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Poesia Revoltada

Poesia Revoltada
Ecio Salles

Patrocínio Apoio
Copyright © 2007 Ecio Salles
COLEÇÃO TRAMAS URBANAS
curadoria
HELOISA BUARQUE DE HOLLANDA
consultoria
ECIO SALLES
projeto gráfico
CUBÍCULO
POESIA REVOLTADA
produção editorial
LARISSA DE MORAES e ROBSON CÂMARA
revisão
BRUNO DORIGATTI
revisão tipográfica
BRUNO DORIGATTI

S163p
Salles, Ecio de
Poesia revoltada / Ecio Salles. - Rio de Janeiro: Aeroplano, 2007.
il.;.-(Tramas urbanas; 3)
Anexo
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-7820-000-8
1. Hip-hop (Cultura popular jovem) - Brasil. 2. Rap (Música) -
Aspectos sociais - Brasil. 3. Música e juventude - Aspectos sociais -
Brasil. 4. Poesia de protesto. 5. Movimento da juventude. I. Título. II.
Série.

07-4022. CDD: 305.2350981


CDU: 316.346.32-053.6(81)
22.10.07 22.10.07 004022

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS


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Nas tantas periferias brasileiras – periferia urbana, peri-
feria social – se reforçam cada vez mais movimentos
culturais de todos os tipos. Os mais visíveis talvez sejam
os de alguns segmentos específicos: grupos musicais,
grupos cênicos, grupos dedicados às artes visuais. Mas
de idêntica importância, embora com menos visibilidade,
é a produção intelectual que cuida, além de questões
artísticas, de temas históricos, sociais ou políticos.
A coleção Tramas Urbanas faz, em seus dez volumes,
um consistente e instigante apanhado dessa produção
amplificada. E, ao mesmo tempo, abre janelas, estende
pontes, para um diálogo com artistas e intelectuais que
não são originários de favelas ou regiões periféricas dos
grandes centros urbanos. Seus organizadores se propõem
a divulgar o trabalho de intelectuais dessas comunidades
e que “pela primeira vez na nossa história, interpelam, a
partir de um ponto de vista local, alguns consensos ques-
tionáveis das elites intelectuais”.
A Petrobras, maior empresa brasileira e maior patroci-
nadora das artes e da cultura em nosso país, apóia essa
coleção de livros. Entendemos que é de nossa responsa-
bilidade social contribuir para a inclusão cultural e o for-
talecimento da cidadania que esse debate pode propiciar.
Desde a nossa criação, há pouco mais de meio século,
cumprimos rigorosamente nossa missão primordial, que
é a de contribuir para o desenvolvimento do Brasil. E lutar
para diminuir as distâncias sociais é um esforço impres-
cindível a qualquer país que se pretenda desenvolvido.
Agradecimentos

Agradeço a pessoas que participaram direta ou indiretamente


da realização deste livro. A todas elas devo, por diferentes
razões, a concretização deste projeto. Reitero o agradecimento a
Claudia Matos, minha orientadora à época do Mestrado, na UFF,
cujos comentários e críticas fortaleceram o texto que escrevi.
A Heloisa Buarque de Hollanda, incentivadora de primeira hora,
leitora atenta e agora, minha editora.

Ilana Strozenberg, que leu os originais e deu sugestões preciosas.

José Junior, Tekko Rastafári e todos do Afro Reggae.

Ierê Ferreira, pelas fotos e tudo o mais.

Meus irmãos Erlon e Edwiges de Salles.

Airá, Bragga, Chico, Ment e toda a galera da Nação; Celso


Athayde, MV Bill e a galera da CUFA; Daniel Guimarães, Júlio
França, Sérgio Bugalho; Def Yuri; DJ TR; Elisa Ventura, Christine
Diegues e todos da Aeroplano Editora; George Yúdice; Gog; Jaíl-
son de Souza; José Marmo; Leonardo Lichote; Manoel Ribeiro;
Nino Brown; Omar Salomão; Racionais: Mano Brown, Ice Blue,
Edy Rock e KLJ; Rosana Heringer; Rossana Rodrigues; Santuza
Naves; Sônia Torres; Tatiana Roque; Thaíde e DJ Hum.
À minha mãe, Marié, que me deu meu caminhar,
Ao meu amor, Daniele, que nele me acompanha
À mãe Nini, que lhe trouxe axé.
Sumário

11 Apresentação — DJ Raffa
13 Prefácio — Omar Salomão
19 Preâmbulo

24 Cap.01 A poesia revoltada: rap, hip-hop e rappers

36 Cap.02 Rap: cultura popular, arte à margem

54 Cap.03 Rap e contranarrativa

72 Cap.04 Um senão: da legitimidade do rap

88 Cap.05 A palavra armada

124 Cap.06 Da ginga do samba à marra do rap

140 Cap.07 Poesia Revoltada: a Nação não-cordial

168 Anexo O som negro do gueto: a senzala contra a casa-grande

211 Referências Bibliográficas


217 Legendas e créditos de imagens
222 Sobre o autor
Apresentação

O que é erudito e o que é popular na cultura brasileira nos dias


atuais? Será que no meio popular não existe o erudito? Onde o
hip-hop se enquadra em nossa cultura?

Ecio Salles afirma:


Temos de um lado a cultura popular, dispondo de grande público e
prestígio nos diversos meios de comunicação; de outro, a cultura
das elites, restrita a pequenos círculos de iniciados, quase sem-
pre ressentidos de sua escassa visibilidade.

O rap não é – nem será em sua forma atual – uma cultura de elite,
seja ela dominante ou pensante. Mas é, isto sim, uma forma válida
de manifestação cultural que, como todas as outras, tem sua “elite”,
formada por seus expoentes, seus melhores artistas e seguidores.
No entanto continua, mesmo depois de três décadas, a mais eru-
dita das expressões populares. Pelo preconceito da sociedade e
pela fraca exposição na mídia, fica restrita a poucos. E sua pecu-
liaridade reside aí: ele é ao mesmo tempo popular e erudito.

Ecio escreve com brilhantismo e competência sobre assuntos


que, na maioria das vezes, são relatados de modo equivocado por
aqueles que se dizem profundos conhecedores da cultura hip-
hop. O rap – forte aliado na afirmação de identidades específicas,
visto sua apropriação pelas elites – e o sampling, acusado de
“necrofilia artística”, têm sido os alvos preferidos.

11
Contra essa corrente, temos rappers se valendo da palavra e de
sua voz como arma que fala pela favela, buscando no passado
brasileiro parentescos capazes de legitimar o seu modo de
expressão. Este livro nos leva a uma profunda reflexão sobre o
papel essencial que tem o hip-hop nas comunidades brasileiras,
e nos conta como alguns legítimos representantes o eternizaram
através de suas poesias urbanas.

Raffaello Santoro (Dj Raffa)


Táticas de Guerrilha

Tenho a impressão de que setenta por cento dos prefácios


são encomendados na porta da gráfica, para ontem. O livro a
caminho do prelo, a mudança de idéia e o pedido. Para ontem,
se possível. Felizmente, esse curto prefácio começou a ser
escrito uns anos atrás. A tese – “Poesia Revoltada: rap, raça e
cultura brasileira” – recém-defendida pelo Ecio me foi entregue
pela Heloisa Buarque de Hollanda. Eu trabalhava na Aeroplano
na época, e a tese acabou me servindo de bibliografia para um
trabalho da faculdade sobre hip-hop. Lembro ainda de assistir,
na seqüência, a uma palestra do Ecio no PACC-UFRJ, sobre o
tema. Mas eu já conhecia o Ecio de antes, do Afro Reggae.

Ainda moleque, em 1997, fui para Vigário Geral com meu pai e
Bernardo Vilhena na inauguração do Centro Cultural do Afro
Reggae. No ano seguinte, Ecio publicou um poema meu no jornal
do grupo – na edição que comemorava a primeira turnê deles
pela Europa.

Felizmente, comecei esse texto alguns anos atrás. O Ecio come-


çou faz tempo sua história com o rap, o hip-hop, e toda essa cul-
tura da margem – cultura inquieta, de misturas, de aluvião e que
de revoada se mistura com a água revolta da chuva. E fica aquela
tontura de não entender muito bem de onde tudo isso saiu.
A favela era então pra mim um espaço, de algum modo, comum.

13
14 Poesia Revoltada

Focalizo o trabalho de rappers que se posicionam claramente


como porta-vozes das comunidades pobres que os viram nascer
e motivaram a sua arte. Racionais MCs, MV Bill, Gog. São Paulo,
Rio de Janeiro, Brasília. O rap politizado mostra a face. A face da
favela e a devolve para a favela. Com os favos recheados de mel
e os dentes carregados de veneno, da vida cansada. A favela
abre seus espaços, (..) a favela como um espaço possível de
construção de uma outra perspectiva – sobre a própria favela,
sobre a cidade, talvez sobre o mundo até. A voz que emerge da
favela em busca de voz. Ser uma espécie de mediador entre a
favela e a sociedade de maneira geral. De uma favela que trans-
borda de verdade e realidade, rasgando as mentes plásticas a
caminho de suas casas de plástico. E os rappers, verdadeiros
mensageiros, estabelecem um vínculo entre arte, cultura e o
cotidiano de suas comunidades.

O que Ecio faz é destrinchar a trincheira e nos mostrar a força


e solidez desta manifestação artística impregnada de uma rea-
lidade que a tantos tanto incomoda. Arte de conjunto, que se
alia, que dialoga com outras artes – seja no grafitti, no break, no
vídeo. Que é viva e explode, e questiona e briga. Transforma-se e
se contradiz, porque nada é sempre igual – pois se adapta para
continuar lutando.

O rapper põe em relevo a fala dos que não falam, e se esforça


em fazer-se entender pelos seus da melhor maneira possível.
Por isso, procura interessadamente refazer os laços com a vida,
com a realidade que o cerca. Ecio realiza um trabalho cirúrgico,
disseca corajosamente a carcaça viva e mutante do rap, sem
medo de ser mordido no processo, pois o processo lhe é natural.
Como canta MV Bill:
Vamos fazer uma longa viagem/ (...) na vida dura/ Na vida simples.
Na vida triste/ De muitas pessoas que como nós/ Vivem às mar-
gens da sociedade. Vivem sem voz, acuadas e oprimidas/ Vamos
fazer uma longa viagem/ Numa cidade que segue sofrendo/ Que
sofre vivendo e que chora sorrindo e sangra sem choro.
Prefácio 15

Ecio Salles está em vantagem. Tem uma visão privilegiada do


processo, sem estar de fato no processo. Mas também sem o dis-
tanciamento asséptico do colonizador. Ecio tem conhecimento
de causa e se utiliza dele com habilidade. Conhece a favela.
Conhece os meandros acadêmicos. Sabe fazer as conexões.

Sem tentar domar a besta, a ilumina de tal forma que nos faz
pensar sobre toda a cultura brasileira. “A gente vive se matando
irmão/ Por quê?/ Não me olhe assim/ Eu sou igual a você”,
MV Bill questiona e incita. Através dos rappers, Ecio nos apre-
senta o surgimento de um novo discurso sobre a identidade
brasileira. Uma fala imperativa, direta. “É preciso estar atento,
consciente” (MV Bill). O valor da mensagem.

Ecio Salles traça um reflexo atual do Brasil real marcado pelo


crescimento da miséria, declínio da educação e saúde, avanço
do desemprego, proliferação das favelas, preservação de pre-
conceitos e discriminações herdadas da escravidão, tudo isso
gerando o recrudescimento da violência, a violência do Estado,
representada pela força policial, e a oriunda do crescimento do
narcotráfico – instaurou um clima de guerra,(...) cuja resposta
mais virulenta veio das favelas.

Um espaço que troca a mandinga, o gingado, pela constância


industrial dos projéteis. O punhal trocado pelo fuzil. O samba
posto de lado porque camisa de seda não segura bala. “A pri-
meira faz bum, a segunda faz tá/(...)/ minha palavra valeu um
tiro, eu tenho muita munição (...)/ o rap venenoso é uma rajada
de PT” (Racionais MCs). Através do rap, Ecio nos apresenta a
imagem de um país em cacos. Cacos de vidro.

Omar Salomão
16
17
Preâmbulo
Eu moro no pé do morro
que fica ao lado de uma favela
é tão perto que eu acho
que eu faço parte dela.
Trecho de “Raça Brasileira”,
de Zé do Cavaco, Mathias de Freitas e Elaine Machado

Às vezes são enviesados os caminhos que nos levam ao nosso


destino. No final da década de 80 ouvi, no filme Faça a coisa a
certa, de Spike Lee, um rap que me impressionou muito: “Fight
the power”, do Public Enemy. No início da década de 90 fui sur-
preendido por um disco, emprestado por um amigo, do grupo
Racionais MCs. Foram duas experiências que se refletiram
positivamente em mim. Não descansei até que tivesse adqui-
rido os dois discos – Fear of a black planet, do Public Enemy,
e a Antologia B.O., dos Racionais. Mais tarde, conheci outros
grupos e artistas de rap. De uns gostei mais, de outros, menos.
De qualquer forma, o rap era apenas um estilo de música que
me interessava. Não passava por minha cabeça um dia escrever
sobre o tema. Isso começou a mudar no final de 96, foi quando
travei o contato mais próximo com o Grupo Cultural Afro Reggae,
instituição na qual ingressaria no ano seguinte.

19
20 Poesia Revoltada

A própria história do Afro Reggae é em si interessante e guarda


alguns pontos de contato com certos aspectos da cultura hip-
hop, ou pelo menos de uma certa cultura hip-hop. O trabalho
que o grupo vinha realizando em favelas do Rio de Janeiro –
naquela época Vigário Geral, na Zona da Leopoldina, já encos-
tando em Caxias, e no Complexo Cantagalo-Pavão-Pavãozinho,
em Ipanema, Zona Sul da cidade – já começava a se destacar
como importante forma de mobilização de processos de cida-
dania e transformação social através da arte. Eu comecei como
revisor do jornal publicado pelo grupo, o Afro Reggae Notícias.
Depois, em 97, passei a integrar a equipe editorial do periódico.
Mais tarde, essa equipe seria desfeita por diferentes razões, e
eu permaneceria, agora como editor do veículo.

O fato de trabalhar no Afro Reggae, de conviver com os integrantes


do grupo, seus parceiros, seu ambiente, provocou duas mudan-
ças substanciais em meu modo de ver o mundo. O primeiro dizia
respeito à minha relação com o espaço das favelas. O segundo, à
minha relação com a cultura popular.

Nasci e cresci em Olaria, um bairro do subúrbio da Zona da Leo-


poldina, bem no local onde o asfalto começa a subir o morro.
O Morro do Alemão, no caso. No tempo de minha infância até
a adolescência, ninguém o chamava de Complexo, como nos
acostumamos a fazer hoje. Chamávamos cada localidade por
seu nome: Morro da Esperança (ao pé do qual minha casa e
parte da minha vida ergueram seus alicerces); Morro da Baiana;
Nova Brasília; Fazendinha; Morro do Adeus... São dezesseis ao
todo, hoje reunidas sob o estigmatizado epônimo de “Complexo
do Alemão”. O curioso é que o tal alemão que deu nome ao local –
um antigo sitiante que acabou perdendo as terras para as famí-
lias que foram subindo as encostas e construindo os primeiros
barracos – era, na verdade, polonês, segundo algumas versões
para a fundação da comunidade, ou holandês, segundo outras.

A favela era então para mim um espaço ao qual, de algum


modo, eu pertencia. Espaço de aventuras, porque a molecada
Preâmbulo 21

da minha época impunha desafios, como subir até o cume do


morro, de onde se podia ver o bairro de Inhaúma, ou até as
pedras no lado desabitado, pra caçar coruja viva (tarefa na
qual sempre fracassei redondamente). Era também o espaço
onde fiz amizades, conquistei amores (e algumas decepções)
e cultivei histórias. Não só no Alemão, mas também em Acari –
outra comunidade famosa, personagem do belo livro de Marcos
Alvito1 – onde moravam parentes que freqüentávamos bastante.
Também na Rocinha, onde minha mãe tinha uma grande amiga,
cujo filho ajudou a construir parte da minha casa em Olaria e se
tornou bom amigo da família. Ainda bem garoto, eu gostava de
visitá-lo e avistar, meio de longe, é verdade, as rodas de samba
nas curvas sinuosas da favela, que, naquela época, era conside-
rada a maior da América Latina.

Entretanto, nunca tinha percebido a favela como um espaço


onde fosse possível a construção de uma outra perspectiva
sobre a própria favela, sobre a cidade, talvez até sobre o mundo:
a favela como sujeito de transformação social. Não a estigma-
tizada: da miséria, da violência e das guerras de facção, que
ganhava as capas de revista e folhas de jornal. Tampouco a ide-
alizada: espaço improvável da revolução armada ou da pobreza
feliz e conformada, dona da razão de descumprir deveres (pagar
contas, impostos etc.) por não ter acesso aos direitos. Com meu
trabalho no Afro Reggae, aprendi a descobrir a favela como um
espaço múltiplo e criativo, capaz de converter a precariedade
em potência transformadora. E, de certa forma, passei a me
sentir ainda mais ligado a esse mundo.

Quanto à minha relação com a Cultura Popular, creio que o


aspecto mais relevante foi a passagem de um ponto de vista de
curioso apaixonado, que desde sempre foi o meu em relação a
esse universo, ao de personagem, de algum modo atuando na
história, interagindo ativamente com o reino da arte. O que me
tornou ainda mais curioso. Ainda mais apaixonado. Talvez por

1 Alvito, Marcos. As cores de Acari. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2001.


22 Poesia Revoltada

isso, diante de minha falta inata de talento para a música (ou o


teatro, ou a dança), tenha me tornado pesquisador.

Esse movimento, por vias inesperadas, também foi devido à


minha relação com o Afro Reggae. Em 1997, tinha desistido da
faculdade e, um ano depois, me deparei com um mundo tão fas-
cinante e tão repleto de possibilidades, que decidi refletir sobre
ele. De certa forma, sinto que esse era um modo de mostrar gra-
tidão pela descoberta e pelas razões que a ela me conduziram.
Ao mesmo tempo, a opção por estudar essas manifestações da
cultura popular era uma maneira de reatar pontos mal resol-
vidos de minha trajetória, considerando que nunca tinha sen-
tido com precisão qual o meu papel naquele contexto. Dessa
forma, paradoxalmente, foi o fato de trabalhar numa associação
visceralmente jovem e popular que me reconciliou com a uni-
versidade. Fez-me perceber novas potencialidades do trabalho
acadêmico. Novas para mim, que não as havia percebido antes.

Foi assim que, após me formar na UERJ, em 1999, participei da


seleção para o Mestrado em Literatura Brasileira da Univer-
sidade Federal Fluminense. Aprovado, comecei o curso com
o entusiasmo de um adolescente. Mas também com grandes
preocupações. O tema que me instigava – a produção de hip-
hop no Brasil e suas articulações com a questão da identidade
nacional – era bem pouco ortodoxo e eu já previa problemas.
De fato, preocupava-me a adequação do tema à disciplina,
depois às linhas de pesquisa e, finalmente, como encontrar a
orientação adequada. Superados os problemas, em 2002 con-
cluí a pesquisa, que havia priorizado sobretudo o período com-
preendido entre o final da década de 90 e início da seguinte.
É justamente o resultado desse trabalho que agora se desdobra
na publicação deste livro, com algumas modificações a fim de
amenizar um pouco a sua inflexão acadêmica.

Desde então, alguns aspectos da cultura hip-hop se modifica-


ram, com maior ou menor intensidade. De qualquer forma, sem-
pre me deixando a certeza de que uma reflexão sobre o assunto,
Preâmbulo
23

por mais consistente que seja, é necessariamente provisória.


Mal terminei de escrever este trabalho, todos os rappers ou
grupos de rappers que estudei lançaram novos discos, trazendo
novas questões, aqui e ali contradizendo, ou pelo menos proble-
matizando, conclusões a que eu tinha chegado. De todo modo, o
fato é que todos eles, certamente, ainda lançarão outros álbuns,
trazendo mais uma vez novos ingredientes para a discussão.

Da mesma maneira, também de mim se possa dizer o mesmo.


Após concluir o trabalho, outras informações, experiências
ou acontecimentos fizeram com que eu amadurecesse, e em
alguns casos até repensasse algumas das questões que aqui
abordadas. Isso é importante, uma vez que só acredito no tra-
balho intelectual se movido por inquietação e curiosidade. É a
partir daí que dou os primeiros movimentos na direção do tema
da pesquisa, das teorias e das metodologias a serem emprega-
das. Por isso, parece-me inevitável que ainda outras mudanças
venham a acontecer, tanto no contexto do hip-hop quanto no
da teoria ou no da minha forma de ver o mundo. O que está
impresso neste volume é um olhar parcial sobre um caso e um
momento específico da cultura popular. Um momento em que,
nesse campo, se conquistava uma posição estratégica para
os debates que se seguirão a respeito de raça, racismo, iden-
tidade, nação e da própria cultura. Outros casos e momentos
virão, certamente. Espero estar lá, a fim de prosseguir nesse
tenso, intenso diálogo.
24

CAP.01

A poesia revoltada
rap, hip-hop e rappers.
rappers.
25

rap, hip-hop e
rappers.
O rap sempre esteve aqui, desde quando Deus falou com Adão,
Moisés e os profetas. Ele cantava rap para eles.
(...) Mesmo Shakespeare já rimava e cantava rap na sua época.
Assim, o rap sempre esteve aqui.
Afrika Bambaataa

Do Bronx à estação São Bento

De modo bastante sintético, pode-se dizer que o rap é uma


forma de expressão musical criada em meados dos anos 70,
nos Estados Unidos, embora suas raízes remetam a uma movi-
mentação musical já presente no final dos anos 60 – “As raízes
do rap remontam pelo menos ao fim dos anos 1960 e aos Last
Poets, um coletivo de jovens negros militantes que puseram
sua raiva em rimas e percussão” (Cachin, 1996: 16). De forma
bastante resumida, pode-se dizer que tudo começou quando
um velho costume dos jovens da Jamaica, o toastie (falas
ou canções improvisadas sobre uma base instrumental), foi
transplantado para Nova York pelo DJ jamaicano Kool Herc.
Também contribuíram para a gênese e o desenvolvimento do
rap as atuações dos DJs Grand Master Flash e Grand Wizard
Theodor e as idéias musicais inovadoras de Afrika Bambaataa.
Este último, um ex-membro de gangue de rua do Bronx, remixou
a faixa “Trans-Europe Express”, da banda de música eletrônica
alemã Kraftwerk, dando à luz “Planet Rock”, a composição que

26
27
28 Poesia Revoltada

marcaria o início de uma revolução musical. Naquele momento,


entretanto, o rap era sinônimo de entretenimento – era o som
que embalava as grandes festas que, a partir de 1976, tomaram
conta do Bronx, bairro negro de Nova York.

Anos depois, já no início da década seguinte, aparece o rap de


caráter politizado. “How we gonna make the black nation rise?”,
gravado em 1980, é um dos primeiros exemplos de rap a assu-
mir uma postura militante e politicamente engajada. Esse estilo
desviava-se consideravelmente das idéias pacifistas propostas
inicialmente por Bambaataa, mas mostrou-se muito significativo
para a população afro-americana naquele momento. Poucos
anos depois, surge o Public Enemy, grupo que teve grande impor-
tância, porque representou um novo momento para o rap não só
nos Estados Unidos, mas também no Brasil. Com um discurso
muito mais politizado e trazendo certa sofisticação no tocante à
exploração de novas possibilidades sonoras, o Public Enemy ins-
pirou inúmeros rappers, entre os quais os incluídos neste livro.

No Brasil, o rap se consolidou no final da década de 80. Os pri-


meiros rappers aqui surgiram de equipes de breakdance que se
encontravam no centro de São Paulo, primeiro na Praça Ramos,
em frente ao Teatro Municipal, depois na rua 24 de maio e, final-
mente, na Estação São Bento do metrô paulistano, que acabou
se tornando uma espécie de santuário do hip-hop no Brasil.
Thaíde e DJ Hum, que integravam a equipe de breakdance Back
Spin, participaram da primeira coletânea de rap a obter reper-
cussão nacional, intitulada Hip-hop cultura de rua, em 1988,
que vendeu mais de 25 mil cópias (Rocha; Domenich; Casseano,
2001: 51). Cerca de uma década depois, o “fenômeno” Racionais
MCs tornou a linguagem de artistas que se reivindicam negros
favelados conscientes conhecida em todos os grandes centros
urbanos do país, seduzindo inclusive uma parcela significativa
da classe média no Rio de Janeiro, cidade que podemos consi-
derar uma espécie de termômetro cultural do Brasil.
A poesia revoltada - rap, hip-hop e rappers 29

Esse sucesso, até porque se construiu à revelia da grande mídia,


atraiu a atenção de diversos setores da sociedade – como a pró-
pria mídia, as grandes gravadoras, os intelectuais. Na verdade,
muita gente se surpreendeu com o fato de grupos surgidos em
favelas paulistas, com uma linguagem politizada e virulenta, tor-
narem-se referência para sua gente e, ao mesmo tempo, trilhas
sonoras de carros importados circulando pelos bairros nobres
dos principais centros urbanos do país.

