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CONCEPÇÕES
EPISTEMOLÓGICAS E
PSICOPATOLOGIA GERAL
Carla Priscila da Silva Pereira

CONCEPÇÕES EPISTEMOLÓGICAS E
PSICOPATOLOGIA GERAL
1ª edição

Londrina
Editora e Distribuidora Educacional S.A.
2020

2
© 2020 por Editora e Distribuidora Educacional S.A.

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


__________________________________________________________________________________________
Pereira, Carla Priscila da Silva
P436c
Concepções epistemológicas e psicopatologia geral/
Carla Priscila da Silva Pereira, –
Londrina: Editora e Distribuidora Educacional S.A. 2020.
43 p.

ISBN 978-65-86461-34-3

1. Saúde mental. 2. Psicopatologia I. Pereira, Carla Priscila da Silva.Título.

CDD 610
____________________________________________________________________________________________
Jorge Eduardo de Almeida CRB 8/8753

2020
Editora e Distribuidora Educacional S.A.
Avenida Paris, 675 – Parque Residencial João Piza
CEP: 86041-100 — Londrina — PR
e-mail: editora.educacional@kroton.com.br
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CONCEPÇÕES EPISTEMOLÓGICAS E PSICOPATOLOGIA
GERAL

SUMÁRIO
Concepções epistemológicas e Psicopatologia geral_________________ 05

Terminologia em Psicopatologia _____________________________________ 18

Contribuições da Psicanálise a Psicopatologia _______________________ 36

Sistemas de Classificação Diagnóstica (DSM e CID) __________________ 51

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Concepções epistemológicas e
Psicopatologia geral
Autoria: Carla Priscila da Silva Pereira
Leitura crítica: Fernanda Pâmela Machado

Objetivos
• Conceituar concepção epistemológica e a
importância para a produção científica.

• Apresentar o conceito de psicopatologia geral.

• Entender a diferentes concepções de normalidade e


psicopatologia.

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1. Concepção epistemológica e Psicopatologia
geral

O estudo científico pressupõe a articulação de diferentes saberes de


forma crítica, a arte de perguntar, maiêutica, é um requisito necessário
para o desenvolvimento de produção científica. Em ciência, nada está
pronto, tudo pode ser construído a partir de um olhar sensível às
diferentes nuances que cada fenômeno apresenta. Ao longo deste
material, você poderá compreender a respeito da importância das
concepções epistemológicas para a produção do conhecimento na área
de Psicopatologia.

O material está organizado a partir dos principais pensamentos que


fundamentam a prática em Psicopatologia e as diferentes concepções
que nortearam os conceitos-chaves para a compreensão dos fenômenos
psíquicos. Além disso, este material subsidiará ainda a compreensão das
classificações diagnósticas de formulação de hipóteses e visão de sujeito
em saúde mental.

1.1 Introdução

O estudo de Psicopatologia pressupõe a compreensão de uma


diversidade de concepções que fundamentam o pensamento e a prática
em Psiquiatria e saúde mental. A tarefa inicial será de compreender
que se trata de uma concepção epistemológica. Segundo o dicionário
Houaiss (2009):

Epistemologia–1. A reflexão geral em torno da natureza, etapas e limites do


conhecimento humano, especialmente nas relações que se estabelecem
entre o sujeito indagativo e o objeto inerte, as duas polaridades do
processo cognitivo; teoria do conhecimento. 2. Estudo dos postulados,
conclusões e métodos dos diferentes ramos do saber científico ou das
teorias e das práticas em geral, avaliadas em sua validade cognitiva, ou

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descritas em sua trajetória evolutiva, seus paradigmas estruturais, ou suas
relações com a sociedade e a história, teoria da ciência. (HOUAISS, 2009,
[s.p.])

Nesse sentido, as concepções epistemológicas são processos de reflexão


sobre a constituição histórica dos conceitos fundamentais das teorias
científicas, que ajudam a produzir um conhecimento por meio da
reflexão contínua dos diversos pontos de observação de um fenômeno,
postulados pela ciência ao longo do tempo. É essa visão crítica sobre
as próprias teorias que faz com que a produção científica seja rica de
sentido, e que lhes atribui o caráter de contínua formação, aberto,
múltiplo, que permite sempre uma nova possibilidade de formulação e
produção de saber.

Popper (1984) reiterava que a ciência não era um objeto acabado, nem
uma probabilidade, mas, ao contrário disso, a busca constante por uma
verdade, guiada por crenças, metafisica, leis e regularidades, que nos
permite descobrir novos referenciais, por meio de técnicas e métodos de
contestação, dar uma nova resposta a cada momento, e isso é científico.
Não existe conhecimento absolutamente certo, o certo é relativo ao
contexto e para que seja científico precisa ser provisório eternamente.

Esse postulado de Popper (1984), traduz a volatilidade dos conceitos


científicos e nos provoca a compreensão de que precisam ser
compreendidos à luz de seu tempo, dos referenciais filosóficos, culturais,
sobre os quais foram criados e, a partir disso, analisar, discriminar
e identificar, os fenômenos tal qual foram pensados e perceber
as relações criadas para formular novas concepções. No caso da
Psicopatologia, a compreensão de fenômenos que fundamentam esta
ciência e os diferentes referenciais ao longo da história, bem como as
transformações a cada descoberta científica.

Desde os primórdios da Psiquiatria, a ideia de perturbações psíquicas


sempre existiu, e suas causas estavam relacionadas a diversos fatores

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como questões espirituais, ambientais, culturais, e, de acordo com essas
perspectivas, as diferentes sociedades buscavam o alívio do sofrimento.

A construção de conhecimento em saúde mental, pautado durante


muito tempo nos modelos biológicos, orgânicos, com a busca de
explicações de causa-efeito, localização de alterações sistêmicas, sofreu
alterações ao longo do tempo e ganhou outras perspectivas do ponto
de vista sócio-histórico e fenomenológico existencial. As diferentes
perspectivas longe de se contradizerem, se complementaram trazendo
novas percepções para os fenômenos psíquicos e reformulando os
conceitos existentes.

1.2 Psicopatologia geral

A Psicopatologia, enquanto ciência, fundamenta a prática da Psicologia e


Psiquiatria, com a função de analisar, classificar e distinguir fenômenos
psíquicos. Esta área do conhecimento nem sempre consegue reiterar
seu caráter científico, devido a ausência de constância em seus
fenômenos. Como a base da estruturação do modelo biomédico é a
evidência, a repetição do fenômeno, a Psicopatologia é um terreno árido,
pois os fenômenos são atravessados por uma série de contingências
que alteram em cada indivíduo suas características e intensidades.

O desafio da Psicopatologia é para além de perceber os fenômenos,


ainda traçar paralelos, hierarquizar, classificar. Dalgalarrondo (2008)
ressalta que a Psicopatologia é um campo complexo que exige
abertura, multidisciplinaridade e atitude desprovida de preconceitos,
a fim de discutir os achados a partir de olhares complementares e não
competitivos. Mais do que dividir em abordagens, a expertise está em
compreender o que os olhares da métrica médica, da fenomenologia
existencial e da psicanálise, podem somar para a compreensão do
fenômeno psíquico.

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Desse modo, a Psicopatologia, como concebeu Jaspers (2006), identifica,
reconhece, caracteriza e analisa os fenômenos psíquicos, tendo o
indivíduo como o centro do processo. A própria condição humana de
sujeito inacabado confere a problemática da Psicopatologia que, por
vezes, não alcança o nível científico por não conseguir a reprodução
dos fenômenos. Esse limite também é importante para que a prática
não se torne reducionista ao ponto de restringir o homem ao conceito
psicológico, mas, ao contrário, visualiza o indivíduo como alguém infinito
que não se esgota em suas possibilidades.

O objeto da Psicopatologia representa os fenômenos psíquicos


conscientes, ou seja, o que o sujeito vivencia e como se dão essas
vivências. Diferente da Psicologia, a Psicopatologia se ocupa apenas
dos fenômenos patológicos e tenta compreender a realidade psíquica,
estabelecer nexos entre as vivências e condições como ocorrem e o
modo como se exteriorizam, assim, o conceito de doença mental não
é uniforme, bem como sua manifestação. Pode-se dizer que enquanto
a Psicologia se ocupa da vida psíquica normal, a Psicopatologia atenta
para as correspondências anormais não encontradas, segundo Jaspers
(2006).

Nesse sentido, a Psicopatologia é o estudo dos sinais e sintomas


dos transtornos mentais. Dalgalarrondo (2008) destaca que esses se
traduzem em transtornos, patologias, sofrimento mental. Os sinais
seriam as manifestações comportamentais externalizadas pela
atitude de cada indivíduo, enquanto os sintomas se traduzem em
vivências subjetivas (queixas ou narrativas), carregada de significantes
(intensidade dada ao sintoma) e significados (conteúdo do sintoma). O
autor destaca ainda a dupla dimensão do sintoma psicopatológico que
atua como índice ou indicador, quando manifesta a presença de alguma
disfunção de ordem biológica ou psíquica, ou ainda de símbolo na
medida em que representa uma linguagem atribuída dentro do universo
particular e cultural, produzindo, portanto, um sentido único.

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A esses processos psicopatológicos, Jaspers (2006) chamou de
multicausalidade de fenômenos psíquicos, no qual fatores somáticos
interagem com processos psíquicos e fisiopatológicos do Sistema
Nervoso Central (SNC), e destacou que a atitude científica fundamental
para a compreensão desses processos é estar aberto para todas as
possibilidades empíricas.

Figura1 – Representação gráfica do fenômeno da multicausalidade


em psicopatologia

Fonte: elaborada pela autora.

Esse dinamismo, presente na concepção de Psicopatologia, é verificado


também na definição dada por Campbell (1986 apud DALGALARRONDO,

10
2008), a Psicopatologia trata da natureza essencial da doença mental,
causas, mudanças estruturais, funcionais e formas de manifestações; o
que retrata a complexidade dos fenômenos da psique humana.

Dessa maneira, um ponto de concordância, na área da Psicopatologia, é


de que todo olhar sobre os fenômenos psíquicos precisa se atentar para
a multicausalidade. Com raízes no modelo biomédico, as evidências e
classificações diagnósticas cumpriram o papel de identificar e descrever
os problemas mentais ao longo de vários séculos de história, mas não
foram suficientes para explicar muitas questões.

Dalgalarrondo (2008) destaca que o campo da Psicopatologia é um


campo complexo, pois inclui um grande número de fenômenos
humanos especiais associados ao que se convencionou historicamente
de se chamar doença mental.

O grande tratado na área de Psicopatologia foi escrito por Jaspers, em


1913. A obra tem como referência a fenomenologi,- que compreende os
fenômenos psíquicos, teve a pretensão de orientar o profissional para
os desafios dessa prática. O autor assume as limitações desse campo
em relação às demais teorias, porém, não as entende como excludentes,
mas discute o caráter somativo para a compreensão dos fenômenos.

Segundo Jaspers (2006), a doença mental, ou loucura, possui múltiplas


possibilidades que se determina, ganha forma no homem e, ao contrário
do que se pensa, não é um resultado, é formatada no individuo. O
homem é o único ser capaz de dar sentido ao sofrimento, diferente
dos animais. Para o autor, a vida psíquica é a somatória do conteúdo
consciente, em sobreposição ao conteúdo extraconsciente (aquilo que
não foi internalizado pelo sujeito).

Assim, uma Psicopatologia é a somatória de pré-disposições individuais,


fatores sociais e fatores culturais, sendo que este último seria

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responsável pelo enriquecimento dos sintomas. Jaspers (2006) refere
que a Psicopatologia tem cinco dimensões:

• A doença mental é própria do ser humano, associada aos seus


determinantes e condicionantes, e funcional, própria da psique.

• Só é possível constatar o que se mostra ao mundo, isto é,


fenômenos vivenciais, sejam conscientes ou inconscientes.

• Consciência representa vivências internalizadas, reconhecidas


e autorrefletidas. Inconsciente representa materiais não
diferenciados. Falta de consciência representa materiais vividos e
não internalizados.

• O mundo interno só pode ser interpretado em seu contexto, pois


interage com o meio ambiente.

• A vida psíquica se diferencia por caráter individual e nível cultural.

