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DEMOCRACIA E

AUTORITARISMO
[PROF. FELIPE CORRÊA]
Luis Felipe Miguel (1967 -- )

• Cientista político brasileiro


• Professor titular da Universidade
de Brasília
• Autor de inúmeros livros e artigos
no campo da teoria política e da
política brasileira
• Influências: marxismo, socialismo
democrático, P. Bourdieu e
feminismo
 Artigo: “Despolitização e antipolítica:
a extrema direita na crise da
democracia” (2021)
QUESTÃO E CONTEXTO

• Mudanças globais importantes nas duas últimas


décadas, incluindo a ascensão de diferentes formas de
autoritarismo, têm modificado a percepção sobre o
futuro da democracia liberal

• Relevância de entender essas mudanças em seu


contexto

A Guerra Fria e a bipolarização do mundo

• Liberalismo dos EUA X “Socialismo” do Leste


(URSS, Alemanha Oriental etc.)
CONTEXTO

Fim do “socialismo real” e hegemonia do liberalismo dos


EUA

• Fim do Bloco Soviético e Queda do Muro de Berlim


(regimes socialistas autoritários)
• Crise em distintos sistemas partidários ocidentais que
tinham por base a dicotomia direita-esquerda
CONTEXTO

• Samuel Huntington, cientista político


conservador, saúda da “terceira onda
de democratização” (1991)

• Francis Fukuyama, jovem acadêmico,


proclama o “fim da história”;
eternização da democracia liberal e
sua contraface necessária, a economia
capitalista de mercado (1992)
CONTEXTO

O Consenso liberal-democrático

• Consenso que se aprofunda desde o fim da Segunda


Guerra Mundial
• Nos anos 1990 há uma compreensão mais homogênea
sobre o regime liberal-democrático
• Competição eleitoral multipartidária
• Sufrágio universal
• Divisão de poderes
• Direitos de cidadania (saúde, educação, moradia etc.)
• Liberdade individual
• Império da lei
• Mercado e seus mecanismos como algo necessário e
inevitável
CRISE DA DEMOCRACIA LIBERAL

A crise dos 2010 e a democracia liberal em xeque

• Mainstream da Ciência Política e do jornalismo


percebem desarranjos nesta democracia
• Grandes marcos em 2016: vitória de Donald Trump nos EUA
e Brexit (saída do Reino Unido da União Europeia)

• Tema da “crise da democracia” vem à


tona; alguns começam a falar em “fim da
democracia”
• Derrota de Trump em 2020, apesar de gerar
certo alívio, não mudou a percepção de
turbulência por parte desses agentes
• Crise da democracia liberal representativa é
maior do que a presença de extremistas
autoritários nos governos
CRISE DA DEMOCRACIA LIBERAL

• Acontecimentos que motivaram a


ascensão extremista e autoritária:
• Esgarçamento do debate público
• Crescimento de discursos fundamentalistas
e/ou xenófobos
• Prestígio de posições que se apresentam
como antipolíticas
• Crise global da economia capitalista
• Avanço da razão de mundo neoliberal
• Alteração nos fluxos comunicativos graças
às novas tecnologias
• Redução enorme da responsabilidade dos
governantes diante dos governados
• Perda de credibilidade da ideia de
soberania popular
CRISE DA DEMOCRACIA LIBERAL

A crise em perspectiva (marcos fundamentais)

• Fim do “socialismo” real e crise nos sistemas partidários


abrem espaço para:
• Emergência de grupos de extrema direita com chances reais de
ascender ao poder (Itália, França, por exemplo)
• Chegada de líderes autoritários ao poder no antigo bloco
soviético e periferias do capitalismo, por meio de processos
formalmente democráticos, mas que se deram em contextos
de restrição de direitos e cerceamento de dissenções (Polônia,
Hungria, Rússia, Turquia, Israel, Índia e Filipinas, por exemplo)
CRISE DA DEMOCRACIA LIBERAL

A crise em perspectiva (marcos fundamentais)

• Plebiscito da dívida na Grécia e golpes de novo tipo na


América Latina deixam evidente que, dependendo das
circunstâncias, vontade popular pode ou não ser
respeitada (Honduras 2009, Paraguai 2012, Brasil 2016,
Bolívia 2019)

