Você está na página 1de 12

CAPÍTULO

7
Gota
Rodrigo Antônio Brandão Neto / Ana Cristina de Medeiros Ribeiro
Aleksander Snioka Prokopowistch / Hérica Cristiani Barra de Souza

1. Introdução - Aumento do uso de diuréticos e baixas doses de ácido acetil-


salicílico;
Gota é uma doença articular inflamatória causada pelo - Aumento no consumo de álcool;
depósito de cristais de monourato de sódio no tecido ar- - Aumento da prevalência de obesidade;
ticular e periarticular, relacionada ao aumento da concen- - Aumento da prevalência de síndrome metabólica;
tração sérica de ácido úrico (hiperuricemia). É classificada - Aumento da prevalência de doença renal terminal;
como artrite microcristalina, já que é o depósito de cristais - Aumento do número de transplantes e uso de ciclosporina;
que a causa. - Aumento de doença coronária e falência cardíaca congestiva;
Tabela 1 - Características gerais - Opções limitadas no tratamento da hiperuricemia.
- Ataques recorrentes de artrite inflamatória aguda;
- Artropatia crônica; 3. Fisiopatologia
- Acúmulo de cristais de urato em forma de depósitos tofáceos; Os níveis séricos de ácido úrico (monourato de sódio) va-
- Nefrolitíase por ácido úrico; riam no homem (até 7mg/dL) e na mulher (até 6,5mg/dL).
- A nefropatia em paciente gotosos é mais comumente causada Acima desses valores, define-se hiperuricemia, e os fluidos
por outras comorbidades associadas. que contêm ácido úrico ficam supersaturados, favorecendo
a precipitação de cristais nos tendões, ligamentos, bursas,
2. Epidemiologia bainhas sinoviais, interstício, túbulos renais e pavilhão au-
ricular. A precipitação dos cristais está relacionada ao nível
Gota é uma doença predominantemente de homens de de ácido úrico e ao tempo em que o indivíduo fica com hi-
meia-idade, a partir de 5ª década de vida, mas existe um peruricemia. Algumas situações, como pH tecidual baixo e
aumento gradual na prevalência tanto em homens quanto baixas temperaturas, favorecem a deposição dos cristais.
em mulheres. Após os 60 anos, a prevalência entre os sexos O pool ou o conteúdo total de ácido úrico no corpo é
se torna equivalente. Raramente se observa gota em mu- resultante do equilíbrio entre a formação e a excreção de
lheres pré-menopausadas, a não ser em casos de erro inato uratos (uricosúria), que é principalmente renal. Qualquer
do metabolismo ou associados a doenças subjacentes ou alteração levando à hiperprodução ou à hipoexcreção pode
uso de medicação. ocasionar hiperuricemia. Indivíduos podem ser hipoexcre-
A incidência e a prevalência de gota são paralelas à inci- tores (90% dos casos) ou hiperprodutores (10%), com base
na uricosúria: quem elimina menos de 800mg de ácido úrico
dência e à prevalência de hiperuricemia na população geral.
na urina de 24 horas é hipoexcretor; quem consegue elimi-
Muitos pacientes com ácido úrico elevado não têm gota, mas
nar ao menos os 800mg em 24 horas é porque tem os rins
hiperuricemia está claramente associada ao risco da doença. funcionando adequadamente e elimina o excesso de ácido
São fatores correlacionados com aumento do ácido úrico e úrico produzido (hiperprodutores – Figura 1). Entretanto,
prevalência de gota: níveis séricos de creatinina, peso eleva- pode haver a associação das 2 situações: um indivíduo pode
do, hipertensão arterial e ingesta de álcool (Tabela 2). ser hiperprodutor mas, por ter associadamente um rim hi-
poexcretor, elimina menos ácido úrico do que precisaria
Tabela 2 - Principais fatores para aumento da prevalência de gota
para se manter normouricêmico. Vários fatores, incluindo
- Aumento da longevidade da população; doenças, álcool e medicações (Tabela 4), são causas impor-
- Aumento da prevalência de hipertensão; tantes de diminuição na excreção renal do ácido úrico.

67
REUMATOLOGIA

A eliminação intestinal é responsável por uma pequena Drogas


quantidade da excreção de ácido úrico (de 200 a 300mg/ - Diuréticos (tiazídicos e de alça);
dia). Essa pode chegar a ser a principal via de eliminação de - Ciclosporina;
uratos em pacientes com insuficiência renal. - Etanol;
- Salicilatos em baixa dose;
Tabela 3 - Metabolismo do ácido úrico - Pirazinamida;
- 100% do ácido úrico são filtrados; - Etambutol;
- 100% são reabsorvidos pelo túbulo proximal; - Laxativos;
- 50% são secretados; Causas renais
- 40 a 44% são reabsorvidos; - Insuficiência renal crônica;
- 8 a 12% são excretados. - Desidratação;
- HAS;
Quanto à produção, o ácido úrico se forma a partir da - Restrição salina;
síntese de purinas numa sequência de reações enzimáticas. - Doença renal policística;
Os precursores das purinas que favorecem a produção de Miscelânea
ácido úrico podem ter origem exógena (dieta rica em pro- - Toxemia gravídica;
teínas ou calorias – Tabela 5) ou endógena (pela síntese de - Síndrome de Down;
purina “de novo” e pelo turnover celular). Assim, o ácido - Sarcoidose;
úrico pode elevar-se como consequência da dieta, do au- - Acidose láctica.
mento do catabolismo tecidual provocado por várias doen- Causas de hiperprodução
ças e medicações e por erros inatos envolvidos no metabo- (>800mg de uricosúria em 24 horas)
lismo das purinas (Tabela 4). Doenças
O álcool tem grande ligação com a hiperuricemia e - Psoríase;
age tanto aumentando a síntese como diminuindo a ex- - Hemólise;
creção de ácido úrico. As crises de gota sucedendo even- - Policitemia vera;
tos com grande consumo de álcool são classicamente - Doenças mieloproliferativas;
descritas. - Obesidade;
- Glicogenose III, V e VII;
- Síndrome de lise tumoral;
Formação
- Hipertireoidismo;
Catabolismo das Purinossíntese Catabolismo das Drogas
proteínas tissulares “de novo” proteínas ingeridas - Etanol;
- Varfarina;
- Vitamina B12;
Pool do ácido úrico
- Ácido nicotínico;
Agentes citotóxicos
Renal Intestinal - Frutose;
Distúrbios hereditários
Eliminação - Deficiência de HGPRT (hipoguaninafosforibosiltransferase) ou
síndrome de Lesch-Nyhan;
Figura 1 - Pool de ácido úrico - Hiperprodução de PRPP (fosforibosilpirofosfato);
- Deficiência de G-6-PD (glicose-6-fosfato desidrogenase).