Ao longo da história foram observadas diferentes formas de diagnosticar


e classificar as doenças mentais. O conceito saúde/ doença mental
também se transformou em suas bases conceituais, Grinberg (2011)
destaca que as transformações não foram conceituais, mas variaram
em suas explicações: paradigmas mágico-religiosos, desequilíbrio do
fluído magnético, recalque e conflitos do inconsciente e complexo
autônomo dotado de um núcleo arquetípico, ou seja, a fenomenologia
dos transtornos mentais variava de acordo com o sistema de crenças
vigentes na época.

Já Whitbourne (2015) destaca que as explicações sempre variaram


em três temas: espirituais (possessões demoníacas), humanitárias
(condições de vida) e científicas (causas objetivas alterações biológicas,
falhas na aprendizagem ou estressores emocionais). Grinberg (2011)
ressalta, ainda, que essas variações impactaram na transição da
Psiquiatria a partir de três eixos do modelo mágico para o modelo

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biomédico, da Psiquiatria da mente para a Psiquiatria do cérebro, da
teoria dos quatro humores para a Psiquiatria clínica.

Numa perspectiva da ciência contemporânea, o conceito de doença foi


definido como fenômeno mórbido no qual se podem identificar fatores
causais (etiologia), um curso, estados típicos, mecanismos psicológicos
e psicopatológicos, antecedentes genéticos e familiares, especificidades
ou generalidades mais ou menos reversíveis, segundo Dalgalarrondo
(2008).

Ao mesmo passo, o autor apresenta uma dimensão de normalidade que


varia de acordo com as diferentes concepções científicas: normalidade
como ausência de doença; normalidade ideal (adaptação a normas);
normalidade estatística (que possui maior frequência); normalidade
como bem-estar (saudáveis); normalidade funcional (não provoca
sofrimento); como processo (dinamismo); subjetiva; normalidade como
liberdade; e normalidade operacional, o que exige dos profissionais uma
postura crítica e reflexiva para formatar uma concepção do normal e
patológico, de acordo com Dalgalarrondo (2008).

A discussão sobre normal e patológico varia de acordo com as diferentes


correntes científicas. A Psiquiatria, como ciência médica, traz uma visão
sistematizada sobre a questão, que é um tanto quanto eficiente para o
diagnóstico, assim como para a compreensão didática dos fenômenos
psíquicos.

Whitbourne (2015) destaca que os profissionais de saúde mental se


utilizam de cinco critérios para identificar se o individuo se encaixa na
anormalidade: significância clínica (prejuízo mensurável); disfunção
nos processos biológicos, psicológicos ou de desenvolvimento;
comportamento associado ao sofrimento e não correspondente a
comportamento desviante; se os conflitos entre indivíduo e sociedade
não são considerados problemas psicológicos.

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Essa visão traz a objetividade para o cenário da Psicopatologia e
pressupõe testar ideias sobre os fenômenos psíquicos antes de aceitá-
las como verdades, por meio de questionamentos, e vai ao encontro dos
critérios propostos no Diagnostic Statistic Manual – DSM V (AMERICAN
PSIQUIATRICH ASSOCIATION, 2015) para a definição do transtorno
mental.

Assim como a definição de normal e patológico varia de acordo com


a concepção, a Psicopatologia também tem diferentes vertentes:
Psicopatologia descritiva (foco na forma das alterações psíquicas)
versus Psicopatologia dinâmica (interesse pelo conteúdo da vivência);
Psicopatologia médica naturalista (centrada no aspecto biológico)
versus Psicopatologia existencial (patologia como modo de ser no
mundo); Psicopatologia comportamental –cognitivista (comportamentos
resultam de representações cognitivas disfuncionais) se contrapõem
a Psicopatologia psicanalítica (conflitos advindos do inconsciente);
Psicopatologia categorial (transtornos bem definidos), Psicopatologia
dimensional (dimensões complexas de transtornos, a partir de uma
sintomatologia); Psicopatologia biológica (foco nas atividades neurais),
Psicopatologia sociocultural (centrada em fatores socioculturais,
históricos), Psicopatologia operacional – pragmática (a clínica como
referência), Psicopatologia fundamental (busca compreensão de cada
transtorno); isso segundo Dalgalarrondo (2008).

A Psicopatologia possui diferentes abordagens e referenciais teóricos.


Contudo, para fins didáticos, há uma divisão que possibilita a
compreensão das múltiplas vertentes em Psicopatologia. O esquema
abaixo representa esta divisão:

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Figura 2 – Esquema representativo das múltiplas divisões de
correntes da Psicopatologia

Fonte: adaptado de Cheniaux (2015).

Uma grande contribuição da Psicopatologia fenomenológica foi a


descrição dos fenômenos psíquicos, a organização destes em classes e a
caracterização dos sinais e sintomas, que auxiliaram na identificação dos

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transtornos mentais. Tais trabalhos romperam com o modelo biológico,
vigente até 1913, e abriram a discussão sobre multicausalidade dos
fenômenos psíquicos. Nesse mesmo período, outros modelos de grande
impacto nos estudos de Psicopatologia surgiram, como a Psicanálise
Freudiana, que trouxe uma descrição mais dinâmica da vida psíquica, e
não se mostram completamente divergentes, mas, ao contrário, podem
se complementar na medida em que o foco se torna mais amplo.

As diferentes correntes em Psicopatologia refletem a complexidade


da prática em saúde mental, visto que numa equipe multiprofissional
haverá diferentes concepções e formações que devem somar para
o diagnóstico clínico, embora os manuais auxiliem na composição
do diagnóstico, não são suficientes para a complexidade do
fenômeno psíquico. A discussão de casos na equipe multidisciplinar
é uma ferramenta importante assegurada pela Política Nacional de
Humanização, por meio da estratégia conhecida como clínica ampliada,
que possibilita a discussão entre diversos saberes, a fim de promover
a reinserção psicossocial por meio de um atendimento personalizado
(BRASIL, 2007).

Queiroz Pinheiro e Albuquerque (2014) propõem que a articulação


em saúde mental e Psicopatologia supõe uma discussão mais ampla,
assim como já pontuado por Jaspers (2006), que tenha uma crítica
presente e que atualize as formulações em Psicopatologia de acordo
com as vivências da prática em Psiquiatria contemporânea. Nas
palavras de Queiroz Pinheiro e Albuquerque (2014), a clínica vem
antes da classificação normal/ patológico e com olhar voltado para a
funcionalidade do indivíduo, do bem-estar social e da qualidade de vida,
como indicadores de saúde mental.

Desse modo, a avaliação de uma Psicopatologia não é tarefa simples


e não pode ser vista por mieo de uma única lente do conhecimento.
A saúde mental é multidisciplinar, pressupõe um bom conhecimento
sobre as várias questões essenciais do ser humano, corpo biológico,

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representação psíquica, fenômenos sociais que amplificam os sintomas
e contexto em que ocorrem. Muito do que se sabe em saúde mental foi
construído sobre as bases médicas, porém, a prática em saúde mental
vai muito além do que está descrito nos manuais de diagnóstico, é
um saber empírico. Dessa forma, o conhecimento de Psicopatologia
é fundamental para identificar os fenômenos psíquicos, enquanto a
formação profissional é a chave para o manejo em saúde mental.

Referências Bibliográficas
AMERICAN Psichiatric Association. Manual diagnóstico e estatístico de
transtornos mentais DSM V. 5. Ed. Porto Alegre: Artmed, 2014.
BRASIL. Ministério da Saúde. Cartilha da PNH. Clínica Ampliada, Equipe de
Referência e Projeto Terapêutico Singular. 2. ed. Brasília, 2007. Disponível em:
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/clinica_ampliada_2ed.pdf. Acessado em
23/01/2020. Acesso em: 25 abr. 2020.
CHENIAUX, Elie. Psicopatologia Questões Gerais. In: Manual de Psicopatologia. 5.
ed., cap. 1, p. 18-21. Rio de Janeiro, RJ: Guanabara Koogan, 2015.
DALGALARRONDO, Paulo. Psicopatologia e Semiologia dos transtornos Mentais.
2. ed., v. 1, p. 23-45. Porto Alegre, RS: Artmed Editora, 2008.
DICIONÁRIO Houaiss de Língua Portuguesa. Instituto Antônio Houaiss de
Lexicografia e Banco de Dados da Língua Portuguesa S/C Ltda. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2009.
GRINBERG, Luiz Paulo. Os transtornos mentais através dos tempos. In: BLOISE,
Paulo. (Org.). Saúde Integral: a medicina do corpo, da mente e o papel da
espiritualidade. p. 167-187. São Paulo, SP: Editora Senac, 2011.
JASPERS, Karl. Psicopatologia Geral. São Paulo, SP: Editora Atheneu, v.1, 8. ed.,
2006.
POPPER, Karl. A lógica da pesquisa científica. In: CHAUI, Marilena (org.). Primeira
filosofia. p. 213-215. São Paulo, SP: Brasiliense, 1984.
QUEIROZ PINHEIRO, Clara Virginia; ALBUQUERQUE, Kelly Moreira. Psicopatologia
e saúde mental: questões sobre os critérios que orientam a percepção clínica.
Revista Subjetividades, v.14, n.1, 2014. Disponível em: https://periodicos.unifor.br/
rmes/article/view/3269. Acesso em:
WHITBOURNE, Susan et al. Krauss. Psicopatologia: perspectivas clínicas dos
transtornos psicológicos. 7. ed. Porto Alegre, RS: AMGH, 2015.

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Terminologia em Psicopatologia
Autoria: Carla Priscila da Silva Pereira
Leitura crítica: Fernanda Pâmela Machado

Objetivos
• Conhecer as diferentes terminologias em
Psicopatologia.

• Correlacionar as sintomatologias às alterações da


vida psíquica ou em seu rendimento.

• Associar terminologias aos sintomas de patologias


mentais.

• Reconhecer a aplicabilidade e as dificuldades no uso


das terminologias.

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1. Terminologia em Psicopatologia geral

A descrição dos fenômenos psíquicos foi amplamente discutida pela


fenomenologia, mais especificamente no tratado escrito por Jaspers
(2006). Há, na literatura, uma vasta lista de terminologias importantes
para a atuação em saúde mental. Embora exista um grande consenso na
área, algumas terminologias possuem mais que uma definição.

Os manuais, como Código Internacional de Doenças (CID 10), Manual


Diagnóstico e Estatístico e de Transtornos Mentais (DSM), apresentam
a proposta de uniformização de caracterização dos transtornos, porém,
quanto aos sinais e sintomas, ainda existem muitas definições, que
variam de acordo com o autor de referência. O presente material
traz a definição apresentada nos grandes tratados de Psicopatologia,
que vigoram como referência para a área (CHENIAUX, 2015;
DALGALARRONDO, 2008; HALGIN, 2015; JASPER, 2006).

Ao longo deste material, você estudará sobre as terminologias em


Psicopatologia, com base na fenomenologia. Ao final, encontrará uma
discussão sobre as diferenças no uso das terminologias e os problemas
associados a elas.

1. Introdução

A obra Psicopatologia Geral, de Jaspers (2006), foi escrita em 1913, e


é considerada um manuscrito obrigatório para a aprendizagem da
Psicopatologia na perspectiva fenomenológica. A própria organização
do livro contempla uma sistematização que auxilia na compreensão
dos fenômenos psíquicos. Inicialmente, aborda os fatos empíricos da
vida psíquica, destacando questões somáticas e subjetivas e relaciona
a intensidade dos sinais e sintomas. A seguir, destaca as conexões
compreensíveis e causais, e auxilia no exercício da formulação de

19
hipóteses diagnóstica. Posteriormente, integra os conteúdos para a
apreensão da vida psíquica como uma totalidade, a unidade da patologia
a partir do seu diagnóstico, sua formulação geral e sua manifestação
no contexto particular e também sócio-histórico, de acordo com Jaspers
(2006).

No que se trata de fatos particulares da vida psíquica, Jaspers (2006)


distingue quatro grupos básicos: fenômenos vividos (vivências);
rendimentos objetivos (o quanto o sujeito funciona em suas
medidas de inteligência, memória, que pode ser mensurado quanti e
qualitativamente); fenômenos somáticos concomitantes; e objetividades
de sentido (expressão, ação e modo de ser no mundo). Por meio da
observação destes, é possível identificar a diversidade do fenômeno e
sua manifestação em cada indivíduo, caráter típico num todo próprio.
Por exemplo, embora muitas pessoas possam passar por um transtorno
depressivo, a forma com que os sintomas se manifestam em cada
pessoa, a intensidade e a qualidade das produções de sentido em cada
um são diferentes. Por isso, o desafio proposto por Jaspers (2006) é
o de distinguir da forma mais precisa possível e designar com termos
fixos o estado que os pacientes vivenciam, por meio da observação e
comparação do fenômeno psíquico.

