muda as coisas e que surpreende pelos efeitos
Educação Literária imprevistos. A «seta» é a narração e a «vibração» a poesia. A narração
AE leva-nos às flores dos Alpes e a poesia à música. A música não surge em
1; 2; 3; 4.
momentos ou sons isolados. É a «vibração», é o movimento que impele
Oralidade (CO) o poeta na sua navegação em que as coisas deixaram de ter um sentido
1; 3; 4. firme.
3. A hipálage é um recurso expressivo por meio do qual se atribui a cer-
Ponto de Partida tas palavras, através de um adjetivo, características que pertencem a
outras, com as quais se relacionam. A expressão usada no contexto do
poema refere-se às figuras e ao movimento, aos acontecimentos e ao
seu «sentido deslizante», que não se deve às palavras, mas sim ao pró-
▪ Link prio mundo das coisas.
Entrevista a Vasco Graça Moura, por Nuno Moura Brás
a) Técnica: poesia como exercício artesanal; melancolia: poesia como Sugestão ao professor:
atividade reflexiva e de contemplação do mundo; b) Em cada momento, − Pesquisa sobre o mito de Guilherme Tell pelos alunos (individualmente
o que faz dá mais prazer, e isso acontece em todas as áreas a que se ou em grupo) e apresentação à turma.
dedica. No entanto, há uma luta exigente no momento da produção − Relação do mito com o poema, concretamente, com a segunda estrofe:
em busca da expressão. A literatura é um misto de razão e de emoção; é uma adaptação do mito de Guilherme Tell. O propósito não é o herói
c) Duas razões: a primeira tem a ver com a língua que utilizamos − nem a sua história, mas sim a poesia na sua tendência narrativa.
temos monumentos que corporizam o melhor da língua, que aperfei- Uma concentração no sentido deslizante do mundo leva a uma história
çoam a capacidade de a utilizar; a segunda prende-se com a necessidade bem diferente: a seta não cumpriu a sua missão, recusou o alvo e des-
de ler os clássicos, sobretudo, da cultura europeia, na medida em que a viou-se, varando o coração daqueles que se julgavam circunstantes,
meros espectadores de um momento decisivo. São as coisas que não
Europa é um tecido de interações que não podemos ignorar.
cumprem e os circunstantes que são envolvidos nesta poesia narra-
tiva. Não é a precisão que felizmente salva a criança, mas é a vibração
«Soneto do amor e da morte» – (p. 68) que leva a um final feliz.

Educação Literária
AE «gato manso das velhotas» – (p. 70)
1; 2; 3; 4.
Educação Literária
AE
Educação Literária 1; 2; 3; 4.
1.1 O poema-canção conjuga harmoniosamente as emoções expressas,
Oralidade (EO)
levando-as para além do tempo e da presença física, estabelecendo um
1; 2; 3; 4.
ponto de contacto que eterniza o momento da partida.
2.1 A morte funciona como passagem de testemunho de um amor que se Educação Literária
quer eterno, consubstanciado pelo bater do coração. 1. É a sua liberdade.
3.1 Embora a morte seja ausência, este poema encara-a com a neces- 2. Momentos instantâneos da cidade de Lisboa, começando pela refe-
sidade de permanência do amor para que este se prolongue no tempo. rência a dois dos seus bairros, Alfama e Madragoa, onde assomam algu-
Assim, o destinatário do poema é desafiado a agir: murmura a canção, mas figuras femininas. O pregão, os navios, a luz, os corvos e as gaivotas
segura as minhas mãos, põe os olhos nos meus, diz do nosso amor, o teu revelam a cidade.
coração fique a bater por nós. 3.1 Segundo o Dicionário de símbolos, o gato é um animal que simboliza
3.2 «fique por nós o teu inda a bater» (v. 13). a independência, a sabedoria, a sensualidade, a sagacidade, o equilíbrio.
Representa a fusão do espiritual e do físico, sendo o seu simbolismo
4. É o bater do coração.
muito diverso, oscilando entre as tendências benéficas e maléficas.
5. Palavras ou expressões associadas ao amor: «canção»; «escrevo Provavelmente, poderá representar a dualidade do ser humano, afetivi-
para ti»; «luz», «nosso amor», «doer de tanta perfeição»; «bater-me o dade e perversidade, pelo seu caráter imprevisível.
coração».
Palavras ou expressões associadas à morte: «morrer»; «aves pardas do Oralidade
anoitecer»; «solidão»; «esmorecer»; «acabar».