Tabela 4 - Principais causas de hipoexcreção e hiperprodução de


Tabela 5 - Alimentos hiperuricemiantes
ácido úrico
Causas de hipoexcreção Dieta – componentes Dieta – pratos
(<800mg de uricosúria em 24 horas) - Ingestão total de calorias; - Bacon;
Causas endócrinas - Triglicérides; - Cerveja;
- Obesidade; - Carboidratos; - Leguminosas;
- Hipotireoidismo; - Proteínas (aspartato, glutamina, glicina); - Fígado;
- Cetoacidose diabética; - DNA; - Ostra;
- Diabetes insipidus; - Timo, pâncreas;
- RNA.
- Hiperparatireoidismo; - Fungos.

68
GOTA

Tabela 6 - Causas de hiperuricemia 4. Estágios clássicos


Aumento da síntese de purinas
Defeitos enzimáticos A - Hiperuricemia assintomática
- Superprodução de fosforibosilpirofosfato;

REUMATOLOGIA
- Deficiência de hipoguaninafosforibosiltransferase;
A hiperuricemia é um achado bioquímico comum. Nos
- Deficiência de glicose-6-fosfatase. fluidos extracelulares, 98% do ácido úrico estão na forma
Doenças que cursam com aumento da produção de purinas de monourato no pH = 7,4. Em termos fisiológicos, qual-
- Doenças hemolíticas; quer valor acima de 6,8mg/dL compreende hiperuricemia,
- Doenças mieloproliferativas; desde que exceda a concentração solúvel de monourato
Doenças que cursam com aumento da produção de purinas nos fluidos corporais.
- Glicogenose II, V e VII; A maioria das pessoas com hiperuricemia nunca desen-
- Obesidade; volve sintomas associados a excesso de ácido úrico, como
- Policitemia vera; artrite gotosa, tofos e cálculos renais.
- Psoríase. A hiperuricemia não diagnostica gota isoladamente
Doenças medicamentos ou hábitos alimentares nem é uma doença propriamente dita.
- Ácido nicotínico;
- Dieta rica em purinas; B - Gota aguda intermitente
- Drogas citotóxicas; O ataque inicial de gota aguda usualmente é precedido
- Etanol;
por décadas de hiperuricemia assintomática.
- Frutose;
O episódio de ataque de gota usualmente é uma dor de
- Vitamina B12 (pacientes com anemia perniciosa);
início agudo, acompanhada de calor, edema e eritema. A
- Varfarina.
dor é intensa e atinge o pico máximo entre 12 e 48 horas.
Defeitos na depuração renal de ácido úrico
O ataque inicial geralmente é monoarticular e, na metade
Doenças
dos pacientes, envolve a 1ª articulação metatarsofalangia-
- Acidose lática;
na, a chamada crise de podagra (Figura 2). Essa articulação
- Cetoacidose diabética;
é afetada em 90% dos indivíduos com gota. Outras articu-
- Desidratação;
lações frequentemente envolvidas em estágio precoce são
- Diabetes insipidus;
- Doença renal policística;
pequenas articulações do antepé, tornozelos, calcanhares e
- Hiperparatireoidismo; joelhos e, menos comumente, punhos, quirodáctilos e om-
- Hipertensão arterial; bros. A dor geralmente é muito intensa.
- Hipotireoidismo; Sintomas sistêmicos, como febre, calafrios e mal-estar,
- Insuficiência renal crônica; podem acompanhar a gota aguda. O eritema cutâneo asso-
- Obesidade; ciado ao ataque agudo de gota envolve a articulação e pode
- Restrição salina; se assemelhar a uma celulite bacteriana. O curso natural da
- Sarcoidose; gota aguda não tratada varia de episódios de dores mode-
- Toxemia da gravidez; radas que se resolve em algumas horas a ataques severos
- Síndrome de Bartter; que duram de 1 a 2 semanas. O episódio entre os ataques
- Síndrome de Down. pode durar anos, mas, com o tempo, a tendência é que os
Drogas e hábitos alimentares ataques se tornem mais frequentes, com maior duração e
- Ciclosporina; envolvimento de múltiplas articulações.
- Diurético; O período intercrítico é aquele em que as articulações
- Etambutol; estão fora do ataque agudo de gota. Apesar disso, cristais
- Pirazinamida; de monourato de sódio são frequentemente identificados
- Etanol; no líquido sinovial. Nesse período, em estágios precoces da
- Levodopa; doença, a articulação se mantém assintomática, mas, com a
- Salicilatos em pequenas doses; recorrência dos ataques, fica comprometida; pode haver dor
- Uso abusivo de laxantes.
persistente, que indica evolução para gota tofácea crônica.

