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O CONHECIMENTO DE SI E O

SOCRATISMO CRISTÃO
Importância da questão do autoconhecimento

 Pascal, autor cristão, funda a moral no


conhecimento de si.
 Como entender a transição de Sócrates a
Pascal? É necessário compreender o
Nosce te ipsum dos filósofos cristãos.
 No entanto, segundo Gilson, esse ponto
em especial da antropologia cristã é o
mais exposto à crítica: confusão entre a
ordem filosófica e a religiosa.
Homem e Deus: relação necessária
 Qualquer que seja o aspecto do homem
que o cristão considere, ele sempre conclui
relacionando-o e submetendo-o a Deus.
 A própria natureza do homem é um ponto
sob o qual a bíblia tinha algo a ensinar aos
filósofos. P. 280.
 Essa semelhança divina, inscrita na própria
natureza do homem pelo ato criador,
comanda a estrutura íntima do seu ser.
A imago dei e a universalidade
 Primeira característica da imagem divina é
a sua universalidade.
 A universalidade não é uma característica
acidental, acrescentada à natureza
humana, mas constitui a própria natureza,
é sua essência.
 Nesse sentido todos os homens são iguais,
pois são todos feitos à imagem de Deus.
Mas, em que consiste a imagem de Deus?
Imagem de Deus = Soberania do homem
 A Bíblia nos diz que o homem foi feito à imagem de
Deus, na medida em que ele é na Terra como que o
vigário do criador.
 Deus governa o mundo a seu bel-prazer, mas entregou
ao homem uma parte do governo, de modo que
exercemos sobre as coisas, uma dominação análoga a
do seu governo.
 Nesse sentido, ele representa Deus como um lugar
tenente, um soberano.
 Mas, o verdadeiro problema filosófico consiste em saber
porque o homem é capaz de reinar sobre o mundo e de
exercer tal soberania.
Soberania do homem: Liberdade e uso da
racionalidade
 Em primeiro lugar porque o homem é livre, ao passo que
os outros seres não são.
 Mas quais são as raízes dessa liberdade? Elas se encontram
em sua inteligência e em sua razão, que lhe permitem
dirigir-se e escolher.
 Desde então, a imagem divina estará sempre situada entre
os teólogos, seja em sua inteligência, seja em sua liberdade.
 Por exemplo, São Bernardo faz do livre arbítrio humano a
imagem de Deus, por excelência, ao passo que para
Agostinho é a possibilidade do pensamento estar aberto à
iluminação das idéias divinas, a responsável por fazer dos
seres humanos, imagens do criador.
O sentido da imagem de Deus
 Mas, dizer que o pensamento e a liberdade são
em nós a imagem de Deus não significa que a
alma é uma espécie de representação ou
pintura de Deus.
 Nesse caso, bastaria ser observada para se
conhecer a natureza de seu autor.
 O sentido da imagem não vai de Deus ao
homem, mas do homem a Deus.
 Sua função é predispor o homem na direção de
Deus.
O sentido da imagem de Deus
 A imagem divina no homem não é apenas o aspecto da
semelhança do homem com Deus.
 Mas principalmente a consciência que o homem adquire
de ser uma imagem, responsável por levá-lo ao
movimento pelo qual a alma usa dessa similitude para
alcançar a Deus.
 “A imagem de Deus se encontra na alma na medida em
que se volta para Deus ou em que sua natureza permite
voltar-se para ele” (Santo Tomás de Aquino).
 Duns Scott afirma que a alma permanece imperfeita
quando voltada para si mesma, mas adquire valor
próprio ao voltar-se para seu modelo (Deus).
Primeira conclusão
 O “conhece-te a ti mesmo” cristão é diferente, daquele
defendido por Sócrates.
 Para Sócrates, o auto conhecimento implica em
reconhecer-se como indivíduo autônomo e auto-
suficiente, capaz de dominar completamente através da
razão, as paixões e o instinto.
 Na perspectiva cristã, o homem se depara com a
constatação de que é imagem de Deus e, nesse sentido,
há algo que o ultrapassa.