• Em especial dois eventos de 2016 comoveram o


mainstream da Ciência Política:
• Brexit (saída do Reino Unido da União Europeia)
• Eleição de Trump nos EUA
CRISE DA DEMOCRACIA LIBERAL

• Dois modelos da democracia liberal que evidenciam não


haver salvaguardas eficazes contra aquilo que os
analistas consideram “irracionalidades” do eleitorado
• Para alguns, sentimento de que a democracia é o regime de
incompetentes que fazem as piores escolhas
TRÊS EXPLICAÇÕES DA CRISE

1. A mais famosa e recente


• S. Levitsky e D. Ziblatt,
Como as democracias morrem

2. A inspirada em Foucault
(temporalmente intermediária)
• W. Brown, In the Ruins of
Neoliberalism
e Undoing the Demos

3. A mais antiga e ligada à


economia política
• W. Streeck, Buying Time
e How Will Capitalism End?
1. EXPLICAÇÃO MAIS FAMOSA E RECENTE

Principais argumentos

• Crescente ineficácia dos filtros


colocados pela elite política contra a
sedução das massas por políticos
demagógicos e autoritários (Levitsky
e Ziblatt)

• Imoderação das massas, que não se


contentam com sua posição passiva
frente aos governantes e querem se
ver espelhadas no poder
1. EXPLICAÇÃO MAIS FAMOSA E RECENTE

• Imoderação das elites políticas, que lançam mão de


quaisquer meios para assumir e manter o poder,
mesmo que coloquem em xeque a institucionalidade
• Inobservância das regras não escritas, do bom senso e do fair
play (essenciais para a estabilidade democrática)
• Relações entre governo-oposição e setores do governo vão
para o tudo ou nada, utilizam-se instrumentos extremos
(impeachment etc.)
• Oposição quer impedir o governo de governar
• Governo quer aniquilar a oposição
• Confronto total sem mediações e diálogos
2. EXPLICAÇÃO INSPIRADA EM FOUCAULT

Principais argumentos

• Neoliberalismo é mais amplo que


política econômica ou normatização
da relação Estado-mercado
• Trata-se de uma racionalidade
abrangente, que visa a regular todas
as relações humanas por meio da
disseminação de uma lógica
2. EXPLICAÇÃO INSPIRADA EM FOUCAULT

• Neoliberalismo como “razão do mundo”


• Que exalta a competição e a responsabilização individual como
princípios de todas as relações humanas
• Argumento de que a concorrência e a meritocracia trarão
ganhos de produtividade e eficiência
• Solidariedade é banida
• Indivíduos são tratados como consumidores

• Neoliberalismo deprime Estado em favor do mercado;


penetra no próprio Estado, na gestão da administração
pública
2. EXPLICAÇÃO INSPIRADA EM FOUCAULT

• Implica a preponderância da lógica


do capital financeiro sobre a do
capital produtivo
• Pessoas tratadas em termos de
investimento e valorização
• Destruição das possibilidades de
projetos em comum
• Governança de cidadãos isolados
responsabilizados por suas práticas de
autoinvestimento
2. EXPLICAÇÃO INSPIRADA EM FOUCAULT

• Neoliberalismo perverte a democracia liberal


• Democracia, Estado-nação e capitalismo são trigêmeos
nascidos na modernidade europeia
• Desses três elementos, democracia é o elo mais fraco
• Neoliberalismo não permite discussão sobre a relação entre
democracia e capitalismo
• Trata-se de uma concepção elitizada, abstrata e ahistórica
3. EXPLICAÇÃO MAIS ANTIGA (ECONOMIA POLÍTICA)

Principais argumentos

• Desde o início dos anos 2000 tem sido possível notar o


declínio das democracias ocidentais
• Rituais mantidos, mas verdadeiras decisões tomadas
privadamente entre governos e elites econômicas, sem
participação dos eleitores; impotência das causas igualitárias
(C. Crouch)
• Não se trata da retração do Estado frente ao mercado, mas do
surgimento das grandes corporações que submetem o poder
público e não são controladas pelos mecanismos de mercado
3. EXPLICAÇÃO MAIS ANTIGA (ECONOMIA POLÍTICA)