«Soneto da pesia narrativa» – (p. 69) ▪ Link


Poema «variações sobre um gato», Vasco Graça Moura
Educação Literária ▪ Documento
AE
1; 2; 3; 4. Poema «variações sobre um gato»

96
Soluções

1.1 Desde sempre, de acordo com o poeta, se estabeleceram relações Consolida


importantes entre a poesia e a música, considerando aquela como Texto 1
canto, entoação, sonoridade e ritmo, elementos que as aproximam. − A técnica é um dos mais importantes alicerces da poética de Vasco
Graça Moura.
Sugestão ao professor: − A poesia tem de ser acessível a todos os leitores, de modo a ser possí-
− Pesquisa pelos alunos e elenco de alguns escritores que vel que ela dialogue com eles.
tenham dado ao gato um lugar de figura ilustre e venerada nas − Vasco Graça Moura revela a consciência do importante papel que o
suas obras, bem como registo do tratamento dado ao gato: leitor desempenha na receção das suas construções poéticas.
os gatos influenciaram a escrita de grandes génios da litera- Texto 2
tura, como Charles Baudelaire, Charles Bukowski, Truman − Da relação entre a pintura e outras artes, o poeta colhe as fontes para
Capote, Jorge Luis Borges, Ernest Hemingway, Neil Gaiman, a génese da sua poesia.
Stephen King, Edgar Allan Poe, Patricia Highsmith, William − A escrita é o meio que permite reter os fragmentos de vida que dialo-
S. Burroughs e Julio Cortázar. Edgar Allan Poe escreveu «O gato gam nas artes.
preto», considerado um dos contos mais admirados na literatura
Texto 3
universal.
− Estamos perante uma obra construída através de um aturado traba-
lho oficinal.
«lamento para a língua portuguesa» – (pp. 71-73) − O poeta trabalha os diversos níveis, nomeadamente, o ritmo, a rima,
a assonância ou a paranomásia.
Educação Literária − Esse trabalho de artífice contribui muitíssimo para a limpidez que
AE percorre a poesia, tendo em conta, também, o objetivo da inteligibili-
1; 2; 3; 4.
dade que se pretende oferecer ao leitor.
Educação Literária
1. Trata-se de um duplo movimento que nos leva ao «estado real» da Nuno Júdice – (p. 77)
língua, destroçada e abastardada, e também cria uma utopia con-
creta da língua e do seu poder. A consciência destas questões torna- Educação Literária
-se objeto de reflexão e suporte específico de uma obsessão com a
AE
1; 2; 3; 4.
palavra, fazendo da língua casa e pátria ou estigma e morte. A língua
é pretexto, afinal, para mostrar a imagem desencantada do mundo, o Oralidade (CO)
retrato do país. 2; 3.
1.2 «ruiu a casa que és do nosso ser / e este anda por isso desavindo» (vv. Oralidade (EO)
17-18); «matam-te a casa, a escola, a profissão, / a técnica, a ciência, a 3.
propaganda, / o discurso político, a paixão / de estranhas novidades...»
(vv. 42-45); «estava escrito / que iam desconjuntar-te os teus falantes / Ponto de Partida
na terra em que nasceste» (vv. 92-94); «mas apesar de tudo ainda és
nossa, / e crescemos em ti.» (vv. 98-99).
2. «no teu próprio país te contaminas / e é dele essa miséria que te roça. ▪ Link
/ mas com o que te resta me iluminas.» (vv. 106-108). «Nuno Júdice, poesia a nascer das palavras», Ensina RTP
3. Sugestão de resposta: é verdade que, hoje em dia, a língua portu- a) O poema é expressão de uma intensidade; concentração de um olhar
guesa parece ser muito maltratada e devemos denunciar a situação. de uma experiência da realidade; b) Poesia é caixa negra; síntese; fic-
Contudo, a sua enorme capacidade de transformação e regeneração ção é duração, temporalidade e expansão; c) A poesia é apenas a reali-
continuará a surpreender-nos mais, e mais depressa, do que espera- dade da escrita, objeto verbal. O poema é capaz de dizer tudo sobre si
mos ou podemos imaginar. próprio. d) Escrever não é um vício, é trabalho.