 Tal constatação representa a perda da suficiência
humana, pois com efeito, o homem não pode tudo,
tendo certa dependência de Deus, o qual é o criador.
Elemento comum: antifisicismo
 No entanto, apesar das diferenças, há um elemento comum
no autoconhecimento de Sócrates e no cristão. É aquilo que
os padres da igreja extraíram deste, seu antifisicismo.
 Ambos concordam em admitir que o conhecimento de si é
muito mais importante para o homem do que o
conhecimento do mundo exterior.
 A ciência do homem é a única a poder fundar os preceitos
que regem a conduta da vida, os quais orientam a vida ética.
 Desse modo, seu antifisicismo não prepara o caminho para
um psicologismo, ele é muito mais o reverso de um
moralismo. De que adianta o homem ganhar o universo se
perder sua alma?
Socratismo cristão: profunda
transformação
 Para os cristãos esse preceito não implica apenas na
reflexão acerca dos valores éticos, mas significa que
eles tem de conhecer a natureza que Deus lhes
conferiu e o lugar que lhes atribuiu na ordem
universal.
 Ora, o homem está rodeado de coisas que se
encontram no seu nível, de outras que se encontram
abaixo dele e, por fim, de outras que se encontram
acima dele.
 O autoconhecimento na visão cristã não implica
apenas na postura gnosiológica, mas implica numa
tomada de posição.
Socratismo cristão: tomada de posição
 Para se conhecer, é necessário, portanto, pôr-se em seu
devido lugar, abaixo daquilo a que se é inferior, acima
daquilo a que se é superior.
 É necessário superar a animalidade e se dispor para
Deus.
 Com efeito, se só se tratasse para a alma de tomar
consciência de si mesma, esse conhecimento de nada
lhe serviria.
 O objetivo da alma que se reconhece é libertar-se das
ilusões sensíveis, as quais podem velar sua natureza.
Ao libertar-se dessas ilusões ela reconhece seu
verdadeiro valor e volta-se para seu referencial: Deus.
Duas ilusões : o desespero e a soberba
 São Bernardo interpreta o oráculo de Delfos com uma
ousadia ingênua: há duas causas que fazem com que nos
ignoremos: uma timidez excessiva e uma temeridade
perigosa.
 A timidez excessiva nos leva a nos humilhar em demasia, a
temeridade nos convida a nos presumir demasiadamente
de nós mesmos.
 Soberba e presunção, pusilanimidade e desespero de si, eis
os dois perigos que nos assediam sem cessar.
 O verdadeiro objetivo do autoconhecimento cristão (tomada
de posição) é conciliar esses dois aspectos necessários do
problema, mantendo-nos a igual distância das duas
cegueiras que sofremos.
Miséria e Grandeza
 A grandeza do homem consiste em ter sido criado à imagem
de Deus: com sua liberdade e sua razão o homem comanda a
natureza e faz uso dela de acordo com suas necessidades.
 Mas, ao mesmo tempo, o homem sabe que não deve a si
próprio a sua grandeza, e esse é o primeiro aspecto de sua
miséria.
 Se o homem ignora a sua dignidade, ignorará a si mesmo; se
ele toma consciência de sua dignidade, sem se dar conta de
que a deve a um ser superior a ele soçobrará na vanglória.
 Nesse sentido, o autoconhecimento está vinculado à questão
do pecado original. As misérias do homem, segundo Pascal,
são “misérias de grande senhor”.
Miséria e Grandeza
 Criado na honra da semelhança divina, o homem perde essa
honra, mal a esquece. Na medida em que cessa de ter
consciência de sua dignidade, rebaixa-se ao nível dos animais.
 Mais criminoso, porém é o erro oposto, pelo qual esquecendo
suas misérias, o homem quer se elevar ao nível dos anjos e até
usurpar o lugar de Deus.
 Há dois excessos portanto, que o homem deve evitar em
âmbito antropológico, ter consciência apenas de sua
grandeza, e ao mesmo tempo de sua miséria.
 A natureza humana, na visão cristã, revela um aspecto duplo.
Somente nos conhecemos de modo autêntico quando
conhecemos nossa miséria e nossa grandeza
consecutivamente. Citar São Bernardo, p.290.