W. Streeck

• No século XX, o ocidente teve um


arranjo instrumental para a dominação
capitalista, permitindo certa
acomodação com a classe trabalhadora
• Eleições periódicas, governos relativamente
responsivos aos eleitores, possibilidade de
medir a temperatura do conflito social
(distributivo, especialmente) e mantê-lo sob
controle
• Estado depende estruturalmente do
investimento capitalista; assim, interesses
da burguesia incorporado pelos tomadores
de decisões públicas
3. EXPLICAÇÃO MAIS ANTIGA (ECONOMIA POLÍTICA)

• Foi o capital que decidiu parar de pagar a conta da


pacificação social, exigindo uma parcela maior da
riqueza social
• Nos últimos anos, isso tem acentuado a concentração de
riqueza global (T. Piketty)

• Para que o Estado se submetesse a essas pressões, as


decisões econômicas centrais foram cada vez mais
saindo daquilo que pode ser atingido por eleições e
eleitores
• Decisões econômicas cada vez menos atingidas pelas decisões
político-eleitorais
• “Desdemocratização”, política como “entretenimento
popular”
3. EXPLICAÇÃO MAIS ANTIGA (ECONOMIA POLÍTICA)

• “Desdemocratização” é resultado de
pressões do capital (especialmente
financeiro)

• Confluência de três fatores:


• Globalização (mobilidade do capital e
autonomia frente aos Estados)
• Mudança tecnológica (diminui consumo
de mão de obra e, com isso, o poder de
pressão dos trabalhadores)
• Crise mundial do capitalismo (que reduz
o excedente disponível para
apaziguamento do conflito distributivo)
3. EXPLICAÇÃO MAIS ANTIGA (ECONOMIA POLÍTICA)

• Tripla crise que se inicia no fim do séc. XX e se acentua


em 2008
• Crise bancária (excesso de crédito)
• Crise fiscal (déficits orçamentários e aumento de dívida dos
governos)
• Crise da economia real (desemprego e estagnação)

• Em contexto de crise, o capital financeiro exige


austeridade
• Estrangula medidas redistributivas (maior peso cai sobre
trabalhadores, pensionistas e pobres)
• Políticas de socorro aos grandes grupos e serviços das dívidas
• Impostos passam a transferir recursos dos de baixo para os de
cima (menos taxações e aumento da regressividade)
3. EXPLICAÇÃO MAIS ANTIGA (ECONOMIA POLÍTICA)

• Passagem do Estado fiscal para o Estado da dívida:


credores ganham poder

• Democracias formais assimétricas (marcadas pelas


desigualdades) -> Democracias menos que formais
(regras formais condicionadas a circunstâncias)
• Decisões subtraídas do alcance da população

• Submissão maior dos cidadãos e governantes aos


ditames do capital

• Crise do capitalismo <-> Crise da democracia


• Governos agem para salvar especuladores, às custas dos
cidadãos comuns (vítimas eternas da “austeridade”)
• Perda de legitimidade das instituições democráticas
DA TECNOCRACIA AO AUTORITARISMO

Crise da democracia envolve dois fenômenos distintos

a.) Retração do espaço disponível para a ação


democrática
• Mercado regulando fatias cada vez maiores da sociedade (e
isso sendo colocado como algo necessário e indiscutível)
• Movimento de pretensa despolitização

b.) Discursos intolerantes ganham força, estimulando o


pânico moral (contra migrantes, socialistas,
ambientalistas, feministas, LGBTs etc.)
• Desvio da política para irracionalismo cego
• Regras da democracia (controle da autoridade política, divisão
dos poderes, império da lei) denunciadas como obstáculos
para uma suposta regeneração moral
DA TECNOCRACIA AO AUTORITARISMO

• Ascensão da antipolítica
• Destruição dos canais de diálogo e do pluralismo
• Continuidade da instrumentalização do Estado em favor das
minorias ricas.

• Mainstream da Ciência Política pós-Trump vem


promovendo a segunda visão
• Naturaliza a divisão do trabalho político
e defende que a ignorância do eleitorado
tende ao populismo
• Coloca que a única saída são as elites
políticas bem informadas. (Achen e Bartels)
POPULISMO

• Esse mainstream define superficialmente o populismo


• Contraponto do liberalismo
• Soluções simples para problemas complexos
• Busca de culpados
• Noção de que a massa de pessoas comuns sabe o que fazer

• Para sobreviver, a democracia depende de um


liberalismo distanciado das massas
NOVA DIREITA: POPULISMO? FASCISMO?