O autor ainda destaca que a avaliação fenomenológica é um


procedimento empírico que se dá por meio da comunicação com o
paciente. Contudo, para eficácia deste processo é necessário que
o encontro entre avaliador e paciente seja produtivo. Além das
sistematizações classificatórias, o profissional precisa formular as falas
e vivências do paciente no material de análise. Cheniuax (2015) lembra
que, para a fenomenologia, a observação do fenômeno não pode ser
meramente empírica, mas, após a coleta dos dados, o profissional deve
utilizar dos conhecimentos científicos, somado a empatia para realizar a
comparação do fenômeno e realizar a classificação deste.

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Esse é um ponto de reflexão importante, visto que a fala do indivíduo,
embora venha carregada de sentido, tem o olhar do bom avaliador
como importante para identificação de caracteres de linguagem,
próprios de uma patologia, por exemplo, nos casos de hipocondria ou
psicopatia.

1.1 Fenômenos particulares da vida psíquica anormal

A partir de agora, serão apresentados elementos da vida psíquica


anormal e, para tanto, algumas concepções são importantes. Na vida
psíquica, um sujeito se contrapõe a um objeto e se dirige aos conteúdos
específicos. Assim, na contraposição da consciência do objeto e do eu, se
instalam, por exemplo, algumas estruturas de anormalidade (distorções
de percepção, delírios etc.), presentes em modos de alteração de
consciência do eu, de acordo com Jaspers (2006).

Na visão fenomenológica, tudo que vivemos são referências que


nos ajudam a interpretar os fenômenos, que se chama totalidade
de referências e se fundamenta em vivências de tempo e espaço,
consciência corporal e da realidade, estado emocional e de impulso. Os
fenômenos, por sua vez, podem ser distintos em mediatos e imediatos.
Os mediatos são aqueles em que há possibilidade de reflexão e vontade.
A este processo chamamos de reflexibilidade, dessa maneira, todas as
referências podem ser afetadas pelo estado de consciência da psique.

É importante destacar que, para a fenomenologia, as vivências


do paciente não são consideradas fenômenos físicos, ou seja, o
comportamento não é a única evidência da vida psíquica, mas a
atribuição de sentido é o que caracteriza esta última. Entretanto, a
fenomenologia não se atém às origens desses fenômenos, mas apenas
à manifestação deles. Isso significa que o foco está em episódios
conscientes, obtidos por meio de relatos do paciente, e não de

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fenômenos inconscientes como em outras correntes como a psicanálise,
segundo Cheniaux (2015).

Portanto, na descrição do fenômeno, é preciso levar em consideração


a forma e o conteúdo. Por exemplo, delírios, alterações de percepção,
ideias delirantes, são formas, o conteúdo se refere ao contexto da ideia
delirante, segundo Jaspers (2006). Cheniaux (2015) lembra que a forma
seria a estrutura do fenômeno (delírio), e o conteúdo seria a história
(exemplo: ser um guerrilheiro perseguido por forças nacionais). Para
a composição diagnóstica, a forma é mais importante que o conteúdo,
porém, o conteúdo fala muito sobre a vida psíquica do paciente, que,
muitas vezes, é o fator que está mobilizando o indivíduo e pode ainda
modificar o modo como vivencia o fenômeno.

Jaspers (2006) destaca que os fenômenos não acontecem de maneira


estanque, eles transitam entre si, uma vivência alucinatória pode conter
uma vivência delirante, por isso, apreender distinguir e analisar os
fenômenos é uma tarefa científica que exige formação e conhecimento
sobre a Psicopatologia, os diferentes grupos de fenômenos psíquicos
anormais.

Ainda nesse sentido, Dalgarrondo (2008) faz um alerta importante


sobre as funções psíquicas não acontecerem de forma isolada, nem a
Psicopatologia ocorre em uma função específica. O sujeito adoece como
um todo, pois as funções alteradas, consequentemente, modificam o
funcionamento de uma personalidade e de sua estrutura, e impactam
no modo do sujeito existir. A seguir serão descritos os grupos de
fenômenos e suas sintomatologias com as diferentes concepções
associadas:

Anomalias na percepção

As alterações de percepção podem ser de alteração na intensidade


de sensações, aumento (hiper) ou diminuição (hipo) da intensidade

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da percepção, ou ainda a ausência da percepção (agnosia), anestesia
(perda da sensibilidade), alucinação negativa (ausência de registro
sensorial), macropsia (aumento do objeto), micropsia (diminuição do
objeto), dismegalopsia (distorção de objeto). Podem ocorrer nos delírios,
intoxicações, psicoses agudas ou crises epiléticas; troca da qualidade nas
sensações, por exemplo, as alterações de cores ou feições de pessoas;
produção de sensações anormais concomitantes, associa uma sensação
a um fato real (JASPERS, 2006, CHENIAUX, 2015).

Alguns autores associam as alterações da percepção a outras


alterações de sensações, denominadas senso percepção. As qualidades
sensoriais podem ser classificadas em exteroceptivas (visuais, auditivas,
gustativas, olfativas, táteis); interoceptivas ou cenestésicas (fome, sede,
sensibilidade visceral); e proprioceptivas ou cinestésicas, sensações
corporais, equilíbrio, sensibilidade a pressão (CHENIAUX, 2015; SADOCK;
SADOCK; RUIZ, 2017).

Jaspers (2006) destaca que podem ainda se manifestar por meio da


estranheza (distorção do que se vê), divisão da percepção (dissociação
do conteúdo) e produção de falsas percepções. Essas podem ser
classificadas em ilusões (transformação da realidade), pareidolia
(imagem criadas a partir de realidades externas e elementos de
percepções sensoriais imprecisos, pode ocorrer de forma consciente ou
inconsciente), alucinação (de forma clássica definida como percepção
sem objeto, ou percepções corpóreas que se originam a partir de
transformações internas, e ocorrem concomitantemente às percepções
reais), segundo Cheniaux (2015).

As alucinações se dividem em:

• Alucinações verdadeiras: que possuem uma imagem perceptiva


real localizada no corpo e no espaço objetivo externo. Podem ser
classificadas como visuais, auditivas, gustativas, olfativas, táteis

23
ou cutâneas, sinestésicas (sensações viscerais) ou sinestésicas
(movimento).

• Pseudoalucinações: são falsas alucinações, pois não têm uma


correspondência ao corpo e espaço, o indivíduo tem a sensação de
ouvir ou ver imagens internamente. Esse é um conceito um tanto
quanto controverso, é descrito mais comumente relacionado à
esquizofrenia.

Alucinoses: são alucinações que ocorrem em estados de consciência


e lucidez preservadas, geralmente, aparecem associadas a quadros
orgânicos, ou neurológicos, como a síndrome de Wernick.

Sinestesia: nesse caso, há uma troca da percepção sobre o receptor do


estímulo e é possível, por exemplo, que o individuo relate ver a música,
segundo Cheniaux (2015).

Alterações no nível de consciência

A consciência é relacionada ao nível de vigilância presente no indivíduo.


Por sua etimologia, a palavra consciência, de origem grega syneidesis,
significa uma ciência acompanhada de outra ciência, de acordo com
Cheniaux (2015). Nas palavras de Jaspers (2006), é o conhecimento que o
indivíduo tem sobre suas vivências, sejam do mundo externo ou do eu.

As alterações podem ocorrer na quantidade do nível de consciência,


aumento (hipervigilância) ou por rebaixamento do nível de consciência
(perda da clareza da consciência no qual a percepção do mundo se torna
distorcida). O rebaixamento da consciência é constituído por uma perda
da lucidez, que varia entre a lucidez e o coma, e está relacionado a um
comprometimento do funcionamento cerebral, associado a quadros
orgânicos, que afeta, principalmente, atenção, orientação, pensamento,
inteligência, senso-percepção, memória, afeto e psicomotricidade, de
acordo com Cheniaux (2015).

24
Podem ser considerados quadros de rebaixamento da consciência:

• Obnubilação simples: intensa sonolência, redução da atenção,


desorientação no tempo e espaço, pensamento empobrecido, com
o comprometimento de outras funções cognitivas.

• Obnubilação oniróide: se caracteriza pela presença de sintomas


psicóticos, presença de ilusões e senso-pecepções.

• Coma: relativo à perda da consciência, sem sinal da visa psíquica.

• Estado onírico: estado de alteração de consciência muito próximo


ao sonho, porém, com a consciência vigil. É um quadro relativo ao
uso de substâncias psicoativas (JASPERS, 2006; SADOCK; SADOCK;
RUIZ, 2017).

Do ponto de vista quantitativo, encontramos apenas a denominação


do estreitamento da consciência, que é relativa a uma restrição da
vida psíquica que ocorre por um bloqueio dos conteúdos, afetando
a capacidade reflexiva do indivíduo. Pode ocorrer em quadros
dissociativos, estados crepusculares, quadros de estresses agudos, entre
outros, segundo Cheniaux (2015).

Atenção

A atenção foi classificada, por Jaspers (2006), como um estado de


consciência. Já Cheniaux (2015), a define como a capacidade de dirigir
o pensamento para um foco, que pode ser espontâneo (tenacidade) ou
ativo (mobilidade). É possível dividir ainda em cinco tipos: seletiva (foco),
vigilante e detecção de sinal (que correspondem a uma espera passiva),
dividida (distribuída para vários estímulos), sondagem (busca por um
estímulo).

Do ponto de vista quantitativo, são encontradas alterações relacionadas


à redução da atenção (hipoprosexia ), ausência da atenção (aprosexia).

25
Já qualitativamente, destaca-se a rigidez da atenção, que seria a
dificuldade de modificar o foco da atenção (paraprosexia), comum em
transtornos como o Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC), depressão,
hipocondria; e inversamente a labilidade considerada a dificuldade de
focar, também chamada distraibilidade, presente nos quadros de mania,
intoxicação e TDAH, segundo Cheniaux (2015).

Memória

A memória se refere ao processo de conhecimento sobre o mundo,


que se dá por meio de experiências (motoras e perceptivas) e vivências
internas (pensamentos e emoções). A memória tem três processos
fundamentais: fixação, evocação e conservação (CHENIAUX, 2015;
JASPERS, 2006; SADOCK; SADOCK; RUIZ, 2017).

As alterações quantitativas podem ser amnésia, hipominésia e


hiperminésia. Também são encontradas divisões de acordo com
o tempo de permanência da lembrança: anterógrada (fixação) e
retrograda (evocação) e por extensão do conteúdo generalizado
(comprometimento de grande parte da memória), lacunares (localizada
no tempo e espaço), seletiva (sistematizada) com conteúdo amplamente
afetivo, de acordo com Cheniaux (2015).

No caso da hiperminésia anterógrada, há o acúmulo de informações


na memória comum em casos de autismo. Na retrógrada, há um
excesso de recordação do conteúdo já armazenado que se manifesta
em uma velocidade acima do normal, quadro comum em estados
de terminalidade, conhecido como ecminésia. Já as lacunares, dizem
respeito à memória de situações específicas, como nos quadros de
pânico. A seletiva trata de foco num fato específico, segundo Cheniaux
(2015).

Qualitativamente, as alterações são as alomnésias ou ilusão de memória,


na qual ocorre a distorção das memórias bases. As paramnésias

26
são consideradas como alucinação de memória (falsa lembrança),
comum em quadros de esquizofrenia, delirium. Há ainda o Dé já vu (já
visto) e o jamais vu (nunca visto), que ocorre mesmo na presença do
objeto, quadros comuns em esquizofrenia e epilepsia. Pode ocorrer
ainda a criptomnésia (falha ao recordar um fato passado) e ecmnésia
(presentificação do passado), de acordo com Cheniaux (2015).

As alterações patológicas de memória possuem diferentes formas de


classificação. Para Jaspers (2006), as alterações se dividem em amnésias
(ausência de memória), distúrbios de capacidade de reprodução do
cabedal mnêmico e da capacidade de fixação (distúrbios da capacidade
de reprodução, ou fixação das memórias, ou simples desintegração
de memórias, como no caso de alzheimer) e falsificação de memórias
(confabulações).

