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Arq Bras Cardiol Correlação

Correlação anatomoclínica
Anatomoclínica
2001; 76: 329-32.

Correlação Anatomoclínica

Caso 2/2001- PPaciente


aciente de 18 anos de idade com dispnéia e hiper tensão ar terial pulmonar
(Hospital e Mater nidade Celso Pier ro/Gr upo de Estudo em Cor relação Anatomoclínica
(GECAC ) - Pontifícia Universidade Católica – Campinas, SP)

Maria Aparecida Barne Teixeira, Sandrigo Mangini, Vera Demarchi Aiello

Campinas, SP

Homem de 18 anos de idade, branco, com queixa de pulmonar de 724 dines/s/cm-5 (normal: 225-315 dines/s/cm-5).
episódios esporádicos de dispnéia, há uma semana apre- A pressão capilar pulmonar manteve-se normal.
sentou edema de membros inferiores, que progressivamen- O hemograma, avaliação da função renal, o coagulo-
te se estendeu para abdome e membros superiores. Há um grama, e o exame de urina tipo I, foram normais.
dia apresentou dispnéia, procurou atendimento médico e foi Algumas horas após a internação, o paciente subitamen-
hospitalizado. Negou antecedente mórbido, assim como eti- te apresentou respiração superficial, bradicardia, bloqueio
lismo, tabagismo ou dependencia a drogas. atrioventricular total, evoluiu com dissociação eletromecânica,
O exame físico revelou cianose ++/4+, freqüência respi- não respondeu às manobras de reanimação e faleceu.
ratória de 27 movimentos por minuto. A freqüência cardíaca
foi 98bpm e a pressão arterial foi 110/60mmHg. A pressão Hipóteses diagnósticas: 1) Insuficiência cardíaca por
venosa central permaneceu entre 27 a 29cm de água. A se- valvopatia reumática - estenose mitral; 2) hipertensão
miologia pulmonar foi considerada normal. Ao exame do co- pulmonar primária.
ração observou-se ritmo cardíaco regular, hiperfonese de
segunda bulha em área pulmonar, e sopro sistólico de inten- (Acadêmico Marcos Bianchini Cardoso)
sidade +/4+ na área tricúspide. O exame do abdome de-
monstrou hepatomegalia discreta e indolor. Havia edema em Discussão
membros inferiores, superiores e parede abdominal.
A radiografia de tórax em posição ântero-posterior Aspectos clínicos - A hipertensão pulmonar é defini-
mostrou aumento moderado da área cardíaca às custas de da como pressão no sistema arterial pulmonar superior a
átrio direito e abaulamento do arco médio esquerdo (fig. 1). 25mmHg em repouso e 30mmHg no exercício 1.
O eletrocardiograma evidenciou ritmo sinusal, fre- A hipertensão pulmonar primária é uma condição rara que
qüência cardíaca de 100bpm, SÂQRS + 120o, morfologia de se define clinicamente após a exclusão de todas as doenças
bloqueio de ramo direito em V1 com duração do QRS de cardíacas e pulmonares que possam causar elevação da pres-
0,08s e onda S profunda em V5 e V6, sugerindo sobrecarga são na artéria pulmonar e da resistência vascular. Tem como
de ventrículo direito (fig. 2 A e B). sintomas dispnéia, dor torácica, síncope e, ao exame, sinais de
O estudo hemodinâmico por meio da cateterização da ar- cor pulmonale em diferentes graus. Dentre as causas de hiper-
téria pulmonar por via venosa revelou pressão da artéria pul- tensão pulmonar secundária, destacamos doenças pulmona-
monar de 48mmHg (normal - 25mmHg) e resistência vascular res (doença pulmonar obstrutiva crônica, anomalias congêni-
tas), cardiopatias (congênitas, insuficiência cardíaca esquer-
da), doenças tromboembólicas, substâncias exógenas (cocaí-
na, anorexígenos), hipertensão portal, infecção pelo HIV 1.
Editor: Alfredo José Mansur (ajmansur@incor.usp.br)
Editores Associados: Desidério Favarato (dclfavarato@incor.usp.br) Vera
De acordo com os dados da observação clínica pode-
Demarchi Aiello (anpvera@incor.usp.br) mos descartar o caso como um quadro de hipertensão pul-
Editora Convidada: Maria Aparecida Barone Teixeira (caiacida@uol.com.br) monar secundária à estenose mitral, devido à pressão capi-
Correspondência: Alfredo José Mansur – InCor – Av. Dr. Enéas C. Aguiar, 44 –
05403-000 – São Paulo, SP
lar normal, o que permite sugerir o diagnóstico de hiperten-
são pulmonar primária, já que os dados do eletrocardiogra-