O rap e o hip-hop

O rap é parte de uma realidade maior: a cultura hip-hop. O termo


foi estabelecido por Afrika Bambaataa, em 1978, e fazia referên-
cia a uma forma de dançar, popular à época, que consistia em
saltar (hop) e movimentar os quadris (hip). O hip-hop tornou-se,
então, uma forma de organização sociocultural que envolve
o rap (MC e DJ), dança (break) e artes plásticas (graffiti). Sem
falar em uma indumentária específica – da qual bonés, roupas
e tênis esportivos são o destaque – que, no mundo inteiro, esta-
belece a moda hip-hop.
MC (Mestre de cerimônias): o termo é adaptação do inglês “mas-
ter of cerimony”. O MC é aquele que “fala” enquanto a música é
tocada. Devido ao fato de, no Rio de Janeiro particularmente, o
termo MC ter sido primeiramente associado à cultura funk, pre-
feri utilizar neste livro a designação “rapper”.

DJ (Disc-Jockey): originalmente, o DJ era o animador de um


programa musical em rádio, aquele que selecionava os discos,
determinava sua ordem de passagem e seu encadeamento. Em
meados dos anos 70, tornou-se, graças à evolução tecnológica
dos meios de reprodução e à extensão dos processos de mani-
pulação da matéria sonora, um criador completo. O par DJ/MC (ou
rapper) constitui a espinha dorsal do rap.
32 Poesia Revoltada

Breakdance: dança de passos quebrados e robóticos que “vai


desenvolver-se ao sabor da contorção dos breaks1 entre e dentro
das músicas”, consistindo na execução de passos que tentam
imitar a maneira sincopada com que a música rap se apresenta
(Contador & Ferreira apud Pimentel, 1999: mimeo). Muitos passos
dessa forma de dança, surgida em finais dos anos 60, represen-
tam protestos contra a Guerra do Vietnã. Alguns simulavam os
movimentos dos soldados norte-americanos que retornavam
mutilados, outros aludiam a equipamentos utilizados no conflito.
É o caso de um giro de corpo, executado com a cabeça apoiada no
chão e as pernas para cima, de forma a mimetizar as hélices dos
helicópteros que atuaram na guerra.

Graffiti: Basicamente, pinturas feitas, na maioria das vezes com


tinta spray, sobre as mais variadas superfícies: muros, laterais
de trens, painéis... Alguns autores remetem aos desenhos feitos
nas paredes das cavernas pelos primeiros homens as primeiras
manifestações do graffiti. Na década de 70, ele é apropriado
pelos negros e latinos dos guetos novaiorquinos, que exercitavam
suas habilidades pintando seus nomes (a escritura de nomes nas
paredes é conhecida entre os grafiteiros como “tag”) e persona-
gens em vagões de trem e metrô, paredes de linhas férreas, pré-
dios abandonados, becos. Com isso, fizeram do graffiti um veículo
eficaz de sua indignação.

Os rappers

Para não me perder no labirinto de informações que o assunto


escolhido me disponibiliza, proponho um recorte muito claro:
minha reflexão partirá da análise das letras dos raps, embora
não me furte a eventualmente considerar também o ritmo e a
melodia (incluindo aí, naturalmente, o aproveitamento de tec-
nologias sonoras) e, sobretudo, a voz/performance na execução
das composições de, basicamente, três rappers.

1 Break beats: parte das músicas em que a batida ganha relevo. Esta é funda-
mentada no recorte e repetição, às vezes alteração de velocidade, de uma célula
rítmica escolhida pelo DJ.
A poesia revoltada - rap, hip-hop e rappers 33

São eles: Racionais MCs (SP); MV Bill (RJ) e Gog (DF). Foram
escolhidos tão somente em virtude de serem, na minha opinião,
expressivos o suficiente para representar um tipo de rap que
selecionei, e terem consolidado uma carreira, de certo modo, não
restrita a um círculo fechado. Em suma, todos eles comungam
algumas características relevantes para o encaminhamento a
que me propus: são afro-brasileiros e se reivindicam como tais;
nasceram em comunidades pobres de grandes centros urbanos
do país (São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília); seus trabalhos con-
seguiram projeção nacional e gozam de notável reconhecimento
por parte de um público que transcende as fronteiras de suas
comunidades; todos se sentem, segundo pude notar, parte de
um movimento ou de uma cultura comum, que se define por
recorte racial e posicionamento político.

Esses rappers também têm em comum o fato de que – na contra-


mão do que tem sido destacado com relação a outras manifesta-
ções da música popular negra – preferem não sorrir em público,
nem dançar ou cantar com o que se julga ser “o suingue típico
dos negros”. Em resumo, alegria e descontração não são esperá-
veis num show desses artistas ou grupos, pelo menos não como
acontece numa apresentação, por exemplo, de Gabriel O Pensa-
dor, no universo do rap, ou do grupo Negritude Jr., fora dele.

Hoje em dia não é possível falar num estilo único de rap. Há


rappers que insistem na fórmula DJ e MC, e outros que preferem
atuar acompanhados por bandas; há aqueles que condenam de
forma veemente as drogas, e aqueles que as defendem fervoro-
samente (o grupo carioca Planet Hemp, por exemplo). Isso nos
permite imaginar categorias nas quais pudéssemos estabelecer
estilos de rap diferentes entre si. Quero deixar claro que meus
comentários referem-se a uma modalidade específica de rap.
Nem sempre o que direi sobre esta servirá para as outras. Passo
a discriminar as que considero como principais.

O funk Miami, notadamente no Rio de Janeiro, foi muito confun-


dido com o rap. Talvez porque, quando surgiu nos morros cario-
34 Poesia Revoltada

cas, os funkeiros se autodenominassem “MCs” e as músicas


que cantavam fossem denominadas “raps”. O nome refere-se
ao fato de os DJs de funk utilizarem quase sempre o beat criado
naquela cidade dos Estados Unidos, por isso denominado
Miami bass.

O gangsta rap se caracteriza pela batida mais pesada. As letras


tratam de crimes, drogas, violência, prostituição, conflitos entre
gangues. O nome tem origem numa corruptela do termo gangster,
e o mundo violento que cantam é a expressão de uma realidade
brutal: em 1997, dois dos maiores representantes desse gênero
– Notorious BIG e Tupac Shakur – foram assassinados a tiros por
causa de brigas de gangues. No Brasil, o gangsta não se difundiu
muito. Os exemplos mais conhecidos estão em Brasília, onde gru-
pos como o Cirurgia Moral assumem alguns aspectos do estilo.

Há também o rap gospel. Como o nome indica, esse gênero é


voltado para a religiosidade. No Brasil – em contraste com os
Estados Unidos, onde grande parte dos rappers são muçulma-
nos – os grupos ou rappers gospel dedicam-se à glorificação de
Jesus Cristo. Em muitos casos, não se trata de uma adesão às
religiões cristãs, católica ou protestantes. O que lhes interessa
é a pregação dos ensinamentos de Cristo, que é reinterpretado
como um homem negro, que pregava ideais semelhantes aos
dos rappers atuais.

Aqui focalizo especificamente o trabalho de rappers que se


posicionam claramente como porta-vozes das comunidades
pobres que os viram nascer e motivaram a sua arte, caso dos
já citados Racionais, MV Bill, Gog. Este é o que chamarei aqui
de rap politizado. Embora se possa dizer o mesmo de outras
vertentes, acredito que o rap com o qual decidi trabalhar é o
mais consciente do seu papel político junto a suas comunida-
des. Cabe salientar que, neste ponto, os próprios rappers fazem
questão de se diferenciar das duas primeiras modalidades que
apresentei: do funk Miami, porque o consideram alienado; do
gangsta, porque o consideram glorificador da violência. Quanto
A poesia revoltada - rap, hip-hop e rappers 35

ao rap gospel, a diferença reside apenas na ênfase que este


coloca na pregação da palavra de Cristo; a forma estética e os
pontos de vista político-sociais são parecidos, senão idênticos.

Em suas composições, os rappers priorizados aqui problema-


tizam uma idéia, ainda hoje hegemônica, de Brasil multirracial,
fundado na miscigenação pacífica e cordial das diversas raças.
O conceito de democracia racial é a base de uma idéia de nação
que, desde o século XIX, embora só sistematizada de maneira
orgânica no século seguinte, tem sido elaborada cuidadosa-
mente de modo a evitar o conflito, a manter as diferenças e os
desníveis razoavelmente controlados. O discurso do rap, porém,
questiona duramente essa idéia. O contexto social objetivo em
que surge – a favela – é capaz de nos fornecer elementos para a
compreensão dessa radicalidade. Elementos que nos permitem
entender o porquê de o rap norte-americano, uma linguagem
enfaticamente não-cordial, ter sido acolhido entusiasticamente
no país do suingue.
36

CAP.02 CAP.02

Rap: cultura popular, arte à margem

Capítulo
ar,
cultura popul
arte à margem 37

ar,
cultura popul
arte à margem

u ltura popular,
c
arte à margem
A história das artes não é uma única história, mas, em cada país, pelo menos
duas: aquela das artes enquanto praticadas e usufruídas pela minoria rica,
desocupada ou educada, e aquela das artes praticadas ou usufruídas pela
massa de pessoas comuns.
Eric Hobsbawn

Segundo o Dicionário de relações étnicas e raciais, o vocá-


bulo “rap” pode ser definido da seguinte maneira: “Termo que
deriva da gíria para fala e refere-se ao gênero meio falado,
meio cantado que se tornou a tradução musical da experiência
afro-americana das décadas de 1980 e 90” (Cashmore, 2000:
475). O fundamental Dicionário Groove de Música é lacônico em
relação ao verbete: “Estilo de música popular dos negros norte-
americanos, consistindo de rimas improvisadas, interpretadas
sobre um acompanhamento rítmico; teve origem em Nova York,
em meados dos anos 70”.

Já Olivier Cachin, em L’offensive rap, explica que “a palavra rap,


antes de vir a designar a arte de falar em rimas sobre uma base
rítmica, existe há muito no vocabulário americano: take the rap
(pagar pelos outros); don’t give me this rap (não me venha com
esse papo furado) são expressões correntes”(Cachin, 1996: 14).
Ao que uma matéria do caderno Mais!, da Folha de São Paulo,
acrescenta que a palavra “rap” tem muitos significados em
inglês. “Ela remete tanto à expressão ‘pancada seca’ quanto à
idéia de ‘criticar duramente’” (14 de outubro de 2001).

38
Rap: cultura popular, arte à margem 39

Realmente, quando surgiu, o rap chamou a atenção pelo fato de


ser uma música muito mais falada que propriamente cantada.
No entanto, assinalar dessa maneira a origem do termo, real-
çando aspectos do étimo há muito vigentes na língua inglesa
falada nos Estados Unidos da América, negligencia um dado
importante, uma vez que acaba omitindo a versão das ruas,
divulgada entre os próprios hiphopers, para definir o rap: rhythm
and poetry. Por outro lado, esse argumento, por si, não impede
uma dificuldade inicial: pode-se considerar o rap como arte?
E como literatura?

Deixando de lado qualquer pretensão em demonstrar de maneira


definitiva o grau de artisticidade ou mesmo literariedade do rap,
algumas palavras talvez sejam necessárias, a fim de tornar sufi-
cientemente clara a minha compreensão sobre o rap e o espaço
que ele ocupa em nossa cultura, inclusive no âmbito literário.

É evidente que o rap, sendo literatura, não o é em sentido estrito


– e, diga-se de passagem, mesmo o reconhecimento do status
de música lhe é dificultado. Portanto será necessário levantar
inicialmente algumas formas de entendimento do rap em dife-
rentes estudos. Parece-me evidente a necessidade de lançar
mão de recursos transdisciplinares para um melhor entendi-
mento da cultura nesta passagem entre séculos, e em que perde
um pouco o sentido, conforme propuseram os Estudos Culturais,
a separação entre culto, popular e massivo.

Entendo o rap como parte da cultura popular brasileira em uma


nova fase, que enfrenta os desafios do fenômeno denominado
globalização e os avanços tecnológicos que permitiram a criação
de uma nova e formidável forma de fazer arte, bem no coração do
ambiente urbano brasileiro. Essa nova forma surge justamente
no momento em que reinam a incerteza e a dispersão de sen-
tidos, e no qual parece que a cultura das elites como a conhe-
cemos entra em choque com os novos media e com a moderna
tecnologia, em outras palavras: no momento em que a arte culta
como tal declina.
40 Poesia Revoltada

“Não surpreende que muito poucos se preocupem com um tema


cujo mero enunciado resulta irrisório em meio a esse clima: o
lugar da arte e da cultura culta na vida social”, reclama Beatriz
Sarlo (2000: 8).

Por outro lado, Silviano Santiago, em uma argumentação até


certo ponto próxima à da crítica argentina, também identificava
que, nos dias de hoje, “relações amorosas e gratuitas, entre
objeto de arte e leitor, se tornam relações objetivas e industriais,
entre mercadoria e consumidor” (Santiago, 2000: 7). De fato,
esse problema não tem sido ignorado nos debates acadêmicos
de uns anos para cá. Ainda assim, restam questões a serem con-
sideradas. Sobretudo quando a abertura a novas perspectivas
de abordagem dos fenômenos artísticos passa a ser relacio-
nada a uma suposta queda no padrão de qualidade da reflexão
crítica em geral. Em outras palavras: voltar a atenção para os
fenômenos culturais de massa, como o rap, o rock, programas de
televisão etc., significaria um rebaixamento da crítica.

O triunfo da indústria cultural, borrando a fronteira entre cul-


tura e consumo, teria, dessa maneira, inviabilizado a discussão.
O fato de haver uma cultura popular e massiva implica, natural-
mente, que aquilo que não se inclui nesse campo seja qualifi-
cado com a rubrica: de elite ou erudita. Se é assim, de fato não há
o que discutir. Temos de um lado a cultura popular, dispondo de
grandes público e prestígio nos diversos meios de comunicação;
de outro, a cultura das elites, restrita a pequenos círculos de ini-
ciados, quase sempre ressentidos de sua escassa visibilidade.

Mas até que ponto a questão não está, de um lado a outro da


discussão, tão contaminada de preconceitos que alguns deta-
lhes importantes são elididos, impedindo de saída uma com-
preensão menos compartimentalizada dos modos de existência
de uma e outra? Afinal, não é de hoje que a cultura popular e a
erudita ou culta têm manifestado pontos de contato e entrecru-
zamentos que vão formando a nossa imaginação comunitária.
Rap: cultura popular, arte à margem 41
42 Poesia Revoltada

Por outro lado, a expressão “cultura popular”, como anotou Mari-


lena Chauí, é de difícil definição. A própria história do conceito
revela a oscilação de acordo com objetivos, tendências, vale dizer,
ideologias de determinadas épocas. De qualquer modo, interes-
sa-me particularmente o viés pelo qual a filósofa desenvolverá
sua argumentação, propondo a cultura popular como “expressão
dos dominados”, entendendo-a não “como uma outra cultura ao
lado (ou no fundo) da cultura dominante, mas como algo que se
efetua por dentro dessa mesma cultura, ainda que para resistir a
ela” (Chauí, 1994: 24. Grifo da autora).

Néstor García Canclini propõe um entendimento semelhante,


ao postular que é o povo que produz as suas próprias formas
de representação e reelaboração simbólica de suas relações
sociais (Canclini, 1983), em um processo que está sempre se
reatualizando. Como entendia o autor, a preocupação no que diz
respeito ao popular deve ser menos com o que se extingue do
que com o que se transforma. Enfim, o popular não se define a
partir de uma essência previamente estabelecida, “mas pelas
estratégias instáveis com que os próprios setores subalternos
constroem suas posições” (Canclini, 1998: 23).

Tais estratégias, por sua vez, indicam a forma através da qual


os pobres estabelecem reações ao movimento vertical e homo-
geneizador da cultura de massas que, orientada pelo mercado,
mostra-se indiferente às especificidades de cada diferente
comunidade. Onde o mercado buscou impor, como explica
Milton Santos, uma cultura domesticada, surge também “a
possibilidade [...] de uma revanche da cultura popular sobre a
cultura de massas” (Santos, 2001: 143-144), na medida em que
se difunde através dos recursos que originalmente pertenciam
à cultura de massas. É bem o caso do rap, um modo de fazer
arte “arquitetado no coração da decadência urbana”, a transfor-
mar “os produtos tecnológicos, que se acumularam como lixo
na cultura e na indústria, em fontes de prazer e poder” (Rose in
Herschmann, 1997: 192).
Rap: cultura popular, arte à margem 43

Arte em estado vivo

Richard Shusterman denomina “arte em estado vivo” as formas


expressivas da cultura popular, inclusive o rap (Shusterman,
1999: 12 et passim). O autor investe um esforço enorme para
discutir a validade desse estilo como arte (“como eu gosto
desse gênero de música, tenho um interesse pessoal em defen-
der sua legitimidade estética” (1999: 144)) e refutar as noções
preconceituosas que o relegam a “lixo cultural”.1 Para Shuster-
man, o rap não apenas faz a crítica de um determinado modelo
socioeconômico, ele também questiona uma concepção de arte
e estética que se afaste da realidade, ou que constitua nichos
de saber – e, portanto, de poder – inacessíveis a uma população
que, na verdade, seja porque não saiba, seja porque não se inte-
resse, não lê. “Esses rappers repetem constantemente que seu
papel enquanto artistas e poetas é inseparável de seu papel
enquanto investigadores atentos da realidade e professores da
verdade” (Shusterman, 1999: 160), notadamente os aspectos da
realidade e da verdade omitidos ou distorcidos pelos livros de
história oficial e pela mídia.

Rappers como os que estudo aqui trabalham suas composições


a partir de conteúdos que têm, de fato, muito de investigação da
realidade e busca da verdade. Não é à toa que a sigla “MV”, no
nome do rapper MV Bill, designa nada menos que “mensageiro
da verdade”. No entanto, a sua “investigação da realidade” e a
“profissão de verdade” na qual investem, não raro ultrapassam
o objetivo de investigar a realidade e proferir a verdade, confi-
gurando-se como algo que vai além do relato de circunstâncias
do dia-a-dia das periferias. A meu ver, eles estabelecem um

1 “A arte popular não tem gozado de tamanha popularidade junto aos filósofos
e teóricos da cultura [...]. Quando não é completamente ignorada, indigna até de
desdém, ela é rebaixada a lixo cultural, por sua falta de gosto e reflexão” (Shuster-
man, 1999: 99). Ou ainda: “O rap é um dos gêneros de música popular que mais se
desenvolve atualmente, mas também um dos mais perseguidos e condenados. Sua
pretensão ao status artístico submerge numa inundação de críticas abusivas, atos
de censura e recuperações comerciais” (Shusterman, 1999: 143).
44 Poesia Revoltada

vínculo entre arte, cultura e o cotidiano de suas comunidades,


o qual implica uma recuperação de aspectos do fazer artístico
há muito superados na história da cultura ocidental. Afinal, na
Antigüidade poesia e música eram inseparáveis (Dufrenne: 1969,
64), assim como a vida e a arte.

Richard Shusterman trabalha com raps que reivindicam textual-


mente o seu reconhecimento como arte (o exemplo que analisa é
uma música do grupo estadunidense Stetsasonic: “Talkin’ all that
jazz”: “You criticize our method/ of how we make records/ you
said it wasn’t art,/ so now we’re gonna rip your apart” – p. 191).
O seu método consistirá em opor as bases de definição artística
do rap àquelas estabelecidas pela cultura ocidental, sobretudo a
partir do advento da modernidade.

O rap é, no entender do autor, uma manifestação artística típica


do pós-modernismo. Ele reconhece os questionamentos que
ainda hoje são lançados ao conceito de pós-modernismo, mas
indica alguns aspectos que o definiriam – apesar de ser possível
identificá-los, “com certa nuança, em obras de arte modernas”
– e, no mesmo passo, incluiriam o rap em seu bojo: “a tendência
mais para uma apropriação reciclada do que para uma criação
original única, a mistura eclética de estilos, a adesão entusi-
ástica à nova tecnologia e à cultura de massa, o desafio das
noções modernistas de autonomia estética e pureza artística, e
a ênfase colocada sobre a localização espacial e temporal mais
do que sobre o universal ou o eterno” (Shusterman, 1999: 145).

Já o filósofo francês Christian Béthune, em Le rap – une culture


hors la loi, afirma o seu entendimento do rap como arte, na medida
em que a sua abordagem do assunto prioriza a dimensão estéti-
ca.2 Ao propor que o rap põe em cena uma manifestação artística

2 Na nota de advertência à tese que defende em seu livro, Christian Béthune


explica: “Conforme um uso da linguagem filosófica, eu utilizo os termos ‘poética’
e ‘estética’ de acordo com sua etimologia. O domínio do poético refere-se ao ponto
de vista da fabricação das obras (de ποιησιζ , fabricação), o domínio do estético (de
αισθησιζ, sensação) refere-se ao ponto de vista do sujeito que percebe as obras
e conseqüentemente as julga” (Béthune, 1999: 5). A tradução dessa e das demais
citações de todas as obras consultadas na língua francesa são de minha autoria.
Rap: cultura popular, arte à margem 45

legítima, Béthune demonstra como a sua matéria sonora, para


efetivamente se realizar, depende da combinação de diversos pro-
cedimentos manuais e tecnológicos, os quais por sua vez depen-
dem de um material sonoro previamente gravado para garantir a
execução da performance. “O rap manifesta um aspecto lúdico da
obra que, por sua redução normativa ao original considerado como
sagrado, o discurso dominante sobre a obra de arte tentava desde
então descartar (Béthune, 1999: 11).

O olhar do filósofo sobre a cultura hip-hop permite uma avalia-


ção menos preconceituosa sobre uma produção poética que, em
última instância, tenta afirmar-se no cenário onde vários dis-
cursos conflitam, aproximam-se, repelem-se, entrecruzam-se.
E mais, permite a valorização da música rap como jogo – um
jogo, todavia, muito sério, como tentarei mostrar.

Béthune nota que os estudos que se dedicam exclusivamente


aos condicionamentos históricos ou implicações sociológicas
do rap acabam, de um modo ou de outro, por elidir da discus-
são a perspectiva propriamente estética, “como se se tratasse
implicitamente de um aspecto secundário, mesmo negligenci-
ável” (1999: 15). O autor vai orientar o seu interesse no rap na
direção daquilo que ele tem de criação cultural, e não apenas
como epifenômeno vinculado às condições desastrosas da vida
urbana e à condição de párias econômicos e sociais em que se
encontram determinadas comunidades, sejam os guetos negros
estadunidenses, as banlieues francesas ou as favelas no Brasil.
“Certamente, o rap é o reflexo de uma violência, de uma penúria
e de um desespero ligados às discriminações de toda ordem
engendradas pelas dificuldades de nossa época, mas no mínimo
ele o é, ousemos dizê-lo, da mesma maneira que podia sê-lo a
tragédia grega diante da crueza de uma existência devotada à
fatalidade de um destino inexorável, ou o romance do século XIX
confrontado às mesquinharias de uma burguesia assenhoran-
do-se sem pudor da melhor fatia do bolo” (Béthune, 1999: 15).

Quanto às semelhanças apontadas por Béthune entre o rap e


formas anteriores de expressão artística é preciso estabelecer
46 Poesia Revoltada

certas nuances. Há uma diferença básica, que, a meu ver, está


no ponto de vista. Nem a tragédia grega, nem o romance do
XIX – embora fossem muitas vezes obras populares de grande
receptividade – traziam em suas respectivas épocas a voz dos
principais excluídos, mas, na melhor das hipóteses, a voz de
“incluídos” que, às vezes, falavam por aqueles. Já o rapper, ao
contrário, põe em relevo a fala dos que não falam, e se esforça
em fazer-se entender pelos seus da melhor maneira possível.
Por isso, procura interessadamente refazer os laços com a vida,
com a realidade que o cerca.