Fichas informativas 1 e 2 – (pp. 74-75) «A varanda de Julieta» – (p. 78)


Leitura Educação Literária
MC AE
2. 1; 2; 3; 4.

Consolida Educação Literária


a) V; b) F − O poeta afasta-se da conceção pessoana de «fingidor», assu- 1.1 Veneza e Verona.
mindo-se como um «figurador», na perspetiva de explicar o mundo ao 1.2 O sujeito opta por Verona.
seu leitor, estabelecendo com ele uma relação de proximidade. c) F − O
1.3 Essa preferência deve-se ao facto de o sujeito gostar da «coinci-
poeta tenta incorporar, na sua escrita poética, a herança de todos os
dência das consoantes na janela de julieta», ou seja, o «j» e o «l», que
que o marcaram e mexeram com ele; d) V; e) V; f) F − A poesia de Vasco
coincidem nas duas palavras.
Graça Moura constitui uma das mais amplas manifestações artísticas,
alicerçadas na tradição e com uma tessitura onde as diversas vozes 2.1 Trata-se de um jogo verbal em que o sujeito enuncia a consoante
sustentam uma vasta referencialidade; g) V. vê, que pode corresponder a uma forma do verbo ver, que, por sua vez,
é referido no verso 3.
3.1 O sujeito poético achou interessante o facto de umas consoantes
Ficha informativa 3 – (p. 76) coincidirem nas duas palavras.
Leitura 3.2 Evocação da história de Romeu e Julieta e do ódio e vingança entre
AE as duas famílias, factos ficcionais que em Veneza não encontra.
2.

97
Soluções

3.3 A senha remete para os encontros entre os dois apaixonados, que o amor que sente está consubstanciado em características concretas
só tinham lugar em segredo, para as famílias rivais não descobrirem o da mulher amada: a sua voz, a «surpresa» dos seus cabelos e o seu «rosto
seu amor. de água fresca». O sujeito recorda a mulher amada e o tempo do amor
4.1 O ponto de contacto corresponde às lágrimas de Julieta, transpor- («Pedro, lembrando Inês»). O destinatário do discurso é evocado pela sua
tadas pelo vento até Veneza, onde acabam por cair nos canais em dias beleza, frescura e luminosidade e pela forma como mudou o sujeito e o
de chuva. fez encontrar um sentido para a vida com a sua presença ou ausência.
5. «Tu: / a primavera luminosa da minha expectativa».
Sugestão ao professor:
6. O poema evoca um amor trágico e recria o mito de Pedro e Inês.
− Organização de uma exposição com imagens das duas cidades evoca-
Realidade e ficção confundem-se, daí que este mito tenha perdurado
das no poema.
através dos séculos e faça parte do universo da tradição histórica e lite-
− Apresentação oral dos motivos de interesse pessoal e cultural de cada
rária portuguesa.
uma das cidades.