Linguagem

A linguagem é o processo de intermediação entre o pensamento


e o mundo externo, que se estabelece por meio da comunicação.
Podem ocorrer alterações na fluência no ritmo, volume que podem
se apresentar aumentado ou diminuído (CHENIAUX, 2015; SADOCK;
SADOCK; RUIZ, 2017).

As alterações quantitativas psicopatológicas são as afasias


caracterizadas pela ausência da capacidade de falar ou compreender
a fala. Isso pode ocorrer por situações motoras (lesões orgânicas) ou
sensoriais (condução do estímulo). Seguem se alterações relacionadas
à escrita (agrafia) a leitura (alexia), compreensão da fala (aprosodia),
inflexão verbal (hiperprosodia), o mutismo (ausência da fala), logorréia
(aumento da fala), oligolalia (diminuição da expressão verbal), hiper ou
hipofonia (aumento ou diminuição da voz), taqui e bradilalia (aumento
ou diminuição da velocidade da fala) e latência aumento do tempo de
resposta, segundo Cheniaux (2015).

27
A autora destaca ainda que, quantitativamente, as formas de repetição
de palavras: ecolalia, palidalia, logoclonia, estenotipia verbal. Alterações
na forma da voz, mumitação (voz sussurrada), neologismo (novos
significados), jargonofasia (desorganização da linguagem), parafasia
(troca um sentido por outro semelhante), solilóquio (falar sozinho),
coprolalia (uso de palavras de baixo calão), grossolalia (língua
ininteligível), maneirismo (fala rebuscada ou em terceira pessoa),
pedolalia (voz infantilizada), pararesposta (fala sem nexo com o
conteúdo em questão), e resposta aproximada (resposta errônea com
nexo à conversa), de acordo com Cheniaux (2015).

Motricidade

A motricidade diz respeito aos movimentos realizados sob o impacto


da subjetividade. Dessa forma, as atividades motoras decorrentes
do aparelho motor são objeto de estudo da Neurologia, chamadas
de motilidade, enquanto os decorrentes de alterações psíquicas,
que alteram a funcionalidade do aparelho motor, são objetos da
Psicopatologia, segundo Jaspers (2006).

A atividade motora pode aparecer lentificada ou agitada. Cheniuax


(2015) destaca alterações quantitativas: as apraxias (incapacidade de
realizar um movimento), hipocinesia e acinesia, hipercinesia. Outra
divisão possível é a apresentada por Dalgalarrondo (2008), que associa
as alterações de motricidade e as alterações de vontade, por entender
que é um ato que passa pelo comando subjetivo. O autor divide as
alterações em agitações psicomotoras e lentificação psicomotora.

A agitação psicomotora é uma das alterações mais comuns da


psicomotricidade e pode ocorrer associada à hostilidade e agressividade.
Por4 isso, muitas vezes, é encontrada nos serviços de urgência e
emergência, nos quadros de psicose.

28
Pensamento

O pensamento é a relação subjetiva do sujeito com o meio. Pode


ocorrer de diferentes maneiras: espontâneo, perseverativo (repetitivo),
ruminativo (retorna num ponto fixo), evocado (quando estimulado),
focado, difuso (atento a diversos estímulos). O processo de pensamento
possui três fases: formulação do pensamento, organização e expressão.
O pensamento normal segue uma linearidade, já nos processos
anormais ocorrem alterações em diferentes etapas do pensamento.
A seguir, serão listadas as alterações de pensamento e os processos
decorrentes:

Figura1 – Representação gráfica das principais alterações do


processo de pensamento e suas características

Fuga de ideias Variação rápida de tema,


porém, com pensamento
linear.

Circunstancial Prolixo, com detalhes


irrelevantes.

Tangencial Distante do foco.

Frouxos Sem conexões.

29
Foco específico, com
Perseveração dificuldade de mudar o
assunto.

Bloqueio do Pensamento Pensamento perturbado, vago,


incompleto.

Neologismo Conexões novas, inexistentes.

Fonte: adaptado de Cheniuax (2015); Sadock ,Sadock e Ruiz (2017).

O delírio, ora é apresentado na literatura como parte do pensamento,


ora como parte do juízo de realidade. Contudo, por se tratar de um
fenômeno complexo presente em quadros graves em Psicopatologia,
ganha um caráter primário sendo observado mais atentamente.

Os delírios podem se tornar uma ideia fixa ou falsa sobre o objeto, isso
porque se relaciona intimamente com valores e crenças do indivíduo,
embora se traduzam em concepções irrealistas, sempre aparecem
conectados a realidade, segundo Cheniuax (2015).

Os delírios se dividem em: delírios bizarros, que possuem conteúdos


desorganizados; não bizarros, que podem ser de grandiosidade;
somático (relativo ao corpo); e persecutório (mania de perseguição)
(SADOCK; SADOCK; RUIZ, 2017). Também podem ser divididos em:
primário (delírio típico, que ocorre na esquizofrenia); secundário (ideias
delirantes que se originam de processos psíquicos comuns e que se
distorcem ao longo da vivência, mais comuns em quadros depressivos);
e ideia sobrevalorada (ideia errônea por superestimação afetiva).
De acordo com a estrutura, podem ter a classificação de simples
(monotemático) e complexos (pluritematizados); ou, ainda, sistematizado
(com maior coerência entre as ideias, comum em transtorno paranoide)

30
e não sistematizado (são fragmentados ou caóticos, não estabelece
um raciocínio sobre o assunto). Quanto ao conteúdo, o delírio pode se
dividir ainda em delírio paranoide (perseguição, referência, projeção
e influência), de grandeza, místico e religioso, delírios de conteúdos
depressivos, dentre outros menos comuns (DALGALARRONDO, 2008;
JASPER, 2006).

Afeto

A afetividade é um termo amplo que compreende, segundo


Dalgalarrondo (2008): humor (disposição afetiva de base do indivíduo);
sentimentos (representações de conteúdos intelectuais e valores que
geram estados afetivos mais estáveis); emoções (estado afetivo intenso
de curta duração que atua como resposta a estímulos externos); afetos
(qualidade de tônus afetivo que acompanha uma ideia ou representação
mental); e paixões (estado emocional intenso que domina a vida
psíquica, dirigindo a atenção para um foco específico).

Quanto à afetividade, podem ocorrer alterações de diferentes maneiras:


do ponto de vista da qualidade das relações, ocorrem a disforia
(sentimento de desagrado ou desconforto, insatisfação), eutimia
(variação normal de humor, irritado). Dalgalrrondo (2008) acrescenta
a distimia como alteração básica no estado de humor, tanto para
a inibição quanto para a exaltação (não confundir com a distimia,
transtorno depressivo), e acrescenta a euforia e a puerilidade (humor
infantilizado) como alterações do humor.

Em relação à quantidade, pode apresentar alterações de diferentes


intensidades: leve, moderado e grave. Também ocorrem alterações
quanto a variação do afeto: plano (sem correspondência), normal e lábil
(emoções instáveis de rápida mudança). Pode ainda ser classificado
em adequado e inadequado, em relação ao meio; ou congruente e
incongruente, em relação ao estado de humor. Os afetos também

31
se relacionam com as alterações de linguagem e podem modular a
apresentação destas, segundo Cheniuax (2015).

São alterações da modulação do afeto: a apatia (hiporreativo a


estímulos); hipomodulação de afetos (baixa capacidade de adequar
suas respostas ao mundo); inadequação de afetos (reação incongruente
às situações de vida); pobreza de sentimento; embotamento afetivo
(impossibilidade de expressar os sentimentos); anedonia (perda da
capacidade de experimentar prazer); labilidade afetiva (mudanças
súbitas de humor); ambivalência afetiva (divergência de sentimentos em
relação a um objeto); e o medo. Este último pode se manifestar ainda
na forma de fobia (medo de algo específico) ou de pânico (medo de algo
subjetivo que dispara uma reação de alarme mesmo na ausência do
objeto), segundo Dalgalarrondo (2008).

Orientação

A orientação é a relação do indivíduo com o meio, ou sua localização


em relação a si mesmo e o ambiente. As atividades de orientação se
relacionam com outras funções como atenção, percepção, memória,
segundo Dalgalarrondo (2008). Pode ser observada enquanto orientação
tempo e espaço, que auxiliam o paciente a se localizar na relação com
os objetos do mundo externo. Distorções, nessa orientação, tornam
a percepção dos objetos aumentada ou diminuída, que podem ser
componentes de delírios. Da mesma maneira, na relação com o tempo,
o estado psíquico pode produzir vivências anormais de tempo, como a
precipitação ou lentidão do tempo, ou mesmo a perda da consciência de
tempo, paralisação do tempo, e o extermínio do futuro, segundo Jaspers
(2006).

Segundo Dalgalarrondo (2008), a desorientação ocorre primeiro em


relação ao tempo, após o agravamento do caso, em relação ao espaço
e, por fim, a desorientação em relação a si mesmo. Esta pode ocorrer
por rebaixamento do nível de consciência, por déficit de memória, por

32
demência, por déficit intelectual, por apatia extrema, por dissociação
ou desorientação histérica, desorientação, por desagregação (casos de
psicose crônica), e em relação a própria idade (divergência entre a idade
atual e sua correspondência).

Vontade

São representações conscientes chamadas de atos volitivos. Possui


quatro etapas: intenção, deliberação, decisão e execução. As alterações
da vontade podem ser da ordem da inibição: hipobulia (diminuição
da atividade volitiva), atos impulsivos (abole as fases de planejamento
e executa a ação) e dos atos compulsivos, que, embora semelhante,
o indivíduo está consciente de sua indesejabilidade. São exemplos: a
automutilação, tricotilomania, piromania, impulso ou ato suicida entre
outros. (DALGALARRONDO, 2008; SADOCK; SADOCK; RUIZ, 2017).

Inteligência

A inteligência está relacionada à capacidade de resolução de problemas,


de adaptação, análise ou síntese, de abstração e generalização, de
julgamento e raciocínio e de utilizar o pensamento de forma produtiva.
As alterações de inteligência têm uma relação direta com o rendimento.
Quando ocorre abaixo do normal, é considerado um déficit intelectivo
(retardo mental), no alto rendimento estão as altas habilidades ou
superdotação. A deterioração da inteligência ocorre em quadros
de demência, delirium, e síndromes graves como a esquizofrenia e
depressão maior, segundo Cheniuax (2015).

Consciência do Eu

A consciência do Eu também é conhecida como personalização, é o


reconhecimento de si e da unidade de suas vivências pessoais, psíquicas,
corpóreas, como algo integrado, e desejado pelo eu. Alterações na
consciência do eu são apontadas por uma cisão na autopercepção,

33
que causa uma estranheza sobre a origem dos sentimentos desejos,
ações. Essas alterações podem ser da ordem do tempo, espaço ou da
própria despersonalização (sentimento de perda do eu). Podem ocorrer
alterações da imagem e do esquema corporal. Segundo Dalgalarrondo
(2008), são exemplos dessas alterações: a astenia, cenestesia.

1.2 Implicações atuais

O estudo de terminologias é um campo vasto e complexo, que exige


uma ampla pesquisa na bibliografia em saúde mental. Vários termos
são utilizados com significados diferentes e classificados de formas
diferentes, no contexto da Psicopatologia. É o caso dos delírios, por
exemplo, que aparecem ora dentro das funções de pensamento, ora
dentro de uma nova classe chamada juízo de realidade.

Como já destacado anteriormente, os fenômenos psíquicos se


sobrepõem e também retroagem na qualidade das vivências psíquicas.
Embora os manuais de psiquiatria, como CID 10 e DSM, tenham surgido
para uniformizar a descrição de sintomas, as diferentes concepções em
Psicopatologia destacam a importância de um conhecimento profundo
para a elaboração de diagnóstico em saúde mental, o raciocínio clínico
é ferramenta fundamental para conectar os diferentes sintomas à
manifestação subjetiva dos indivíduos.

O DSM V, versão que foi amplamente criticada, traz uma série de


mudanças em relação aos transtornos mentais, contudo, o bom
conhecimento de Psicopatologia continua sendo referência para
reconhecer o sofrimento mental, que existe por trás de cada quadro
descrito, e o significado da sintomatologia apresentada (AMERICAN
PSICHIATRIC ASSOCIATION–APA, 2015).