69
REUMATOLOGIA

Figura 2 - Podagra
Figura 4 - Presença de tofos em quirodáctilos e dorso da mão

C - Gota tofácea crônica


A gota tofácea crônica geralmente desenvolve-se após
10 anos ou mais de gota aguda intermitente, embora pa-
cientes possam desenvolver tofos já no ataque inicial. A
transição da gota intermitente para gota tofácea crônica
acontece quando os períodos intercríticos não ficam livres
de dor. O envolvimento articular torna-se persistente, em-
bora a intensidade da dor seja menor que a dos ataques
agudos.
O acometimento poliarticular é mais comum nessa fase,
com envolvimento de pequenas articulações dos pés e das Figura 5 - Presença de tofos em quirodáctilos
mãos de forma simétrica, podendo até confundir com artri-
te reumatoide. As articulações podem ficar deformadas, com
desvios de eixo e tofos justa-articulares associados (Figura 3).
Os tofos são decorrentes do depósito tofáceo de mo-
nourato sódico em tecidos periarticulares, que, inicialmen-
te, podem não ser palpáveis. Eles podem ser encontrados
em qualquer lugar do corpo, mas são mais comuns nos de-
dos (Figuras 3, 4 e 5), punhos, orelhas (Figura 6), joelhos,
olécrano (Figura 7) e locais de maior pressão, como região
ulnar e tendão de Aquiles. Seu aparecimento está relacio-
nado com a severidade da hiperuricemia. Ocasionalmente,
os tofos também inflamam, geralmente acompanhando
crises agudas de artrite. Diferente dos cistos sinoviais que
Figura 6 - Presença de tofo em pavilhão auricular
podem ocorrer na artrite reumatoide e na osteoartrite, os
tofos são de consistência dura. Sua punção revela saída de
material branco pastoso (Figura 7).

Figura 7 - Presença de tofos em olécrano, tofo rompido drenando


Figura 3 - Gota tofácea crônica material rico em monourato de sódio

70
GOTA

Tabela 7 - Fases clínicas da gota desenvolvem em 50% dos pacientes quando o urato está
- Achado bioquímico comum; maior que 13mg/dL. Sintomas de calculose renal precedem
Hiperurice- - A maioria das pessoas com hiperuricemia nun- o desenvolvimento de gota em 40% dos pacientes, e cál-
mia assinto- ca desenvolve sintomas; culos contendo cálcio têm ocorrência 10 vezes maior em
mática - Só hiperuricemia não diagnostica gota; indivíduos com gota que na população geral.

REUMATOLOGIA
- Não é uma doença propriamente dita.
Tabela 8 - Tipos de acometimento renal associados à hiperuricemia
- Precedida por décadas de hiperuricemia assin-
Nefropatia Deposição de cristais de monourato de sódio na
tomática;
crônica medular renal, levando a proteinúria.
- Ataque clássico: dor articular intensa, aguda,
Nefropatia consequente ao do depósito agudo
com calor, edema e eritema e pico entre 12 e 48
de ácido úrico decorrente da hiperuricemia na
horas; Nefropatia
síndrome da lise tumoral, em pacientes que re-
- Ataques moderados se resolvem em algumas aguda
cebem quimioterapia no tratamento de linfomas
horas e ataques severos duram 1 a 2 semanas; e leucemias.
- Ataque inicial monoarticular; Nefrolitíase
- Podagra: ataque de gota na 1ª articulação meta- por ácido Litíase renal por cálculos de monourato.
Gota aguda tarsofalangiana, é o 1º ataque em metade dos úrico
intermitente pacientes e 90% dos gotosos têm podagra em
algum momento; B - Hipertensão
- Outras articulações comumente envolvidas: an-
tepé, tornozelos, calcanhares e joelhos;
Hipertensão está presente em 25 a 50% dos pacientes
com gota, e 2 a 4% das pessoas com hipertensão têm a doen-
- Sintomas sistêmicos podem estar associados:
ça. As concentrações de urato sérico correlacionam-se direta-
febre, calafrios e mal-estar;
mente com a resistência periférica e vascular renal, levando à
- Curso natural: episódios sucessivos de ataques
redução do fluxo renal, o que demonstra a associação entre
intercalados por um período intercrítico variá-
vel, que pode durar anos, mas que, com o tem-
hipertensão e hiperuricemia. Fatores como obesidade e sexo
po, se torna mais curto. masculino também se associam a estas 2 últimas condições.
- Após anos de gota aguda intermitente; C - Obesidade
- Envolvimento articular persistente: períodos
intercríticos não ficam livres de dor, com agu- Hiperuricemia e gota correlacionam-se com o peso cor-
Gota tofácea poral em homens e mulheres, e indivíduos com a 2ª condi-
dização nos ataques;
crônica ção estão comumente acima do peso, comparados com a
- Acometimento poliarticular, com deformidades
e desvios de eixo; população geral. Obesidade pode ser o fator que une hipe-
- Tofos justa-articulares. ruricemia, hipertensão, hiperlipidemia e aterosclerose.

D - Hiperlipidemia
5. Associações clínicas
Os triglicérides séricos estão elevados em 80% das pes-
soas com gota. A associação entre hiperuricemia e níveis
A - Doença renal séricos de colesterol é controversa.
Diversas formas de doença renal induzida por hiperurice- Em vista do exposto, vem sendo estudada a gota como par-
mia são reconhecidas, incluindo nefropatia crônica por urato, te da síndrome plurimetabólica (Figura 8), também contribuin-
nefropatia aguda por ácido úrico e nefrolitíase por ácido úrico. do para o aumento do risco para doenças coronarianas.
Falência renal progressiva é comum em pessoas com
gota. Hipertensão, diabetes, obesidade e doença isquêmi- Influências genéticas Influências ambientais

ca coronariana são as comorbidades mais importantes que


- Obesidade;
contribuem para complicações. Resistência à insulina
- Tabagismo;
- Gorduras saturadas;
Nefropatia crônica por urato é uma entidade causada - Alterações receptores;
- Sinalização (C-JUN); Hiperinsulinemia
- Sedentarismo.

pela deposição de cristais de monourato de sódio na medular - Enzimas metab. CH.