Não é possível ignorar que o surgimento ou a difusão do rap se


deu em decorrência das tensões provocadas pelos contrastes
sociais nos Estados Unidos e nos demais centros urbanos do
mundo – os próprios rappers qualificam a sua aparição como
um efeito colateral do sistema – “Eu sou apenas um rapaz lati-
no-americano/ apoiado por mais de cinqüenta mil manos/ efeito
colateral que seu sistema produz...” (Racionais MCs: “Capítulo
4, versículo 3”). Por outro lado, como explicitou Béthune, deixar
de lado os méritos estéticos que inegavelmente possui seria
grave injustiça. Insisto nisso porque é perceptível, em cada rap,
um procedimento que denuncia o trabalho exaustivo por trás da
composição: a escolha das bases, dos samplers, a preferência
por uma determinada dicção. Aliás, é possível dizer que – num
primeiro momento – o rapper cativa rítmica e melodicamente
a confiança do ouvinte; no entanto a finalidade é, mais expli-
citamente que em qualquer outra forma expressiva cantada,
cativá-lo, através do texto/performance, para um engajamento.
Esse aspecto do rap contraria a conclusão a que chegou Enzo
Minarelli, de que “o poema orientado para a denúncia de um
desequilíbrio social, para incitar à ação, não encontra hoje
prosélitos” (Minarelli in Menezes, 1992: 123). O rap, no entanto,
certamente devido às fortes tensões sociais que caracterizam
a sociedade brasileira, mostrou-se capaz de concretizar aquilo
a que Minarelli chama a “pequena-grande utopia que quer a
poesia a serviço da luta social” (idem, ibidem).
Rap: cultura popular, arte à margem 47

Literatura menor e contraliteratura

Buscando uma maneira mais objetiva de perceber as discutíveis


noções de literatura popular, marginal, proletária etc., Deleuze
e Guattari propõem o conceito de literatura menor. Trata-se, a
meu ver, de um conceito capaz de avalizar o estatuto do rap
no interior da cultura brasileira. Segundo a argumentação dos
autores, a primeira característica de uma literatura menor
passa pela língua: “uma literatura menor não é a de uma língua
menor, mas antes a que uma minoria faz em uma língua maior”
(Deleuze & Guattari, 1977: 25).

Poderíamos falar do rap como uma literatura menor? Creio que


sim. Afinal, de acordo com a primeira característica, não tenho
dúvida que os negros, de qualquer parte do mundo, que fazem
rap são também autores “menores”, que inclusive se expressam
numa língua peculiar, marcada pelos traços de um modo negro
de ser. Ressalte-se ainda que aqui estamos falando de uma
minoria não em termos absolutos, mas uma minoria política,
os negros e pobres; o que nos leva à segunda característica.
Esta refere-se ao fato de, nas literaturas menores, tudo se tor-
nar político. Se nas grandes literaturas a relação entre os diver-
sos casos individuais formam um bloco único, nas literaturas
menores o caso é outro: “seu espaço exíguo faz com que cada
caso individual seja imediatamente ligado à política” (Deleuze
& Guattari, 1977: 26). No rap, pode-se detectar essa caracterís-
tica tanto por sua constante enunciação de uma identidade dis-
ruptiva quanto pelo caráter combativo das falas e das atitudes
dos rappers, voltados contra uma ordem social que consideram
racista e opressiva.

A terceira característica está relacionada ao fato de, numa lite-


ratura menor, tudo adquirir um valor coletivo: “o que o escritor
sozinho diz já constitui uma ação comum” (Deleuze & Guattari,
1977: 26). Ora, para o rap a coletividade é um dos quesitos mais
importantes de seu impulso criador e militante. Tudo o que fala
ou faz tem como objetivo o bem geral da comunidade da qual
48
49
50 Poesia Revoltada

faz parte, entendida no sentido mais abrangente de toda a


comunidade negra e pobre. Neste ponto é possível estabelecer
uma aproximação entre o rapper e o antigo sambista malandro.
Ao comentar sobre a questão da parceria no samba dos malan-
dros, Claudia Matos observa que sua voz nunca é totalmente indi-
vidual, nunca é uma voz isolada. Assim, sua individualidade não
reside no fato de não ter parceiros, mas de não os ter fixos. Seu
parceiro potencial [...] é a comunidade inteira (Matos, 1982: 75).

A ênfase na especificidade de cada favela demonstra essa


faceta do hip-hop. Por esse motivo, MV Bill e os demais rappers
politizados, quando se propõem a representar a comunidade,
fazem-no com um forte sentido político – o de ser uma espécie
de mediador entre a favela e a sociedade de maneira geral:
MV Bill, falando pela comunidade
(Traficando informação).

Sua voz, até porque solitária, denuncia mais essa lacuna na


experiência social da favela. Neste mesmo rap, Bill expressa o
teor político e, ao mesmo tempo, o grau de solidão que decorre
de sua opção num verso que considero excepcional:
o raciocínio é raro pra quem é carente
(Traficando informação).

Outro conceito que pode ser valioso para se pensar o rap é o de


contraliteratura. Segundo Bernard Mouralis, “é suscetível de
entrar no campo das contra-literaturas [sic] qualquer texto que
não seja entendido e transmitido – num determinado momento
da história – como pertencente à literatura” (Mouralis, 1982: 43).
Mouralis inclui neste campo tanto as literaturas orais quanto a
canção, categorias a que, em certo sentido, o rap também per-
tence. Segundo o autor, o critério de classificação dos textos
como literários só faz sentido na medida em que recorre à noção
de estatuto: “Há um estatuto de texto literário e um estatuto de
texto ‘não-literário’”. Sua reflexão parte da identificação de um
campo literário que define esses estatutos e que exclui todo
um setor da produção (de textos), justamente “esse que constitui
o campo das contra-literaturas” (Mouralis, 1982: 12-14).
Rap: cultura popular, arte à margem 51

Não são poucos os pesquisadores que põem em relevo a infor-


mação da oralidade presente no rap. Para Tricia Rose, a poesia
rap, a um só tempo oral e letrada (Rose apud Béthune, 1999: 44),
pode ser compreendida como parte do reino da literatura se
levarmos em consideração que, como denunciou Paul Zumthor,
o conceito de literatura, no fundo, faz referência a um sistema
de valores especializados, etnocêntricos e culturalmente impe-
rialistas. Segundo o autor, até o início do século XX, toda lite-
ratura extra-européia era relegada a folclore pelos eruditos da
mesma forma que o texto não escrito era desconsiderado como
literatura (Zumthor, 1997: 25).

Christian Béthune, por sua vez, considera que o fato de o rap


incorporar-se à tecnologia e apropriar-se de seus recursos con-
fere à oralidade uma nova força, capaz de “roçar” o escrito sem
nele se dissolver, reorientando “as estruturas de um pensamento
há muito informado pela escrita em direção a uma psicodinâmica
da oralidade” (Béthune, 1999: 44). É então por conta da tecnolo-
gia – tanto do sampler quanto do registro de suas vozes em disco
– que os rappers podem viajar “sem complexo entre o oral e o
escrito”, rompendo com a tradicional divisão dos gêneros na qual
insiste a cultura escolar (Béthune, 1999: 39). Por outro lado, o rap
se localiza num espaço definido por Paul Zumthor como o das
oralidades segunda e mediatizada. A oralidade segunda procede
de uma cultura letrada, “se (re)compõe a partir da escrita e no
interior de um meio em que esta predomina sobre os valores da
voz na prática e no imaginário”; a mediatizada, (Zumthor, 1997:
37). O rap, contudo, se estabelece de maneira a confrontar os cri-
térios dessa cultura letrada, o que é um pressuposto básico da
conceituação de contraliteratura apontada por Mouralis.3

Portanto, pode-se dizer que o rap é uma forma de expressão


desterritorializada não somente em relação à língua na qual se
expressa, mas – uma vez que privilegia a voz no lugar da escrita –

3 Quanto à oralidade mecanicamente mediatizada, que quase sempre coexiste


com as outras, esta se refere, como o nome indica, aos recursos tecnológicos de
reprodução e gravação da voz.
52 Poesia Revoltada

desterritorializada em relação à própria literatura numa acepção


mais ortodoxa.

Finalmente, Paul Zumthor propõe a questão fundamental:“a noção


de ‘literariedade’ se aplica à poesia oral?”. Indiferente ao termo,
o autor descarta o critério da qualidade, por mostrar-se muito
impreciso. Então, defende a existência de um discurso marcado,
socialmente reconhecido como poético, dirigindo o foco desse
reconhecimento para a recepção. Por esse critério, a canção pode
também ser reconhecida como objeto dos estudos literários. “É
poesia, é literatura, o que o público – leitores ou ouvintes – recebe
como tal, percebendo uma intenção não exclusivamente pragmá-
tica: o poema, com efeito (ou, de uma forma geral, o texto literário), é
sentido como a manifestação particular [...] de um amplo discurso
constituindo globalmente um tropo dos discursos usuais proferi-
dos no meio do grupo social” (Zumthor, 1997: 40. Grifo meu).
Rap: cultura popular, arte à margem 53
54
CAP.03

Rap e contranarrativa

CAP.03

Rap e contranarrativa

CAP.03

Rap e contranarrativa
Sobre o sampling1 e a síncopa
Os quatro primeiros pontos destacados por Richard Shuster-
man em sua caracterização do pós-moderno (tendência para
uma apropriação reciclada, mistura eclética de estilos, adesão
entusiástica à tecnologia e desafio às noções de autonomia)
articulam-se, basicamente, à prática do sampling. Com efeito, o
sampling é a mais importante novidade formal trazida pelo rap.
Apesar de não ser o único gênero a utilizar o procedimento, o
rap é sem dúvida o que explora em maior profundidade as suas
possibilidades. O rap constitui efetivamente – com a música
techno – a primeira forma de expressão a utilizar de modo sis-
temático as técnicas de reprodução sonoras as mais sofistica-
das, não apenas para difundir suas produções, mas igualmente
para elaborá-las, tanto na sua forma quanto no seu conteúdo
(Béthune, 1999: 10).

É também o sampling a maior vítima dos ataques daqueles


que negam o valor do rap. Béthune dá o exemplo de um per-
cussionista de jazz que chegava a denunciar essa prática como

1 Sampling é a ação de selecionar fragmentos sonoros (samples) e inseri-los


em um trecho da música que o DJ está tocando ou gravando. O processo é
realizado através do sampler: máquina dedicada ou computador munido de
um programa especial que registra qualquer som, permitindo sua posterior
manipulação em outros contextos.

56
Rap e contranarrativa 57

“necrofilia artística” (Nelson apud Béthune, 1999: 52). Segundo


essa linha de pensamento, a música rap, resultado da colagem
de vários trechos pré-selecionados, não representaria uma
forma autêntica de arte, talvez porque a prática do samplea-
mento desafie as idéias ortodoxas de originalidade e autenti-
cidade a que a concepção ocidental de arte tem permanecido
apegada. De acordo com Richard Shusterman, o rap emprega
e adota “de forma criativa sua apropriação como temática, no
intuito de mostrar que empréstimo e criação não são incompa-
tíveis” (Shusterman, 2000: 150).

Shusterman, portanto, propõe um novo momento para a compre-


ensão da arte como tal, um momento que, chamemo-lo pós-mo-
derno ou não, é o espaço ideal para a eclosão do rap como nova e
legítima forma de arte. Christian Béthune reforça essa tese, mais
uma vez rechaçando a prioridade sociológica na análise do rap,
postulando que é a originalidade com que os rappers concebem
o seu fazer artístico que os estimulará a buscar um caminho que
é também estético: “os procedimentos criativos operados pelos
rappers nos incitam a aprofundar suas implicações numa pers-
pectiva mais especificamente estética” (Béthune, 1999: 11).

A intertextualidade revela-se uma prática arraigada na própria


concepção da música rap. De fato, se prestarmos atenção em
cada letra e em cada fragmento sonoro de uma composição,
perceberemos a presença de trechos de outras letras, de sono-
ridades alheias (pertencentes ou não ao universo hip-hop) – um
dos motivos de orgulho para um DJ é, sem dúvida, a sua cole-
ção de LPs de vinil – e, às vezes, de ruídos gravados do próprio
ambiente urbano: carros, sirenes, tiros colhidos no dia-a-dia
da cidade. Cabe destacar que esse procedimento não é novo.
As técnicas desenvolvidas pelos artistas ligados à chamada
poesia sonora – música eletroacústica, eletrônica e concreta
– já lançam mão de semelhantes recursos desde meados da
década de 1950, graças ao advento da aparelhagem eletroacús-
tica e ao desenvolvimento das tecnologias de gravação (Mene-
zes, 1992: 11; Kostelanetz in Menezes, 1992: 81 et passim).
58 Poeisia Revoltada

Nicolau Sevcenko assinala o início desse processo a partir de


um evento que, para ele, dividiu a história da música e da dança
em dois momentos distintos. Trata-se da “turbulenta sessão
inaugural da Sagração da Primavera, de Stravinski”, em Paris,
no ano de 1913. A partir das mudanças desencadeadas nessa
noite, segundo Sevcenko, ganharam fôlego os esforços de pes-
quisas voltados para outros períodos e outras culturas, em
especial para as tradições da Ásia, da África e das Américas.
A novidade trazida pelo rap nessa área está, portanto, no uso ino-
vador que fará das técnicas de gravação e reprodução sonoras,
criando com elas um novo gênero musical.

Gog, ao definir o rap como “a luta do vinil contra a alienação da


novela” (Gog, 2000: “É o terror”), põe em discussão o papel de
sua arte no processo de engajamento na vida cotidiana. Para o
rapper, a novela é alienante porque desvia a atenção do ouvinte
para um reino de fantasia, que o afasta inclusive de sua própria
identidade – no caso aqui a de jovem negro, morador da favela
–, uma vez que os modelos oferecidos pela TV não representam
o que seria o ideal sob o ponto de vista do rapper.

Nesse caso, a intertextualidade me parece o exercício de um diá-


logo, implicando o reconhecimento mútuo que dá forma à comu-
nidade dos “manos”. Se, por um lado, cantar músicas de outros
rappers é uma prática condenável – porque “a atitude cover é na
visão dos rappers um indicativo de incapacidade em construir
uma mensagem própria”, como explica José Carlos Gomes da
Silva (1999: 31) –, por outro, a citação (o sample) implica mui-
tas vezes um duplo reconhecimento: primeiro, de que o rapper
que cita admira o citado; segundo, de que se comunga de uma
mesma realidade opressiva em toda a parte. Em outras palavras,
compartilha-se uma identidade: “A força dos grupos de Rap [...]
vem de seu poder de inclusão, da insistência na igualdade entre
artistas e público, todos negros, todos de origem pobre, todos
vítimas da mesma discriminação e da mesma escassez de opor-
tunidades” (Kehl, 1999: mimeo).
Rap e contranarrativa 59

Tim Maia, Bezerra da Silva e Jorge Benjor estão entre os artistas


mais sampleados pelos DJs.2 O vinil, habilmente manuseado,
traz à tona a rica memória da produção de velhos ou novos
“pais” ou “irmãos” da música negra do mundo, que mobilizaria
a história positiva do povo negro, geralmente escamoteada
na perspectiva da novela. Por outro lado, o vinil também pode
ressemantizar trechos de músicas que, a princípio, não teriam
relação tão direta com a música negra em sentido estrito. No
caso particular de Gog, há uma perceptível adesão às melodias
da jovem guarda – Jerry Adriani e Paulo Sérgio fornecem a base
para mais de uma composição do rapper. Na faixa “Prepare-se”,
do CD homônimo, é inserido um trecho da canção “Todos estão
surdos”, de Roberto Carlos:
La lalalalalala [...]/ Aí muita gente se esqueceu que o amor
só traz o bem
(Gog: Prepare-se).

Nicolau Sevcenko diz algo notável sobre o poder de recuperação


de memória cultural da música negra, presente no rap através
do sampling. Referindo-se aos momentos em que o DJ assume
o comando, trazendo à tona os elementos “de espontaneidade
e inspiração criativa mágica” contidos nas coleções de LPs que
os DJs perscrutam até encontrar o beat3 ideal. Isso significaria
que toda tecnologia é acionada para dar uma ressonância espe-
cial à memória musical da cultura negra. Sevcenko, citando o
crítico musical Greg Tate, completa “o sampleamento é um jeito
de fazer com que todas as eras da música negra se concentrem
num único chip” (Sevcenko, 2001: 119).

Cabe lembrar que, nem sempre, a citação é feita por vias eletrô-
nicas. Muitas vezes os rappers referem-se a versos de outros

2 Os exemplos de fato não são numerosos, mas essa escassez revela um outro lado
dos problemas enfrentados pelos rappers: muitos artistas não autorizam a gravação
de samples de suas músicas sem o pagamento de vultosos direitos autorais (e às
vezes, nem assim).
3 Beat: trata-se da batida, o ritmo, que o DJ utiliza em cada música.
60 Poesia Revoltada

companheiros, geralmente trechos que acharam, por alguma


razão, relevantes. Um verso de Gog, muito conhecido entre os ini-
ciados – “periferia é periferia em qualquer lugar” –, por exemplo,
é citado, entre outros, pelos Racionais, no disco Sobrevivendo
no Inferno, numa faixa intitulada exatamente “Periferia é peri-
feria (em qualquer lugar)”. Assim como o dos Racionais – “para
os manos daqui, para os manos de lá” – é uma espécie de frase
recorrente quando um rapper quer se dirigir ao seu público mais
dileto: os manos da periferia.

O vinil, além de ser a metáfora da força discursiva do rap e fonte


de parte considerável dos samples, atua no sentido de mobilizar
o corpo, uma vez que é de onde emana, quase sempre, o som que
embala o discurso do rapper. A atuação do corpo é, indubitavel-
mente, uma marca importantíssima da música negra no mundo
todo. “Junto com as palavras, junto com o som, deve dar-se a
presença concreta de um corpo humano, capaz de falar e ouvir,
dar e receber, num movimento sempre reversível”, explica Muniz
Sodré (1998: 67). Não tenho dúvida em afirmar que essa carac-
terística da música negra no mundo se revela também no rap:
vou fazer você mexer, é o melhor que sabemos fazer
(Gog, 2000: Na fé).

Quando se fala de dança, de mover o corpo, no caso do samba,


jazz etc., o grande elemento rítmico-estrutural em jogo é a sín-
cope. “De fato tanto no jazz quanto no samba, atua de modo
especial a síncopa, incitando o ouvinte a preencher o tempo vazio
com a marcação corporal” (Sodré, 1989: 11). A explicação de Sodré
a respeito desse elemento rítmico-estrutural, no entanto, é insu-
ficiente para a sua inteira compreensão. Sérgio Bugalho (2001),
em entrevista concedida para este trabalho, lembra que a síncopa
não é exclusividade da música negra. Na verdade, está presente
na música, mesmo a européia, há um tempo considerável.

A fim de explicar de modo convincente o diferencial que a música


negra trouxe para o conhecimento da síncopa, Bugalho começa
propondo a compreensão do movimento musical como uma suces-
Rap e contranarrativa 61

são de apoios e impulsos. A partir daí, define a síncope primeira-


mente como um evento adstrito à métrica musical – relativo ao
momento da articulação do som sincopado e ao(s) momento(s)
sobre o qual é prolongado. Em outras palavras, “a síncope seria a
articulação de som (ou sons) durante o impulso e sua prolonga-
ção sobre o apoio, furtando, portanto, a articulação de um som
que coincidisse com esse apoio”. Desse modo, pode-se dizer que
“o momento que divide exatamente ao meio a duração do pulso é
sentido como um apoio secundário”.

Isso posto, é possível pensar na “síncope como o lugar de eleição


para fazermos recair os acentos (sons mais fortes)”. Tudo isso
leva à conclusão de que, no contraste entre o acento sincopado
e “o corpo que ouve e responde”, acontece de o interesse da ges-
tualidade recair sobre a liberdade de ocorrência dos acentos em
relação à isocronia da sucessão dos apoios. Se considerarmos
que a diferentes gêneros musicais correspondem normalmente
diferentes marcações de movimentação corporal, concluire-
mos que a liberdade de movimentos nunca será total. Mesmo
assim, “trata-se daquela liberdade no interior do tecido musical
associada às idéias de deslizamento, de deslocamento – e de
liberdade do corpo”. Chega-se assim, como diz Bugalho, “a uma
obstinada insubordinação dos acentos aos apoios como uma
das marcas do modo como a música de origem africana interage
na formação dos gêneros musicais”.

Com isso quero dizer que a síncopa implica, no que diz respeito
à música de maneira geral, uma quebra de princípios. Significa
o exercício da liberdade, pela musicalidade negra, em relação às
amarras engendradas pelas regras clássicas do padrão musical
a que estamos habituados. Sugiro ainda que ela, pelo menos
metaforicamente, representa o desejo de liberdade também na
vida social, na qual os negros são continuamente estigmatiza-
dos por conta da cor da pele e outros traços fenotípicos, como
se fossem prisioneiros da própria negritude. Nas palavras de
Paul Gilroy: “Suas síncopes características ainda animam os
62 Poesia Revoltada

desejos básicos – serem livres e serem eles mesmos – revela-


dos nesta conjunção única de corpo e música da contracultura”
(Gilroy, 2001: 164).

Resguardadas as diferenças entre os estilos, do samba ao jazz,


ao funk e ao rap, o que tentei demonstrar nesta passagem foi a
estreita ligação da música rap com o desejo de liberdade, tanto no
sentido sociopolítico quanto no estético, que permeia toda a his-
tória da música negra na diáspora. Como afirmou Edouard Glis-
sant: “Não é nada novo declarar que para nós a música, o gesto e
a dança são formas de comunicação, com a mesma importância
que o dom do discurso. Foi assim que inicialmente conseguimos
emergir da plantation: a forma estética em nossas culturas deve
ser moldada a partir dessas estruturas orais” (Glissant apud Gil-
roy, 2001: 162).

O antropólogo Hermano Vianna, respondendo a uma pergunta do


jornal O Estado de São Paulo (5 de janeiro de 2001) sobre o poder
de transformação da música, disse que “a música não promete um
mundo melhor [...] A música instaura o mundo melhor no momento
em que é tocada/ouvida”. Estou de acordo, mas os rappers que-
rem ir além no caminho dessa transformação. Mediante os recur-
sos ao sampling e o engajamento do corpo no seu processo de
realização artística, demonstram sua insubordinação ao conjunto
de ajustamentos sociais e econômicos que os alijou do “mundo
melhor” e os aprisionou no último nível da escala social.

Percebe-se assim uma aproximação entre o dado estético (a música


e a performance) e o dado social: a perpetuação, através do rap, de
um elemento político na forma e no conteúdo da música negra.
Como espero ter demonstrado, a síncopa e o sampling são fenô-
menos da maior importância para realizar o vínculo entre a música
negra e o desejo de liberdade, tanto no sentido propriamente artís-
tico, quanto no social.
Rap e contranarrativa 63

O rap como contranarrativa


Segundo Claudia Matos, uma característica marcante dos anti-
gos sambistas malandros dizia respeito ao fato de que, em suas
letras, “o sujeito fala com supostos interlocutores” (Matos, 1982:
196). Este é um traço que aproxima o rapper da estética da malan-
dragem. Assim como o malandro-protagonista do samba, o rapper
é também um narrador, e quase sempre a primeira pessoa do dis-
curso. A natureza e o tom do diálogo é que mudaram bastante:
A gente vive se matando irmão/ por quê?/ não me olhe assim
eu sou igual a você
(Racionais: Fórmula mágica da paz).

Acrescento que o rap pode ser entendido como narrativa não ape-
nas nos moldes tradicionais, mas, sob certos aspectos, também
naqueles definidos por Walter Benjamin em seu estudo sobre
a obra de Nikolai Leskov (Benjamin, 1995). Apesar de a maioria
dos rappers designarem sua arte a partir de comparações com
o reino da informação – jornalismo e afins4 –, a própria estrutura
de sua narrativa implica a possibilidade de uma interpretação
daquilo que é explicado, dessa maneira agindo na consciência de
cada ouvinte (conforme Benjamin postula para a afirmação da
verdadeira narrativa). Assim, se a linguagem jornalística assume
postura, digamos, neutra, ao relatar os fatos – no que se mos-
traria “incompatível com o espírito da narrativa” (Benjamin, 1995:
203) –, o rap, quando faz, faz de maneira pedagógica, não apenas
relatando o fato, mas tentando ensinar algo com ele.
MV Bill está de volta tentando conscientizar vocês/ parando para
pensar, botando a cabeça no lugar/ [...]/ sem armas, unidos, sem
violência entre nós/ [...]/ entre irmãos, informação necessidade/
apesar de ser uma letra pode se tornar verdade/ depende dela,
depende dele, depende de mim, depende de você
(MV Bill: Atitude errada).

4 Além disso, Chuck D, líder do grupo Public Enemy, denominou o rap como “a CNN
dos negros”. Já uma das canções mais conhecidas de MV Bill, que acabou virando
uma espécie de marca de sua atividade, intitula-se “Traficando informação”.
64
65
66 Poesia Revoltada

Nessa narrativa, o que é dito, da forma como é dito, se enraíza


na história de vida do ouvinte visado pelo rapper e, desse modo,
sua experiência se tornaria compartilhável, não só porque fala a
partir de um ponto de vista comum, mas porque essa fala “pode
se tornar verdade”. Cabe ao destinatário concretizar o dito em
fato. Assim, o “episódio narrado atinge uma amplitude que não
existe na [mera] informação” (Benjamin, 1995: 203).

