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Falar sobre esse assunto com crianças é muito mais falar

sobre autodescoberta, respeito aos limites do próprio corpo e dos corpos


alheios, socialização, autoestima, autoproteção, autonomia, privacidade, higiene e uma
série de outros temas intrínsecos ao desenvolvimento integral humano.

À medida que idade e convívio social aumentam, as demandas da sexualidade se


transformam. Para além do respeito ao próprio corpo e ao próprio espaço,
passa a ser igualmente importante trabalhar o respeito aos corpos e aos
espaços do outros. “Não posso invadir o espaço do outro e não posso
permitir que o outro invada o meu. Ao mesmo tempo em que preciso
aprender a socializar”,

Nesse período, o mais importante, de acordo com a ginecologista, é “trabalhar questões relativas
à autoestima e ao respeito à própria subjetividade” dentro das relações sociais.

Famílias devem ser disponíveis


Para Álvaro Rebouças, psicólogo especialista em Terapia Familiar Sistêmica, uma criança que
questiona um adulto sobre qualquer assunto na esfera da sexualidade mostra que confia a
ele dúvidas muito sérias. “E que seriam sérias para o adulto também, no mesmo período da vida”.
Por isso, o profissional defende que as famílias devem se mostrar disponíveis para receber essas
demandas e responder de forma simples, objetiva e adaptada ao universo infantil. “Se os pais
não têm disponibilidade e a comunicação é de cobrança, dificulta”, porque a criança vai aprender
que não tem espaço naquele ambiente para se sentir informada.

Além disso, Álvaro lembra que o elo de confiança formado entre crianças e
adultos no ambiente familiar deve ser levado a sério. “A pessoa de
confiança precisa manter o sigilo da conversa. Não vai contar pros outros
filhos ou pra amiga. Se precisar de informação profissional, deve procurar
profissional”, aconselha o psicólogo.