renal, associado à albuminúria. Falência renal aguda pode ser


causada por hiperuricemia na síndrome da lise tumoral, que Metabolismo
de glicose
Metabolismo
de ácido úrico
Dislipidemia Hemodinâmica Hemostática

acontece em pacientes que recebem quimioterapia no trata-


Hiperuricemia PAI-1
mento de linfomas e leucemias. Com a liberação de purinas Intolerância à Hipertrigliceridemia
Gota Hiperatividade simpática Fibrinogênio
glicose Hipercolesterofenia
Urolitíase Retenção de Na
↓ HDL-c
durante a lise tumoral, ocorre a precipitação de ácido úrico ↑ LDL densas
Hipertensão

nos túbulos distais e ductos coletores no rim. Nefropatia agu-


da por ácido úrico pode resultar em poliúria e anúria.
Depósito renal de ácido úrico ocorre em 10 a 25% de Doença coronariana

todas as pessoas com gota. A incidência correlaciona-se di-


retamente com o nível sérico de ácido úrico, e cálculos se Figura 8 - Síndrome plurimetabólica

71
REUMATOLOGIA

6. Achados radiográficos forma de agulha com intensa birrefringência positiva ao mi-


croscópio de luz polarizada (Figura 11). Isso os distingue dos
Os achados radiográficos nas fases iniciais podem não cristais de pirofosfato de cálcio, encontrados na pseudogo-
existir. Na artrite aguda, pode ser encontrado apenas um ta, que são curtos e rombos e têm birrefringência positiva
aumento de partes moles nas articulações afetadas. Na fraca. Os cristais usualmente são intracelulares durante os
maioria dos casos, anormalidades ósseas e articulares po- ataques agudos e extracelulares quando fora de crise. O lí-
dem se desenvolver após anos de doença, e podem ser vis- quido sinovial mostra inflamação intensa a moderada, com
tos depósitos de cristais de urato (Figura 9). Mais frequen- predomínio de neutrófilos.
temente, as anormalidades são assimétricas e encontradas
nos pés, mãos, punhos, ombros e joelhos.
A erosão óssea da gota é radiologicamente distinta das
alterações erosivas das artrites inflamatórias. Erosões da
gota estão presentes nas margens ósseas (lesão em saca
bocado – Figura 10). Osteopenia justa-articular, um achado
comum e precoce na artrite reumatoide, é ausente ou mí-
nima na gota.

Figura 9 - Presença de depósito de ácido úrico no 1º pododáctilo


com total destruição da porção distal do 1º metatarso

Figura 11 - (A) Cristal de monourato de sódio localizado intracelular-


mente e (B) sob luz polarizada: fusiformes e fortemente birrefringentes.
Fonte: Rheumatology in Practice, 2010

A dosagem de ácido úrico na urina de 24 horas é ne-


Figura 10 - Lesão erosiva tipo saca bocado: observar que ela está cessária para definir o tipo de paciente (hipoexcretor ou
fora da cápsula articular
hiperprodutor) e, por conseguinte, o tipo de tratamento.
Em uma dieta regular, a excreção de ácido úrico maior que
7. Achados laboratoriais 800mg em 24 horas sugere uma superprodução de urato.
Pode-se calcular o clearance de ácido úrico, que é a taxa
A elevação de ácido úrico tem sido considerada a chave de filtração renal de ácido úrico, pois o indivíduo pode ter
no diagnóstico de gota. O nível normal de ácido úrico sérico uma uricosúria alta (hiperprodutor), mas um clearance
para o sexo masculino é de cerca de 7mg/dL, e, para o sexo baixo, indicando déficit de excreção em relação ao valor
feminino, 6 a 6,5mg/dL. Na realidade, esse achado laborato- da hiperuricemia. Da mesma forma, uma pessoa com uri-
rial não é diagnóstico. A maioria dos estados hiperuricêmicos cosúria menor de 800mg (que seria classificada como hi-
não desenvolve gota, e os níveis de urato podem estar nor- poexcretor) pode excretar adequadamente em relação ao
mais durante a crise, devido à precipitação tecidual. nível sérico de ácido úrico. O clearance normal está em
O diagnóstico definitivo de gota é possível pela aspira- torno de 8mL/min e pode ser calculado com a concentra-
ção do líquido sinovial ou do tofo que demonstra cristais ção urinária e sérica de ácido úrico e o volume urinário
de monourato de sódio. Os cristais geralmente assumem total.

72
GOTA

8. Diagnóstico 9. Tratamento
Em 1977, o American College of Rheumatology aprovou A gota pode ser tratada com sucesso, sem complicações.
os critérios diagnósticos propostos por Wallace et al., que Os objetivos terapêuticos incluem tratar a crise aguda, pro-
se baseiam no encontro de cristais de monourato de sódio mover rápido alívio da dor e inflamação, prevenir ataques