O rapper nega a incomunicabilidade de experiências, atribuível


ao narrador pós-moderno (cf. Santiago, 1989). Na verdade, ele a
evita desesperadamente – a palavra que lança ao outro durante
sua performance é, antes de mais nada, um chamado: “todos
em frente, ao ataque”, clama Gog em uma de suas composi-
ções (“Mensagem positiva”). No livro Introdução à poesia oral,
Paul Zumthor comenta que a performance é a ação complexa
pela qual uma mensagem poética é transmitida e percebida,
realizando um “jogo de aproximação, de abordagem e apelo, de
provocação do Outro, de pedido” (Zumthor, 1997: 33). Por isso,
proponho que, a despeito da opção dos próprios rappers, o rap
vá além da linguagem jornalística. Essa analogia, certamente,
se dá porque os rappers não consideram o seu trabalho ficção,
mas informação. Todavia, a informação que eles transmitem é
comprometida com a transformação que esperam suscitar: o
que fazem é, de certa forma, dar conselhos – “A vida é curta,
procure alguma coisa boa para fazer/ parar de se matar, nosso
inimigo é outro”, diz MV Bill (“Atitude errada”). Conforme explica
Benjamin, a natureza da verdadeira narrativa envolve sempre
uma dimensão utilitária. Consista num ensinamento moral,
numa sugestão prática ou numa norma de vida, o fato é que “o
narrador é um homem que sabe dar conselhos” (Benjamin, 1994:
200). Os rappers, de certo modo, priorizam essa dimensão uti-
litária. Dar conselhos parece ser uma prerrogativa da qual se
investiram, e que pretendem manter. Como percebeu Maria Rita
Kehl no ensaio já citado aqui “a voz do cantor/narrador dirige-se
diretamente ao ouvinte, ora supondo que seja outro mano – e
então avisa, adverte, tenta ‘chamar à consciência’ – ora supondo
Rap e contranarrativa 67

que seja um inimigo – e então, sem ambigüidades, acusa” e no


que diz respeito às letras, trata-se de “apelos dramáticos ao
semelhante, ao irmão: junte-se a nós, aumente nossa força.
Fique esperto, fique consciente – não faça o que eles esperam
de você” (Kehl, 1999: mimeo). Tomemos como exemplo esta com-
posição do Racionais:
Mantenha distância de dinheiro fácil/ de bebidas demais, poli-
ciais e coisas assim/ [...]/ [você será] um preto digno, e não um
negro limitado
(Racionais: Negro limitado).

MV Bill também procura alertar os manos quanto aos riscos do


uso de drogas e álcool, lembrando um pouco o questionamento
do rapper estadunidense Chuck D, no livro Fight the power:
“I attack drugs, including alcohol, because it’s a scourge that
attacks the human family [...]. The effects on the black commu-
nity have been even more deadly and devastating” (D., 1997: 47).

Diz o rapper brasileiro:


Enquanto eu falo a verdade você só pensa em beber/ [...]/ é pre-
ciso união, é preciso informação/ para acabar, para acabar com
a nossa destruição/ [...]/ MV Bill, adverte quem com a droga se
mete/ acaba na vala/ boiando, otário, furado, crivado de bala
(MV Bill: Atitude errada).

Vê-se, pelos exemplos acima, que o rapper demonstra uma


grande preocupação com os destinos de sua comunidade e
de seu povo. Ressalte-se que o tempo imperativo dos verbos
reforça a idéia de endereçamento a um ouvinte específico, loca-
lizável – aquele a quem se destina o conselho, e que precisa se
transformar para que todo o resto possa ser transformado.

Nesse sentido, a mensagem do rap, a sua interpretação da rea-


lidade circunstante, vai além da evidente dimensão pedagógica.
Ela atingiria uma dimensão performativa, na medida em que se
trata de uma interpretação que transforma o que interpreta.
Como notou Christian Béthune, “o rapper não fala da realidade,
68 Poesia Revoltada

ele fala na realidade e, posto no coração da ação, transforma-lhe


poderosamente a fisionomia” (1999: 47. Grifos do autor). Porém,
é possível dizer que a mensagem é ouvida? Que o conselho do
rapper tem algum valor?

Na minha opinião, o público do rap parece bastante disposto a ouvir.


Basta dizer que, fora a atenção exigida para as letras por pratica-
mente todos os rappers, é muito comum, em eventos de hip-hop,
haver um espaço específico para debates entre convidados antes
de a atração principal entrar no palco (eu mesmo já participei de
alguns, como palestrante ou como ouvinte, e posso dizer que a
receptividade do público é impressionante). Além disso, tornou-se
um hábito imprescindível para muitos rappers incluir um discurso
altamente politizado, sem música, em suas apresentações. Supo-
nho que essa capacidade para ouvir é correlata à capacidade para
falar, de que os rappers se investiram com muita autoridade.5

“O ouvinte ‘faz parte’ da performance”, diria Paul Zumthor (1997:


241). E em sua análise percebe-se que a recepção do ouvinte
não é necessariamente sempre idêntica para todos. Devemos
admitir que isso é verdade. O rap, do mesmo modo que qualquer
outra forma de expressão musical, pode ser assimilado como
meio de informação e conscientização ou simplesmente como
entretenimento, sem contar que cada uma dessas maneiras de
recepção pode se desdobrar em outras tantas. Mas isso não é o
ideal para as ambições do hip-hop. O “poder da transformação”,
de que falam os rappers (Thaíde, inclusive, compôs um rap com
esse título), tem por objetivo modificar, ou reforçar, suas cren-
ças, seu posicionamento político-social e sua identidade étnica.
Assim como é possível pensar no rapper como uma espécie de
narrador benjaminiano – alguém que recupera “a faculdade de
intercambiar experiências” (Benjamin, 1995: 198) – também se

5 Em uma entrevista para a revista Showbizz, Mano Brown mostrava sua preocu-
pação inicial com o silêncio compenetrado do público durante a apresentação dos
Racionais. “No começo eu estranhava, achava que eles não estavam curtindo. Depois
é que me contaram: ‘Mano, eles prestam atenção na letra’” (Brown, 1998: 26).
Rap e contranarrativa 69

pode pensar que o ideal para o rap é um público que recupere,


senão invente, uma comunidade organizada com base em uma
identidade comum e preocupada em garantir sua sobrevivência
num mundo que a ameaça.

A sociedade brasileira atual – marcada pelo crescimento da


miséria, declínio da educação e saúde, avanço do desemprego,
proliferação das favelas, preservação de preconceitos e discri-
minações herdadas da escravidão, tudo isso gerando o recru-
descimento da violência, notadamente a violência do Estado,
representada pela força policial, e a oriunda do crescimento do
narcotráfico – instaurou um clima de guerra, sobretudo contra
os chamados excluídos, cuja resposta mais virulenta veio das
favelas. Foi essa situação que reforçou os laços comunais de
uma parcela da juventude negra no Brasil. A imagem que a
mantém unida atende pelo nome de hip-hop: a geração dos
manos da periferia, algo que Maria Rita Kehl chama de frátria.
O tratamento de “mano” não é gratuito. Indica uma intenção de
igualdade, um sentimento de frátria, um campo de identifica-
ções horizontais, em contraposição ao modo de identificação/
dominação vertical, da massa em relação ao líder ou ao ídolo
(Kehl, 1999: mimeo).

Com isso, pode-se pensar o rap como uma narrativa de oposição


às prerrogativas impostas pela organização opressiva da socie-
dade na qual seus artífices estão inseridos. Em resumo, trata-se
de uma contranarrativa, de um método específico para afirmar
sua identidade (constantemente negada) e recontar sua história
sob um ponto de vista próprio, avesso às distorções e omissões
da história oficial.

Sob outro prisma, essas novas formas de expressão artística


tomam a frente do debate de consolidação de um projeto nacio-
nal que ainda não foi concluído. Entre elas, quero sustentar que
o rap é a que leva mais longe as possibilidades de uma atividade
estética que, mais que entreter ou mobilizar a indústria cultural,
quer pensar politicamente o seu próprio destino e o de sua comu-
70 Poesia Revoltada

nidade e seu povo, isso tudo no âmbito da narrativa mais ampla


(essa comunidade imaginada chamada Brasil) a partir da qual e
contra a qual constroem a sua. Creio mesmo ser possível inscre-
ver os textos produzidos pelos rappers, normalmente estigmati-
zados e marginalizados no meio acadêmico, numa série literária
altamente prestigiada, embora não imune a preconceitos, que
inclui textos de Alencar (e antes) a João Ubaldo (e depois), entre
tantas outras narrativas que levantaram uma hipótese de Brasil
que vem até hoje povoando o imaginário da nação.

Antonio Candido percebeu que a nossa crítica naturalista, pro-


longando sugestões românticas, “transmitiu por vezes a idéia
enganadora de que a literatura foi aqui produto do encontro de
três tradições culturais: a do português, a do índio e a do afri-
cano”. Mas é notório que índios e africanos transplantados só
tiveram influência decisiva no folclore, “na literatura escrita atu-
aram de maneira remota” (Candido, 1987: 165). Ora, se no começo
a literatura mostrou-se prerrogativa de um grupo social exclusi-
vista, hoje o rap revela-se uma produção literária resultante, em
algum grau, desse desencontro. Curiosamente, em sintonia com
o que Candido afirmou sobre a literatura brasileira do século
XIX (Candido, 1997: 26-8), o texto dos rappers é decididamente
empenhado e igualmente comprometido com o sentimento de
missão. Acontece que, desta vez, o empenho se dá no sentido
de trazer de novo à vida as vozes que foram rasuradas no curso
da história:
Meus amigos pretos velhos que não voltam mais/ ancestrais segui-
dos de bravos guerreiros/ faziam o Brasil inteiro se curvar diante
de tal bravura/ só para a todo custo defender aquele lugar/ que
aliás se chamava Palmares/ [...] Tenho orgulho e bato no peito/ sou
descendente de Zumbi/ grande líder negro brasileiro/ por nossa
liberdade enfrentou exércitos inteiros [...]/ Sabe quem eu sou?
afro-brasileiro! Me diga quem é você!
(Thaíde: Afro-brasileiro).
Rap e contranarrativa 71
legitim
legitimidade do rap
CAP.04

Um senão: da legitimidade do rap

midade
Poesia Revoltada

José Ramos Tinhorão afirma que o mercado de música popular


no Brasil foi, desde os anos 60, dominado por modismos comer-
ciais e estrangeiros, como “o reggae e o funk [...], o break, o rap e
o hip-hop”. Graças a esse domínio, lamenta o autor, “as criações
ligadas a constantes culturais regionais passaram a constituir
[...] uma atividade clandestina dentro do país” (Tinhorão, 1999:
341-2). O argumento de Tinhorão é, aparentemente, bastante
difundido entre um amplo setor da intelectualidade no Brasil.
Ele não leva em conta porém, o fato de praticamente todos os
modernos ritmos, sobretudo os mais populares (e isso inclui o
samba, evidentemente), nas Américas e talvez alhures, serem
igualmente o resultado de inumeráveis cruzamentos, influên-
cias, misturas.

Certamente, esse processo continua movendo a cultura, gerando


novos fenômenos. O rap, portanto, pode ser pensado como uma
nova maneira através da qual os negros brasileiros, sobretudo os
residentes nas áreas pobres dos centros urbanos do país, pos-
sam propor uma estética radicalmente nova e apropriada ao seu
propósito: afirmar uma identidade e uma história próprias, ape-
sar de haver não poucas divergências em relação à legitimidade
dessa tentativa. O questionamento em respeito à legitimidade
do rap como forma de música brasileira tem sido levantado com
repetida insistência. Afinal, segundo algumas vozes nossas con-
temporâneas, o rap não passa de importação da cultura norte-

74
Um senão: da legitimidade do rap 75

americana, não tendo validade no Brasil, onde o samba assumiu


legitimamente o papel de ser a voz dos excluídos e, o que seria
ainda melhor, num sentido integracionista. Alba Zaluar, por exem-
plo, não acredita no potencial transformador do hip-hop, segundo
ouvi da própria numa palestra, na Universidade do Estado do Rio
de Janeiro, em 1999. Nei Lopes, notório defensor da causa negra,
numa declaração à revista Showbizz, disse o seguinte sobre o
posicionamento racial do Racionais: “Briga entre raças no Brasil
soa como imitação de americanos. Hoje a afirmação da negritude
passa por outros caminhos” (Showbizz, junho de 1998: 29).

Segundo essa perspectiva, ao contrário de outras manifesta-


ções musicais negras, o rap traria de fora um ódio e uma atitude
segregacionista – vale dizer, uma revolta – que não combina-
riam com o ambiente social brasileiro, nada teriam a ver com
a relativamente amistosa relação racial em nossos centros
urbanos e, ainda por cima, abriria mão da famosa manemo-
lência, do suingue tipicamente brasileiro. Nada tenho a opor a
essa característica. Pelo contrário, considero-a uma qualidade
admirável. O problema é que, em nome da preservação a todo
custo das características tropicais desse país, sufoquem-se as
vozes dissonantes, sempre em razão de uma suposta fuga aos
princípios organizadores de nossa sociedade: o tropicalismo
(Freyre), a integração racial, a alegria natural do povo.

Há, ainda hoje, uma persistência do discurso que Claudia Matos


havia identificado como “as fábulas do Brasil pobre, mas alegre,
unido, ativo, o paraíso tropical, o Deus brasileiro, tomando por
vezes colorações chauvinistas e quase xenófobas...” (Matos,
1982: 47). Apesar de, aqui e ali, perceberem-se mudanças, o lugar
comum sobre o brasileiro pobre que parece ter a capacidade de
sorrir e se divertir mesmo na maior miséria é ainda raramente
questionado. Entre os que põem essa herança em xeque estão,
sem dúvida, os rappers. A sua narrativa em nada lembra as con-
jeturas idealizadas de parte da intelectualidade nacional, que
via nas realizações dos artistas oriundos de favela uma demons-
76 Poesia Revoltada

tração de valor e no sucesso do samba em se firmar como ritmo


nacional, a prova irrefutável do caráter não segregador da cultura
e da sociedade brasileiras.

No entanto, a globalização, gostemos ou não, é mais que uma pala-


vra da moda. Conforme entendeu Said, “em parte devido ao imperia-
lismo, todas as culturas estão mutuamente imbricadas; nenhuma é
pura e única, todas são híbridas” (Said, 1995: 28). Em sentido seme-
lhante, mas referindo-se especificamente à cultura negra, o soci-
ólogo Paul Gilroy formulou o conceito de atlântico negro, que diz
respeito às inúmeras manifestações culturais da diáspora africana
cujas raízes não se concentrariam num ponto único, mas, como
rizomas, estariam dispersadas numa rede descentralizada de fios
que se entrecruzam. A partir desse conceito, Gilroy mostra como
o processo de racialização do negro e do branco, que garantiu de
certa forma a escravidão e a subseqüente discriminação racial, foi
gestado nos fluxos internacionais que transitaram pelo Atlântico.
Em oposição às abordagens nacionalistas ou etnicamente absolu-
tas, o autor pretende “desenvolver a sugestão de que os historiado-
res culturais poderiam assumir o Atlântico como uma unidade de
análise única e complexa em suas discussões do mundo moderno
e utilizá-la para produzir uma perspectiva explicitamente transna-
cional e intercultural” (Gilroy, 2001: 57).

Hermano Vianna percebeu bem que o atlântico negro, “não é


apenas um novo rótulo para um fenômeno antigo. É também uma
nova maneira de entendê-lo” (Vianna, 1999: 6). Afinal, o conceito
desaprisionou os estudos a respeito das diversas manifestações
culturais negras da idéia de “raízes”. Idéia a que o rap sempre
se mostrou refratário. Ele rejeita as noções de autenticidade,
pureza e originalidade, revelando-se uma forma estética híbrida
por natureza e transnacional de nascença. Todavia, em deter-
minadas condições essa característica não é impermeável ao
assédio de posturas contraditórias, como veremos a seguir.
Um senão: da legitimidade do rap 77

Partido-alto, repente, rap

Recentemente, no Brasil, pesquisadores do rap e mesmo alguns


rappers, talvez acusando os golpes desferidos pelos nacionalis-
tas culturais, têm feito um movimento no sentido de propor o
parentesco do rap brasileiro com o samba ou o repente nordes-
tino. Spensy Pimentel, por exemplo, afirmaria que: “As tradições
orais africanas, que no Brasil ao longo da história se diluíram
na miscigenação [...], na segregação americana permaneceram
nesses 500 anos para desembocar no rap. Os griots, contadores
de história que carregavam na memória toda a tradição das tri-
bos africanas, preservaram suas técnicas em versos passados
de pai para filho (como os romances medievais conhecidos ainda
hoje no Nordeste, ou os repentistas, emboladores, cantadores
e todas as outras categorias de poetas populares no Brasil)”
[Pimentel: 1999].

Não se trata de um movimento muito simples. Apesar de os jogos


verbais típicos da cultura negra estadunidense, como as dirty
dozens, que pesquisadores como Shusterman afirmam estar na
origem do rap, guardarem muitas semelhanças com, por exem-
plo, o repente do Nordeste brasileiro, que Câmara Cascudo define
como “a resposta inesperada e feliz, aturdindo a improvisação do
adversário” (Cascudo, 1984: 670) durante os desafios entabula-
dos entre cantadores, há um problema não resolvido. O desafio
– “disputa poética, cantada parte de improviso e parte decorada,
entre os cantadores” – é um gênero que Cascudo situa como de
origem portuguesa. Só haveria sinais de sua presença na África
como resultado da influência árabe, cujo influxo é visível também
na música dos cantadores sertanejos do Brasil (Cascudo, 1984:
287-88). Isso não impediu que o gênero se popularizasse entre
negros escravos no Brasil, ali pela metade do século XIX. Alguns,
aliás, fizeram muito sucesso. É o caso de Inácio da Catingueira.

Orígenes Lessa, que realizou um estudo comparativo entre dois


poetas negros da segunda metade do século XIX, ainda na época
da escravidão (Luiz Gama e o mencionado Inácio), dizia que – para
78 Poesia Revoltada

além do fato de serem negros ou mestiços, libertos ou escravos


– os poetas eram a alegria, o desabafo, uma espécie de vingança
do povo. Contudo, não havia em seus versos, uma vez que eram
ainda escravos e muitas vezes participavam das pelejas sob o
olhar dos senhores, indícios de revolta ou denúncia. As palavras
de Lessa sobre Inácio e os cantadores de seu tempo poderiam,
na verdade, referir-se também ao rap – mas nunca àquele que
considero politizado, uma vez que este é pródigo em discutir
princípios. Para o autor, os cantadores mantinham uma “guerra
de papo” que não punha princípios em causa, mas “figurava
inimigos que eram mortos ou dominados para agrado do povo”
igualmente oprimido, mas incapaz de esboçar qualquer reação
(Lessa, 1982: 3).

Alheios a debates teóricos dessa natureza, alguns rappers, notada-


mente os adeptos do chamado free style (raps feitos de improviso),
têm reivindicado o parentesco do rap com o repente nordestino.
É o caso de Thaíde, que no seu CD Assim caminha a humanidade
(Trama, 2000) gravou uma faixa, intitulada “Desafio no rap embo-
lada”, na qual faz um rap em ritmo de desafio, pelejando com Nél-
son Triunfo. Figura mitológica da cultura hip-hop brasileira, Nélson
foi o primeiro dançarino de break do país e preserva até hoje a aura
de pioneirismo que o dignificou. Thaíde não fica atrás, é conside-
rado o primeiro rapper a gravar um disco no Brasil. O confronto é
mediado por Chico César, que anuncia o início:
É o rap embolada/ É o rap e o repente rebentando na quebrada/
Duelo de titãs, atenção irmãos, irmãs / Acenderam o pavio, Nél-
son fez o desafio e Thaíde aceitou / Vai começar a disputa, vale
tudo nessa luta/ Coco, hip hop, soul.

Thaíde provoca e Nélson Triunfo não faz por menos (a título de


informação, conste que Nélson é famoso não só pelos passos
de dança como pelo enorme cabelo estilo black power, que lhe
valeu o apelido de “homem árvore”):
Um senão: da legitimidade do rap 79

Thaíde começa:
Quem não conhece Nelsão, aquele cara comprido,/ magro parece
um palito e com o cabelão/ [...]/ tô ligado que ele é do nordeste /
minha rima vai mostrar que eu também sou cabra da peste/ vou
me transformar em tesoura, cortar o cabelo dele/ e pôr debaixo
do tapete com uma vassoura / eu vou até o fim dessa batalha/ vai
ser difícil superar a minha levada / no verso eu faço a treta/ te dou
um nó de letra/ abro e enfio o microfone na tua cabeça/ [...]/ você
não me assusta/ então cresça e apareça.

Nélson Triunfo responde:


Se você vier pra cima, vai cair na sua rima / nem Deus que tá lá
em cima vai poder te segurar/ [...]/ homem pra bater em mim/ se
nasceu, não se criou/ e se criou já levou o fim/ eu curto Luiz Gon-
zaga, o meu país tropical/ conheço o bem e mal e o som do James
Brown/ danço break, samba, soul, sou poeta e coisa e tal/ meu
cabelo foi tombado, é patrimônio nacional/ [...]/ do estilo black
power é a foto original/ então, irmão, preste atenção:/ meu cabelo
é real, não é ficção/ aqui é Nelsão, descendente de Sansão.

No final Chico César retorna pra dizer:


Ninguém perdeu, todo mundo ganhou/ pois o povo aprendeu com
o cantador/ veja aí, meu povo, vem do mesmo ovo
o rap, o repente, o neto e o avô
(Thaíde: Desafio no rap embolada).

Um disco muito elogiado pela crítica especializada, inclusive


exteriormente ao meio hip-hop, reforça essa aproximação entre
os dois gêneros. Rappin Hood, no CD Sujeito Homem (Trama,
2001), apresenta em parceria com a dupla de repentistas Casta-
nha & Caju, uma tentativa de fusão do rap com o repente no qual
afirma “seja no sudeste, seja no nordeste/ o rap é o repente, e
eu sou cabra da peste” (Rappin Hood: “De repente”).

O rapper, na faixa em que canta ao lado de Leci Brandão (“Sou


negrão”), também propõe um vínculo explícito entre o rap e o
partido alto.
80
81
82 Poesia Revoltada

Logo nos primeiros versos é a sambista quem diz:

Aí, o rap é o novo partido/ Rappin Hood é o partideiro.

Como se vê, num único disco encontram-se os dois lados mais


evidentes do desejo do rap de filiar-se a uma tradição que seja
reconhecidamente brasileira.

O partido alto, “modernamente, espécie de samba cantado em


forma de desafio por dois ou mais contendores” (História do
samba, 1997: 622), também coloca em cena um jogo de rivali-
dade, onde o raciocínio rápido e a destreza verbal são os princi-
pais elementos. David Treece, a partir de uma profunda análise
de matrizes musicais africanas, passando pelo estudo de suas
transformações na diáspora, chega à mesma conclusão dos
autores já citados: a de que o rap – no caso, o rap brasileiro – em
vez de negar, redescobre, via a experiência norte-americana, a
tradição estética afro-brasileira. Dá como exemplo as palavras
do rapper carioca Marcelo D2, a respeito do falecimento da
sambista e partideira Jovelina Pérola Negra: “Ninguém versava
como ela. Quando ela cantava a gente entendia a ligação entre
o rap e o samba” (apud Treece, 2000: 12). Todo esse caminho nos
traz ao disco da banda carioca O Rappa, que mistura tendências
do reggae, do rap e várias outras influências:
Partideiro que é partideiro não pode vacilar/ quando entra no
samba tem que versar/ quando entra no samba/ não pode ficar
de blá-blá-blá
(O Rappa: A todas as comunidades do Engenho Novo).

David Treece entende haver um fio condutor, baseado no vínculo


fala-ritmo, das formas musicais de origem africana que faria a
ponte entre uma tradição considerada originalmente brasileira,
iniciada pelo jongo, pelo partido-alto, e pelo samba-de-breque,
e o atual rap brasileiro de ascendência norte-americana.

Ao que me parece, essas comparações visam conferir cidada-


nia brasileira ao rap. É possível inferir daí que os rappers, pelo
menos aqueles com discurso mais politizado, sintam como uma
Um senão: da legitimidade do rap 83

contradição inexorável o fato de expressarem sua revolta numa


linguagem (não numa língua) que, na realidade, lhes é alheia.
A solução, então, seria buscar no passado brasileiro parentescos
da forma rap capazes de legitimar o seu modo de expressão.

É interessante notar que quando um intelectual, no caso David


Treece, resolveu fazer esse movimento, buscou nas células rítmi-
cas e na influência da oralidade, para ele a base de uma estética
negra transnacional, o núcleo de seu argumento. Já os rappers
quando o fazem, baseiam-se nas coincidências (à falta de um
termo melhor) culturais entre o presente do hip-hop e o passado
da tradição musical negra brasileira. Trata-se, neste caso, de um
olhar retrospectivo à procura de referências mais confortáveis
que aquela tida, até pelos próprios rappers, como alienígena.
O resultado prático desse esforço é que, uma vez convencidos da
nacionalidade do fenômeno cultural, seu discurso poderia final-
mente adequar-se: do tempo do repente e do partido-alto para cá
foi a deterioração do quadro social brasileiro, e não o impulso de
imitar os negros estadunidenses, que impulsionou a radicalização
dos negros brasileiros, manifestada musicalmente na forma rap.