34
Assim, o estudo de terminologia permite não apenas reconhecer sinais
e sintomas, mas compreender o impacto dessas na subjetividade de
cada individuo. Aqui, estão listadas as principais terminologias, contudo,
é necessário ampliar os estudos a respeito dos principais transtornos
mentais, a fim de entender a complexidade desses fenômenos na
prática clínica.

Referências Bibliográficas
AMERICAN PSICHIATRIC ASSOCIATION (APA). Manual diagnóstico e estatístico de
transtornos mentais DSM V. Porto Alegre, RS: Artmed, 5. ed., 2014.
CHENIAUX, Elie. Psicopatologia questões gerais. In: Manual de Psicopatologia. Rio
de Janeiro: Guanabara Koogan, 5. ed., cap. 1, p. 18- 21, 2015.
DALGALARRONDO, Paulo. Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais.
Porto Alegre, RS: Artmed Editora, 2. ed., v. 1, p. 23-45, 2008.
JASPERS, Karl. Psicopatologia Geral. São Paulo, SP: Editora Atheneu, v.1, 8. ed.,
2006.
SADOCK, Benjamin; SADOCK, Virgínia A.; RUIZ, Pedro. Compêndio de Psiquiatria:
ciência do comportamento e Psiquiatria clínica. Trad. Marcelo de Abreu Almeida. 11.
ed. Porto Alegre, RS: Artmed, 2017.

35
Contribuições da Psicanálise a
Psicopatologia
Autoria: Carla Priscila da Silva Pereira
Leitura crítica: Fernanda Pâmela Machado

Objetivos
• Associar os conceitos fundamentais da teoria
psicanalítica.

• Correlacionar a psicanálise como teoria


psicopatológica.

• Reconhecer a aplicabilidade das terminologias em


Psicopatologia.

36
1. Introdução

A Psicanálise e a Psicopatologia descritiva

Para compreender as contribuições da Psicanálise e da Psiquiatria,


é necessário localizar em que contexto há o encontro entre as duas
vertentes. Para tanto, é necessário resgatar o contexto histórico da
doença mental no qual surge o encontro dessas áreas científicas.

O conceito de transtorno mental surge no século XVII, mas é no século


XIX que a medicina, e mais especificamente a Psiquiatria e Neurologia,
ganha projeção enquanto área do conhecimento. Ao longo do século
XIX, surgem os grandes hospitais e também os grandes manicômios, que
vão se estabelecer como forma de cuidado em saúde mental.

Os trabalhos de psicopatologia descritiva também se iniciam no


início do século XIX e, nesse mesmo tempo, os trabalhos da área
de Neurologia ganham força. Os trabalhos em Psicopatologia, que
vinham corroborando com a medicina até este período, passam a
sofrer influência em primeiro lugar da fenomenologia, que vai se
ocupar da descrição sistemática dos fenômenos psíquicos anormais,
mas acrescentando a abordagem do sujeito integral à medicina. Isso
posteriormente da Psicanálise, que vai se ocupar de uma psicopatologia
dinâmica, que é ao mesmo tempo exploratória, compreensiva
e interpretativa, e que postula a historicidade do corpo. Freud
compreendia a Psicanálise como uma derivação das neurociências,
contudo, ao invés de buscar causas, tanto quanto os fenomenologistas,
buscou os significados das doenças mentais, segundo Meleiro (2018).

Ao longo deste material, você estudará as relações entre Psicanálise e


Psicopatologia. As contribuições de Freud com este novo modelo e a
Psicopatologia psicanalítica. Ao final, encontrará uma discussão sobre a
Psicopatologia psicanalítica no contexto atual.

37
2. Freud e a Psicanálise

Freud foi médico neurologista, neurocientista, neuropatologista e


fundador da psicanálise, realizou sua formação em Viena, especializou-
se na França em neurologia. Suas bases teóricas estão na escola
francesa de neurologia, corrente que se interessava pela clínica e
comportamento dos doentes. Posteriormente retornou a Viena onde
desenvolveu seus estudos em sobre as histéricas e desenvolveu a teoria
psicanalítica (SADOCK; SADOCK; RUIZ, 2017).

Figura 1–Selo Áustria Sigmund Freud

Fonte: TonyBaggett. iStock.com

O início da Psicanálise tem sua etiologia nos estudos da Neurologia,


desenvolvidos por Charcot e Breuer, que conduziam pesquisas sobre
histeria. Localizavam no indivíduo a doença, negando qualquer forma de
sofrimento psíquico, diziam que podiam retirar o sintoma por meio da
hipnose (DALGALARRONDO, 2008; MORAES; MACEDO, 2018).

Freud faz uma ruptura com o modelo médico vigente, que separava
o normal do patológico, ao abandonar a hipnose como método de

38
tratamento por reconhecer que o alívio dos sintomas era transitório. Ao
implementar o conceito e inconscientemente negar a intencionalidade
da produção de sintomas, abre discussão para a produção das neuroses
de angústia e obsessiva, que vão dar explicações sobre a histeria de
conversão (MOREIRA; OLIVEIRA, 2017).

A principal diferenciação entre a Psicopatologia geral e a Psicopatologia


dinâmica está na observação do fenômeno. Enquanto a Psicopatologia
descritiva tem uma observação objetiva, a Psicanálise faz uma
observação subjetiva, isso porque, para Freud, os sintomas são meios de
expressão de conflitos advindos do inconsciente. Desse modo, o sintoma
evidencia algo significativo na história de vida do sujeito que, por meio
da escuta, pode favorecer a cura para o sofrimento psíquico.

Enquanto o diagnóstico médico determina a etiologia da doença


por meio de uma análise semiológica, depois classifica o sintoma
para localizar a patologia numa nosografia (descrição de doenças). O
diagnóstico psicopatológico, em Psicanálise, não possui uma lógica na
sua constituição, isso porque um sintoma pode ter várias possibilidades
de interpretação. Dessa maneira, é necessário conhecer a dinâmica do
sujeito para uma análise de sua subjetivação que prioriza a autonomia e
liberdade (MORAES; MACEDO, 2018).

Para a Psicanálise a Psicopatologia, é equivalente a um sofrimento


psíquico que traz verdades sobre o sujeito interno. São essas verdades
que trazem o desequilíbrio psíquico, a sintomatologia e, por fim, a
manifestação psicopatológica. Freud estrutura então uma corrente
psicológica em oposição às correntes de seu tempo, que define a
descrição dos processos psíquicos considerando-os de forma dinâmica,
estruturada e econômica. Esta última concepção está atrelada ao fato
de que, para Freud, a produção psicopatológica também é dada pela
cultura de uma sociedade (MORAES; MACEDO, 2018).

39
Assim, Freud funda a teoria psicanalítica calcada em três pilares:
o inconsciente, o método de escuta e uma proposição teórica que
fundamenta sua prática. A partir desses achados, Freud contribuía
para a composição de uma Psicopatologia psicanalítica e apresentava
conceitos-chaves, como as histerias conversivas e fóbicas, neuroses
obsessivas e de ansiedade, psicoses, perversões e quadros
psicossomáticos (MORAES; MACEDO, 2018; SADOCK; SADOCK; RUIZ,
2017).

2.1 A Teoria Psicanalística - 1ª tópica modelo topográfico


da mente

A principal contribuição de Freud foi a descoberta do inconsciente, por


meio dos estudos de histeria. A princípio, com os recursos da hipnose,
percebeu que parte dos conteúdos subjetivos não eram reconhecidos
pelas pessoas e a este conteúdo nomeou de inconsciente (BOOK;
TEIXEIRA; FURTADO, 2011).

A obra inaugural da Psicanálise foi o livro A interpretação dos Sonhos,


de 1900, no qual apresenta o conteúdo do sonho como um objeto do
inconsciente que não pode ser acessado em vigília. Dessa maneira,
postula que existiam três níveis psíquicos: o consciente, o pré-consciente
e o inconsciente. Além disso, existiam barreiras que impediam a
transferência desses níveis de atenção. Esse foi o primeiro tópico do
postulado de Freud (SADOCK; SADOCK; RUIZ, 2017).

O trecho acima descrito retrata o modelo topográfico da mente, o


sistema consciente seria composto por informações advindas do mudo
externo, que se manifesta por meio da linguagem e do comportamento.
Freud associava a manifestação desses conteúdos por meio de uma
descarga de energia chamada de catexia de atenção, relacionada
à intencionalidade do sujeito. Já o pré-consciente é um sistema de
informações que permanecem armazenadas e que só é evocado à

40
consciência por meio de certo nível de atenção. O inconsciente, ao
contrário dos demais, tem seu conteúdo inacessível pela consciência
por meio da repressão que são relacionadas a forças denominadas por
Freud de pulsões (SADOCK; SADOCK; RUIZ, 2017).

Esse modelo topográfico é, muitas vezes, representado pela literatura


como um iceberg. A ponta que vemos seria apenas o conteúdo
consciente, no limiar da água está o pré-consciente e abaixo dela, todo o
conteúdo inconsciente.

Figura 2 – Iceberg

Fonte: Malekas85. iStock.com.

Dessa forma, o sistema inconsciente seria a instância psíquica onde


ocorrem os processos primários do pensamento, que é conduzido por
instintos. Por essa característica é também importante considerar que
o inconsciente não tem relação temporal, nem conexões com a lógica,
o que permite construções muito diversificadas e contraditórias ao
mesmo tempo. Nele, estariam as sensações, fragmentos de percepções
e lembranças que foram reprimidas e que se manifestam por meio de
subprodutos do consciente chamados sonhos, atos falhos, ou sintomas
neuróticos. Já o pré-consciente, é composto de representações, ideias,
sentimentos, que podem ser recuperados por esforço voluntário.

41
Dalgalarrondo (2008) ressalta ainda que, para Freud, o inconsciente não
é simplesmente uma instância psíquica, mas, ao contrário, é a estrutura
mais importante do funcionamento psíquico. Isso porque é regido por
forças chamadas princípio do prazer, ou seja, não segue uma ordem da
realidade, ao contrário, busca equilibrar as tensões psíquicas ignorando
as regras sociais ou éticas.

Se pudéssemos representar o funcionamento psíquico, poderíamos


pensar como uma balança onde cada prato corresponde ao prazer
e desprazer, o funcionamento positivo está em manter equilibradas
as tensões (pesos da balança) para manter a dinâmica de prazer e
desprazer equilibrados. Esse mecanismo se dá por meio de processos
primários chamados de condensação e deslocamento.

Assim, no conteúdo do sonho, é possível encontrar o resumo de


vivências diárias, fragmentos de sensações e sentimentos, e impulsos
reprimidos e, por isso, a representação do sonho pode favorecer uma
gratificação parcial, quando tenta resolver os conflitos vivenciados,
tanto na realidade externa quanto na realidade interna. O mecanismo
de condensação é descrito por Sadock, Sadock e Ruiz (2017) como o
mecanismo que reúne diversos sentimentos, impulsos e desejos do
inconsciente combinados numa única imagem no conteúdo manifesto
do sonho.

Freud dividiu o conteúdo dos sonhos em dois: manifesto e latente,


o primeiro corresponde ao conteúdo passível de ser lembrado ou
acessado pelo consciente; e o latente seria o conteúdo que vem implícito
no conteúdo do sonho, mas que não pode ser lembrado claramente.
O trabalho da análise seria desvendar este conteúdo latente (SADOCK;
SADOCK; RUIZ, 2017).

Já o processo de deslocamento, corresponderia ao deslocamento da


transferência de uma quantidade de energia de um objeto para uma
representação simbólica de um objeto. Isso permite que o objeto possa

42
ser aceito na representação inconsciente e encontre uma vazão para os
desejos inconscientes, gerando certa gratificação. Esse achado trouxe
à luz a representação simbólica que ocorre nos fenômenos psíquicos e
que pode ser compreendido por meio das associações livres, o que deu
origem ao processo terapêutico em Psicanálise (SADOCK; SADOCK; RUIZ,
2017).

2.2 Teoria dos instintos

Em 1913, Freud escreve sua segunda tópica psicanalítica por ter


percebido dois déficits teóricos importantes: os mecanismos de
defesa (tensões que limitavam o controle de acesso dos conteúdos do
inconsciente) não estavam acessíveis à consciência, e alguns indivíduos
apresentavam um desejo de punição inconsciente e, por isso, este
não poderia ser considerado um mecanismo do pré-consciente ou
consciente, como revelado anteriormente. Assim, em 1905, Freud
formula o segundo tópico que vai tratar da teoria dos instintos e pulsões
(SADOCK; SADOCK; RUIZ, 2017).