«Poética (variante com construção civil)» – (p. 79) «Verbo» – (p. 81)
Educação Literária
AE
Educação Literária AE
1; 2; 3; 4.
1; 2; 3; 4.
Gramática
Educação Literária 19.2.
1. O título assinala o poema como metalinguagem, assumindo o facto
de ser considerado como um processo de construção, aqui identificada Educação Literária
como work in progress (numa relação de analogia com a construção 1. O sujeito poético espalha palavras em cima da mesa para as partilhar
civil, que constrói edifícios). e comunicar com outros.
2. O tema do poema é a própria constituição do poema. 2. O poema sublinha a importância da palavra na comunicação, em par-
3. ticular da palavra poética − espaço de livre reflexão, afirmação de um
1.a parte − corresponde à primeira estrofe: a ideia de construção do tempo marcado pela descrença, negatividade e banalização da vida.
poema. 3. A mulher a dias representa o que há de negativo quando banalizamos
2.a parte − corresponde à segunda estrofe: imagem de mulher como as palavras ou nos esquecemos delas. Como ficam frias, de nada ser-
flor. vem e são espezinhadas e abandonadas. Quanto à gaveta do poema, é
3.a parte − corresponde à terceira e última estrofe: cumplicidades den- refúgio das palavras, fiel depositário da memória das palavras, mundo
tro do poema. pleno de uma significação inteira, que tanto se guarda como se revela.
4. O ato poético é encarado como uma obstinada construção; não como 4. Há palavras que escondemos ou apenas adiamos, pois precisam do
realização plena mas como iniciação e busca constantes. O poema é o tempo certo para acontecer. Por isso, todas as palavras têm uma função
lugar onde a linguagem se manifesta impondo um diálogo, um encontro. e um momento que as aguarda e as faz florescer.
4.1 «Escrevo por entre andaimes» (v. 1); «construção ergue-se no / meio 5. O sujeito poético partilha palavras como quem partilha alimento, e
de palavras e tijolos» (vv. 3-4); «subo o escadote da estrofe» (v. 6). elas são esbanjadas nessa partilha. Mas ele, cauteloso, não deixa que
5. A figura feminina surge no seio da própria construção; não corres- se percam e guarda-as, pois um dia elas serão necessárias em algum
ponde a alguém real mas a uma imagem que a realidade poética deixa contexto. Poeta e poema são, assim, guardiões do templo das palavras,
entrever. na medida em que alimentam o espírito.
6. O que gera e move o poema não tem como ponto de partida qualquer
Gramática
afeto anterior à materialização verbal do poema («O muro / do verso
1. a) oração coordenada adversativa; b) oração subordinada adjetiva
separa-me da vida»). A construção do poema sugere metamorfose
relativa restritiva; c) oração subordinada adverbial temporal; d) oração
(«espreito / o outro lado») e plenitude («e ficamos aí os dois, / ouvindo a
subordinada adverbial condicional; e) oração subordinante.
sua música»).

Fichas informativas 1 e 2 – (pp. 82-83)


«Pedro, lembrando Inês» – (p. 80)
Leitura
Educação Literária AE
AE 2.
1; 2; 3; 4.
Consolida
Educação Literária
1. a) V; b) F − O tom dessa poesia parece frequentemente pessimista,
1. O sujeito da enunciação é Pedro, tal como o título sugere.
pois depende da expressão variável de diferentes sujeitos poéticos, que
2. A interrogação compreende uma atitude face à vida e à relação em vão aparecendo na cena do poema; c) V; d) V; e) F – Há, em torno da obra
comum, que é, contudo, contrariada pela ação do sujeito poético, tal de Nuno Júdice, um conjunto de referentes que estabelecem uma rela-
como percebemos pelo uso da conjunção adversativa que inicia a frase ção do mundo dos seus textos com os da tradição literária ocidental;
seguinte. f) F − Serve os propósitos do poeta como modo de contar as suas vivên-
3. Para o sujeito poético, o amor consiste na hipótese de a ver e pensar cias; g) V.
sobre o que ambos já fizeram juntos, encontrar um sentido para ganhar
tempo ao tempo, antecipar a sua chegada com expectativa e a certeza
Ficha informativa 3 – (p. 84)
da reciprocidade.
4. O sujeito pensa sistematicamente no tu, abandonando a vivência Leitura
AE
passada de escuridão e incerteza. Ao invés de um sentimento abstrato, 2.

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