Além das fronteiras do mundo cão

Apesar de seu discurso virulento, sua afirmação de uma identi-


dade negra e, muitas vezes, sua rejeição do “mundo branco”, o
rap está sendo ouvido além das fronteiras que demarcou para si.
Como apontei no início do capítulo, uma parcela considerável da
classe média branca está ouvindo, dançando, consumindo rap.
Um número considerável de estudantes e intelectuais de dife-
rentes áreas acadêmicas tem mostrado interesse crescente pela
cultura hip-hop, como a própria bibliografia desta monografia
demonstra. A esse respeito, são reveladoras estas palavras de
Maria Rita Kehl: “Como gostar desta música que não se permite
alegria nenhuma, exaltação nenhuma? [...] e uma mulher adulta
de classe média como eu receba a bofetada violenta do rap não
como um insulto mas como um desabafo compartilhado, [...]
84 Poesia Revoltada

como uma denúncia que me compromete imediatamente com


eles?” (Kehl, 1999: mimeo).

No interior de várias favelas do Brasil, onde quer que tenha havido


uma lavoura ou uma mina em que o braço escravo tivesse sido
necessário, surgiu uma aventura musical que inaugurou um novo
momento; sim, para a indústria cultural, de algum modo; mas
também para a cultura no mundo, incluindo a brasileira. Afinal,
como diria Mano Brown em uma de suas primeiras letras (antes
mesmo da formação do Racionais), “aqui não é gueto americano,
é periferia brasileira” (apud Pimentel, 1999: mimeo). Para Nicolau
Sevcenko, ao contrário de um simples malabarismo tecnológico,
a orientação que os rappers vêm dando ao seu trabalho “refe-
renda aquela mesma agenda da cultura negra, que expressa as
fontes mais profundas da sua inspiração espiritual, marcadas
pelas experiências excruciantes do colonialismo, do exílio, da
escravidão, da segregação e da exclusão” (Sevcenko, 2001: 118).

E num sentido muito semelhante, Christian Béthune completa-


ria que, através do sampling, “o rap reativa o conjunto da cul-
tura afro-americana no sentido de uma visada revolucionária
sem concessão e permite a seus atores a reapropriação de um
conteúdo do qual haviam sido desapossados” (Béthune, 1999:
49). No rap “Declaração de guerra”, de MV Bill, há um verso cujo
sentido remete ao processo de reapropriação cultural teorizado
por Béthune. A letra imagina uma guerra entre negros e brancos
e, em dado momento, o rapper propõe:
Devolvam o samba e nossa cultura roubada ou vendida/
que eu poupo sua vida
(MV Bill: Declaração de guerra).

Foi para confrontar essa apropriação da cultura pelas elites domi-


nantes, pela política e pelo mercado que diversos grupos inde-
pendentes do mundo inteiro, os rappers inclusive, “decidiram criar
uma antiestética das ruas” (Sevcenko, 2001: 129. Grifo meu).
Um senão: da legitimidade do rap 85

Contranarrativa, antiestética – poderíamos dizer uma anti-arte?


(cf. E. Grassi: 1975) – ou ainda contraliteratura, se formos assu-
mir o conceito de Bernard Mouralis. Conceitos negativos que
parecem apontar para o caminho oposto do que pretendia no
início destas páginas. Todavia, concordo com Mouralis quando
define o conceito de contraliteratura como “modalidades múl-
tiplas de subversão do literário”, indicando que a disputa não é
entre “literatura” e “não-literatura”, mas entre literatura e contra-
literatura (Mouralis, 1982: 12-14). No caso do rap, o que, a meu
ver, falta ser colocado em relevo é o fato de que essa oposição
a um modelo estético já dado representa, por outro lado, a cor-
respondente resistência a uma realidade opressiva, implicando
a busca obstinada de uma liberdade ainda pouco definível. Como
essa busca trafega em mais de uma direção, é claro que ela ame-
açará também o status que as classes hegemônicas conferiram
à arte em nossa sociedade. Nesse sentido, a arte do rap só pode
se estabelecer como contra ou anti. Contra os modelos pré-es-
tabelecidos de bom gosto em arte e como antítese a um modelo
social excludente.

Décadas atrás, Antonio Candido alertava que o avanço dos


recursos audiovisuais poderia provocar tantas mudanças nos
processos de criação e nos meios de comunicação, que, no
dia em que as grandes massas chegassem à instrução, “quem
sabe não [iriam] buscar fora dos livros os meios de satisfazer
as suas necessidades de ficção e poesia” (Candido, 1987: 144).
No que diz respeito aos nossos poetas de rua, em primeiro
lugar eles não esperaram que as “grandes massas” chegassem
à instrução, antes, por mais que isso pareça pretensioso, eles
se propõem como meio de instrução, assumindo uma tarefa fla-
grantemente pedagógica. Em segundo lugar, eles entenderam
que no seu meio, devido até à falta de instrução, muitas vezes o
discurso ficcional é um luxo. Eles vão propor, então, uma poesia
com o pé bem fincado na realidade, mas, ao mesmo tempo, pre-
ocupada em transformar o mundo (o que vai na contramão da
leitura da contemporaneidade como um momento pós-utópico).
86 Poesia Revolta

O hip-hop, com sua poesia radical e revoltada mas potencial-


mente pop, é uma das muitas possibilidades de se realizar essa
tarefa. Através de seu ritmo e sua poesia, eles buscam uma
saída. Gog chega a indicar explicitamente uma possibilidade.
Na letra de um de seus raps o rapper do Distrito Federal diz:
Hein! Qual a saída?/ Consiste em admitir que o mal existe sim/
enraizado entre nós/ pronto pra ficar, nos dizimar, ser nossa
sina/ temos que ter forças, nos unir/ para impedir/ para distin-
guir o certo do errado/ do contrário, meu caro/ seremos eternos
manipulados
(Gog: Entrei no ar).

O verso final desse rap é extremamente significativo:


é isso aí, a nossa responsabilidade é grande...
Um senão: da legitimidade do rap 87
CAP.05
A palavra armada

CAP.05
A palavra armada

CAP.05
A palavra armada
Uma fronteira não é o ponto onde algo termina, mas, como os
gregos reconheceram, a fronteira é o ponto onde algo começa a
se fazer presente.
Martin Heidegger

Michael Löwy, no livro Redenção e utopia, conta uma história


sobre Lukács em que o filósofo, capturado pelas tropas contra-
revolucionárias após a derrota da revolução húngara (da qual
havia participado como ministro da Cultura) em novembro de
1956, ao ser intimado pelo oficial soviético a entregar suas armas
teria tirado do bolso a caneta, entregando-a às forças da ordem.
Guardadas as devidas proporções e respeitados os diferentes
contextos históricos, quero propor que se trata de uma rela-
ção semelhante à que se dá entre o rapper e o seu microfone.
Christian Béthune já tinha percebido esse tropo, não apenas no
tocante ao rap. O músico de jazz, lembra-nos o autor, comparava
seu instrumento a um machado e a sonoridade que tirava dele
com o fio cortante de uma arma branca. De modo semelhante,
“nas mãos do MC, o microfone se torna um rifle, e as palavras
queimam em sua garganta como se fossem projéteis mortíferos”
(Béthune, 1999: 70-1).

Não raro, o rapper estabelece comparações do seu microfone


com uma arma (da qual o pensamento é, geralmente, a muni-
ção). Por exemplo nos raps de Gog:

90
A palavra armada 91

O meu papo não é fachada/ bumbo, caixa, teclado/ encaixam com


minha fala/ o produto a rajada”
(Entrei no ar)

ou
Acreditando que a mente é a mais farta munição
(Matemática na prática)

nos do Racionais MCs:


A primeira faz bum, a segunda faz tá/ [...]/ meu estilo é pesado
e faz tremer o chão/ minha palavra vale um tiro, eu tenho muita
munição [...]/ o rap venenoso é uma rajada de PT”
(Capítulo 4, versículo 3).

MV Bill não reproduziu o modelo em seus versos; em compen-


sação, ostenta uma tatuagem no ombro esquerdo onde se pode
ver o desenho de um microfone e a legenda “Minha arma”.

O expediente não se restringe aos rappers destacados neste


trabalho. O grupo pernambucano Faces do Subúrbio declama:
Não tenho um 38, mas minha arma é o microfone
então se liga, / pá...rá-tá-tá-tá, rajadas de consciência
não vai dar pra se esquivar
(Coisas que vêm de dentro).

ou ainda:
Estou aqui novamente/ com meu calibre pesado, nervoso para
disparar/ mensagens à queima-roupa/ sem chance de escapar”
(Comunicação verbal).

O grupo carioca Planet Hemp – que apesar de contestado por


alguns setores do próprio meio, reivindica sempre que pode a
identidade hip-hop1 – também entra na onda:

1 Marcelo D2, líder do grupo, volta e meia toca no assunto em suas letras, como
por exemplo: “Enquanto você brinca de Ice-T/ pessoas pagam com a vida aqui e ali/
então não venha com esse papo que o rap é só seu/ que caiu no seu quintal/ saia
dessa utopia e caia na real/ antes que seja tarde e você se dê mal/ rap é cultura de
rua e não vou dizer mais nada/ para bom entendedor meia palavra basta/ rappers
reais será que existe isso?” (Planet Hemp, 1999: “Rappers reais”). Em outra faixa,
D2 canta: “Eu vou tentando rimar/ cê vai tentando entender/ hip hop Rio é Planet
Hemp/ [...] eu sou do Rio, eu sou do hip-hop” (“Hip Hop Rio”).
92
93
94 Poesia Revoltada

Já disse e digo de novo/ que o gatilho não falha/ [...] é um, é dois, é
três, o meu cartucho eu descarrego de uma vez/ a mente é a arma,
a voz é a bala/ sai tudo de uma vez
(Se liga).

José Carlos dos Reis Encina, vulgo Escadinha, que em 1999 lan-
çou um disco de rap,2 criou um refrão com sentido semelhante,
que dá o que pensar:
Chega de morte, ilusão, seu pai é um novo homem
troquei a paz de um fuzil pela guerra de um microfone
(Filho).

A comparação, amiúde praticada pelos rappers, de sua arte


com uma retórica do armamento representa a um só tempo o
vínculo e a fissura entre o poema e a realidade: aqui os tiros
atuam “como um ataque cardíaco do verso/ violentamente
pacífico, verídico” (Racionais: “Capítulo 4, versículo 3”). A repro-
dução onomatopaica dos sons de armas sendo engatilhadas e
disparadas, recurso presente em diversos raps, diria Caio B. de
Mello, “é índice da recriação de um ponto de vista colado à ação,
[...], do esquivar constante e nem sempre eficaz do narrador por
entre os tiros que entrecruzam na experiência”. Para o autor:
“A palavra que vale um tiro é o verso incessante, à beira de um
ataque cardíaco” (Mello, 2001: mimeo).

O som dos disparos, comum na Cidade de Deus como em qual-


quer favela, tornou-se tão importante como símbolo de violência
que não só foi incorporado às composições dos rappers, atra-
vés do sampler ou da imitação vocal, como, no caso de MV Bill,
engendrou novas possibilidades formais. Na faixa “Um crioulo
com uma arma”, por exemplo, o rapper joga com a emissão dos

2 O disco intitula-se Fazendo justiça com as próprias mãos. Foi lançado quando
Escadinha ainda cumpria pena em Bangu I, por tráfico de drogas. Ele, no entanto,
não gravou propriamente o CD. Vários rappers, entre os quais MV Bill e Gog, empres-
tam a voz a composições de Escadinha, redigidas na prisão. O Racionais participa
do disco com uma música própria, “O homem na estrada”, a qual teria, segundo o
próprio, influenciado Escadinha a mudar de vida.
A palavra armada 95

fonemas /p/, /t/ e /r/, que são os que melhor mimetizariam a sono-
ridade de fuzis ou metralhadoras. Nesse rap, MV Bill narra o cerco
de policiais a um criminoso:
Mais de vinte PM cercando a casa/ para o que será?/ Para matar,
para matar, para matar/ Para matar, para matar, para matar...
(MV Bill: Um crioulo com uma arma).

A cadeia aliterativa combina-se à performance vocal expressiva


que escande as sonoridades; em seguida, comprime a locução
“para matar”, que é repetida cada vez mais rapidamente, até que
se possa confundi-la com a rajada de uma metralhadora.

O verso violento do rap busca um caminho possível entre a


rajada real e a sua forma estética. O músico pernambucano e um
dos líderes do movimento Mangue Bit,3 Fred Zero Quatro, num
texto em que defende a maior vitalidade da poesia oriental em
relação à ocidental, faz uma consideração interessante sobre a
relação entre crime e poesia: “Se os governantes recusam-se a
considerar poesia como crime, então alguém precisa cometer
crimes que tenham a função de poesia, ou textos que tenham
a ressonância do terrorismo” (Zero Quatro, 2000). Não é outro,
parece-me, o caminho buscado pelos rappers. A arte que pos-
tulam tem a ver com a realidade que vivem. O crime é uma parte
importante dessa realidade. Por isso a criminalidade, ou a vio-
lência, não só é um tema bastante explorado nas composições,
mas integra o próprio comportamento do artista: o jeito de falar,
de vestir-se, de agir.

Para inúmeros jovens que vivem nas favelas, o narcotráfico pode


representar uma forma de “subir na vida”, trazendo dinheiro, pres-

3 Movimento musical que surgiu no Recife no começo da década de 90, a partir


das misturas de sonoridades típicas de Pernambuco, como o maracatu, e outras
vindas de fora, como o hip-hop e o punk rock, agregando ainda um imenso aparato
informacional que vai do ciberpunk às tecnologias de comunicação. Um dos lemas
de Chico Science, um dos expoentes do movimento, junto a Fred Zero Quatro, é “as
antenas parabólicas fincadas no manguezal”. Chico Science faleceu num acidente
de automóvel em 1997, mas a cena mangue continua resistindo.
96 Poesia Revoltada

tígio e poder. Contudo, a manutenção desse status só é possível


através da defesa violenta e intransigente de um espaço, o espaço
do “movimento”, da boca-de-fumo, que garante ao traficante
ganho material e a sua posição de liderança na comunidade. Por
isso a contradição presente no verso de Escadinha citado acima
é apenas aparente. A opção pelo fuzil garante um tipo de paz que,
por um lado, é financeira, garante o pão de cada dia e muito mais.
Por outro, é política. O fuzil, de algum modo, garante para o jovem-
negro-favelado – expressão que soa como clichê hoje em dia, mas
nem por isso é menos verdadeira – um lugar no mundo. Ralph
Ellison, no prólogo de Invisible man, livro publicado pela primeira
vez nos Estados Unidos em 1947, começava dizendo: “Eu sou um
homem invisível. Não, eu não sou um fantasma como aqueles que
perseguiam Edgar Allan Poe; tampouco sou um ectoplasma do
cinema de Holywood. Sou um homem de substância, de carne e
osso, de fibra e líquidos – e pode-se dizer que possuo até mesmo
uma alma. Eu sou invisível, entendem, simplesmente porque as
pessoas se recusam a ver-me” (Ellison apud Vogt e Fry, 1996: 15).

Cito esse trecho porque me parece muito significativo da sen-


sação que, muitas vezes, tem o garoto (as garotas também par-
ticipam desse mundo, mas em proporções muito menores) na
favela: ele passa despercebido. O recurso ao fuzil já lhe garante
duas novas posições no jogo das relações sociais. Primeiro, ele
passa a ser notado e a provocar nas pessoas um sentimento,
ainda que seja o medo. Em segundo lugar, ele passa a pertencer
a um grupo, que será tanto mais coeso quanto mais se oponha a
outros grupos, como acontece hoje em algumas cidades com os
conflitos entre facções do narcotráfico. Faça parte do Comando
A, B ou C, ele agora se sente alguém. Tem a sensação, mesmo
que ilusória, de ter-se tornado visível.

O rap, por sua vez, exige trabalho, talento e paciência. Os resul-


tados não aparecem de imediato, e às vezes sequer aparecem.
No Brasil, as possibilidades de enriquecimento pelo rap ainda
são remotas. Através do microfone, a guerra é mais complexa
A palavra armada 97

porque 1) envolve a percepção das contradições presentes nas


relações sociais, inclusive as do seu próprio meio, por exemplo,
os conflitos fratricidas (como nas guerras do narcotráfico), o
que leva à necessidade de mudar esse quadro:
A vida é curta, procure alguma coisa boa para fazer/ parar de se
matar, nosso inimigo é outro/ prejudicado nessa guerra apenas
nosso povo
(MV Bill: Atitude errada).

2) coloca uma perspectiva de futuro –


quero um futuro melhor/ não quero morrer assim,
num necrotério qualquer
(Racionais: Homem na estrada).

–, coisa que passa longe do raciocínio da bandidagem, para


quem importa mais um presente melhor; e 3) traz à baila, ao
lado da polícia e outros, um inimigo diferente, mais poderoso e
difuso, conhecido por um nome familiar às esquerdas revolu-
cionárias: o sistema.

Por outro lado, o rap garante para aquele jovem-negro-favelado


a visibilidade que tanto desejava. John Farley afirma, em texto
significativamente intitulado “A nação hip-hop”, que o “estado
de ser invisível é uma metáfora constante da condição do negro
na sociedade americana”. O grupo de rap estadunidense Roots
explicita isso:“Vocês não nos vêem/ mas nós os vemos”. Segundo
Farley, o hip-hop “deu voz à invisibilidade” (Farley, 1999: 2). Voz
que, no Brasil, representará uma forma mais construtiva de
superar as barreiras impostas pela condição de invisibilidade
do negro que a opção pelo fuzil.

A escolha da via artística traz para o rapper uma grande respon-


sabilidade. Eric Hobsbawm, na História social do jazz, falava a
respeito do artista que surge entre os trabalhadores não qua-
lificados e o significado social peculiar que sua atividade teria
para os pobres como ele. Mutatis mutandis, o rapper convive
com uma realidade semelhante: “No mundo do qual ele vem
e onde ele trabalha, ‘entretenimento’ (que significa qualquer
98 Poesia Revoltada

talento pessoal ou dom vendido para o público ver, ouvir ou usu-


fruir de alguma outra forma, do corpo para a alma) não é apenas
uma forma de ganhar a vida, mas muito mais importante, uma
maneira de se criar um caminho próprio dentro do mundo, só
comparável ao crime e à política...” (Hobsbawm, 1990: 218).

Boa parte dos rappers, notadamente os que têm semelhanças


com os estudados aqui, passa a vida num delicado equilíbrio
entre um lado e outro – entre a opção pelo crime e a opção pelo
rap. MV Bill, por exemplo:
Encontrei minha salvação na cultura hip-hop/ Tem outros que
entraram pra vida do crime querendo ganhar IBOPE
(MV Bill: Traficando informação).

Mano Brown expressa um sentimento semelhante:


Não me olhe assim, eu sou igual a você/ descanse o seu gatilho/
que no trem da malandragem meu rap é o trilho
(Racionais: Fórmula mágica da paz).

Era esperável que a tensão entre o rap e o crime viesse a se refle-


tir no trabalho de composição dos rappers. Não apenas no que
diz respeito ao aspecto sociológico da questão, mas também no
que se refere à dinâmica interna dos textos. Mesmo tendo optado
pelo caminho da arte, a experiência adquirida no meio hostil em
que viveram canaliza para as suas letras e performances, o “sen-
timento de revolta” que outros resolveram de forma diferente,
optando pela “paz do fuzil”.

Em “Capítulo 4, versículo 3”, do disco Sobrevivendo no Inferno, o


grupo Racionais MCs expõe a um eventual ouvinte o seu programa
de intenções. Sem meias palavras, o discurso não omite a infle-
xão por demais dura de sua proposta, nem faz questão de manter
a aparência de quem propõe diálogo ou espera compreensão.
Minha intenção é ruim, esvazia o lugar/ eu tô em cima, eu tô afim,
um-dois pra atirar/ eu sou bem pior do que você tá vendo/ preto
aqui não tem dó, é cem por cento veneno [...]/ e tenho disposição
pro mal e pro bem/ talvez eu seja um sádico/ um anjo, um mágico/
A palavra armada 99

um juiz ou réu/ um bandido do céu/ malandro ou otário/ guarda ou


sanguinário/ franco atirador se for necessário.

A linguagem se articula entre a ordem e o crime, o sujeito defi-


nindo-se a partir de antinomias – disposição pro mal e pro bem,
um sádico ou um anjo, juiz ou réu, malandro ou otário, bandido
do céu. “Eu sou bem pior do que você tá vendo” representa uma
resposta à altura do discurso eivado de preconceitos com que a
sociedade o encara. Em outras palavras, o estereótipo com que
é definido, se o marca de inferioridade num primeiro momento,
num outro é o que o torna um “perigo”. Eis o nó: um perigo não
exatamente físico; o perigo aqui reside no discurso, na lingua-
gem. A ameaça não se concretiza, sua potencialidade é o que
permite mostrar que a palavra é portadora de uma energia
capaz de interferir no real.

A atitude não é nenhuma novidade, tampouco traço exclusivo


do rapper brasileiro. Em seus trabalhos a respeito do fenômeno
rap, os pesquisadores Christian Béthune (1999), David Shuster-
man (2000) e Steven Best & Douglas Kellner (1999) concordam
que a lógica da rivalidade, das disputas e dos desafios faz parte
da cultura negra espalhada pelo planeta desde os primórdios
da diáspora africana e certamente já estariam presentes nas
culturas africanas antes do expansionismo colonial.

Os autores procuram mostrar que a habilidade verbal é bastante


estimada no “gueto africano urbano”, exibida através de concur-
sos e jogos verbais convencionais tais como signifying (“signifi-
car”) ou as dirty dozens (“dúzias sujas”), jogos de insultos rituais,
envolvendo demonstrações de destreza verbal, perspicácia e
criatividade. Esses jogos concorreriam para afirmar uma posição
social superior mediante o poder verbal, implicando disputas
no campo da linguagem; e teriam feito da cultura rap sua mais
recente herdeira (Béthune, 1999: 67 et passim; Shusterman, 2000:
146; Best & Kellner, 1999: mimeo).

“Desde os primeiros tempos da escravidão, as manifestações cul-


turais dos negros têm a tendência de se organizar sob a forma de
100 Poesia Revoltada

justas”, escreve Christian Béthune (1999: 68). Esse processo seria


também um prolongamento simbólico de rivalidades estabele-
cidas entre as equipes de trabalho formadas pelos senhores de
escravos, visando o aumento da produtividade. Béthune refere-se
a competições nas quais eram premiadas as equipes de trabalho
que melhor desempenhassem sua tarefa no eito. Para o autor,
essa forma competitiva de divisão do trabalho teria continuidade
nos momentos de distração: “Cantar, dançar, contar uma história
tornam-se também ocasiões para se distinguir e ascender no inte-
rior da comunidade afrontando os melhores” (Béthune, 1999: 68).

Essa prática se perpetuaria até hoje. Béthune explica que o jovem


negro dos guetos norte-americanos, habituado a participar de jogos
verbais como as “dúzias”, aprende desde cedo a encarar a vida como
uma constante disputa por um lugar na comunidade de pares. Tais
processos também seriam responsáveis por ajudá-lo na sua pas-
sagem da adolescência à idade adulta, preparando-o para uma
sociedade hostil à sua classe e à sua raça, na qual deverá descobrir
como sobreviver ou sucumbirá (Béthune, 1999: 72). Tudo isso seria
parte de uma tradição negra profundamente enraizada nas cidades,
remetendo aos griots da África ocidental, tendo sido difundida no
Novo Mundo através dos caminhos do Atlântico negro. Tradição que
não poderia ter deixado de aportar também em terras brasileiras.

Béthune (1999: 70) sustenta que a cultura hip-hop, não apenas


o rap, retoma à sua maneira essa face da cultura negra. Quer se
trate da dança break,4 do graffiti e, é claro, do rap, a cultura hip-

4 “Nessa época [início dos anos 70], eram comuns os conflitos étnicos em que gan-
gues de hispânicos se encontravam com as dos negros para tirar suas diferenças de
maneira violenta, levando muitas vezes à morte. Dentro dessa realidade cruel, o break
se tornou o elemento de união número um para os jovens que integravam aquelas
gangues, os quais buscaram através da dança uma alternativa para a solução de seus
problemas. Então, quando as gangues se encontravam nas ruas, decidiam suas diver-
gências de forma sadia e inteligente: com o box (rádio-gravador) na mão, conjuntos de
agasalhos das mais diversas marcas (Nike, Adidas, Puma...), tênis de couro com cadar-
ços grossos e coloridos, chapéus de golfista, boinas e bonés, caracterizando o visual b.
boy, as gangues mostravam no break quem era o dono do pedaço” (DJ TR, s/d, mimeo).
A palavra armada 101

hop faz da rivalidade entre seus atores um elemento prepon-


derante de sua estética. Como vimos anteriormente, também
o repente e o partido-alto são formas culturais que, no Brasil,
manisfestam essas características.