Para Freud, os instintos teriam quatro bases de seu funcionamento: a


fonte (parte do corpo de onde vem o instinto), ímpeto (quantidade de
energia contida), objetivo (ação de liberação da tensão) e objeto (alvo
da ação). Assim, temos a libido (instinto sexual e sua manifestação, que
não é originalmente genital, mas culmina neste), que dá origem na teoria
do desenvolvimento psicossexual; instinto de autopreservação (que
estaria ligado a regulação de outros instintos não sexuais); e os instintos
agressivos (de destruição) (SADOCK; SADOCK; RUIZ, 2017).

Anteriormente a esta teoria, em 1920, Freud postulou, na teoria dos


instintos de vida e de morte (Eros e Tanatos), que eram consideradas
forças instintivas subjacentes aos instintos sexuais e de agressividade,
contudo, ao longo dos estudos, abandonou as questões relativas ao
impulso de morte por não encontrar representatividade neste último e

43
considerar que o instinto de agressividade era suficiente para justificar
os atos destrutivos (DALGALARRONDO, 2008; SADOCK; SADOCK; RUIZ,
2017).

2.3 Teoria estrutural da mente – 2ª tópica

A teoria estrutural do aparelho psíquico supõe a divisão do aparelho


psíquico em sistemas com características e funções diferentes. Freud
sugere a existência de uma estrutura tripartite: Id, Ego, Superego,
que contém partes conscientes, pré-conscientes e inconscientes,
funcionando como qualidade do funcionamento psíquico.

O Id seria a sede das pulsões, dos instintos desorganizados, das


tensões a serem descarregadas e, por isso, reconhecida como sede
dos processos primários. O Ego teria porção consciente, pré-consciente
e inconsciente, percepção da realidade e regulação da procedência
dos impulsos. Sede dos pensamentos lógicos e abstratos regula as
pulsões, testa e adia o prazer, estabelece relações objetais e relações
satisfatórias, por meio da elaboração das defesas derivadas das
angústias. O superego seria a consciência moral onde habitam regras
e valores, estrutura-se por volta dos cinco a seis anos ao término do
complexo de Édipo, no qual o sujeito internaliza regras e restrições. No
superego, também existe uma porção consciente chamada de ideal de
ego, que está relacionada à ideia de como o sujeito deve ser, segundo
Dalgalarrondo (2008).

Este modelo corresponde ao modelo psicodinâmico, no qual a interação


das forças psíquicas, pulsões e a inter-relação das estruturas da mente
implicam no desenvolvimento normal ou anormal do indivíduo, de
acordo com Whitbourne (2015).

44
2.4 Desenvolvimento psicossexual infantil

Em 1905, Freud propôs uma sequência normal para o desenvolvimento


psicoafetivo ao longo da vida, que chamou de estágios de
desenvolvimento psicossexual (HALGIN; STRAUBS, 2017). A teoria do
desenvolvimento psicossexual infantil tem origem na observação das
relações das crianças com seus pais (figuras maternas e paternas,
pessoas significativas no ambiente) nos primeiros anos de vida. Isso
porque a consciência do mundo externo se inicia de forma gradual no
bebê e na satisfação de suas necessidades básicas (SADOCK; SADOCK;
RUIZ, 2017).

É necessário destacar, aqui, o que é sexualidade para a teoria


psicanalítica, a fim de se possa compreender os quadros
psicopatológicos que serão descritos a seguir. A sexualidade
corresponde a uma manifestação secundária a necessidade de
preservação que não necessita de saciação imediata, está ligada a
carinho, afeto, qualidade dos relacionamentos, significações, pouco
relacionada à sexualidade adulta, genital, segundo Kusnetzoff (1982).

A saciação das necessidades básicas, e os instintos a elas


correspondentes, Freud chamaram de instinto de autoconservação, e as
sensações que derivaram desta experiência, instintos sexuais (energia
excedente não satisfeita), tentativa de aliviar a tensão ou remover
estímulos dolorosos sem um objeto específico (SADOCK; SADOCK; RUIZ,
2017).

Assim, a partir das observações de bebês, Freud observou que a energia


libidinal está concentrada em uma zona de gratificação, que se inicia
não por gratificações sexuais, mas por sensações corporais com a
amamentação, portanto, inicia na região oral e desta se deriva para
outras regiões do corpo.

45
O quadro a seguir condensa as informações sobre o desenvolvimento
psicossexual infantil:

Quadro 1 – Estágios de desenvolvimento psicossexual infantil

Estágio oral Os impulsos orais consistem em dois libidinais e


(0-18 meses) agressivos, ligados a necessidade de relaxamento
ao final da amamentação. O objetivo desta fase é
estabelecer relação de dependência e confiança.
Gratificações ou punições exessivas, nesta fase,
podem resultar em traços patológicos, como
otimismo excessivo, narcisismo, pessimismo (traços
depressivos), alto nível de exigências. Pessoas com
traços de caráter oral costumam ser dependentes e
necessidades narcisistas. A boa resolução se traduz
na capacidade de dar e receber sem dependência
inveja, estabelecer vínculos de confiança.

Estágio anal Caracteriza-se pelo controle de esfincter anal,


(1- 3 anos) controle de retenção e expulsão das fezes,
relacionada a mudança da passividade para
a atividade, e percepção de controle das
ações. Conflito de separação, individuação
e independência. A resolução bem-sucedida
implica na autonomia, independência, sem culpa
e autodeterminação. Traços de caráter mau
adaptativos resultam em organização, obstinação
e teimosia. Quando as defesas falham, surge
maior ambivalência, falta de asseio e desordem.
As defesas anais são mais presentes em neuroses
obssessivas compulsivas.

46
Estágio fálico Concentra os interesses, estímulos, excitação nos
(3-5 anos) genitais. O pênis é o órgão de maior interesse,
para a menina sinônimo de castração. Aparecem
fantasias com o genitor do sexo oposto. Surge a
ansiedade e ameaça da castração como resultantes
da masturbação e conflito edipico. Forma as bases
para a identidade de gênero e integra os demais
estágios anteriores. O conflito edipico possibilitas
as identificações posteriores e organização do
caráter, enquanto os demais estágios contribuem
para toda a formação neurótica e resolução
edipica. A boa resolução implica no senso de
identidade sexual, ausência de culpa, bom domínio
de relações externas e internas (controle de
impulsos).

Estágio de latência Configura-se pelo amadureciento das funções


(5-6 anos até 11 -13 anos) do ego, consolidação do superego, portanto,
maior controle dos instintos. Fase de maior
sublimação das energias libidinais em atividades
de sociabilidade e aprendizagem do mundo
externo. É uma fase importante de consolidações
e adições pós-edipicas, estabelecendo padrões
do funcionamento adaptativo. Capacidade de
internalizar conceitos e objetos que possibilitam
o desenvolvimento autônomo, e de resolução
satisfatória de conflitos. Uma resolução de
conflitos para dar, pode ocasionar o excesso ou a
falta de controle interno podendo ocasionar uma
imaturidade da formação da personalidade ou nos
excessos de controle uma rigidez característica dos
transtornos obssessivos.

47
Estágio genital (13 ano até a Equivale ao período de adolescência, por isso,
vida adulta) se caracteriza pelas transformações fiológicas
do amadurecimento genitosexual, com
intensificação dos impulsos libidinais. Ocorre uma
desorganização da personalidade, permitindo que
conflitos anteriores seja atualizados, ocorrendo
uma segunda individuação. Ocorre a separação
definitiva dos pais, fim do apego, senso de
identidade, aceitação pessoal e integração de
papéis e valores sócio-culturais relativos a vida
adulta, resultando em uma personalidade madura,
consistente e integrado ao self, que permite a
autorrealização. A má resolução deste estágio
resulta em transtornos de personalidade e de
identidade.

Fonte: adaptado de Sadock, Sadock, Ruiz (2017).

O desenvolvimento afetivo emocional foi descrito por Freud, a fim de


demonstrar o dinamismo do psiquismo. A associação deste com o corpo
(zonas erógenas) e com os objetos da realidade externa, vão desde o
autoerotismo até o erotismo relacional, que é atribuído à sexualidade
da vida adulta. Esse caminho leva a organização da personalidade, a
persistência ou acentuação de uma fase, admite uma característica
patológica que enrijece a personalidade e se manifesta por meio de um
sintoma (FORLENZA; MIGUEL, 2015).

Os sintomas são formas de comunicar o sofrimento mental, que é fruto


de uma representação do inconsciente e que revela os mecanismos
de defesa e resistências atuantes. O sintoma é o sinalizador da
patologia, que é o resultado da fixação do indivíduo em um estágio do
desenvolvimento, no qual o dinamismo é perdido, restrito e a energia
libidinal contraditória (vida e morte), se fixa num único modo de ver,
perceber e sentir o mundo (FORLENZA; MIGUEL, 2015).

48
A patologia, segundo Freud, se instala devido ao modo como o indivíduo
se relaciona com o objeto, atribuída a três grandes processos: Neurose,
Psicose e Perversão.

• Neurose: condição de organização psíquica e de desenvolvimento


da personalidade que se desenvolveu e permite manter o contato
com a realidade externa. Os conflitos ativam mecanismos de
defesa menos primitivos.

• Psicose: se caracteriza pela dificuldade de manter o contato com


a realidade externa, se utiliza de mecanismos de defesas mais
primitivos, num funcionamento de personalidade pobre em
autonomia, fragilizado, com baixa tolerância à frustração e alta
sensibilidade emocional.

• Perversão: a organização psíquica é suficiente para manter o


contato com a realidade, porém, há uma distorção das relações
com os objetos, ou na vivência com o outro que passa a ser
submetido à sua vontade. Há problemas com normas e regras e no
reconhecimento do outro. Falta angústia, culpa e dúvidas, segundo
Whitbourne (2015).

A Psicanálise entende a Psicopatologia a partir dos conflitos que se


estabelecem entre o inconsciente e o consciente do sujeito. Por essa
razão, é chamado de Psicopatologia psicanalítica, a variação ou o grau
desse conflito indica o tipo de psicopatologia que se estabelece. A
subjetivação do sujeito responde ao meio familiar e social em que ele se
constitui, bem como a implicação cultural de sua época.

Na atualidade, mesmo com os avanços das neurociências, alguns


conceitos psicanalíticos são ainda o pano de fundo de se pensar os
transtornos mentais. O inconsciente, por exemplo, continua sendo visto
como a sede de muitas informações não acessadas. Do ponto de vista
das neurociências, poder se dizer que há muita atividade cerebral ainda
não identificada. Além disso, o conceito de transferência, trabalhado por

49
Freud na relação paciente-terapeuta, ainda é um contexto importante no
trabalho terapêutico (FORLENZA; MIGUEL, 2015).

Referências Bibliográficas
BOOK; Ana Maria Merces; TEIXEIRA, Maria de Lourdes T.; FURTADO, Odair.
Psicologia Fácil. São Paulo, SP: Saraiva, 2011.
DALGALARRONDO, Paulo. Psicopatologia e semiologia dos transtornos Mentais.
2. ed. Porto Alegre, RS: Artemed, v. 1, 2008.
FORLENZA, Orestes Vicente; MIGUEL, Euripides Constantino. Compêndio de
Psiquiatria. Barueri: Manole, 2015.
KUSNETZOFF, Juan Carlos. Introdução à psicopatologia psicanalítica. 5.ed. Rio de
Janeiro, RJ: Nova Fronteira, 1982
MELEIRO, Alexandrina Maria Augusto da Silva Psiquiatria: Estudos Fundamentais
1. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2018. Disponível em: https://integrada.
minhabiblioteca.com.br/books/9788527734455. Acesso em 05 fev. 2020.
MORAES, Fernanda Cesa Ferreira da Silva; MACEDO, Mônica Medeiros Kother. A
noção de Psicopatologia: desdobramentos em um campo de heterogeneidades.
Agora (RJ), Rio de Janeiro, v. 21, n. 1, p. 83-93, 2018. Disponível em: http://www.
scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-14982018000100083&lng=en&nr
m=iso. Acesso em: 26 abr. 2020.
SADOCK, Benjamin; SADOCK, Virginia; RUIZ, Pedro. Compêndio de Psiquiatria:
ciência do comportamento e Psiquiatria. 11. ed. Porto Alegre: Artmed, 2017.
WHITBOURNE, Susan. Krauss. Psicopatologia: perspectivas clínicas dos transtornos
psicológicos. 7. ed. Porto Alegre, RS: AMGH, 2015.