Além da miséria e da grandeza
 No entanto, existe um outro aspecto dessa
interpretação do homem como imagem de Deus,
que ultrapassa a compreensão do homem.
 Se já é difícil conhecer a relação dos homens com os
seres que o rodeiam, isso não é nada perto do que
resta a descobrir.
 Se o que o homem encontra circa se ou sub se o
acabrunha por sua extensão; o que ele encontra in
se o embaraça por sua obscuridade.
 Ao olhar em si ele topa com um mistério cuja
opacidade tem como assustá-lo.
A incognoscibilidade do homem
 Se o homem é de fato uma imagem de Deus, como
se conheceria sem conhecer Deus? Mas, se é de
fato de Deus que ele é a imagem, como seria
possível conhecer-se a si mesmo, a partir do
conhecimento do próprio Deus?
 Com isso, o homem adquire uma profundidade
insuspeita aos antigos e que o torna como que
insondável a si mesmo.
 Nós somos inescrutáveis a nós mesmos porque
participamos da profundidade de Deus. Citar
Scotus Erígena. P.292.
A alma pode conhecer-se a si mesma?
 Ao perceber que as próprias profundezas o superam, a
visão da alma pela alma se torna uma ambição tamanha
que somente a união mística ou a vida futura podem
esperar sua realização.
 Aqui, o que os místicos sugerem, os filósofos dizem, e as
especulações da metafísica moderna sofreram forte
influência dos pensadores da idade média.
 Por exemplo, no século XIII não é a questão de uma
alma espiritual o que preocupa os filósofos.
 O problema é muito mais, para eles, saber como e até
onde a alma pode penetrar no conhecimento de sua
própria essência.
A alma é inapreeensível
 A alma é um substância espiritual e imortal,
dotada de uma personalidade indestrutível.
 Para os medievais, a alma nunca é, por si
mesma, um objeto do conhecimento que ela
poderia apreender como uma coisa, mas sim
um objeto ativo cuja espontaneidade
permanece sempre além do conhecimento que
tem de si mesmo.
 Em outras palavras, a intuição da alma nunca é
equivalente à alma que a exercita.
Deus e a origem do conhecimento na alma
 Embora não possamos apreender a natureza da alma
racionalmente , devemos considerar o que gera na alma
seu próprio conhecimento?
 É sempre o que há nela de mais elevado, esse apex mentis,
ou cimo da alma, como dizem os agostinianos.
 Todos os filósofos cristãos concordam em fazer desse
cume o portador da imagem de Deus em nós.
 Toda a fecundidade do pensamento, todo o poder
construtor que lhe possibilita erguer o edifício do
conhecimento à luz dos princípios lhe vêm do fato de que
ele é uma participação criada à luz divina, por haver nele
algo de mais elevado e mais profundo.
Autoconhecimento na filosofia medieval e
moderna
 A filosofia moderna não esqueceu esses prolongamentos
misteriosos da alma, que o pensamento medieval
inaugurou.
 Descartes, por exemplo, toda a sua física é solidária de
uma metafísica; toda a sua metafísica depende da idéia
de Deus, e a idéia de Deus se confunde nele com a idéia
de infinito.
 Qual é a origem da idéia de infinito? Ora, a resposta do
racionalismo cartesiano é a mesma de Santo Agostinho,
São Boaventura e Duns Scot.
 A origem de nossa idéia de infinito se situa na luz divina.
Ela é como a marca do operário impressa em sua obra.
Conclusão
 A noção de autoconhecimento assume uma complexidade
crescente no período medieval e cristão.
 O autoconhecimento se relaciona, em sentido antropológico,
com a questão do homem como sendo a imagem de Deus.
 Nesse caso a imago dei não significa apenas que o homem
foi criado como uma cópia de Deus.
 Nem que a imago dei implica apenas no bom uso da
racionalidade para conhecer-se a si mesmo.
 Assumir essa imagem no coração da interioridade significa
acima de tudo que temos de tomar consciência de nossa
grandeza, mas também de nossa miséria, decorrente do
pecado original.

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