No contexto mais atual – precisamente desde o início da década


de 80 – a rivalidade não se vai restringir ao caráter esportivo de
uma disputa, muitas vezes baseada na soberba e na fanfarronice,
entre os próprios membros da cultura hip-hop em particular. A voz
dos rappers volta-se contra os problemas sociais, a opressão
racial e social, a situação política, a ideologia dominante enfim,
constituindo-se como um severo questionamento da sociedade
e de seus poderes constituídos, com um chamado explícito ao
confronto. O mote aqui é fornecido pelo grupo Public Enemy:
“Fight the power”.

Certamente, foi esse aspecto que motivou o subtítulo do livro de


Christian Béthune: une culture hors la loi. O fato de se situar fora
da lei, consigna ao rapper um antagonista que estará sempre
presente nas letras: a polícia. Esta representa a perseguição
não só ao rapper, mas à sua comunidade e a seu povo:
vão invadir o seu barraco, é a polícia/ vieram pra arregaçar
cheios de ódio e malícia/ filhos-da-puta, comedores de carniça
(Racionais: Homem na estrada).

diz Mano Brown, deixando bem claro, no final do mesmo rap, o


pouco apreço que tem pela corporação: “não gosto da polícia, raça
do caralho”. O mesmo aparece nesta outra composição do grupo:
Se diz que moleque de rua rouba/ o governo, a polícia no Brasil
quem não rouba?/ Ele só não tem diploma pra roubar/ ele não se
esconde atrás de uma farda suja/ [...]/ AH, a polícia sempre dá o
mal exemplo/ lava minha rua de sangue/ leva o ódio pra dentro, pra
dentro de cada canto da cidade
(Racionais: Mundo mágico de Oz).

A relação com a polícia é mais um traço de união entre os membros


da cultura hip-hop no mundo inteiro. Best & Kellner dizem que a
103
104 Poesia Revoltada

música rap procura chamar a atenção dos jovens negros nos cen-
tros urbanos para diversos problemas, especialmente a violência
policial, com a qual se confrontam diariamente. Eles entendem
que, longe de “servir e proteger”, a polícia na verdade representa
um dos mais graves problemas das comunidades negras (Best &
Kellner, 1999: mimeo).

Uma pesquisa realizada por Ignácio Cano, publicada no sítio


de notícias No., revela que a ação policial no interior de favelas
ocasiona mais mortes que fora dela, e que os negros, moradores
de favela ou não, são mais vitimados pela violência policial que
os brancos. Em entrevista a Carla Rodrigues, repórter do referido
sítio, Cano desmistifica as duas hipóteses mais freqüentes para
explicar o fenômeno: o fato de a polícia agir mais em áreas da
periferia, onde vive um maior número de negros; e o de os negros,
justamente por serem pobres, cometerem mais crimes, e por isso
acabarem, devido à coincidência de raça e classe social, sofrendo
mais a ação policial. Como a pesquisa procurou excluir estas
duas questões, demonstrando que tanto nas áreas pobres como
nas ricas a estatística permanece desfavorável aos indivíduos
de fenótipo negro, o racismo e o preconceito inerentes à polícia
aparecem mais claramente (Cano, 2000). Os rappers já sabiam.
Numa espécie de preâmbulo à faixa “Capítulo 4, versículo 3”, a
voz de Primo Preto anuncia as seguintes estatísticas:
60% dos jovens de periferia, sem antecedentes criminais, já
sofreram violência policial; em cada quatro pessoas mortas pela
polícia, três são negras; nas universidades brasileiras, apenas 2%
dos alunos são negros; a cada quatro horas um jovem negro morre
violentamente em São Paulo
(Racionais: Capítulo 4, versículo 3).

Não é demais lembrar o depoimento do delegado de polícia


Hélio Luz ao documentário Notícias de uma guerra particular, de
João Moreira Salles. Luz afirma que a polícia existe para fazer a
segurança da elite. Para os pobres, resta a política de repressão:
“Mantenho a favela sob controle. Como é que se mantêm dois
milhões de excluídos sob controle, calmos?... Com repressão!”
(in Salles, 2000).
A palavra armada 105

A favela e a nova atitude negra

Na relação entre o rapper e a sua comunidade manifesta-se


o desejo de assumir uma tarefa: a de representar o seu povo.
O rapper fala pelos que não falam. Talvez não na qualidade de
um igual, uma vez que seu papel como artista e sua projeção
para além dos limites da comunidade o marcam, de saída, com
um traço diferencial. Assim mesmo, eles falam de um ponto de
vista que, se não é inédito, é o que leva mais longe a possibi-
lidade de uma voz dissonante, oriunda de excluídos históricos
do processo de modernização social brasileiro, nas narrativas
reveladoras da nação.

No disco de MV Bill há uma faixa de introdução que é uma espé-


cie de cartão de visitas endereçado ao ouvinte. Este poderia ser
o recado de qualquer um dos rappers selecionados para este
trabalho. Em todos os três – e nos demais que volta e meia
menciono, como Thaíde ou Faces do Subúrbio – o drama das
favelas se assemelha em muitos aspectos: a exclusão, a opres-
são, a violência, a miséria e a impossibilidade de se expressar.
MV Bill está em casa/ pode acreditar vamos fazer uma longa
viagem/ não ao inferno tampouco ao paraíso/ mas uma viagem
na vida dura, na vida simples/ de muitas pessoas que como nós/
vivem às margens da sociedade/ vivem sem voz, acuadas e opri-
midas/ vamos fazer uma longa viagem/ numa cidade que segue
sofrendo/ que sofre vivendo e que chora sorrindo e sangra sem
choro/ que tenta mudar o destino traçado para os filhos seus/
uma viagem de ida e volta a uma cidade chamada de Deus
(MV Bill: Introdução).

Essa introdução, cantada/falada, acompanhada apenas por per-


cussão, abre passagem para as faixas seguintes. MV Bill pretende
levar-nos para um “passeio” pela comunidade onde mora, como
um guia de turismo que nos conduz através da linguagem pelos
becos e vielas da favela. O primeiro verso é, a meu ver, muito
significativo: “MV Bill está em casa”. Não é um verso casual, é
praticamente um bordão do rapper, pronunciado em momentos
106 Poesia Revoltada

específicos. Sempre que se apresenta em uma comunidade, ou


num espaço de eventos dedicado exclusivamente ao hip-hop
ou a outras manifestações culturais típicas dos negros, MV Bill
inicia sua apresentação com essa frase.

Isso é mais significativo na medida em que, nas oportunidades


em que o rapper se apresenta em locais fora da favela e não iden-
tificados com a cultura hip-hop, a frase é repetida na negativa.
Foi o caso da apresentação no palco do Free Jazz Festival, na edi-
ção de 2000, realizado no Museu de Arte Moderna, no Flamengo,
bairro da zona sul carioca, local identificado pelos adeptos do
hip-hop como um espaço da elite. Nesta noite, no salão lotado
por playboys, o rapper iniciou sua performance frisando: “MV Bill
não está em casa”, com a ênfase recaindo, sintomaticamente,
sobre o advérbio de negação.

Vale a pena dedicar alguma atenção a esse modo de agir, que faz
o rapper sentir-se em casa em determinados espaços – os da
favela ou os dedicados à cultura dela advinda – e fora dela em
outros. Essa oposição, a meu ver, engendrou uma desconfiança
mútua entre a sociedade branca dominante, que é a que habita
de fato a cidade, e os negros subalternos, dela excluídos. O ine-
vitável convívio social impõe a exposição da distância significa-
tiva entre os que gozam do conforto oferecido pela sociedade,
e os que sofrem as injustiças graças à sua classe ou sua cor,
quase sempre a ambas. O rap será a linguagem dessa cesura.

Uma cesura que, sob certos aspectos, remete à reflexão de


Franz Fanon sobre as lutas anti-coloniais. Fanon, que desen-
volveu sua reflexão tendo por base o contexto específico da
descolonização africana, dizia que a cidade do colonizado e a
do colono se opõem e se excluem mutuamente, “não há con-
ciliação possível, um dos termos é demais” (Fanon, 1979: 28).
Embora aqui eu esteja tratando de um quadro histórico intei-
ramente outro, lidando com negros urbanos brasileiros, creio
ser possível, dentro de certos limites, estabelecer uma aproxi-
A palavra armada 107

mação. Em primeiro lugar, considerando o fato de que as atuais


condições sociais – flagrantemente desfavoráveis não só aos
pobres, mas aos indivíduos afro-descendentes – são resultado,
em todo o Novo Mundo, do período em que vigorou a escravidão.
Em segundo lugar, o de que as desigualdades produzidas neste
período permanecem atuais e são percebidas pelos rappers
como continuidade de um processo civilizatório excludente, ini-
ciado justamente no período da expansão colonial. Tal percep-
ção não se resume à elaboração intuitiva dos rappers. Por isso, a
relação entre a favela e a cidade – entre o morro e o asfalto, numa
denominação que ficou comum – aparece no discurso do rapper
sob o signo da cisão e do atrito, mais que da troca e da interpe-
netração. O que Fanon observou a respeito do contexto colonial
me parece ainda hoje válido quando o contexto é a contempo-
raneidade globalizada. Observados em profundidade, tanto um
contexto quanto o outro revelam que “o que retalha o mundo é
antes de mais nada o fato de pertencer ou não a tal espécie, a tal
raça” (Fanon, 1979: 28).

O mundo colonizado é, para Fanon, um mundo cindido em dois.


A cidade do colono revela uma cidade saciada, repleta de coisas
boas. Já a cidade do colonizado “é uma cidade faminta, faminta
de pão, de carne, de sapatos, de carvão, de luz. [...] Uma cidade
de negros” (Fanon, 1979: 29). A visão do rapper não é muito
diferente. Ele expõe um mundo no qual as crianças da favela
não têm direito ao lazer, em oposição às dos bairros nobres, que
o têm de sobra. Em “Fim de semana no parque”, por exemplo o
lazer do favelado é restrito:
É, brincam do jeito que dá/ gritando palavrão, é o jeito deles

O dos “playboys” é farto:


Olha aquela quadra, olha aquele campo/ tem sorveteria, cinema,
piscina quente/ [...]/ tem corrida de kart dá pra ver/ é igualzinho o
que eu vi ontem na TV
(Racionais: Fim de semana no parque).
108 Poesia Revoltada

Este outro rap, de MV Bill, segue a mesma trilha:


Deve ser muito fácil falar da cobertura/ daqui de baixo aonde eu
tô a realidade é bem mais dura/ aqui não tem playground, não
tem carro do ano/ aqui não tem piscina com playboy nadando/
aqui não tem shopping, não tem boate/ mas tem soldado de azul
brincando de “SWAT”
(MV Bill: Contraste social).

Supor que a cidade é cindida em duas partes simetricamente


antagônicas seria, certamente, uma simplificação. A cidade não
é exatamente partida, como propôs o jornalista Zuenir Ventura.
A cidade é multifacetada. Os contrastes se multiplicam dentro
de cada cidade, de cada bairro e mesmo de cada favela. Então,
é inegável que, na ótica do rapper, subsiste uma oposição sim-
ples, binária, pautada pela diferença entre os que se assenho-
raram das posições de poder e privilégio e os que delas foram
excluídos. No mundo dos brancos (como na cidade do colono), o
negro favelado não tem lugar:
Olha aquele clube que da hora, olha/ olha o pretinho vendo tudo
do lado de fora
(Racionais: Fim de semana no parque).

Este é o acesso que, de acordo com o Racionais, o negro tem ao


conforto da cidade: o de olhar, sempre do lado de fora. Sua entrada
neste mundo é permanentemente negada.

O olhar do “pretinho” excluído se expressa de dois modos dis-


tintos. Num, trata-se de um olhar de desejo e também de inveja.
No outro, captado pelo rapper, esse olhar manifesta também
um sentimento de revolta. Em resumo, o rapper tem uma visão
maniqueísta do contexto social: favela versus cidade, pretos
versus brancos. De acordo com seu discurso, uma vez cindida
a relação entre a cidade e a favela, os rappers trabalhariam
numa perspectiva de conquista de poder, buscando recuperar
aquilo que lhes fora negado ou usurpado. Tenho a acrescentar
que essa busca, a meu ver, se dá em dois níveis: por um lado é
estética, recuperando através do sample as diversas gerações
A palavra armada 109

da música negra. Por outro é eminentemente social, uma vez


que requer o seu direito à humanidade e à cidadania.

Para tanto, os rappers se valeriam da palavra, de sua voz, como


se fosse uma arma (cf. seção anterior). Através de sua voz, o
rapper vai falar pela favela, o que ganha a justa dimensão no
ato da performance. Aqui, a face séria, o cenho franzido, a voz
imperativa do rapper inauguram um novo gesto, um novo olhar
da favela em direção à cidade. Squeff e Wisnik diziam que, em
virtude de o negro traçar sua sobrevivência exclusivamente no
trabalho físico, será “no gesto, na manifestação física de sua
humanidade que ele [irá impor] sua cultura” (Squeff & Wisnik
apud Martin-Barbero, 2001: 251).

Os rappers parecem conscientes de que há forças superio-


res que lhes impedem a expressão: o governo, a televisão, a
sociedade em geral e a polícia. Daí, imbuir-se de uma missão.
Aceitando a sugestão do Public Enemy, eles querem comba-
ter o poder. Clastres explicava que o exercício do poder é que
garante a posse da palavra. O contrário também é verdadeiro:
a posse da palavra pode garantir o exercício do poder. É ainda
Clastres quem conclui: “Toda tomada de poder é uma aquisição
de palavra” (Clastres, 1990: 106). Daí, a necessidade histórica
de transformar essa relação. O rapper Gog parece ter percebido
muito claramente essa relação:
Vamos mudar a voz/ vamos ser a voz
(Gog: Qual é o pó?).

É através da palavra que os rappers se esforçarão para mudar as


coisas. Essa tomada de palavra é o primeiro e importante passo:
MV Bill falando pela comunidade.

Esse poderia ser um bordão também do Racionais ou do Gog,


desde que não se esqueça de que se trata de uma tarefa proble-
mática. Mano Brown, numa entrevista a revista Caros Amigos,
deixou bem claro que não se considera a voz da periferia:
110 Poesia Revoltada

Nós somos mais uma voz. [...] A minha verdade é essa,


não significa que seja a verdade de todo mundo
(in Caros Amigos, 1999: 16).

MV Bill fala pela comunidade, mas sabe que é complicado:


Minha atitude vai além
falo por milhões, compreendido por menos de cem
(MV Bill in Cidade Negra: A voz do excluído).

Quando eles começam a falar, fica logo clara a intenção de arre-


gimentar forças capazes de realmente abalar as atuais estru-
turas de poder. Essa postura é evidente não só pelo que dizem,
mas pela maneira como o dizem. A voz entra firme, sempre grave
(séria). É um recado direto e claro: o ouvinte ou o público tem
que prestar atenção na mensagem, é isso que importa. Quem já
viu uma performance de qualquer um dos três rappers citados
(Gog, Racionais, MV Bill) ao vivo ou em vídeo, sabe que eles man-
têm o tempo inteiro uma postura séria, a face crispada como
quem está permantemente tenso... ou com raiva. Essa atitude
diz coisas: ela diz que o cara ali em cima do palco, entretendo o
público, vive mesmo as dificuldades que narra.

Não há motivos para sorrisos nem para manemolência: o rapper


de favela também tem que se diferenciar de outras formas de
expressão surgidas no mesmo espaço, como o funk e o pagode,
cuja performance tem um quê de afeminado do qual a atitude
dos rappers procura distanciar-se: até agora pelo menos, o hip-
hop tem sido o reino do masculino (no que esse conceito tem de
mais estereotipado). Esse fator acabou originando uma questão
mal resolvida: a misoginia, que tem sido um dos calcanhares de
aquiles do hip-hop. A meu ver o problema não é privilégio do rap,
várias manifestações da cultura negra reproduzem uma estru-
tura machista em suas composições ou forma de organização
sociocultural. Beatriz Borges afirma que “os compositores do
samba-canção conferem uma carga negativa à mulher”, que é
vista como falsa, “sempre ligada à dissimulação”. Além disso,
para a autora, o samba é um espaço masculino. Tanto que a roda
A palavra armada 111

de samba representa o espaço onde “a mulher do compositor


tem mais ciúme e desconfiança” (Borges, 1982: 91-2). Em outro
contexto, vejamos o que Elisa Grimm, em ensaio publicado na
coletânea do VII Seminário Nacional Mulher e Literatura, tem
a dizer sobre uma canção do grupo pop Skank: “Em geral, essa
música parece supor que toda [...] garota brasileira existe para
agradar o homem e ser-lhe sexualmente atraente”, enquanto
ele “tem direito de usá-la” (Grimm, 1999: 232). Os trechos
citados confirmam a opinião de Tricia Rose, para quem “é cru-
cial compreender que os rappers não inventaram o sexismo”.
Além disso, eles “não são os únicos a veicular uma imagem
simbólica da mulher-objeto” (Rose apud Béthune, 1999: 117).
O que não os isenta de sua responsabilidade.

Sobre isso, parece-me importante lembrar uma advertência de


Paul Gilroy, que vai além do problema da misoginia. Gilroy adverte
que ser conivente com a crença de que o vernáculo negro se
resume a “um desfile paródico e brincalhão da subversão rabe-
laisiana” enfraquece as posições do artista, do crítico e da comu-
nidade de forma geral. “O que é mais importante, certamente, é o
fracasso do comentário acadêmico ou jornalístico sobre a música
popular negra na América em desenvolver uma estética política
reflexiva capaz de distinguir o 2 LiveCrew5 e seus congêneres de
seus colegas igualmente autênticos mas talvez mais convincen-
tes e certamente mais construtivos” (Gilroy, 2001: 178).

Durante a segunda edição do Prêmio Hutúz (certamente a maior


premiação exclusiva do hip-hop no Brasil, senão na América
Latina), da qual participei como jurado, o apresentador do evento,
o rapper Thaíde, foi ovacionado após exortar seus colegas a tra-
tarem melhor as “minas” nas letras. E uma das maiores ovações
da noite foi para o rapper Pregador Luo, do grupo de rap gospel

5 Grupo de rap da Flórida que popularizou o gênero pornográfico. As letras de


suas composições são geralmente depreciativas ou ofensivas às mulheres. A mais
conhecida é “We want some pussy”.
112 Poesia Revoltada

Apocalipse 16, vencedor na categoria gospel e em outras duas, ao


homenagear as mulheres presentes. Ao final Luo emendou: “Pra
nós, vocês são damas e não cachorras”. Além disso, a discussão
sobre a misoginia dos rappers não deve obscurecer o fato de
que a voz feminina no rap brasileiro vem crescendo a cada ano,
mostrando-se disposta a não permanecer à sombra dos manos.

Os rappers que priorizo neste trabalho não manifestam, pelo menos


ostensivamente, características misóginas, embora o Racionais
MCs tenha sido acusado de nunca mencionar as mulheres da comu-
nidade em suas composições e quando mencionam, é de forma
negativa. À revista Raça, Mano Brown respondeu que isso acontece
porque “a gente não tem mais mensagem para mandar pras mulhe-
res. O mundo que a gente vive é outro. Mulher é a parte boa da vida”
(apud Novaes, 1999:76). Por outro lado, versos que poderiam revelar
certa misoginia, como “olha quanto boy, olha quanta mina/ afoga
essa vaca dentro da piscina” (1994: “Fim de semana no parque”),
não se dirigem às mulheres em si, mas a um determinado tipo de
mulher, àquelas que em outro rap denominariam “mulheres vulga-
res”. O caso é que, nas composições do Racionais, essa ressalva não
fica tão explícita quanto as declarações depreciativas:
Nada de roupa, nada de carro, sem emprego/ não tem Ibope, não
tem rolê, sem dinheiro/ sendo assim sem chance sem mulher/
você sabe muito bem o que ela quer/ encontre uma de caráter se
você puder/ é embaçado ou não é?
(Racionais: Fórmula mágica da paz).

Retomando o tema favela, cito uma composição em que se


revela um detalhado radiograma das comunidades situadas no
Distrito Federal. O trecho mostra que os problemas da periferia
não se restringem a uma ou outra comunidade, são problemas
comuns a qualquer favela no país:
Brasília periferia, Santa Maria é o nome dela/ estupros, assaltos,
fatos corriqueiros/ desempregados se embriagam o dia inteiro/ a
boca mais famosa é o puteiro
(Gog: Brasília periferia).
A palavra armada 113

O primeiro verso desse rap, “aqui a visão já não é tão bela”, é sinto-
mático da oposição ostensiva que o rap estabelece entre a favela
e a cidade. MV Bill, por sua vez, ironiza de forma cruel a visão
romantizada da favela como lugar dotado de uma beleza pito-
resca, ao mesmo tempo em que estabelece, de forma muito sutil,
um parâmetro para a cisão entre a favela e a zona sul carioca,
parodiando a famosa composição de Vinicius de Moraes e Tom
Jobim, “Garota de Ipanema”:
Que coisa linda, cheia de graça
família disputando o seu almoço na praça
(MV Bill in Cidade Negra: A voz do excluído).

Acrescente-se que não é apenas a violência da polícia ou da


bandidagem que torna a favela um lugar perigoso. O Racionais,
como vimos anteriormente, faz questão de lembrar que na favela
não se encontra “nenhum clube poliesportivo/ pra molecada fre-
qüentar, nenhum incentivo”. Por outro lado...
se quiser se destruir está no lugar certo/ tem bebida e cocaína
sempre por perto/ [...]/ Smith, Taurus, Rossi, Dreyer ou Campari/
[...] nomes que estão no nosso meio para matar
(Racionais: Fim de semana no parque).

Um discurso que Gog referenda:


Do fundão Ceilândia/ mais precisamente da expansão do
Setor O/ onde tiros, tiras, pó/ misturados dão um problema só”
(Gog: Matemática na prática).

E MV Bill concorda de pronto:


Cocaína, maconha, revólver, cachaça/ a última opção tá na
birosca, é liberada/ quase de graça, é álcool e mata
(MV Bill: Traficando informação).

Todavia, MV Bill aborda o problema por um viés ainda mais com-


plicado e difícil de lidar. Sabe que o “inimigo” a que o rap tanto
se refere não está simplesmente em um hipotético lado de lá, no
chamado asfalto. Tem uma atitude crítica interessante ao cha-
114
115
116 Poesia Revoltada
A palavra armada 117

mar a atenção para o fato de que o poder que massacra a sua


comunidade não está apenas nos bairros ricos, nas biroscas, nas
bocas-de-fumo, nos Departamentos de Polícia ou no Estado.
Percebe que a grande astúcia do “sistema”, foi fazer o “povo lutar
contra o povo”. Um exemplo:
Um preto não quer ver o outro preto bem/ isso é verdade não é
caô acredite/ [...]/ o inimigo usa terno e gravata/ mas ao contrário
a gente aqui é que se mata/ através do álcool, através da droga/
destruição na boca de fumo, destruição na birosca/ fazendo jus-
tamente o que o sistema quer
(MV Bill: Traficando informação).

Por outro lado, é preciso notar que a visão do rapper sobre a


favela não é unívoca. Ao mesmo tempo em que denuncia as
mazelas, os problemas e os contrastes sociais, declara-lhe o
seu amor e o seu débito. Foi da favela que o rapper retirou a
energia que agora pulsa em sua música. Em “Fórmula mágica
da paz”, do Racionais MCs, esse sentimento ambivalente com-
parece em toda sua amplitude:
Essa porra é um campo minado/ quantas vezes eu pensei em me
jogar daqui/ mas aí, minha área é tudo que eu tenho/ a minha vida
é aqui e eu não consigo sair/ é muito fácil fugir mas eu não vou/
não vou trair quem eu fui quem eu sou/ gosto de onde eu estou
e de onde eu vim/ ensinamento da favela foi muito bom pra mim
(Racionais: Fórmula mágica da paz).

Para o rapper, a favela (a sua área) é o seu habitat. Apesar das


minas explosivas – o álcool, as drogas, a violência –, é ali, do
seu lado da fronteira, que o rapper travará o combate contra
o sistema. David Shusterman assinalou que o hip-hop aborda
temas universais como a injustiça e a opressão, mas permanece
orgulhosamente como uma música de gueto, “adotando como
temática suas raízes e seu compromisso com o gueto negro
urbano e sua cultura” (Shusterman, 2000: 152). O autor ainda
nota que a maioria dos rappers especificam os seus domínios
com precisão, não apenas citando a cidade como também o
118 Poesia Revoltada

bairro de sua origem: Compton, Harlem, Brooklin ou o Bronx


(Shusterman, 2000: 153). É possível que esta seja uma caracte-
rística universal da cultura hip-hop espalhada pelo mundo. Por
mais que se internacionalize, o rap se empenha em manter-se
local e afinado com os interesses de suas respectivas comuni-
dades de origem.