50
Sistemas de Classificação
Diagnóstica (DSM e CID)
Autoria: Carla Priscila da Silva Pereira.
Leitura crítica: Fernanda Pâmela Machado.

Objetivos
• Conhecer o percurso histórico das classificações
diagnósticas.

• Identificar os principais manuais de classificação


diagnóstica.

• Conhecer a estruturação dos manuais diagnósticos.

• Reconhecer a aplicabilidade dos critérios


diagnósticos em Psiquiatria.

51
1. Introdução

Ao longo da história da Psiquiatria, existiram mudanças significativas


na compreensão dos fenômenos psíquicos influenciados por
diversas correntes, teorias e novas compreensões dos mecanismos
biopsicossociais envolvidos nos transtornos mentais.

Há uma proposição controversa quanto a esta realidade relacionada


ao fato de que, nos últimos cinquenta anos, embora sejam apontadas
evoluções na Psiquiatria ao longo da história, avanços da Neurociência
contribuíram para a compreensão dos neurotransmissores envolvidos
nos transtornos mentais. A indústria farmacêutica, aliada a essas
descobertas, produziu medicamentos cada vez mais eficazes para
o controle dos sintomas. Além disso, pesquisas de incidência dos
transtornos mentais, nos últimos cinquenta anos, apontam para
um aumento considerável deste, o que já sugere uma epidemia de
transtornos mentais no século XXI.

Dessa maneira, é um desafio para os profissionais de saúde mental


refletir tanto sobre os caminhos da prática clínica, quanto o impacto do
diagnóstico na vida dos indivíduos acometidos por transtornos mentais.

2. Classificação diagnóstica

A estimativa da Organização Mundial de Saúde (OMS), segundo critérios


estabelecidos pelo Código Internacional de Doenças (CID – 10), manual
diagnóstico, é de que a prevalência de transtornos mentais ao longo da
vida ocorra em 45,9% das pessoas, sendo que, por ano, a estimativa é de
26,8%. A população brasileira, em 2016, era de aproximadamente 200
milhões de habitantes. Segundo Humes, Vieira e Fráguas Junior (2016),
estimava-se que cerca de 91 milhões destes seriam portadores de
transtornos mentais, cerca de 53 milhões acometidos em um ano.

52
Essa alta prevalência chama atenção dos estudiosos da área. Caponi
e Martinhago (2019) falam de uma epidemia de transtornos mentais.
Alguns fatores são apontados como controversos: evolução da
Psiquiatria, avanço das neurociências, crescimento da indústria
farmacêutica e, ao mesmo tempo, o aumento da prevalência de
transtornos mentais no mundo. Será que há um verdadeiro aumento
dos transtornos mentais, uma hipervalorização dos sintomas, uma
patologização da vida? Para compreendermos este fenômeno, é
importante compreender a trajetória da classificação diagnóstica ao
longo da história e refletir a quem serve a Psicopatologia clínica.

A Psiquiatria, desde o início de sua história, realiza classificação de


patologias. A história da loucura atravessa a historia da civilização. No
período escolástico, a presença de sintomas, como a alucinação, era
correspondente à graça (divindade) ou ausência de graça (fruto do
pecado). Na Grécia antiga, os quadros alucinatórios foram considerados,
por grandes pensadores como Sócrates e Platão, como certo privilégio,
uma loucura divina. Hipócrates foi quem se aproximou do modelo
contemporâneo, propondo o modelo organicista da loucura, atribuindo
a um desarranjo do cérebro os transtornos mentais. Na Idade Média, o
retorno aos fatores externos e espirituais, os transtornos mentais, eram
vistos como possessão demoníaca. Somente no pós-guerra, o modelo
hospitalocêntrico ganhou projeção e impulsionou a Psiquiatria como
classe médica (CAPONI; MARTINHAGO, 2019).

Assim, a Psicopatologia do século XVIII foi utilizada para validar a prática


da Psiquiatria, que não possuía grande prestígio na medicina. Contudo,
um problema impactante eram as divergências dentro das correntes
psicopatológicas, que dificultavam esta validação por serem insipientes
até mesmo quanto a nomenclatura dos transtornos mentais (BRAGA;
FONSECA, 2018).

A doença psiquiátrica, desde a Grécia antiga, tendeu a normatização,


ou seja, levar os indivíduos para próximo da norma (DEMÉTRIO;

53
FERNANDES, 2018). Até o século XVIII, os quadros mentais eram
descritos como categorias homogêneas, ou seja, por meio de
características presentes em todos os quadros. Somente ao final do
século XIX, Kahlbaum e Kraepelin estabeleceram critérios clínicos, que
correspondem a apresentação psicopatológica da doença e sua evolução
clínica (WANG; ANDRADE, 2015). Kraepelin foi considerado o fundador
da Psiquiatria moderna, e reconhecido por sua contribuição histórica
quanto à nosologia dos transtornos mentais (DEMÉTRIO; FERNANDES,
2018).

Figura 1 – Fotografia de Emil Kraepelin, fundador da Psiquiatria


moderna

Fonte: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/5/5d/E._Kraepelin_flipped.
jpg/200px-E._Kraepelin_flipped.jpg. Acesso em: 26 abr. 2020.

54
3. Trajetória das classificações diagnósticas

A trajetória das classificações diagnósticas, em Psiquiatria, mostra um


movimento de coesão e rupturas dentre as diferentes correntes na
compreensão dos transtornos mentais, que se inicia ao longo do século
XIX até o século XXI (CAPONI; MARTINHAGO, 2019).

A primeira metade do século XIX foi marcada por novas formas de


compreender as doenças mentais. Os sintomas eram reconhecidos
como diferentes dos comportamentos, ou pela produção de uma
atitude alterada pela doença. Já na segunda metade do século XIX,
surge o interesse pelas estratégias de intervenção mais eficazes, assim,
a classificação das doenças se diferenciava por sua sintomatologia e
etiologia na busca pelo tratamento mais adequado. Entretanto, é no
final do século XIX que os trabalhos conduzidos por Emil Kraepelin
em Psicopatologia descritiva, fundamentado na nosologia, reconhece
diferentes modos de sofrimento mental por meio da análise clínica, o
que resultou em oito edições de manuais de Psiquiatria, que tinham por
objetivo a formação de profissionais (CAPONI; MARTINHAGO, 2019).

A construção dos manuais teve a pretensão de criar uma linguagem


universal sobre as patologias mentais, para tanto, a construção destes
se valeu de ferramentas da estatística para organizar as classificações
dos transtornos mentais, como os índices de confiabilidade (capacidade
de um mesmo diagnóstico ser reproduzido por diferentes avaliadores)
que são utilizados para validar as classificações encontradas (DEMÉTRIO;
FERNANDES, 2018).

O primeiro manual, datado de 1840, nos Estados Unidos da América


(EUA), foi organizado a partir de um censo que resultou numa
classificação estatística por distribuição de frequência dos transtornos
mentais. Na ocasião, eram destacadas duas classes diagnósticas: idiotia

55
e insanidade (ARAUJO; LOTUFO NETO, 2014; CAPONI; MARTINHAGO,
2019).

Em 1880, uma nova classificação diagnóstica é lançada com sete


categorias: melancolia, mania, monomania, paresia, demência,
alcoolismo e epilepsia. Este manual também teve como foco a
organização das internações psiquiátricas. Em 1918, um novo manual
estatístico é lançado com vistas à institucionalização de insanos,
contendo vinte e duas categorias, dentre elas: psicose, melancolia,
demência precoce, paranoia, psiconeuroses e neuroses (CAPONI;
MARTINHAGO, 2019).

É importante destacar que, no período entre 1900 e 1950, há a expansão


do trabalho psicanalítico de Freud, que vai fundamentar a classificação
norte-americana de transtornos mentais, acrescido dos conceitos de
personalidade e estrutura psicodinâmica. Além disso, influencia o
modelo classificatório com vistas ao sofrimento psíquico, e instaura a
escuta clínica como modelo de cuidado (CAPONI; MARTINHAGO, 2019;
TRAJANO; BERNARDES; ZURBA, 2018).

A construção dos manuais, além das questões de validade científica


para a Psiquiatria, foi influenciada por questões políticas. A revisão
de classificações e formulação dos manuais, de 1918 e 1947, tiveram
como cenário de fundo o número de pessoas internadas nos EUA
que oneravam os cofres públicos (BRAGA; FONSECA, 2018). Em 1948,
a Organização Mundial da Saúde (OMS) publica a sexta edição do
Classificação Internacional de Doenças e problemas relacionados a
saúde (CID), que traz, pela primeira vez, a classificação de transtornos
mentais (ARAUJO; LOTUFO NETO, 2014).

Em 1952, a Associação Psiquiátrica Americana (American Psychiatric


Association–APA), o primeiro Manual Diagnóstico e Estatístico de
Transtornos Mentais (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disordens
– DSM I), com cento e seis categorias, apresentou uma padronização

56
nas categorias de doenças e um consenso para o uso das terminologias.
Sob forte influência psicanalítica, traz caracteres da psicodinâmica, a
oposição de neurose (ansiedade e depressão) e psicose (caracterizada
pela presença dos sintomas de alucinação e delírio e perda da conexão
com a realidade. Traz como principal diferenciação, da visão proposta
anteriormente por Kraepelin e Meyer, a ideia de patologia associada a
reação do indivíduo frente sua história de vida e dá uma característica
de aplicação clínica à classificação diagnóstica (ARAUJO; LOTUFO NETO,
2014; CAPONI; MARTINHAGO, 2019; DEMÉTRIO; FERNANDES, 2018).

A quebra do paradigma de classificação, adotado até o momento, fez


surgir uma série de contradições teóricas que impactaram na revisão e
reformulação do manual. Em 1968, a APA publica o DSM II com cento e
oitenta e duas categorias de classificação dos transtornos mentais, que
traz algumas mudanças consideráveis. A primeira delas foi a retirada
do termo reação, que havia causado um impacto na comunidade
psiquiátrica da época. Foi introduzida a oposição entre neurose e
personalidade, diferenciando os transtornos de cada uma das partes.
Realizada uma aproximação com o CID (Classificação Internacional de
Doenças e problemas relacionados a saúde da OMS), que estava em sua
oitava edição, ampliando trinta e nove categorias. E ainda a introdução
da esquizofrenia, nos quadros psicóticos (ARAUJO; LOTUFO NETO, 2014;
CAPONI; MARTINHAGO, 2019).

O DSM III foi considerado o mais complexo dos manuais. Primeiro


porque surge num contexto histórico da luta antimanicomial, e
desinstitucionalização, diante do avanço da produção de novos fármacos
e declínio do viés psicanalítico. Lançado em 1980, com duzentas e
sessenta e cinco categorias, surge como uma revisão do DSM II, iniciada
em 1974, por Spitzer, na tentativa de aperfeiçoar e uniformizar o
material existente e de padronizar os manuais utilizados nos EUA e
Europa (DSM e CID), por meio de nomenclaturas coerentes nos dois
manuais (CAPONI; MARTINHAGO, 2019).

57
Segundo Braga e Fonseca (2018), o manual foi considerado o mais
pragmático e funcional das classificações da Psiquiatria. Reforçou a
associação da Psiquiatria com a medicina, pois segue o modelo de
medicina baseada em evidências, trazendo dados que ressaltam tanto
a pesquisa como a base empírica dada pela clínica para a composição
do diagnóstico de do tratamento. Com evidências fortes, por meio de
ensaios clínicos, trazendo benefícios para profissionais, seguradoras,
pesquisas e alocação de recursos públicos de saúde mental. Além
disso, trouxe expansão e melhoria de comunicação e diagnóstico e uma
divisão clara entre problemas da vida cotidiana e transtornos mentais
(CAPONI; MARTINHAGO, 2019).

Além disso, pode-se destacar que o DSM III foi de grande impacto para
o modelo seguido na época, pois propôs a biomedicalização da prática
psiquiátrica, colocando no sintoma toda a caracterização do transtorno
mental. Traz ainda uma abordagem completamente diferente das
presentes nos DSM I e II, que era psicossocial e psicanalítica, e é uma
sugestão de retorno ao proposto por Kraepelin, no período entre 1885 e
1926.