Arq Bras Cardiol, volume 76 (nº 4), 329-32, 2001

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Fig. 1 - Radiografia de tórax em projeção ântero-posterior.

Fig. 3 - Visão externa da face anterior do coração, mostrando abaulamento acentuado


da via de saída do ventrículo direito.

Fig. 4 - Corte do coração (do tipo 4 câmaras) exibindo dilatação e hipertrofia


ventricular direita (VD). Ao- aorta.

Necropsia
Fig. 2A e 2B – Eletrocardiogramas.

O coração pesou 600g e encontrava-se aumentado


devido ao espessamento difuso das paredes. A via de saída
ma e a imagem radiológica não as diferenciariam. O sopro de do ventrículo direito apresentava grande dilatação (fig. 3).
insuficiência tricúspide pode estar justificado pelo provável Os ventrículos tinham cavidades pouco aumentadas e os
aumento do ventrículo direito. átrios estavam moderadamente dilatados (fig. 4). Não havia
valvopatia reumática e a valva tricúspide estava suficiente
(Dra. Maria Aparecida Barone Teixeira quando fizemos o teste de refluxo. O estudo microscópico
(Acadêmico Sandrigo Mangini) do miocárdio revelou hipertrofia das fibras.

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Fig. 5 - Fotomicrografia do parênquima pulmonar onde se observam vasos pré- Fig. 6 - Fotomicrografia de ramos arteriais pulmonares intra-acinares, apresentan-
acinares com hipertrofia da túnica média (setas). Hematoxilina-eosina, aumento ori- do hipertrofia isolada da túnica média. Coloração de Müller, aumento original de
ginal de 40 vezes. 400 vezes.

Tabela I - Porcentagem de espessura da camada média em relação ao diâmetro externo das artérias pulmonares periféricas

Diâmetro externo Diâmetro externo % de espessura da túnica % de espessura da túnica


(µm) médio (µm) média- valores normais* média- valores encontrados

0-50* 27,25 9,6 35,2


51-100** 77,84 7,4 13,5
101-200*** 135,35 7,2 19,3

* Vinte arteríolas medidas; ** dez arteríolas medidas; *** oito arteríolas medidas; * valores normais de acordo com Haworth e Hislop 5.