A geografia periférica é tão importante para o rapper que os três


priorizados aqui, Gog, MV Bill e Racionais, escreveram raps para
homenagear não só a sua própria comunidade, mas a favela de
maneira geral. Esse é um procedimento que os aproxima de
Bezerra da Silva, que compôs um samba – “Aqueles morros” –
em que homenageia as favelas do Rio de Janeiro:
Antes aqueles morros não tinham nomes/ foi pra lá o elemento
homem/ fazendo barraco, batuque e festinha/ nasceu Mangueira,
Salgueiro, São Carlos e Cachoeirinha/ [...]/ Jacarezinho, Turano,
Sossego e o Morro Azul/ gosto de todos mas o Cantagalo que é
o meu lugar.

No Rio de Janeiro, da favela Cidade de Deus (“CDD minha área tá


no meu coração”), MV Bill canta as comunidades que fazem parte do
seu roteiro, atribuindo-lhes características que fecham as rimas:
Lugar que bicho pega, Vila Operária/ Rio das Pedras,
moradia precária/ [...]/Boa Vista, Favela do Pira, Querosene
pra ser inimigo basta ser PM
(MV Bill: Sem esquecer das favelas).

Em dado momento, o rapper revela:


Eu tô na favela e a favela tá em mim.

Gog, por sua vez, nos leva para uma longa viagem através da
capital do país. Naturalmente, o seu roteiro também é a vasta
zona periférica:
Aqui a visão já não é tão bela
Brasília periferia, Santa Maria é o nome dela

e os bairros se sucedem, cada um com seus problemas e


suas virtudes:
A palavra armada 119
120 Poesia Revoltada

No Gama a fama é o drama sensacionalista/ jornais, revistas,


segunda sai a próxima lista/ pânico na população/ mas esquece-
ram a escolinha de futebol do Bezerrão/ do samba no salão, que já
é tradição/ [...]/ Novo Gama, no Ipê, no Jardim Ingá, em Corumbá/
aqui lembra o Paranoá/ as pessoas, as ruas, sei lá...
(Gog: Brasília periferia).

No disco Sobrevivendo no Inferno, a faixa “Salve” mostra o ponto


de vista do Racionais MCs. Indica os bairros que – partindo das
favelas da zona sul de São Paulo para as outras zonas da cidade,
e depois ao grande ABC, para chegar às favelas do Rio de Janeiro,
Rio Grande do Sul, Santos, Belo Horizonte e cidades-satélite
pobres do Distrito Federal – delimitam as fronteiras da nação
dos “manos”. Para Caio B. de Mello, trata-se de uma tomada
aérea do plano do observador que, “ao descer ao inferno sobe
às alturas de onde se pode alçar o golpe de vista da totalidade
da experiência social, que não é bela” (Mello, 1999: mimeo).

Esse autor percebeu uma interessante conexão entre a faixa


“Salve”, que é a última do disco, e a primeira: “Jorge da Capadó-
cia”, composição de Jorge Benjor (a qual já assinalei como um
raro caso de cover realizado por artistas de rap):
Jorge sentou praça/ na cavalaria/ eu estou feliz porque eu
também/ sou da sua companhia.

A faixa “Jorge da Capadócia”, diz-nos Mello, anuncia a formação


de um núcleo de resistência, um exército das pessoas amea-
çadas da periferia: “Uma companhia, enfim, na dupla acepção
da palavra: companhia como subdivisão de batalhão do exército
da periferia e companhia como ato voluntário” (Mello, 2000),
desejo de acompanhar, fazer parte do movimento de “todos os
aliados espalhados pelas favelas do Brasil” (Racionais: “Salve”).
Cantada sobre a mesma base musical de “Jorge da Capadócia”,
o rap “Salve” expressaria, de acordo com o raciocínio de Mello,
a materialidade objetiva de Jorge, de sua cavalaria, de sua com-
panhia, uma vez que nomeia as comunidades que a integram:
A palavra armada 121

Se liga aí Jardim Evana, Parque do Engenho, Gerivá, Jardim


Rosana, [...] Vila Calu, Branca Flor, Paranapanema e Aracati [...]
Mangueira, Borel, Cidade de Deus [...] Expansão, B Norte, B Sul,
aí pessoal do sul, Restinga [...] Rádio Favela, BH. E pra todos os
aliados espalhados pelas favelas do Brasil. Todos os DJs, todos o
MCs que fazem do rap a trilha sonora do gueto
(Racionais: Salve).

Dois dos três raps citados na passagem acima terminam da


mesma maneira, desculpando-se com o ouvinte – não qualquer
ouvinte, mas o morador das favelas, o “mano” – caso a comuni-
dade deste não tenha sido incluída na letra. MV Bill diz:
Desculpe se sua favela eu não citei/ estará presente no próximo
rap que eu sei/ orando pelos seus e pelos meus/ a todas as fave-
las, fé em Deus...
(MV Bill: Sem esquecer das favelas).

E Gog:
Se não passamos pela sua cidade/ com certeza ela estará na pró-
xima viagem/ periferia, esta foi nossa mensagem
(Gog: “Brasília periferia”).

O que importa para o rapper é que nenhuma “companhia” se


sinta excluída do exército espiritual que a cultura hip-hop pre-
tende arregimentar. É neste mesmo sentido que a designação
“mano” é importante, como percebeu Maria Rita Kehl: “eles
procuram ampliar a grande frátria dos excluídos, fazendo da
‘consciência’ a arma capaz de virar o jogo da marginalização”
(Kehl, 1999: mimeo).

A favela passa a ser o espaço onde o rapper pode estar à vontade,


sentir a sensação prazerosa de pertencer a algo, a uma comuni-
dade. Por outro lado, o endurecimento da relação com a sociedade
faz quem vem de fora experimentar uma sensação de desloca-
mento, de ser objetivamente exterior àquela realidade e até mal
vindo. A letra de “Hey boy”, do Racionais, deixa isso bem claro:
122 Poesia Revoltada

Hey boy o que você está fazendo aqui/ meu bairro não é seu lugar/
[...]/ a vida aqui é dura/ [...] onde a miséria não tem cura/ [...]/
a solução é roubar/ e seus pais acham que a cadeia é nosso lugar.

Evidentemente, esse estranhamento mútuo ressalta o aspecto


de violência, de agressão mesmo, contido na voz que o rap dirige
ao outro. Maria Rita Kehl expressa esse sentimento de modo
contundente. Diz a autora que, não sendo um igual, torna-se
difícil gostar deles e “mais difícil ainda falar deles. Porque eles
não nos autorizam, não nos dão entrada. ‘Nós’ estamos do outro
lado” (Kehl, 1999: mimeo).6

6 A autora explica ainda que só é possível falar desse rap, do seu lugar de branca
de classe média, na medida em que se compromete com o seu discurso, com aquilo
que ele denuncia.
A palavra armada 123
CAP.06
Da ginga do samba
à marra do rap

CAP.06

Da ginga do samba
Antes dos rappers, os sambistas ocuparam o posto de porta-
vozes da favela. O samba cumpriu, e continua cumprindo, um
inestimável papel na história da sociedade e da música brasi-
leiras. Ganhou o estatuto de música brasileira por excelência,
porque foi capaz de engendrar, conforme se depreende da lei-
tura de O mistério do samba, de Hermano Vianna, uma tal empa-
tia por parte de setores da elite que logrou se configurar num
lado musical do processo de fusão e cruzamentos que formou
a sociedade brasileira, “uma empatia que poderia, na utopia
freyreana, reunir sobrados e mucambos” (Vianna, 1995: 90).

O rap, entretanto, parece propor o avesso dessa história toda.


Sem dúvida, nomes como Bezerra da Silva, Zeca Pagodinho,
Jovelina Pérola Negra, entre outros, gozam de grande prestígio
entre os rappers. Contudo, acredito que essa preferência se dá
porque são sambistas profundamente apegados à realidade
das favelas, incluindo aí tudo o que lhe diga respeito, mesmo
a criminalidade. Bezerra da Silva é, por sinal, um dos poucos
sambistas sampleados (o que no hip-hop, na maioria dos casos,
equivale a uma homenagem) por artistas de rap. Gog, em uma
de suas composições, assim se refere ao sambista:
aí rapaziada vai rolar pra vocês, nada mais nada menos que o
mestre dos mestres, Bezerra da Silva
(Gog: Dia-a-dia da periferia).

126
Da ginga do samba à marra do rap 127

Manifestações de apreço como essa são raras, mas isso não


indica necessariamente pouca afinidade do rap com o samba. É
verdade que há casos de rechaço veemente ao hip-hop e outras
manifestações culturais tidas como alienígenas e alienantes.
Nei Lopes e Wilson Moreira, no samba “Goiabada cascão”, recla-
mam que samba de verdade, batido na palma da mão,
Já não tem na praça/ Mas como era bom/ Hoje só tem discoteca e
só tem som de black/ Só imitação
(Lopes e Moreira, 1978: Goiabada cascão).

Este samba foi atualizado no disco mais recente de Nei Lopes,


De letra e música:
Hoje só tem pop-rock, só tem hip-hop, só imitação
(Lopes, 2001: Goiabada cascão).

A postura de Nei Lopes, para mim, é expressiva de um pensamento


que postula uma certa “pureza” das manifestações culturais bra-
sileiras – notadamente, as de origem negra – a qual lhes garantiria
nacionalidade e autenticidade. Nesse caso, estou de acordo com
Hermano Vianna, que, mesmo reconhecendo a considerável força
da idéia de preservação da autenticidade do samba, questionava:
“quem define o verdadeiro ritmo do samba?” (Vianna, 1995: 123).

Houve recentemente casos de aproximação e até de parcerias,


não só entre autores como entre as próprias estéticas do samba
e do rap. Este foi o caso da participação de Leci Brandão no CD
do rapper paulista Rappin Hood (Sujeito homem. Trama, 2001).
Na faixa “Sou negrão”, mencionada anteriormente, não apenas
a sambista e o rapper cantam juntos, como a batida típica do
rap funde-se ao ritmo característico do samba, marcado pelos
instrumentos de percusssão.

No entanto, ainda que eventualmente os ritmos do samba e do


rap se casem, é perceptível o divórcio entre os discursos de um
e outro. Um velho samba, que foi muito popular à época de seu
lançamento, contava que “Um menino da Mangueira/ recebeu
pelo Natal/ um pandeiro e uma cuíca/ que lhe deu Papai Noel/
128 Poesia Revoltada

[...]/ [e] foi correndo organizar/ uma linda bateria/ carnaval já


vem chegando”. Algumas décadas depois, o Racionais parece
parodiar a letra da composição de Rildo Hora e Sérgio Cabral:
No último Natal Papai Noel escondeu um brinquedo/ prateado,
brilhava no meio do mato/ um menininho de dez anos achou o
presente/ era de ferro com doze balas no pente/ e o fim de ano foi
melhor pra muita gente
(Racionais: Fim de semana no parque).

Enquanto o menino da Mangueira achava sua felicidade rece-


bendo de presente instrumentos de percussão, que garantiriam
o próximo carnaval, o menino do Capão Redondo acha sua feli-
cidade através da violência, não da alegria.

Em suma, o texto do rap vai na contramão do discurso muitas


vezes integrador que outras manifestações populares, e não ape-
nas o samba, sempre mantiveram, por mais críticas da realidade
que fossem. Se falo apenas do samba aqui é porque esta foi, na
minha opinião, a que mais profundamente se enraizou no imagi-
nário nacional. Nas palavras de Hermano Vianna, o encontro ocor-
rido em 1926, que reuniu de um lado intelectuais e representantes
da arte erudita capitaneados por Gilberto Freyre, Sérgio Buarque
de Holanda e Villa-Lobos, todos provenientes de “boas famílias
brancas”; e, do outro lado, sambistas “negros ou mestiços saí-
dos das camadas mais pobres do Rio de Janeiro”, entre os quais
Donga e Pixinguinha, pode servir como alegoria para a “invenção
de uma tradição”, nomeadamente “aquela do Brasil mestiço, onde
a música samba ocupa lugar de destaque como elemento defini-
dor da nacionalidade” (Vianna, 1995: 20).

Nesse sentido, o rap organiza-se de modo diferenciado da forma


como se organizou o samba desde os anos 20. Para Cláudia Matos,
o malandro, figura típica do samba naquele período, é um ser de
fronteira, ele “não fala apenas para os seus, ao contrário, ele quer
se fazer ouvir do outro lado da fronteira, quer abrir caminho para
o bloco passar. A vocação para a mobilidade pressupõe o atrito e
a troca” (Matos apud Santiago, 1998: 21). Na análise que Silviano
Da ginga do samba à marra do rap 129

Santiago faz desse mesmo texto, essa vocação é responsável


por transformar a cultura negra própria do Rio de Janeiro, em
uma cultura que diz respeito ao país inteiro.

O rapper pode também ser visto como um ser de fronteira. Acon-


tece que a linha divisória, no seu caso, é significativamente mais
rígida. Se o sambista construía um texto que se interpenetrava,
evidente e intencionalmente, com o “discurso literário, branco,
burguês” (Matos, 1982: 46), o rapper por sua vez construirá um
discurso que a princípio se opõe àquele. Pode-se dizer que o
rapper se coloca, ao mesmo tempo em que é colocado, do outro
lado da fronteira:
seu comercial de TV não me engana/ eu não preciso de status
nem fama/ seu carro e sua grana já não me seduz/ e nem a sua
puta de olhos azuis
(Racionais: Capítulo 4, versículo 3).

No caso do rap, há mais atrito que troca. Enquanto o samba deu


ensejo a um amplo circuito de trocas, homenagens e parcerias,
chegando a ser considerado como o ritmo nacional por exce-
lência, o rap restringiu esse relacionamento a poucas manifes-
tações de admiração. O exemplo de “Fórmula mágica da paz”,
gravada pelo Racionais no CD Sobrevivendo no Inferno e, mais
recentemente, o episódio da censura ao clipe de “Soldado do
morro”, do rapper MV Bill, são ainda exceções. No primeiro caso,
a gravação – e, por extensão, o restante do CD – recebeu elo-
gios da parte do artista considerado uma das principais, senão
a principal, referência da MPB: Caetano Veloso. A partir daí,
segundo reportagem da revista Showbizz, o grupo seduziu a
classe média e ganhou elogios de todas as facções da música
brasileira. Gilberto Gil declarou que Caetano o havia convencido
de que a música deles representa um “salto no rap popular”,
e que a poesia deles “é de uma contundência extraordinária”.
Já Da Gama, guitarrista da banda pop/reggae Cidade Negra,
acha Mano Brown “um grande comentarista político do gueto”
(Showbizz, 1998: 26).
130 Poesia Revoltada

O caso do clipe de MV Bill – denunciado pela polícia e por um


programa jornalístico da Rede Globo de Televisão1 como apolo-
gista do tráfico de drogas e da violência por mostrar traficantes
de verdade interpretando o próprio papel – não foi muito dife-
rente. Mais uma vez, Caetano Veloso entrou no meio do fogo
cruzado que opunha a imprensa, o Estado e o rap, assumindo o
papel de mediador entre dois lados aparentemente conflitantes
da sociedade brasileira. Inclusive, o lançamento do clipe, em 25
de dezembro de 2001, na Cidade de Deus, onde o rapper vive até
hoje, contou com a presença de Caetano Veloso, Djavan, Dudu
Nobre e a banda Cidade Negra. No ano anterior, o cineasta Cacá
Diegues havia lançado o filme Orfeu, no qual parte da trilha
sonora era composta por rap, embora a trilha oficial fosse assi-
nada por Caetano Veloso. Cabe lembrar que, na análise que Her-
mano Vianna fez do samba, esse papel de mediação entre dois
mundos distintos era desempenhado por Freyre e seus amigos,
que teriam atuado como “salvadores da pátria mestiça”, porque,
foram capazes, “contra os desejos da elite ‘re-europeizada’, de
reconhecer o valor tanto de Pixinguinha quanto do arroz-doce”
(Vianna, 1995: 90).

Apesar disso, a relação do rap com a sociedade de modo geral,


inclusive o meio artístico, ainda é relativamente tensa, ou de
menosprezo recíproco. O trabalho do Racionais e o de MV Bill
gozam de certo prestígio além das fronteiras,2 o que não quer
dizer que todo o rap venha a se beneficiar desse prestígio. Cláu-
dia Matos percebeu que “com o culto da malandragem, o mundo
negro, pobre e marginal do samba chega à fronteira cultural de
classes [...], sem todavia cruzá-la de vez” (Matos, 1982: 67). De
certa forma, o rap faz o mesmo movimento. Acontece que, em
vez de transitar pela fronteira, como o malandro, ele se arma em

1 A Rede Globo depois reviu essa posição, atribuindo-a à manifestação pessoal do


apresentador William Waak, do Jornal da Globo.
2 Ice Blue, do Racionais, comenta, com certa ironia, sobre o fato de os playboys
gostarem da música do grupo: “Eles gostam do que é bom. Carro importado, comida
boa. Se curtem a gente, é porque somos bons” (In Showbizz, 1998: 28).
Da ginga do samba à marra do rap 131

barricadas. Talvez se possa dizer que, por enquanto, o rapper


está mais no front que na fronteira entre dois mundos – her-
deiros da casa-grande e senzala, dos sobrados e mucambos,
dos condomínios e favelas. Daí, a meu ver, o papel do mediador,
que no caso do samba mostra-se tão bem sucedido, deve ser
relativizado no caso do rap. Porque, neste momento, parece-me
inviável desfazer a fronteira entre os dois mundos sem que se
efetive a transformação radical da ordem política, econômica e
social no Brasil.

O texto de Freyre que cito a seguir, publicado em 1977, ilustra de


forma interessante a questão. Se eu omitisse a data do artigo e
o fato de o autor referir-se ao fenômeno black soul, em ascensão
naquele momento, dir-se-ia que ele, Freyre, criticava a dissemi-
nação do rap entre os negros brasileiros. “Será que estou enxer-
gando mal? Ou terei realmente lido que os Estados Unidos vão
chegar ao Brasil [...] norte-americanos de cor [...] para convencer
os brasileiros também de cor de que seus bailes e suas canções
‘afro-brasileiras’ teriam que ser de ‘melancolia’ e de ‘revolta’?
E não, como acontece hoje [...], os sambas, que são quase todos
alegres e fraternos” (Freyre apud Hanchard, 2001: 138).

Na seqüência do trecho, Freyre deplora que o modelo de negri-


tude proposto pelo soul seja do tipo “provocador de ódios” e
que “às vezes [traga] a ‘luta de classes’ como instrumento da
guerra civil”. Mais uma vez, a diversidade brasileira só é elogiá-
vel na medida em que se preservem as condições de liderança
do homem branco, e portanto de subalternidade do negro e das
outras etnias, e a relativa harmonia das relações raciais no país.
O fato é que se o soul já representava uma ameaça à alegria e
à fraternidade que Freyre identificou no samba, o rap dará um
passo ainda mais decidido.

Retomando as diferenças de discursos que vinha assinalando


entre o rap e o samba, cabe ainda uma palavra. Um dos mais
belos sambas da história, de autoria de um dos seus maiores
compositores – Zé Keti –, intitulado significativamente “A voz
do morro”, proclama:
132 Poesia Revoltada
Da ginga do samba à marra do rap 133

Eu sou o samba/ a voz do morro sou eu mesmo sim senhor/ [...]/


sou eu quem leva alegria/ para milhões de corações brasileiros/
[...]/ vamos cantando essa melodia pro Brasil feliz.

Se Zé Keti personifica o samba, Gog faz o mesmo em relação ao


rap, apontando em direção totalmente outra:
Rap nacional é o terror que chegou/ é o terror/ meu estilo meus
planos de guerra/ comunidade do morro que não se rende à lei da
selva/ [...]/ o verme que corrói a madame no cemitério até o osso/
Eu sei não sou a Disneylândia/ eu sou os becos das quebradas
escuras da Ceilândia/ [...]/ eu sou o crime em pessoa...
(Gog: É o terror).

Agora o ritmo dos morros, das favelas, não pretende levar a ale-
gria, mas uma mensagem de desafio, de reação e de transfor-
mação de uma realidade opressiva. Tampouco essa mensagem é
lançada a “milhões de corações brasileiros”. Mano Brown se diz
apenas um rapaz latino-americano
apoiado por mais de cinqüenta mil manos
(Capítulo 4, versículo 3).

Por isso, pode-se dizer que o público do rap é restrito àqueles com
quem os rappers querem dialogar. Refiro-me ao público preten-
dido pelos rappers, não ao que acabou consumindo seus discos.
Este abarca um amplo espectro, que parte da juventude pobre
da periferia e chega até a juventude rica dos bairros nobres da
cidade, passando por intelectuais, artistas e demais pessoas inte-
ressadas na novidade radical que grupos como o Racionais, a meu
ver, representam na sociedade brasileira contemporânea. Esse
público, todavia, formou-se à margem da vontade dos rappers que
priorizo aqui. Marshall Berman, em entrevista ao caderno Mais!, da
Folha de São Paulo, afirmou que “o paradoxo do rap é que a música
é ouvida não só por pessoas que de fato vivem em situações de
perigo mas também por pessoas que levam uma vida tradicional,
que estudam medicina ou direito” (Berman, 2001).

Maria Rita Kehl, no texto já citado aqui, percebeu bem a relação


nova entre artista e público estabelecida pelo rap. Falando da
134 Poesia Revoltada

apresentação dos Racionais a que assistiu durante comício do


Partido dos Trabalhadores, em 1o de maio de 1999, a psicana-
lista comenta sobre o “grande exército de fãs dos Racionais”:
“Vale falar em fãs, no caso deles? Não, com certeza deve haver
um termo que indique outro tipo de interação entre a multi-
dão de jovens pobres e os grupos de Rap que os representam.
É como se cada um deles se considerasse um rapper em poten-
cial, capaz de contar sua vida no ritmo repetitivo e opressivo,
nas rimas obrigatórias, às vezes preciosas, às vezes brutais,
executando a dança que não autoriza alegria nenhuma, sensu-
alidade nenhuma” (Kehl, 1999: mimeo).

A dança, a performance reforçam o conteúdo das letras dos raps.


Em meio ao público, as notas repetitivas e opressivas, a fala grave,
a postura de denúncia muitas vezes expressa por vocábulos nada
sutis, tudo isso se adequa a uma dança contida, “que não auto-
riza sensualidade nenhuma”. Até nisso se faz sentir a diferença
imposta pelo rap: ao contrário das rodas de samba, dos bailes
funk, dos afoxés, das festas de soul etc., onde o corpo executa
passos frenéticos, extravasando uma alegria incontida, o público
do rap acompanha o ritmo com um ligeiro balançar do corpo,
ou a simulação de gestos calculados de hostilidade (apontar o
dedo como se fosse uma arma, cruzar os braços, fechar a cara)
ou de afirmação de seu eu (apontar para si mesmo, bater a mão
fechada no peito, segurar a genitália). Gestos que contribuíram
para marcar os rappers com a pecha de abusados, grosseiros.
Na gíria que lhes é familiar: cheios de marra!

Segundo o dicionário Aurélio, marra pode significar algo realizado


“mediante emprego de violência”, como na expressão popular “na
marra”. Por outro lado, o verbo marrar significa “bater com força”.
Já o substantivo marra é também sinônimo de marrão, “grande
martelo de ferro com que se quebram pedras”. Finalmente, mar-
rão, sempre segundo o Aurélio, também é a “rês bravia, selva-
gem, indomável”. À falta de uma etimologia mais específica, os
três sentidos listados se aproximam do sentido que a linguagem
Da ginga do samba à marra do rap 135
136 Poesia Revoltada

popular conferiu ao termo: o de uma atitude superior, muitas


vezes arrogante, indomável.

Na cerimônia de entrega do Prêmio Hutúz, todo o discurso ini-


cial da repórter Glória Maria, apresentadora do evento, ao lado
de Thaíde, girou em torno do comentário sobre o rap ser “cheio
de marra”. A marra é uma afronta aos “inimigos da favela”, que
no entender de Gog “são a burguesia e o alto escalão” (Gog:
“Prepare-se”), e, sobretudo, a máquina policial da sociedade,
que os preferia submissos, calados e conformados. Na matéria
da revista Showbizz, já citada anteriormente, KL Jay, do grupo
Racionais MCs, afirma: “Somos os pretos mais perigosos do
país e vamos mudar muita coisa por aqui” (Showbizz, 1998: 31).
Em sua interpretação dessa declaração, Kehl diz o seguinte:
“Há uma mudança de atitude, partindo dos rappers e preten-
dendo modificar a auto imagem e o comportamento de todos
os negros pobres do Brasil: é o fim da humildade, do sentimento
de inferioridade que tanto agrada à elite da casa grande, acos-
tumada a se beneficiar da mansidão – ou seja: do medo – de
nossa ‘boa gente de cor’” (Kehl, 1999: mimeo).