Este achado vai ao encontro do proposto por Braga e Fonseca (2018), de


que as ciências da mente (psique) e as definições subjacentes a elas não
são estanque quanto às suas definições e conceitos, ao contrário, são
influenciadas por fatores históricos, morais e culturais.

O DSM III foi um marco da mudança no modelo classificatório, que


passa a ser multiaxial, com agrupamento por sintoma, aumentando a
confiabilidade e validade. Para isso, as classificações se tornam mais
objetivas e o termo neurose aparece pela última vez enquanto categoria
clínica, num acordo de revisão o termo aparece seguido de disorder,
instalando um conflito com a teoria psicanalítica. Nessa edição, é
excluída a categoria homossexualidade e introduzido o transtorno de
personalidade narcisista (CAPONI; MARTINHAGO, 2019).

58
Em 1987, Spitzer propõe uma revisão do DSM III, chamada de DSM III-R,
com duzentas e noventa e duas categorias de transtornos, contudo, esta
foi considerada controversa e muito insipiente. Isso desencadeou um
novo processo de reformulação, coordenado por Allen Frances, que deu
origem, em 1994, ao DSM IV, com duzentas e noventa e sete categorias,
num modelo de cinco eixos:

• I – Quadros clínicos.

• II – Retardo subjacente ou que afeta a personalidade, como o


mental.

• III – Situação clínica aguda e doença física.

• IV – Fatores psicossociais e ambientais.

• V – Avaliação global do funcionamento.

Apresentou, ainda, a inclusão de significância clínica para metade


das categorias com sofrimento ou prejuízo social e ocupacional
importante. Os quadros de histeria foram desmembrados em
síndromes (dissociação, dismorfismo corporal, ansiedade, depressão
e fibromialgia). De modo geral, acrescentou e eliminou transtornos,
caracterizou os subtipos, incluiu grupos afins e criou normas de
interpretação e generalizações (CAPONI; MARTINHAGO, 2019).

Em contrapartida, em 1992, a Organização Mundial de Saúde publica


uma nova edição da CID, conhecida pela edição vigente, que recebe a
nomenclatura na comunidade científica de CID 10. Foi reconhecido como
instrumento internacional de comunicação, educação e pesquisa, pois
viabiliza estatísticas de morbidade e mortalidade. Traz um capitulo (F)
relativo aos transtornos mentais (tradução de disorder), que se traduz
numa intenção de mostrar uma superioridade ao conceito de síndrome
tratada até o momento. O manual não substitui, de modo algum, a
avaliação clínica como ressaltado por Wang e Andrade (2015).

59
O CID 10 colaborou com a Psiquiatria, por meio do aumento da
concordância diagnóstica, melhora do relatório de mortalidade, uso de
serviço, tratamento e evolução, uso de padrão para a pesquisa, aumento
da heterogeneidade no ensino de Psiquiatria, melhor comunicação entre
os diversos atores profissionais, usuários, cuidadores e leigos (WANG;
ANDRADE, 2015).

Em 2000, foi feita nova revisão com o intuito de atualizar os transtornos


de acordo com as descobertas e evoluções da ciência. Com pequenas
alterações, o DSM IV- TR trouxe uma valorização das comorbidades
e inter-relação entre os eixos diagnósticos, ressalta a importância da
interpretação dos sintomas e dos transtornos serem compreendidos
como tarefa clínica e não como consulta numa tabela diagnóstica. Esta
versão do manual traz ainda duzentos e noventa e sete categorias,
acrescidas de mais vinte e uma categorias no apêndice B (ARAUJO;
LOTUFO NETO, 2014; CAPONI; MARTINHAGO, 2019; DEMÉTRIO;
FERNANDES, 2018).

Por fim, em 2013, é lançado o DSM V como fruto de anos de estudo e


o envolvimento de muitos pesquisadores que se debruçaram sobre os
diferentes grupos de sintomas para construir o manual. Este é composto
por trezentas categorias, divididas em três seções. O objetivo era o de
catalogar e descrever os sinais e sintomas que podem ser observados
(APA, 2013; CAPONI; MARTINHAGO, 2019).

O DSM 5 foi apontado, por Cheniaux (2015), como um manual de


abordagem descritiva, ateórica e por critério operacional para o
diagnóstico. Esse movimento foi decorrente do neokraepelinianos,
que se basearam em estudos de validade estatística de áreas como
a Neurologia, Anatomopatologia cerebral e genética, a Psiquiatria
descritiva terminológica, na qual as classificações psicopatológicas
passam a ser definidas como síndromes (CAPONI; MARTINHAGO, 2019).

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Assim, a caracterização dos transtornos é tida, pela American Psychiatric
Association – Associação Psiquiátrica Americana (APA), como:

Síndrome caracterizada por perturbação clinicamente significativa na


cognição, regulação emocional ou no comportamento do individuo, que
reflete uma disfunção nos processos biológicos ou desenvolvimento
subjacente ao funcionamento mental. (APA, 2013 p.62)

A nova edição do DSM segue o modelo categorial e dimensional (leve


moderado e severo). Demétrio e Fernandes (2018) referem que o
manual segue critérios diagnósticos, que tem como intuito uniformizar
a linguagem médico científica. Entende-se por critérios, o subconjunto
de sintomas mais característicos de um transtorno. Dessa maneira,
os critérios operacionais do DSM 5 são hierarquizados, com descrição
objetiva do fenomenológica de um sintoma em termos qualitativos
(diferenciando um transtorno de outros) e quantitativo (intensidade e
duração da sintomatologia).

A proposição relativa à hierarquia dos sintomas se refere ao fato de


que alguns sintomas são determinantes para o transtorno e outros são
alternativos, mas devem ocorrer na sintomatologia. Esse é um ponto
de grande discussão quanto a classificação diagnóstica e ao qual a
comunidade científica atribui uma rigidez ao modelo classificatório.

No DSM V, o processo de adoecimento é visto como um continuum de


gravidade e intensidade de sintomas, incorpora o modelo de espectro
somado ao modelo categorial e dimensional. Assim, a classificação se
constitui uma série heterogênea de avaliação (WANG; ANDRADE, 2015).

No que diz respeito ao diagnóstico da doença, o modelo categorial


corresponde a estruturação dos CID 10 e DSM V, que diferencia saúde
e doença e, mais do que isso, diferencia a doença qualitativamente de
outra doença, enquanto o modelo dimensional faz a diferenciação do
ponto de vista quantitativo, segundo Cheniaux (2015).

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O manual está dividido em três seções:

• I – Para uso forense.

• II – Critério e código diagnóstico.

• III – Instrumentos para avaliação dos sintomas, critério de


formação cultural, modo alternativo para transtorno de
personalidade e descrição das condições clínicas para estados
posteriores (CAPONI; MARTINHAGO, 2019).

Esse modelo, de três dimensões, já foi proposto por Leme Lopes, em


1954. Na proposição anterior, seguia a distribuição: (1) a síndrome; (2)
personalidade pré-mórbida, comtemplando os fatores biopsicossocial;
(3) constelação etiológica, fatores causais endógeno e exógeno, segundo
Cheniaux (2015).

As mudanças do modelo de eixos substituído por seção, encontram a


seguinte correspondência:

Figura 2 – Esquema representativo das principais alterações do DSM


IV para o DSM V

Fonte: adaptado de Caponi e Martinhago (2019).

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Os capítulos passam a ser organizados de acordo com o ciclo da vida:

• 1ª parte – Desenvolvimento – transtorno do desenvolvimento.

• Parte Central – adolescência e vida adulta – (depressão, ansiedade


e espectro esquizofrenia).

• Parte Final – Velhice – Transtorno neurocognitivo.

Algumas questões sociais passam a ser consideradas como condição


para a patologia, tais como problemas de relacionamento, negligência,
violência, ruptura familiar, entre outros (CAPONI; MARTINHAGO, 2019).

O manual foi alvo de críticas de diversos profissionais de saúde


mental, seja pela rigidez que lhes confere a objetividade dos critérios
diagnósticos, seja pelo fato de não apresentar novas descobertas
científicas, apenas renomear ou redefinir nomenclaturas. Na contramão
dessas críticas, surgem aspectos positivos por apresentar a etiologia
dos transtornos mentais fundamentada em aspectos neurobiológicos,
com índices de validade e confiabilidade com as equivalências com as
demais áreas da medicina (CAPONI; MARTINHAGO, 2019; DEMÉTRIO;
FERNANDES, 2018).

Os manuais diagnósticos, ao longo do tempo, apresentaram


modificações estruturais e conceituais, contudo, a partir de 1980, é
observado um retorno a Kraepelin, observando a importância do quadro
clínico e o curso longitudinal da doença. Esses achados incluem as
versões do CID 10 e CID 11, sendo que este último foi lançado e deverá
entrar em vigor em 2022, segundo a Organização Mundial de Saúde.
Além disso, o manual deve ter como atualização as equivalências com o
DSM V e, como nova contribuição, a inclusão dos transtornos de jogos
eletrônicos que podem levar à dependência (WANG; ANDRADE, 2015;
DEMÉTRIO; FERNANDES, 2018).

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O caminho diagnóstico e de classificação em Psiquiatria é extenso e
sinuoso. Demétrio e Fernandes (2018) apontam que, desde o início da
história da doença psiquiátrica, passando pela Grécia antiga, tenderam
a normatização. A construção dos manuais constou de revisões de
conceitos nosológicos, mas de fato não há nada de novo. Por assim
dizer, Hipócrates teorizou a medicina moderna, contudo, os desafios da
Psicopatologia psiquiátrica continuam, pode-se destacar:

• Poucos avanços significativos.

• Ausência de marcadores biológicos, levando à fragilidade do


diagnóstico.

• Fatores etiológicos não determinados.

• Prognóstico impreciso de evolução.

• Variabilidade de apresentação clínica dos transtornos de mesmo


diagnóstico.

• Psiquiatria baseada na atuação clínica, o que traz viés subjetivo.

Ao mesmo tempo, há um consenso de que é necessário estabelecer


uma linguagem universal em Psiquiatria. Nesse sentido, os manuais
cumpriram bem suas funções, mas se tornaram um risco, para a prática
clínica, de se tornar excludente, limitante e patologizante. Araújo e
Lotufo Neto (2014), destacam que o instrumento é produzido para
profissionais habilitados com experiência clínica e sólido conhecimento
em Psicopatologia, e não pode ser utilizado como lista de pesquisa de
sintomas.

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Referências Bibliográficas
AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION (APA). Diagnostic and statistic manual of
mental desorders. 5. ed. Whashington, DC, 2013.
ARAÚJO, Álvaro Cabral; LOTUFO NETO, Renério Fráguas. A Nova Classificação
Americana Para os Transtornos Mentais – o DSM-5. Revista Brasileira de
Terapia Comportamental e Cognitiva. v. 16, n. 1, p. 67-82, 2014. Disponível
em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-
55452014000100007&lng=pt&nrm=iso. Acesso em: 26 abr. 2020.
BRAGA, Felipe Sette Martino; FONSECA, Gabriela Lemos. Reflexões sobre
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p.74-91. Florianópolis, SC, 2019. Disponível em: https://doi.org/10.5007/1807-
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CHENIAUX, Elie. Manual de Psicopatologia. 5. ed., cap. 2. Rio de Janeiro, RJ:
Guanabara Koogan, 2015. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.
br/#/books/978-85-277-2743-3/. Acesso em: 26 abr. 2020.
DEMÉTRIO, Frederico Navas; FERNANDES, Fernando. Diagnóstico e classificação
em psiquiatria. In: MELEIRO, Alexandrina M. A da Silva (coord.) Psiquiatria Estudos
Fundamentais.1. ed., p. 71-77, Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2018.
HUMES, Eduardo de Castro; VIEIRA, Márcio Eduardo Bergamini; FRAGUAS JUNIOR,
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cuidado em saúde mental: caminhos possíveis na rede de atenção psicossocial.
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WANG, Yang Pan; ANDRADE, Laura Helena S. Guerra de. In: FORLENZA, Orestes
Vicente; MIGUEL, Euripides Constantino. Compêndio de Psiquiatria. Parte I, p. 3
-14. Barueri, SP: Manole, 2015.

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