REUMATOLOGIA
ou tofos ou 6 ou mais dos 12 critérios clínicos, radiológicos futuros e prevenir formação de tofos, cálculos renais e ar-
e laboratoriais (Tabela 9). tropatia destrutiva. No tratamento da gota, atenção tam-
bém deve ser dada às comorbidades.
Tabela 9 - Critérios para classificação de artrite aguda na gota pri-
mária
A - Gota aguda
Critérios maiores
- Encontro de cristais de monourato de sódio no líquido sinovial Um ataque agudo de gota é marcado por inflamação
intra-articular na vigência de crise aguda; intensa. Muitos agentes, incluindo Anti-Inflamatórios Não
- Confirmação da presença de tofos. Hormonais (AINHs), colchicina, corticoides sistêmicos ou
Critérios menores intra-articulares podem ser usados para eliminar a dor e
os sintomas associados. A administração precoce desses
- Inflamação articular súbita;
agentes é essencial. Colchicina, por exemplo, funciona me-
- Mais de 1 crise de artrite aguda;
lhor quando instituída minutos a horas depois do ataque.
- Comprometimento monoarticular; Drogas que abaixam o urato não devem ser instituídas du-
- Rubor local; rante o ataque agudo. Entretanto, pacientes que apresen-
- Comprometimento de 1ª MTF; tam ataque agudo e estejam fazendo uso de alopurinol ou
- Comprometimento de 1ª MTF de modo unilateral; agente uricosúrico devem ser continuados.
- Comprometimento tarsal unilateral; a) AINHs: são as drogas de escolha no tratamento da
- Suspeita de presença de tofos; crise aguda de gota. São administrados em dose plena ao
- Hiperuricemia;
1º sinal de ataque e devem ser mantidos por, ao menos, 48
horas após o desaparecimento dos sintomas. Não encorajar
- Edema articular assimétrico visto ao raio x;
uso crônico. Usa-se na vigência do ataque de gota agudo.
- Cistos subcondrais sem erosões vistos ao raio x;
AINHs podem causar significativos efeitos colaterais,
- Cultura negativa na vigência de crise. mais comumente, complicações gastrintestinais. Seu uso
deve ser evitado em hipertensos descontrolados e indivídu-
A maioria dos pacientes diagnosticados como gota tem
os com disfunção renal.
história de monoartrite aguda, hiperuricemia e melhora
b) Colchicina: é efetiva no tratamento da crise aguda e
importante dos sintomas com uso de colchicina e anti-infla-
promove alívio da dor em 48 horas na maioria dos pacien-
matórios. A resposta clínica à colchicina é uma forte evidên-
cia de gota, mas também é frequente em outros tipos de tes. Além disso, inibe os microtúbulos envolvidos na qui-
artrite microcristalina, incluindo por cristais de pirofosfato miotaxia e fagocitose dos cristais de ácido úrico pelos neu-
de cálcio (pseudogota) e hidroxiapatita. trófilos. Além de reduzir a produção de IL-6, tem circulação
Em um caso de monoartrite aguda com material pun- êntero-hepática, e os efeitos tóxicos podem ser amplifica-
cionável, é preciso obter cultura e coloração para bactérias dos em pacientes com doença hepática.
para excluir artrite séptica, pois a presença dos cristais ca- Geralmente, é administrada em doses orais de 1,5mg/
racterísticos de monourato de sódio, embora faça diagnós- dia (1 comprimido de 5mg, 8/8 horas), por 3 a 6 dias. Os
tico de gota, não exclui coexistência de infecção. Em alguns principais efeitos colaterais são náuseas, vômitos, diarreia,
casos, como artrite de articulações maiores, como joelho, o cãibras e dor abdominal. A dose deve ser reduzida ou sus-
início de antibioticoterapia empírica está indicado até que pensa se esses sintomas aparecem. Dose excessiva pode
se possa afastar infecção. resultar em supressão da medula óssea, falência renal, co-
agulação intravascular disseminada, falência cardiopulmo-
Tabela 10 - Diagnósticos diferenciais nar, convulsões e óbito. O uso é limitado a pacientes com
Artrite reumatoide disfunção renal. As doses intravenosas usadas no passado
- Diferenciar nódulo reumatoide (cotovelos) dos tofos; na AR não até o surgimento de efeitos colaterais são totalmente de-
ocorre acometimento de IFDs. sencorajadas atualmente. Também pode ser administrada
Artrite psoriásica na prevenção de ataques em pacientes com crises de repe-
- IFD + dactilite (edema dos dedos). tição, na dose mais baixa de 0,5 a 1mg/dia.
c) Corticoides: podem ser usados (prednisona de 20 a
Esclerose sistêmica
40mg/dia ou equivalente por 3 a 4 dias) para pacientes a
- Calcinose – depósito de hidroxiapatita faz diferencial com os
quem a colchicina e AINHs são contraindicados ou inefetivos.
tofos.
Gota usualmente responde a colchicina, AINHs ou cor-
Infecção ticoides isolados. Entretanto, se a terapia falha ou o ataque

73
REUMATOLOGIA

é intenso, um único agente não é o suficiente. Na maioria Paciente com gota


das situações, os agentes são utilizados em combinação. estabelecida

Não
B - Profilaxia Ataque agudo com
sinovite presente?
Gota em período
intercrítico
Dieta (Tabela 11) e modificação do estilo de vida redu-
Gota aguda
zem a frequência dos ataques agudos e a necessidade de
medicações. Dieta rígida com restrição de precursores de
Terapia com AINH
purina não está indicada, pois mesmo uma dieta rigorosa pode ser usada?
oferece pouco efeito no pool final de ácido úrico. No en-
tanto, a retirada de determinado alimento pode ser eficaz
a alguns pacientes. A perda de peso reduz o urato sérico, Sim Não
AINH enquanto Corticoides são
e o álcool deve ser eliminado totalmente, pois ele aumen- durar a crise contraindicados?
ta a produção de urato e reduz a sua excreção. O uso sub-
-reptício é comum e costuma ser responsável por ataques Sim Não Não
de gota aguda em pacientes sob tratamento adequado. Colchicina oral Mais de 1 articulação Corticoide intra-
envolvida? articular ou oral
Medicamentos que sabidamente contribuem para hiperuri-
cemia (Tabela 4) devem ser substituídos, se possível. Sim
a) Alopurinol: é um inibidor da xantina-oxidase, enzima Corticoide oral ou
intramuscular
envolvida na síntese do ácido úrico. A pacientes com hiper-
produção de ácido úrico, formação de tofos, nefrolitíase, Sintomas agudos
ou outras contraindicações para o uso de uricosúricos, é o resolvidos
agente de escolha. Também é a droga preferível em casos
de insuficiência renal, mas sua toxicidade é possível quando Gota em período
intercrítico
a filtração glomerular está rebaixada. Toxicidade pode ser
evitada se as doses são apropriadas. Terapia típica é inicia- Figura 11 - Tratamento da gota
da com a dose de 300mg/dia, entretanto doses de 100mg
ou menos podem ser apropriadas para idosos ou filtração
glomerular <50mL/min. C - Recomendações do EULAR (liga europeia que
O tratamento prolongado com dose adequada de alopu- estuda as doenças reumatológicas):
rinol pode resolver os tofos, porém depende da característi- - Um ataque agudo de rápido desenvolvimento de dor
ca do mesmo, sendo alguns tofos mais resistentes. intensa, edema e dolorimento que atinge o máximo
Os efeitos colaterais mais comuns são dispepsia, cefaleia dentro de 6 a 12 horas, especialmente com eritema
e diarreia. O rash papular pruriginoso ocorre em 3 a 10% dos sobreposto, é altamente sugestivo de inflamação por
pacientes. Outros efeitos tóxicos incluem febre, urticária, eosi- cristais, ainda que não específico para gota;
nofilia, nefrite intersticial, falência renal aguda, supressão de
medula óssea, hepatite, vasculite, toxicidade epidérmica.
- Para apresentações típicas da gota (por exemplo, po-
dagra recorrente com hiperuricemia), um diagnóstico
A síndrome de hipersensibilidade ao alopurinol é rara,
clínico isolado tem acurácia razoável, mas não definiti-
mas constitui um quadro grave com mortalidade em torno
va sem confirmação dos cristais;
de 20 a 30%.
O FDA (Food and Drug Administration) indica o uso do
- Demonstração de cristais de urato monossódico no
líquido sinovial ou no aspirado do tofo permite o diag-
oxipurinol, outro agente inibidor da xantina-oxidase, para
nóstico definitivo de gota;
tratamento dos pacientes com hiperuricemia e intolerantes
ao alopurinol. Não está disponível no Brasil. - A pesquisa de rotina de cristais de urato monossódico
b) Agentes uricosúricos: são efetivos para os pacientes é recomendada em todo aspirado de líquido sinovial
com filtração glomerular entre 50 e 60mL/min, com inges- obtido de articulações inflamadas sem diagnóstico;
ta de 2L de fluidos e com bom fluxo urinário, sem história - A identificação de cristais de urato monossódico em
ou evidência ultrassonográfica de nefrolitíase. No Brasil, articulações assintomáticas pode permitir o diagnósti-
o agente disponível é a benzbromarona, na dose de 50 a co definitivo de gota no período intercrítico;
200mg/dia. Não deve ser administrada a indivíduos com - Gota e sepse podem coexistir, então quando se suspei-
uricosúria elevada (>750mg/24h). tar de artrite séptica, a coloração pelo Gram e cultura
A combinação de alopurinol e uricosúricos pode ser in- do líquido sinovial devem ser realizadas, mesmo que
dicada a pacientes com tofos extensos e função renal pre- sejam identificados cristais de urato monossódico;
servada. Os uricosúricos aumentam a excreção de grandes - Mesmo sendo o mais importante fator de risco para
quantidades de urato solúvel, e o alopurinol reduz a forma- gota, os níveis de ácido úrico sérico não confirmam ou
ção de novos uratos. excluem gota, assim como muitas pessoas com hipe-