Mesmo quando os pais não são tão presentes e disponíveis na infância, é possível, segundo o
psicólogo, correr atrás do prejuízo e construir esse elo de confiança com os filhos já adolescentes
ou adultos. Desde que, nesse processo, não tenham acontecido experiências traumáticas.
“Os que não conseguem (construir laços de confiança) são os que produzem traumas. Abusadores
sexuais de crianças e pais agressores não conseguem recuperar mesmo, porque o trauma vai impedir
o sujeito de ter confiança. Agora, pais que estavam focados no trabalho ou dando atenção a outras
necessidades, os filhos compreendem. Só lamentam”.
As consequências do “não falar”
Para a psicóloga e pedagoga Eveline Câmara, fundadora do Instituto de Especialidades Integradas,
as consequências da falta de diálogo e da repressão da sexualidade na infância são “desastrosas”.
Principalmente porque embarreira o desenvolvimento humano natural, levando, inclusive, a uma
incompreensão sobre como se constroem os próprios desejos.
“Ainda existe na sociedade a questão do adulto colocando a percepção dele (de mundo) na criança.
Isso dificulta diálogo”, acredita a profissional.
Como conversar com crianças sobre sexualidade?
Seja disponível
Quando a criança perguntar a você algo sobre sexualidade, é importante que você esteja disponível
para ouvi-la. Se não puder na hora, diga que responde em outro momento, mas cumpra a promessa.
Ofereça tempo e atenção. Se você nunca parar para conversar, a criança pode entender que não há
espaço para esse diálogo e pode não recorrer mais a você e buscar a informação em outro lugar ou
com outras pessoas.
Chame as coisas do que elas são
Ninguém fala que olho não é olho, que nariz não é nariz ou que boca não é boca. Porque não vê
necessidade de “maquiar” essas partes do corpo. Por que, então, esconder os nomes das partes
íntimas? Por mais que você opte por apelidar “pênis” e “vulva” para conversar com crianças, tenha
em mente que, em algum momento, elas devem saber os nomes corretos das partes dos próprios
corpos.
Peça permissão antes de tocar o corpo da criança
Como você está ensinando à criança o respeito aos limites do próprio corpo e do corpo do outro, dê
o exemplo e peça permissão antes de tocar o corpo dela para dar banho, por exemplo. É uma forma
de orientar que não se pode tocar em locais não autorizados.
Responda exatamente o que a criança quer saber
Sem rodeios, adaptando a resposta à idade e à maturidade emocional da criança, responda
exatamente o que ela quer saber. Às vezes, ela só tem uma dúvida muito específica e pontual.
Perguntar “como os bebês nascem?” é diferente, por exemplo, de perguntar “como os bebês são
feitos?”.
Mantenha o sigilo da conversa
Contar para os amigos e até para os outros filhos sobre a dúvida da criança pode quebrar a
confiança que ela tem em você, caso descubra. Se precisar de ajuda para responder à pergunta,
procure profissionais e outras fontes de informação confiáveis.
A forma como você reage tem peso. Se você se apavora diante da pergunta da criança ou a
repreende de alguma forma, ela vai pensar que não deveria ter exposto a dúvida. Se você ignora, ela
pode achar que não há espaço para dialogar. Aja com naturalidade e responda o que você souber
responder. O que não souber, diga que vai estudar para responder depois. E responda.
Oriente sobre privacidade
Na fase da descoberta do corpo, é natural que a criança se toque e chegue às partes íntimas. Encare
isso com a mesma naturalidade que acontece, mas oriente a não se tocar em público, apenas em
ambientes privados como quarto e banheiro. Faça comparações que a criança possa compreender,
como: “Você vê sua mãe ou seu pai tocar na parte genital em público?”. Mas, atenção: para ter
coerência no discurso, caso você veja a criança se tocar em público, leve o diálogo com ela sobre
isso para o ambiente privado, que é onde a questão deve ser tratada.
Não diferencie a criação por gênero
Não deve haver diferença entre falar sobre sexualidade com meninos e falar sobre sexualidade com
meninas. Ambos se desenvolvem e se descobrem de maneira natural. Se você encara com
naturalidade a auto estimulação genital do menino, por exemplo, e se apavora quando a menina faz
o mesmo, você pode provocar nela transtornos e disfunções relacionadas à sexualidade na vida
adulta, além de uma série de problemas de autoestima. Ambos também devem ser ensinados a
respeitar o próprio corpo e o corpo do outro.
Não precisa ser “um momento”
Você não precisa criar todo um cenário, toda uma ambiência, todo um momento para falar com a
criança sobre questões ligadas à sexualidade. Às vezes, o assunto pode surgir enquanto vocês leem
um quadrinho ou assistem a um desenho animado ou filme, por exemplo. Inclusive, é importante
estar atento aos conteúdos que as crianças estão consumindo, principalmente na Internet.
Use todos os recursos que puder

Quadrinhos, cartilhas, jogos, brinquedos, livros. Há uma série de recursos confiáveis disponíveis
(alguns, até gratuitamente) para que você use no diálogo com a criança sobre sexualidade.
“Sexualidade é um meio de expressão dos afetos, uma maneira

de cada um se descobrir e também se relacionar com o mundo”


Por isso, segundo ela, é legítimo falar que bebês têm sexualidade e
que ela nos acompanha até o fim da vida, ainda que isso possa soar
um pouco estranho para algumas pessoas, num primeiro momento.
Caroline oferece o seguinte exemplo para facilitar a compreensão:
“bebês adoram colo, se acalmam quando estão sendo amamentados,
reagem aos sons das vozes das pessoas conhecidas, colocam objetos
na boca e até o próprio pezinho para entender que aquela parte do
corpo é dela. Isso é sexualidade”, explica.