Os pulmões estavam pouco congestos e os ramos queio de ramo direito. O eletrocardiograma não mostrou
principais e periféricos da artéria pulmonar não apresenta- hipertrofia das câmaras esquerdas, não refletindo, portanto,
vam trombose, embolia ou mesmo lipoidose (fig. 5). O fígado os achados necroscópicos.
tinha o aspecto de congestão passiva, o que foi confirmado Com relação à histopatologia, não existe no presente
pela histologia. O exame histopatológico dos pulmões de- caso arteriopatia pulmonar plexogênica.
monstrou, pela coloração de hematoxilina-eosina, parênqui- Embora na hipertensão pulmonar primária não exista
ma pulmonar normal e artérias sem lesões oclusivas da ínti- uma lesão histológica considerada patognomônica, na
ma. Foi realizada a coloração de Müller para evidenciar fi- maioria dos casos relatados há lesões proliferativas da ínti-
bras elásticas, sendo feita a medida da porcentagem de es- ma e lesões dilatadas, como as plexiformes e as angiomatói-
pessura da túnica média das arteríolas com diâmetros exter- des 2-4; apenas uma minoria mostra hipertrofia isolada da
nos de 0 a 50mm, de 51 a 100mm e de 101 a 200mm. Essas média, como o nosso paciente.
medidas evidenciaram, respectivamente, um aumento de 4, Os sintomas apresentados pelo paciente, como disp-
2 e 3 vezes a espessura normal, confirmando a arteriopatia néia, cianose e edema, são os equivalentes clínicos do de-
caracterizada por hipertrofia isolada da média. As medidas senvolvimento da arteriopatia e conseqüente cor pulmo-
foram realizadas com auxílio do sistema Quantimet-500 nale, entretanto, chama atenção a falta de correlação entre a
Leica de análise de imagens. gravidade/intensidade das lesões histológicas (somente hi-
pertrofia da média, sem lesões intimais oclusivas) e os sinto-
(Dra. Maria Aparecida Barone Teixeira) mas do paciente 1,2. Apesar de se observar uma maior resis-
(Dra. Vera Demarchi Aiello) tência pulmonar nos pacientes com lesões plexiformes, exis-
te muita heterogeneidade entre as medidas hemodinâmicos
Comentários e o padrão histológico 2. Não podemos em nosso caso, cor-
relacionar o grau de arteriopatia (hipertrofia da média), com
O confronto anátomo-radiográfico está concordante, os níveis pressóricos da artéria pulmonar, fato que também
pois a peça reflete bem a silhueta do coração à radiografia de não foi relatado na literatura pesquisada. Pietra e cols. 2, em
tórax, principalmente a proeminência da via de saída do 58 casos de portadores de hipertensão pulmonar primária,
ventrículo direito, isto é, da artéria pulmonar. A hipertrofia do demonstraram que os pacientes com arteriopatia plexiforme
ventrículo direito, tanto macro como microscopicamente, é apresentam maiores níveis pressóricos da artéria pulmonar,
o substrato anatômico fiel das alterações eletrocardiográfi- quando comparados com arteriopatia trombótica ou doença
cas, ou seja, eixo de QRS para direita, e morfologia de blo- veno-oclusiva; em seu único caso com apenas hipertrofia

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da média, não há relato sobre o nível pressórico da artéria Observando os valores da tabela I, existe um maior grau
pulmonar. Palevsky e cols. 6, em 19 casos de hipertensão de hipertrofia da média das arteríolas de menor diâmetro (0-
pulmonar primária, três deles com hipertrofia isolada da mé- 50µm), o que poderia estar relacionado com a evolução tão
dia, não demonstraram diferença significativa entre os ní- rápida ao óbito, uma vez que estas são responsáveis pela
veis de pressão da artéria pulmonar e o grau de arteriopatia. maior resistência vascular. Entretanto, não encontramos re-
O quadro clínico súbito e a morte do paciente diante do ferência ou relato semelhante na literatura pesquisada. Vale
achado anatomopatológico, exclusivo de hipertrofia da mé- ressaltar que não evidenciamos nenhuma outra causa para
dia, é um fato a ser discutido, uma vez que os três pacientes explicar a descompensação do estado hemodinâmico e con-
de Palevsky e cols. 6 com este tipo de arteriopatia não evo- seqüente óbito.
luíram desta maneira. No estudo de Pietra e cols. 2, não há rela-
to da evolução do paciente com o mesmo tipo de lesão. (Dra. Maria Aparecida Barone Teixeira)

Referências

1. Rubin LJ, et al. Primary pulmonary hypertension – ACCP Consensus Statement. arteries with special reference to congenital cardiac septal defects. Circulation
Chest 1993; 104: 236-50. 1958; 18: 533-47.
2. Pietra GG, Edwards WD, Kay JM, et al. Histopathology of primary pul- 4. Wagenvoort CA. Grading of pulmonary vascular lesions – a reappraisal.
monary hypertension – A qualitative and quantitative study of pulmonary Histopathology 1981; 5: 595-8.
blood vessels from 58 patients in the National Heart, Lung, and Blood 5. Haworth, SG, Hislop AA. Pulmonary vascular development: normal values of
Institute, Primary Pulmonary Hypertension Registry. Circulation 1989; 80: peripheral vascular structure. Am J Cardiol 1983; 52: 578-83.
1198-1206. 6. Palevsky HI, Schloo BL, Pietra GG, et al. Primary pulmonary hypertension –
3. Heath D, Edwards JE. The pathology of hypertensive pulmonary vascular vascular structure, morphometry, and responsiveness to vasodilator agents.
disease. A description of six grades of structural changes in the pulmonary Circulation 1989; 80: 1207-21.

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