74
GOTA

ruricemia não desenvolverão gota, e durante as crises - Fatores de risco para gota e comorbidades associadas
agudas os níveis séricos podem estar normais; devem ser avaliadas, incluindo características da sín-
- Excreção renal de ácido úrico deve ser determinada drome metabólica (obesidade, hiperglicemia, hiperli-
em um grupo de pacientes com gota, especialmente pidemia, hipertensão).
aqueles com história familiar de início precoce de gota,

REUMATOLOGIA
início antes de 25 anos de idade ou com litíase renal; 10. Tratamento da hiperuricemia isolada
- Apesar das radiografias serem úteis no diagnóstico di- Há muita controvérsia no tratamento desta situação.
ferencial e mostrarem achados típicos na gota crônica, Alguns autores recomendam o tratamento nesses casos,
elas não são úteis para confirmar o diagnóstico em es- mas também há controvérsia quanto ao nível de uricemia
tágios precoces da doença; que o indicaria.

Tabela 11 - Tratamento da gota


- Drogas de 1ª escolha;
- Iniciar ao 1º sinal do ataque e manter por 48 horas após o desaparecimento dos sin-
Anti-Inflamatórios Não Hor-
tomas;
monais (AINHs)
- Usar dose máxima por curto período de tempo;
- Evitar em hipertensos descontrolados e pacientes com disfunção renal.
- Promove alívio da dor em 48 horas;
Gota aguda
- Inibe os microtúbulos envolvidos na quimiotaxia e fagocitose dos neutrófilos;
Colchicina - Realizar uso oral de 1,5mg/dia por 3 a 6 dias;
- Doses crescentes intravenosas não mais recomendadas;
- Evitar em pacientes com disfunção renal.
- É indicado na contraindicação ou ineficácia de AINHs e colchicina;
Corticoide
- Prednisona, 20 a 40mg/dia ou equivalente por 3 a 4 dias.
- Dieta rígida com restrição de precursores de purina não está indicada;
- Perda de peso reduz o urato sérico;
Dieta, peso e álcool
- Eliminar totalmente o uso de álcool;
- Medicamentos que contribuem para hiperuricemia devem ser substituídos, se possível.
- Inibidor da xantina-oxidase, é indicado a pacientes hiperprodutores, tofos, nefrolitíase
Prevenção de
ou contraindicações aos uricosúricos;
ataques futu-
Alopurinol - É preferível em casos de insuficiência renal;
ros e complica-
- Corrigir dose de acordo com a função renal (dose padrão: 300mg/dia; doses de 100mg
ções
ou menos para idosos ou filtração glomerular <50mL/min).
- São efetivos a pacientes com filtração glomerular acima de 50 a 60mL/min, com
Agentes uricosúricos (benz- ingesta de 2L de fluidos e bom fluxo urinário, sem história ou evidência ultrassono-
bromarona) gráfica de nefrolitíase dose: 50 a 200mg/dia;
- Não usar se uricosúria elevada (>750mg/24 horas).