Em cada fase da vida, haverá uma busca diferente pelo bem-estar e


pela manifestação de afetos nas relações interpessoais. Se para o
bebê a sexualidade se manifesta no conforto que encontra junto à
mãe ou a quem cuida, e nas pequenas descobertas que lhe revelam
que ele possui um corpo, já nos anos finais da primeira infância (por
volta dos cinco ou seis anos) e adiante, a sexualidade “será percebida
nas brincadeiras, no ato de querer se vestir com roupas dos adultos,
exercendo papéis no faz-de-conta, tentando entender as diferenças
anatômicas, fazendo aquelas perguntas constrangedoras”, expõe
Caroline.

•Para assistir com os pequenos! 5 curtas sobre corpo humano para


crianças

Como abordar o assunto em casa


É comum ouvir que, quando o assunto gira em torno de sexo, melhor
é falar apenas quando a criança perguntar e só responder o que ela
quiser saber. “Mas, e se ela não perguntar?”, provoca Caroline.
É importante ressaltar que a relação sexual é apenas um dos
componentes da sexualidade. Dessa forma, familiares podem
preparar o espaço para o diálogo sobre sexo propriamente dito, de
maneira planejada e intencional, naturalizando o assunto. E,
sim, isso pode e deve partir de quem cuida, como sugere a
especialista.

“Estudos apontam que crianças expostas a informações de qualidade


sobre sexualidade, corpo e relações humanas apresentam seis vezes
mais ferramentas de proteção contra violência em situações com
potencial abusivo do que aquelas que não tiveram acesso a
informações, além de demonstrarem sentimentos positivos sobre
seus corpos e autoimagem”, afirma Caroline.

O tema sexualidade não precisa ser abordado somente pela


linguagem verbal, mas por atitudes ou comportamentos dos pais ou
cuidadores, desde o início da vida. “A educação sexual não se dá
somente por meio das explicações, mas quando se ensina e nomeia
corretamente as partes do corpo, quando não se reprime o bebê que
está descobrindo e tocando partes íntimas do seu corpo, quando se
explica a finalidade do toque durante um banho ou troca de fraldas,
por exemplo. Tudo isso possibilita que a criança cresça com uma
autoimagem positiva”, explica a especialista. É também nesse
contexto que se introduz a noção de consentimento para as crianças:
quem pode tocar nela, em quais lugares e qual o motivo desse toque.

Outra forma interessante de trazer o assunto sexualidade para o dia a


dia é promover brincadeiras sem distinção de gênero. “As crianças
podem brincar com qualquer brinquedo sem limitações do que seria
de menino ou de menina. Quando falamos de sexualidade infantil,
estamos nos referindo a uma fase de exploração do mundo, do
espaço, das possibilidades“, afirma Caroline.

•Sugestão de literatura infantil: “Gogô – De onde vêm os bebês?”


Falar de sexualidade sem sexualizar a
criança
Estimular conversas saudáveis sobre sexualidade em nada tem a ver
com ser negligente ou permissivo sobre a sexualização da
criança. Por isso, Caroline alerta para a importância de os adultos
não verem as crianças pelas lentes da orientação sexual. “Não
dizemos que a criança tem orientação sexual, mas isso não significa
que ela não tenha desejos, imaginação, curiosidades e até atração por
alguém no final da infância, em uma configuração que se assemelha
ao que chamamos, para adolescentes e adultos, de desejo homo,
hetero ou bissexual”, explica.

Mesmo em um tempo em que há mais possibilidades de se dialogar


abertamente sobre gênero e orientação sexual, é necessário que
familiares tomem certos cuidados. De acordo com a especialista, a
consciência sobre a orientação sexual vem ao longo dos anos, a partir
dos pensamentos e também das experiências afetivas, íntimas e
eróticas consigo e com o outro. “A orientação sexual é um
movimento dinâmico que passamos a compreender e dar nome a
partir da adolescência. Por isso, não recomendo a utilização de
termos como criança cis, hetero, queer, LGBTQIAP+, trans. Esses
termos surgem de uma luta política fundamental de visibilidade
dessas identidades. E identidade é algo que estamos apenas
começando a construir na infância”, ressalta.