Possíveis classificações para a nova direita

• A nova direita contém ameaçar antidemocráticas e


autoritárias

• Caracterizá-la como “populista” (“populismo de direita”)


é algo controverso
• Também não há consenso em chamar de “fascista” e
pós-fascista
NOVA DIREITA: POPULISMO? FASCISMO?

• A extrema direita atual é um fenômeno específico, que


se inspira nos fascismos históricos
• Ressentimento das classes médias
• Bolhas discursivas fechadas
• Emergência da “pós-verdade”

• Seu sentido geral é bloquear as possibilidades de


redemocratização e apaziguar os grupos dominados
NOVA DIREITA: POPULISMO? FASCISMO?

Contribuições de J. Stanley, Como


funciona o fascismo

Definição de fascismo

• Fascismo é qualquer tipo de


ultranacionalismo (étnico, religioso,
cultural), no qual a nação é
representada na figura de um líder
autoritário que fala em seu nome
NOVA DIREITA: POPULISMO? FASCISMO?

• A política fascista inclui diferentes estratégias:


• Reivindicação de um passado místico, com a aniquilação da
história; distorcem o passado para sustentar suas visões do
presente
• Propaganda, com distorção da linguagem da idealização
• Anti-intelectualismo, com ataque à educação e às
universidades que contestam suas ideias
• Irrealidade, com teorias da conspiração, notícias falsas que
substituem o debate fundamentado e desintegração da
compreensão da realidade
• Hierarquia, com a naturalização das diferenças, a aparência de
respaldo científico e natural; alguns humanos são mais
“humanos” que outros
NOVA DIREITA: POPULISMO? FASCISMO?

• Vitimização, com o progresso dos oprimidos sendo visto como


opressão
• Lei e ordem, com o estabelecimento de um “nós, cidadãos
legítimos”, e um “eles, criminosos, que ameaçam a nação”;
divisão entre um “nós” e um “eles”
• Ansiedade sexual (hierarquia patriarcal ameaçada pela
crescente igualdade de gênero; masculinismo
• Apelos à noção de pátria, desarticulação da união e do bem-
estar público.

• Essa política limita a empatia, justifica os tratamentos


desumanos, reprime a liberdade: estímulos às prisões
em massa, às expulsões e até aos genocídios
ALGUMAS CONCLUSÕES

Democracia como fruto do conflito social

• A democracia contemporânea é fruto do enfrentamento


às lógicas da desigualdade e da exclusão, próprias do
capitalismo
• Acomodação produzida com a pressão dos dominados e a
necessidade de apaziguá-los
• Ampliação de direitos, voz nos processos decisórios, Estado
minorando consequências do império do capital
• Os países centrais usufruem de condições mais
vantajosas
ALGUMAS CONCLUSÕES

A democracia não é neutra

• Ela é um compromisso encontrado para resolver


conflitos da sociedade dentro de um certo arranjo de
poder
• É, ao mesmo tempo, arena e efeito dos conflitos sociais
• Nasce como resultado desses conflitos, pela pressão dos
dominados e como novo espaço onde eles passam a se
desenvolver
ALGUMAS CONCLUSÕES

O Estado espelha os conflitos sociais

• O Estado é uma ossatura da luta de classes (N.


Poulantzas)
• Não é uma arena neutra para resolução dos conflitos de
interesses, que pode ser impactada por quaisquer grupos
sociais
• Não é apenas instrumento neutro utilizado por qualquer classe
dominante
• O Estado espelha as relações de força presentes na
sociedade
ALGUMAS CONCLUSÕES

• Regras do jogo instituídas na democracia também não


são neutras
• Elas sempre beneficiaram grupos dominantes em prejuízo aos
dominados
• Aqueles que contam com recursos de poder (tempo livre,
contatos, acesso à mídia e ao dinheiro) têm enormes
vantagens
• Definidas também a partir dos conflitos
ALGUMAS CONCLUSÕES

• A democracia foi uma conquista dos dominados que


nunca acabou com a dominação
• Expansão democrática: maior igualdade e restrição do domínio
da lógica do capital
• Retração democrática: menor igualdade e restrição do domínio
da lógica do capital
• A democracia não é um problema resolvido e nem um
modelo institucional definitivo
• Sua convivência com a economia capitalista é mais
conflituosa que harmônica

• Talvez precisemos de uma nova democracia, que possa


enfrentar de modo mais direto o capitalismo
Obrigado!

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