11. Condrocalcinose – pseudogota - Gota.


Achados clínicos mais sugestivos:
Artropatia microcristalina caracterizada por depósito de
cristais diidratados de pirofosfato de cálcio. Os depósitos
- Achados clínicos de gota em pacientes idosos, espe-
cialmente mulheres;
atingem principalmente a cartilagem articular, os meniscos,
a sinóvia e as estruturas tendinosas e ligamentares. Pode - Sintomas sugestivos de gota com evolução atípica res-
mimetizar gota, artrite reumatoide, osteoartrite, artropatia posta ao tratamento;
neuropática ou ser assintomática. - Osteoartrite atípica (especialmente de início mais tar-
É uma doença incomum, que atinge principalmente pes- dio e recorrente, episódios inflamatórios agudos;
soas na 6ª ou na 7ª década, sendo rara antes dos 40 anos. - Clínica com padrão de artrite reumatoide iniciando em
Algumas doenças metabólicas estão associadas ao desen- idoso.
volvimento de pseudogota/condrocalcinose, destacam-se:
- Hemocromatose; A - Quadro clínico
- Hiperparatireoidismo; Tipos mais comuns de apresentação clínica:
- Hipofosfatasia; a) Pseudogota isolada (25% dos casos): manifesta-se
- Hipomagnesemia; por surtos agudos ou subagudos autolimitados, habitual-

75
REUMATOLOGIA

mente tão severos quanto os da gota e com intervalo livre


assintomático.
b) Forma pseudorreumatoide (5% dos casos): manifes-
ta-se com rigidez matinal, artrite simétrica das pequenas
articulações das mãos, espessamento sinovial, contratura
em flexão. Em 10% dos casos, o FR é positivo. Os ataques
duram de 4 semanas a vários meses. As articulações mais
acometidas são punhos, cotovelos, metacarpofalangianas,
joelhos e ombros. Devem-se buscar imagens de calcificação
articular ao raio x de punhos, púbis e joelhos, que corro-
boram esse diagnóstico e afastar erosões típicas de artrite
reumatoide.
c) Forma pseudo-osteoartrítica (50% dos casos): o en-
volvimento geralmente é bilateral com degeneração pro-
gressiva de múltiplas articulações. Evolui cronicamente
por meses ou anos, mas pode ter cursos de crises agudas. Figura 12 - Condrocalcinose: correlação anatomoclínica
Compromete predominantemente os joelhos, punhos, arti-
culações metacarpofalangianas, articulações coxofemorais,
ombros, cotovelos e tornozelos. Devem-se buscar imagens
de calcificação articular ao raio x de punhos, púbis e joe-
lhos, e observar o acometimento de punhos e metacarpofa-
langianas (muito incomuns na osteoartrite primária).
d) Artropatia pseudoneuropática: monoartrite destru-
tiva grave, de curso crônico, dolorosa. A ausência de neuro-
patia sensitiva a diferencia da artropatia neuropática.
e) Forma assintomática (20% dos casos): casualmente,
são vistas ao raio x calcificações típicas da condrocalcinose,
principalmente nos joelhos, porém sem manifestações clí-
nicas associadas.

B - Achados radiológicos
O depósito de cristal de pirofosfato diidratado de cálcio
pode ser visto à radiologia simples e aparece na cartilagem Figura 13 - Outras localizações de condrocalcinose
hialina e fibrosa como calcificação coalescente em linhas ou
bandas paralelas à borda do osso subcondral (Figura 12). C - Exames laboratoriais
Os locais mais frequentemente acometidos são menisco do
joelho, ligamento triangular do carpo e fibrocartilagem da O líquido sinovial com cristais de pirofosfato de cálcio
sínfise púbica. Qualquer articulação pode ser acometida. é o achado característico. Os cristais são vistos à microsco-
Tais alterações são acompanhadas de lesões degenerativas. pia de luz polarizada, apresentando-se com birrefringência
positiva fraca e forma curta, com extremidades rombas
(Figura 14) – diferentemente do de monourato de sódio,
que é longo e pontiagudo.

Figura 14 - Cristal de pirofosfato de cálcio sob luz polarizada: rom-


boides e fracamente birrefringentes

76
GOTA

As provas de atividade inflamatória (VHS e PCR) podem - Hiperparatireoidismo;


estar aumentadas, sobretudo nos casos de crise aguda. - Insuficiência renal crônica/diálise prolongada;
Muitas vezes, é preciso afastar outras doenças que são co-
- Doenças do tecido conjuntivo (esclerose sistêmica, LES, CREST,
mumente associadas à condrocalcinose: como diabetes melli- miosite);
tus, hiperparatireoidismo, hemocromatose, hipotireoidismo,

REUMATOLOGIA
- Calcificações heterotópicas após patologias neurológicas (AVE,
doença de Wilson, hipofosfatasia, ocronose e acromegalia.
trauma raquimedular);

D - Diagnóstico - Fibrodisplasia ossificante progressiva.