Isso não quer dizer que não há crianças que fujam


dos estereótipos de gênero (por exemplo, um menino com atitudes
lidas como “afeminadas” ou uma menina que não segue as regras do
que é tido como feminino). Para a especialista, “podemos nos referir
a elas como crianças não-normativas ou com variabilidade de
gênero. Dessa forma, não se nega a existência dos desejos, das
necessidades e dos sofrimentos das crianças que não obedecem às
expectativas. Em uma sociedade que ainda se organiza pelo rosa e
azul, infelizmente, o sofrimento dessas crianças é enorme. Elas
precisam de acolhimento, tempo, atendimento multidisciplinar e
proteção“.

Famílias não estão sozinhas no papo


Junto com a família, a escola exerce um papel fundamental de propor
diálogos sobre sexualidade. É aí que entra a “educação sexual“. A
oficial de Programa para Segurança de Insumos em Saúde Sexual e
Reprodutiva, Nair Souza, do Fundo de População das Nações Unidas
(UNFPA) no Brasil, defende que a educação sexual siga os
princípios da educação integral em sexualidade, orientada pelo
documento “Orientações técnicas internacionais de educação em
sexualidade: uma abordagem baseada em evidências”.

Nair explica que um dos diferenciais da educação integral em


sexualidade é que “ela tem como base o currículo escolar, por isso o
tema pode ser abordado na sequência ideal para cada idade,
considerando o desenvolvimento ao longo dos anos”. Os conteúdos
envolvem anatomia e fisiologia sexual e reprodutiva; puberdade e
menstruação; reprodução, anticoncepcionais modernos, gravidez e
parto; e infecções sexualmente transmissíveis”.

Com base nessas possibilidades de abordagens e o contexto sensível


da chegada da puberdade para meninas que, em 2018, o UNFPA
trabalhou, em parceria com a Itaipu Binacional, no projeto
“Prevenção e redução da gravidez não intencional na adolescência”,
nos municípios do Oeste do Paraná, com o objetivo de levar às
meninas informações de qualidade e apropriadas.

Seguindo a lógica de demonstrar a possibilidade de se ter uma


trajetória de vida baseada em escolhas seguras, o projeto buscou
apoiar as meninas a tomarem decisões voluntárias, informadas e
responsáveis sobre sua saúde, seu futuro e evitar gestações não
planejadas. “Isso porque, a chegada da puberdade, muitas vezes,
marca o início de mensagens conflitantes acerca de sexualidade,
virgindade, fertilidade e o fato de ser mulher. Além disso,
a menstruação é vista, em alguns contextos, como um tabu. Junto
com isso vem o assunto gravidez”, exemplifica Nair.

As famílias podem ver a escola como uma aliada no diálogo sobre


sexualidade, pois, se realizado de forma adequada – baseado em
evidências – pode promover o empoderamento e a autonomia das
crianças. “A educação integral aprimora as habilidades de análise e
comunicação, bem como outras habilidades para a vida relativas à
saúde e ao bem-estar em relação à sexualidade, direitos humanos,
vida familiar e relacionamentos interpessoais saudáveis e
respeitosos, valores pessoais e compartilhados, normas culturais e
sociais, igualdade de gênero, não discriminação, comportamento
sexual, violência baseada no gênero, consentimento e integridade
corporal, abuso sexual e práticas nocivas, como o casamento
infantil.”

Nair ressalta ainda a importância de envolver outros agentes no


diálogo, além da família e da escola. “Quando a educação integral
em sexualidade acontece na escola em conjunto com serviços
extracurriculares, comunitários ou nas próprias unidades de saúde,
isso de fato é um dos avanços mais promissores na garantia de saúde
sexual e reprodutiva de crianças e adolescentes.”

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