O diagnóstico baseia-se nos achados clínicos, radio- Os cristais de hidroxiapatita causam artrite quando há
lógicos e laboratoriais. Entram no diagnóstico diferencial quebra da homeostasia do produto cálcio-fósforo, prin-
doenças que ela pode mimetizar (gota, osteoartrite, artrite cipalmente quando este excede 75 mg2/dL. A articulação
reumatoide, artropatia neuropática) e as que podem estar mais comumente acometida é a do ombro, chamada às ve-
associadas. zes de ombro de Milwaukee, sendo o lado dominante geral-
mente o mais envolvido. Praticamente qualquer articulação
Tabela 12 - Sugestões diagnósticas para condrocalcinose
pode ser afetada, como quadril, punho, tornozelo, cotovelo
Quando pensar em pseudogota?
e pequenas articulações da mão. A calcificação de tendão,
- Monoartrite aguda não tofácea intermitente: diagnóstico ligamento e cápsula articular pode associar-se a processo
diferencial com gota, sobretudo se em associação a diabetes
inflamatório doloroso periarticular. A doença articular por
mellitus, hiperparatireoidismo, hemocromatose, hipotireoidismo,
cristais de hidroxiapatita também pode progredir com ar-
doença de Wilson, hipofosfatasia, ocronose e acromegalia;
tropatia destrutiva. É doença predominante em indivíduos
- Calcificações intra-articulares: típicas em joelhos, sínfise púbica e
idosos.
punhos;
O quadro clínico inclui de casos assintomáticos (desco-
- Quadro semelhante à osteoartrite, mas que atinge articula-
bertos apenas nos exames radiográficos) até sinovite aguda,
ções normalmente não acometidas por osteoartrite primária:
bursite, tendinite e artropatia destrutiva crônica. Na análise
punhos, articulações metacarpofalangianas, ombros, cotove-
los e tornozelos. do líquido sinovial destes pacientes, a contagem de leucóci-
tos é baixa, com predomínio de células mononucleares. Os
E - Tratamento cristais presentes no líquido sinovial são muito pequenos,
não birrefringentes e muitas vezes detectados somente em
Tratam-se as crises com AINHs, esvaziamento da arti- microscopia eletrônica. Quando corados com vermelho S
culação por meio de punção articular e corticoides injetá- de alizarina são melhor visualizados. Os achados radiográfi-
veis. Os pacientes devem ser orientados para que evitem cos não são diagnósticos.
traumatismos articulares que são, com frequência, precipi- É descrita a ocorrência de calcinose tumoral, em virtu-
tantes de crises. O uso crônico de colchicina pode reduzir a de do crescimento dos depósitos, em especial nos ombros,
frequência e a intensidade das crises. formando massas palpáveis e visíveis. A calcifilaxia, que
ocasiona calcificação de partes moles, calcificação vascular
12. Doença articular por deposição de e necrose isquêmica da pele, geralmente é vista em associa-
ção com níveis elevados de fosfato sérico.
outros cristais O tratamento é inespecífico. Em geral, as crises agudas
Uma série de outros cristais pode produzir inflama- são autolimitadas. Pode-se usar AINHs, corticoides orais,
ção aguda osteomuscular. Dentre estes destacam-se a de- injetáveis ou intra-articulares. Nos pacientes com doença
posição de cristais de hidroxiapatita e de oxalato de cálcio. destrutiva e crônica o tratamento clínico é em geral ine-
ficaz, requerendo medidas cirúrgicas para a remoção dos
a) Deposição de cristais de hidroxiapatita
depósitos. Identificação e correção de um ativo subjacente
Os cristais de fosfato básico de cálcio (apatita) estão asso- causa de hipofosfatemia ou hipercalcemia pode reduzir o
ciados a doenças articulares e periarticulares, sendo frequente risco de futuros ataques.
a causa de bursites e tendinites calcificadas (Tabela 13).
b) Deposição de cristais de oxalato de cálcio (CaOx)
Tabela 13 - Condições associadas à deposição de hidroxiapatita Existem 2 formas de deposição de cristais de CaOx: a
- Bursites e tendinites calcificadas; primária, um raro distúrbio metabólico e hereditário; e a
- Periartrites calcificadas (tecidos moles); secundária, uma anormalidade metabólica decorrente da
- Osteoartrite; Doença Renal Terminal (DRT). Nestes últimos ocorre de-
- Artropatia destrutiva; posição de CaOx em órgãos viscerais, ossos, cartilagens,
sinóvia e vasos sanguíneos. Os agregados de CaOx liberam
- Derrames hemorrágicos em idosos (ombro de Milwaukee);
enzimas e com isso estimulam a formação de sinovite nas
- Calcinose tumoral; articulações acometidas com progressivo dano articular.

77
REUMATOLOGIA

Como achado radiográfico também podemos encontrar Característica Gota Pseudogota


condrocalcinose, sendo esta indistinguível da deposição de Hiperuricemia, obe- Hipotireoidismo,
DPFC. O líquido sinovial destes pacientes não costuma ser sidade, hipertensão, hemocromatose,
inflamatório, com contagem total de menos de 2.000 leucó- Condições predis-
hiperlipidemia, álco- OA, IRC, diabetes,
ponentes/fatores
citos, com predomínio de mononucleares. de risco
ol, baixa ingesta ali- hiperparatireoi-
O tratamento das crises agudas inclui AINH, colchicina mentar, defeito enzi- dismo, hereditária
e/ou corticosteroides, associado ao aumento na frequência mático hereditário (rara)
das sessões dialíticas. Já na doença hereditária há relatos de Crise aguda: AINH,
Opções terapêu- Crise aguda: AINH,
melhora após transplante hepático. colchicina, corti-
ticas colchicina, corticoide
coide
Manejo crônico:
13. Resumo Manejos
Manejo crônico: uri-
AINH e/ou colchi-
cosúricos, colchicina
cina
Quadro-resumo
Fonte: UpToDate, 2011.
- Gota: doença inflamatória articular causada pela deposição de
cristais de urato monossódico nos tecidos articulares e periar-
ticulares em condições de hiperuricemia;
- Somente 25% dos indivíduos hiperuricêmicos desenvolvem
gota. Há controvérsias sobre a indicação de tratamento dos hi-
peruricêmicos assintomáticos;
- Fases da doença: hiperuricemia assintomática, gota aguda in-
termitente, gota tofácea crônica;
- Pode evoluir para doença renal (nefropatias agudas e crônicas
por ácido úrico, nefrolitíase);
- Diagnóstico definitivo: encontro de cristais em forma de agulha
com birrefringência negativa fagocitados por macrófagos no
líquido sinovial;
- Tratamento das crises agudas: AINHs, corticosteroides, colchi-
cina;
- Tratamento profilático (hipouricemiante): dieta (especialmente
abstinência de álcool), alopurinol, agentes uricosúricos (benz-
bromarona);
- Não se deve modificar ou introduzir tratamento hipouricemian-
te de base em vigência de crise aguda de gota;
- Pseudogota: doença inflamatória articular que se diferencia da
gota por ser causada pela deposição tecidual de cristais de pi-
rofosfato de cálcio.
Diagnóstico diferencial entre gota e pseudogota -
Artrite induzida por cristais
Característica Gota Pseudogota
1,5 a 2,6 casos por
1.000; aumenta com <1 caso por 1.000;
Prevalência idade em homens aumenta com a
e mulheres na pós- idade
-menopausa
Pirofosfato de cál-
Cristal Urato monossódico
cio diidratado
Birrefringência
Birrefringência nega- fracamente positi-
Aparência
tiva; forma de agulha va; forma linear ou
romboide
Monoarticular >oligo-
Envolvimento Monoarticular
articular; poliarticular
articular >oligoarticular
<30%
1ª metatarsofalangia-
Articulações mais Joelho, punho,
na; tornozelo, joelho,
afetadas outras
outras

78

Você também pode gostar