“Homem na estrada”, por exemplo, é um rap que se tornou emble-


mático, uma espécie de hino para aqueles cinqüenta mil manos
espalhados pelas periferias do país. Sua letra quilométrica
ganhou fama inesperada ao ser lida pelo senador da República
Eduardo Suplicy, numa sessão ordinária do Senado. Conta uma
história freqüente do dia-a-dia de inúmeras favelas espalhadas
pelo Brasil. É a narrativa de um ex-presidiário – lembrando que
o presídio é outro espaço que define a geopolítica do hip-hop
– que tenta mudar de vida, mas é impedido pelas forças que o
oprimem. A opressão, como se verá, não se limita à polícia ou ao
“sistema”, como pode parecer à primeira vista, mas compreende
uma rede complexa de fatores que vão surgindo ao longo de inú-
meras letras de rap. Eis o trecho inicial do rap em questão:
Um homem na estrada recomeça sua vida/ sua finalidade, a sua
liberdade, que foi perdida, subtraída/ e quer provar a si mesmo
que realmente mudou/ que se recuperou e quer viver em paz, não
Da ginga do samba à marra do rap 137

olhar para trás/ [...]/ sim, ganhar dinheiro ficar rico enfim/ mui-
tos morreram sim, sonhando alto assim/ me digam quem é feliz,
quem não se desespera/ vendo nascer seu filho no berço da misé-
ria,/ um lugar onde só tinham como atração o bar/ e o candomblé
pra se tomar a benção
(Racionais: Homem na estrada).

O tom realista busca revelar a miséria, a violência, a discrimi-


nação racial e social ocultas pelo discurso dominante da época
atual, que prioriza a divulgação triunfalista da modernização do
país, conforme se pode verificar nos discursos de seus dois últi-
mos presidentes. Enquanto a sociedade à sua volta celebra os
últimos avanços da ciência e da tecnologia, o rap assim descreve
o lugar de moradia do homem na estrada:
Equilibrado num barranco incômodo, mal acabado e sujo/ porém
seu único lar, seu bem e seu refúgio/ cheiro horrível de esgoto no
quintal/ [...]/ um pedaço do inferno é aqui onde eu estou.

Como poderia daí partir qualquer exaltação de um Brasil feliz?

Retomando a referência do samba malandro, é possível identificar


uma decisiva mudança de atitude na visão de mundo dos artistas
da favela de uma geração e outra – com exceção, talvez, de Bezerra
da Silva, que é uma espécie de elo de ligação entre duas gerações
e estéticas diferentes vinculadas em algum grau à favela.

Tudo isso diz respeito a uma experiência que se modificou radi-


calmente da metade do século para o seu final. Com a passagem
de um meio urbano relativamente integrado – em que o espaço
da cidade era invadido pelo morro, para alegria geral – em dire-
ção à divisão mais impenetrável entre morro e asfalto, entre
condomínios e favelas, tem-se simultaneamente a conversão
do antigo malandro armado de navalha e levando os outros na
conversa, no moderno traficante, de fuzil e comandando o crime
pelo telefone celular. É, portanto, dessa experiência nova – a
qual implica um distanciamento entre o marginal e os outros
– que o rapper vai se nutrir. Neste contexto, um elemento ines-
perado ganhará valor maior: a cor da pele.
139
140

Revoltada

CA

P
CAP.07

Poesia Revoltada: a Nação não-cordial


O que é um homem revoltado? Um homem que diz não. Mas se ele
recusa, não renuncia: é também um homem que diz sim desde
seu primeiro movimento.
Albert Camus

No disco Sobrevivendo no Inferno, do Racionais, a voz de Primo


Preto, convidado especial do grupo na faixa “Capítulo 4, versí-
culo 3”, expõe a ferida aberta pela música rap:
“em cada quatro pessoas mortas pela polícia, três são negras;
[...] a cada quatro horas um jovem negro morre violentamente em
São Paulo”
(Racionais: Capítulo 4, versículo 3).

A estatística parece falar por si, mas ela apenas deflagra o


discurso. Este sim vai pretender pôr em cheque o discurso da
democracia racial no Brasil; o tema das contradições sociais bra-
sileiras é agora colocado em termos raciais. Se isso parece pouco
relevante, talvez fosse o caso de analisar a reação da imprensa
a essa novidade. Em muitos casos, a mídia mostra-se surpresa,
em outras indignada. Às vezes, o fato de os rappers serem pre-
tos, pobres e morarem na favela conduz à apressada associação
entre rap e violência. Micael Herschmann, que pesquisou a visão
da mídia em geral sobre o funk e o hip-hop, notou que, além da
imprecisão dos jornalistas – que tratavam indistintamente funk,
hip-hop, punk, heavy metal e outros –, algumas matérias conside-

142
Poesia Revoltada a Nação não-cordial 143

ravam-nos manifestações culturais violentas. Segundo Hersch-


mann, apesar de terem sido os primeiros a denunciar a campanha
de criminalização do funk e propor um trabalho de conscientiza-
ção junto aos funkeiros, os rappers ligados ao movimento hip-hop
foram igualmente massacrados (Herschmann, 2000: 109).

Mais esclarecedor que os textos contingenciais dos jornalistas


é o artigo que Hermano Vianna, um antropólogo antenado com
as manifestações culturais da periferia, fez publicar na Folha
de São Paulo. Nesse artigo, Vianna narra sua aventura numa
escola de samba do Rio de Janeiro, onde foi assistir a um show
dos Racionais MCs. Sua impressão diante da quadra “superlo-
tada” por uma platéia que sabia cantar “letras quilométricas do
começo ao fim, [...] como se a banda no palco estivesse entoando
a mais perfeita coleção dos mais assoviáveis hits pop”, revela
algumas questões importantes. No discurso apresentado pelos
Racionais na quadra da Escola de Samba Tradição, a primeira
novidade que Hermano Vianna percebeu é que agora há negros
e há brancos: “Não há mais indefinição mulata entre uma ‘raça’
e outra, pelo menos não no Brasil descrito no rap dos Racio-
nais, pelo menos não como valor a ser cultivado como motivo de
ufanismo cultural. Então, há também quem diga que o sucesso
dos Racionais é sinal de uma ‘americanização’ no modo como os
brasileiros passaram a pensar suas relações raciais. Eis o Brasil
pós-Casa-Grande-e-Senzala. Eis a voz não-cordial da periferia
do Brasil” (Vianna, 1999: 5).

Três questões interrelacionadas surgem aqui: a) o rap revelaria


uma “americanização” no modo de pensar as relações raciais
dos brasileiros; b) porque, ao contrário de momentos anteriores,
no seu discurso há diferenciação racial, explícita, entre negros
e brancos; c) esse discurso representa um desafio às noções de
Brasil herdadas da obra de Gilberto Freyre e, em outra dimensão,
de Sérgio Buarque de Holanda: trata-se de um discurso não-
cordial. Essas questões, já abordadas em capítulos anteriores,
serão daqui por diante consideradas a partir da perspectiva dos
rappers incluídos neste estudo.
144 Poesia Revoltada

É preciso dizer que o Racionais não inaugurou a postura de con-


testação daquilo a que Hasenbalg chamaria a “tranqüila manu-
tenção das desigualdades raciais” (Hasenbalg, 1985) no Brasil.
Desde a fundação da Frente Negra Brasileira, quase meio século
após a abolição da escravatura, a história do país conheceu
altos e baixos no que concerne à mobilização política de cunho
racial, num movimento pendular que se refletia tanto em meio à
intelectualidade quanto na cultura popular. Não é de hoje que os
afro-brasileiros, baseando-se em diferentes formas de expres-
são, vêm buscando caminhos para a afirmação de sua negritude,
em um espectro de políticas de identidade e manifestações
artístico-culturais por todo o país.

O movimento soul, que ganhou força a partir da década de 60 em


centros urbanos como Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador, Porto
Alegre e Belo Horizonte, representou um importante passo, como
anotou Peter Fry, no “processo da formação da identidade negra
no Brasil” (Fry, 1982: 15).

Os blocos afro, na Bahia sobretudo, desde os anos 70 têm tra-


zido à tona um vigoroso discurso negro, baseado na ancestrali-
dade africana. Ilê Aiyê, Olodum, Filhos de Gandhi, entre outros,
perpetuaram em Salvador uma cena que certamente consolida
essa cidade como a mais negra do país, não apenas no que diz
respeito à presença percentual na população, mas pela afirma-
ção decidida dessa condição.

É importante destacar o papel da música negra neste processo.


Constituindo-se como uma forma privilegiada de comunicação
para diferentes comunidades que, através da música, preservam
algum sentido de uma origem comum, a música tem sido uma
forte aliada para a afirmação de identidades específicas. Para
Muniz Sodré, as instituições lúdicas afro-brasileiras represen-
tam, antes de mais nada, afirmações comunitárias. Tais afirma-
ções se dariam “tanto pela exibição da pujança de formas e de
vitalidade corporal, presentes nas danças e nos cânticos, como
pela reterritorialização dos lugares marcados pelo poder esta-
Poesia Revoltada a Nação não-cordial 145

tal para a movimentação dos subalternos” (Sodré, 1999: 212).


Na opinião do autor, a música – ele menciona textualmente o
samba, o rap e o funk – é capaz de relativizar barreiras sociais
fortemente estabelecidas em nossa cultura.

Retomando o artigo de Hermano Vianna, parece-me que para o


antropólogo, se bem entendi o seu argumento, a única maneira
de relativizar o nosso inevitável posicionamento periférico no
contexto globalizado atual seria engendrar contextos comple-
xos e heterogêneos – leia-se: mestiços – a fim de estarmos
“disponíveis para surpresas, transformações e novas músicas
que combatam tudo aquilo que nos torna, muitas vezes com
muito orgulho, periféricos” (Vianna, 1999). Note-se que o autor
afirma, com certa ironia, ser o rap uma maneira orgulhosa que
os jovens negros da periferia brasileira encontraram de se ren-
derem à globalização e, portanto, à hegemonia estadunidense.
Fica em aberto a seguinte questão: Por que o funk também não
seria uma manifestação de igual teor? Afinal, em outros artigos
(e no livro, que foi resultado de sua tese de mestrado, O mundo
funk carioca) o autor mostra um grande interesse por essa forma
musical, igualmente assimilada por jovens negros das favelas (e
até com maior sucesso). Logo no início do artigo, Vianna chega
a mencionar o fato de os jovens da periferia em Moçambique
– onde também assistiu a um show de rap, que motivou o tal
artigo – ou no Brasil vestirem-se de modo idêntico, ou osten-
tarem o mesmo comportamento: “Maputo, 24/10/97. Primeiro
show de rap realizado em território moçambicano [...]. A platéia,
excitadíssima e elegantíssima [...], parecia que nunca tinha feito
outra coisa na vida além de freqüentar shows de rap. Aparente-
mente, não havia diferença entre aquele show — em matéria de
danças, roupas, resposta do público e comportamento no palco
— e qualquer outra apresentação de rap realizada em qualquer
outro lugar do mundo” (Vianna, 1999: 7).

O autor tem o cuidado de valer-se do advérbio “aparentemente”


para relativizar a sua opinião, mas seu discurso é ambíguo.
146 Poesia Revoltada

Ao mesmo tempo em que realça o conteúdo crítico das letras


de rap, insinua que o triunfo da cultura hip-hop representa o
triunfo da globalização sob a hegemonia dos Estados Unidos: “o
primeiro show de rap realizado no país demonstrou, com louvor,
que a juventude tomou gosto pela globalização americanizada,
com uma rapidez e uma esperteza impressionantes”. O caráter
“rápido” e “esperto” do gesto da juventude disfarçam, de modo
sutil, que se trata de uma adesão à “globalização americani-
zada”, expressão de insofismável carga negativa.

Considerando que os jovens funkeiros, entre tantos outros jovens,


também adotam uma forma de se vestir e se comportar muito
parecida, o problema me parece estar em outro lugar. O discurso
dos funkeiros adota uma postura pouco crítica,1 com ênfase na
festa e letras de conteúdo erótico ou auto-proclamatório. Não se
pode esquecer que essa postura já estava presente na primeira
geração norte-americana do rap, o qual “começou como uma
música para dançar” e exibir a “destreza do DJ e a personalidade e
os talentos de improvisação do rapper” (Shusterman, 2000: 148).

Já os rappers brasileiros recuperam uma tradição posterior de


seus congêneres norte-americanos, os quais, segundo Steven
Best e Douglas Kellner, vêem-se como “guerreiros ideológicos” e
representantes das classes oprimidas. Agem como “intelectuais
orgânicos”, na acepção gramsciana da expressão, a serviço das
camadas subalternas. Também defendem que os grupos subor-
dinados devem mobilizar sua ira no sentido da ação política e da
insurreição (Best & Kellner, 1999: mimeo). Iniciados através das
lições do grupo estadunidense Public Enemy, provocaram, dada
a contundência de suas letras e atitudes, o temor de um planeta
negro (“A fear of a black planet”, canção do Public Enemy). Então,

1 Embora nem por isso sempre despolitizadas: versos como “eu só quero ser feliz/
andar tranqüilamente na favela em que nasci” (Cidinho e Doca: “Rap da felicidade”)
são bastante politizados. Mas não deixam de indicar uma certa acomodação com
as condições sociais que dão origem às favelas, o que passa longe do ideário polí-
tico do rap.
Poesia Revoltada a Nação não-cordial 147

talvez seja verdade que o rap traga uma novidade, um diferencial


em relação a todas as outras formas de expressão que o antece-
deram. Para ilustrar esse fato tomemos o exemplo do soul.

Sobre a ascensão do fenômeno black soul, na década de 70,


Renato Ortiz percebeu que ela se dá em sintonia com a promo-
ção do samba a ritmo nacional, o que acabou por esvaziá-lo de
sua especificidade de origem, “que era ser uma música negra”.
Portanto, “quando os movimentos negros recuperam o soul para
afirmar a sua negritude, o que se está fazendo é uma importa-
ção de matéria simbólica que é ressignificada no contexto bra-
sileiro. É bem verdade que o soul não supera as contradições de
classe ou entre países centrais e periféricos, mas eu diria que
de uma certa forma ele ‘serve’ melhor para exprimir a angústia
e a opressão racial do que o samba, que se tornou nacional”
(Ortiz, 1985: 43-4).

Algo semelhante acontece com o rap. Com o acréscimo de um


aspecto não presente nas outras formas culturais mencionadas
até aqui: agora a exaltação da negritude combina-se à franca
oposição ao branco. Num rap famoso, Thaíde rememora os seus
tempos de infância, em que freqüentava os bailes soul (“que
tempo bom que não volta nunca mais”). No final da composição,
ele indica o caminho que, a seu ver, tomou toda aquela movi-
mentação dos anos 70 e 80:
O tempo foi passando, eu me adaptando/ [...]/ observando a evo-
lução radical de meus irmãos/ percebi o direito que temos como
cidadãos/ de dar importância à situação/ protestando para que
achemos uma solução/ por isso black power continua vivo/ só que
de um jeito bem mais ofensivo
(Thaíde, 1996: Sr. Tempo Bom. Grifo meu).

O “jeito bem mais ofensivo”, entre outras coisas, assinala a


radicalização do discurso. Não se trata mais de simplesmente
afirmar uma identidade negra, o velho “I’m black and I’m proud”
de James Brown. Agora é o caso de essa identidade opor-se à
branca. E este me parece o real motivo da preocupação de Her-
148 Poesia Revoltada

mano Vianna. O rap vai colocar de forma enfática a sua discor-


dância em relação ao modelo da democracia racial, ou do Brasil
cordial, como notou Vianna.

A expressão, através da música, do crescente sentimento de revolta


dos negros subalternos nas favelas do Brasil é uma demanda que
tampouco os blocos afro-baianos, a despeito da ênfase na propa-
gação da identidade afro-brasileira e da ligação política e cultural
às noções de Terceiro Mundo e de negritude, poderiam atender.
No caso do Olodum, por exemplo, como informa Hermano Vianna,
“negritude e terceiro-mundismo têm grande fluidez, adquirindo
significados e pesos diferentes em situações e momentos diver-
sos de sua atividade”; além disso, o grupo “insiste em se propa-
gandear como a maior democracia racial do planeta” (Vianna,
1995: 139). Em entrevista concedida a Vianna, o diretor cultural
do Olodum, João Jorge, chega a afirmar que a cultura brasileira
representa a síntese de um conjunto amplo de cores, povos, cos-
tumes..., e que “a música só pode ser brasileira [...] se ela puder
ser essa síntese, se ela não excluir, não for excludente” (apud
Vianna, 1995: 140). Essa frase é praticamente a síntese do que eu
denominaria de um ponto de vista freyreano, democrático-racial,
da cultura e da sociedade brasileiras. É exatamente nesse ponto
que os rappers propõem um caminho inteiramente outro em rela-
ção àquele que se vinha desenhando.

Venho tentando demonstrar que o rap trafega na contra-mão


dessa corrente do pensamento brasileiro, para o qual a mesti-
çagem, a integração e o relacionamento não conflitivo das dife-
renças são valores a preservar custe o que custar, ainda que não
se reconsidere a distinção entre o que é hegemônico e o que é
subalterno. O rap propõe um novo tipo de relação: para os rappers,
“preto é preto, branco é branco e a mulata não é a tal”.2 Conforme

2 Este é um trecho da canção “Americanos”, em que Caetano Veloso faz referência


ao povo dos Estados Unidos. Trata-se de uma paródia dos versos do compositor
João de Barro, o Braguinha, em um sucesso carnavalesco de 1948, no qual cantava:
“branca é branca, preta é preta, mas a mulata é a tal”.
Poesia Revoltada a Nação não-cordial 149

destacou Maria Rita Kehl, “eles apelam para a consciência de


cada um, para mudanças de atitude que só podem partir de
escolhas individuais; mas a auto-valorização e a dignidade de
cada negro, de cada ouvinte do Rap, depende da produção de um
discurso onde o lugar do negro seja diferente do que a tradição
brasileira indica” (Kehl, 1999: mimeo).

Emblemática dessa postura é o rap “Racistas otários”, do Racio-


nais MCs. Nessa composição a mensagem que o grupo pretende
transmitir fica evidente logo no início: “Racistas otários nos
deixem em paz/ pois as famílias pobres não agüentam mais”. De
forma direta, sintética e certeira o Racionais relaciona os aspectos
social e racial da questão, deixando claro que a discriminação no
Brasil não é apenas de fundo social e que a pobreza e a cor da pele
representam dois problemas distintos. A percepção, por parte dos
rappers, de que estão lutando não apenas contra o racismo, mas
contra o discurso hegemônico – que garante não haver esse fenô-
meno no Brasil – surge de forma muito esclareceradora no final:
O Brasil é um país de clima tropical/ onde as raças se misturam
naturalmente/ e não há preconceito racial. Ha, ha, ha
(Racionais: Racistas otários).

O trecho é a reprodução da voz gravada de um amigo do grupo


(segundo me informou o DJ KL Jay). A voz do locutor é proposi-
tadamente solene, professoral. Um dado a mais a ser atingido
pela ironia do grupo: a crença na mistura natural entre as raças
e a ausência de preconceito no Brasil só pode, na visão do
Racionais, ser idéia de uma camada intelectual distante da rea-
lidade das classes populares. É com sarcasmo que enfrentam
esse discurso, denunciando-o como uma ficção. Depois, os três
últimos versos retomam a seriedade da proposta:
nossos motivos pra lutar ainda são os mesmos/ o preconceito
e o desprezo ainda são iguais/ nós somos negros também
temos nossos ideais
(Racistas otários).

Em outra composição, a crítica toma ares de debate ideológico.


150
151
152 Poesia Revoltada

Quem é preto como eu já tá ligado qual é/ nota fiscal, RG, polícia


no pé/ escuta aqui:/ o primo do cunhado do meu genro é mestiço/
racismo não existe comigo/ não tem disso/ é para sua segu-
rança.../ Falou, falou deixa pra lá/ vou escolher em qual mentira
vou acreditar
(Qual mentira vou acreditar).

O trecho acima representa, na forma do rap, um diálogo entre o


personagem – alter-ego do rapper – que sai de casa para curtir
a noite e é abordado por uma patrulha (as falas em itálico repre-
sentam a voz do policial). A escolha dos termos é precisa, não
há engano quanto às mentiras nas quais o rapper vai escolher
acreditar. Quando o policial que o revista no trecho acima repro-
duz o discurso “racismo no Brasil não existe”, o rapper só pode
encarar com ironia a afirmação. É, então, no sentido contrário
que o discurso do rap vai se construir. Seu esforço é o de revelar
para os negros essas verdades que parecem negligenciadas por
resultado de um processo exitoso de hegemonia racial.

Embora haja exemplos de uma atitude irônica nas letras ou nos


samples de um número significativo de raps, a seriedade (cha-
memos assim) é que domina a grande maioria das composições.
A ênfase na afirmação de uma identificação negra capaz de
engendrar uma comunidade de pares – “se você se considera um
negro/ pra negro será: mano” (“Voz ativa”) – sugere que é a partir
da congregação dos manos (os cinqüenta mil citados em “Capítulo
4, versículo 3”, ou mais) que surgirá um novo momento da história
da presença negra no Brasil. Trata-se de um momento decisivo,
ao menos pelo que deixa transparecer o texto do Racionais:
e a profecia se fez como previsto/ 1997 depois de Cristo
a fúria negra ressuscita outra vez
(Capítulo 4, versículo 3).

Nesta mesma composição poderemos perceber uma caracterís-


tica comum aos raps que citarei a seguir: a tensão entre a prega-
ção política do grupo e o fato de nem todos os negros adotarem
a mesma postura. Se aqueles que se assumem como negros são
considerados manos, os que negam sua condição representarão
tudo aquilo contra o que os rappers irão se voltar.
Poesia Revoltada a Nação não-cordial 153

Um dia um PM negro veio embaçar/ e disse pra eu me pôr no meu


lugar/ eu vejo mano nessas condições não dá/ será assim que eu
deveria estar?/ Irmão o demônio fode tudo ao seu redor/ pelo rádio,
jornal, revista e outdoor/ (...)/ depois te joga na merda sozinho/ é,
transforma um preto tipo A num neguinho
(Capítulo 4, versículo 3).

A transformação de um preto “tipo A” – termo que no jargão


rapper paulista designa os negros conscientes – num “negui-
nho” – que por sua vez designa os negros que não assumem a
cor/raça e aceitam passivamente sua condição inferiorizada,
muitas vezes entregando-se ao álcool e às drogas – representa
um duro golpe para o projeto sociopolítico do hip-hop. Para o
rapper, a maneira de vencer a opressão racial/social de que são
vítimas na sociedade reside numa atitude digna, politicamente
engajada e racialmente orientada.

Gog, por sua parte, retoma na maioria das vezes uma perspectiva
de conteúdo acentuadamente africanista. Em suas composi-
ções é fácil perceber que o rapper faz questão de reafirmar sua
filiação a um dos lados de uma divisão racial que, no seu enten-
der, é bastante visível na sociedade brasileira. Não só o rapper
fica do lado do povo, mas coloca essa opção numa perspectiva
histórica; os próprios termos pelos quais opta denotam que
seu olhar se estende até o período colonial (“plebeu” x nobre;
“escravo” x senhor), quando as divisões sociais teriam fornecido
os subsídios das contradições que vigoram na atualidade:
“Eu sou plebeu até a cabeça e o apogeu/ no negro escravo correu
sangue meu/ meu ancestral sofreu e o seu?”
(Gog: É o terror).

Perspectiva que se reforça em outro rap, no qual Dino Black, um


dos integrantes do grupo,3 afirma:
Tenho orgulho de ser negro
a raça negra ainda hoje é escravizada
(Gog: Qual é o pó?).

3 O grupo se desfez em 2001. Dino Black atualmente faz parte, com os outros rema-
nescentes do Gog, do grupo Viela 17 (alusão a uma viela da favela de Brasília onde
moram alguns dos rappers).
154 Poesia Revoltada

Igualmente esclarecedora é a visão de MV Bill. Em “Pare de babar”,


o rapper não perdoa o preto, sobretudo o da favela, que “puxa o
saco dos playboys” (“Eu fico muito puto com os pretos como nós/
que ficam como papel higiênico dos boys”). Bill começa pela crí-
tica contundente ao que para ele caracteriza o playboy:
Como pode um otário que sempre se dá bem/ dar as costas pra
pobreza que toda favela tem?/ morando num lugar luxuoso...

A partir daí a crítica se volta para os negros que negam a sua


identidade, buscando comportar-se de acordo com o padrão
playboy (branco e rico):
Ainda tem cara que fica babando ovo de playboyzinho
mesmo sabendo que pelas costas é chamado de neguinho
mulatinho, escurinho, moreninho, macaco.

É importante notar que, para o rapper, não há dúvidas de que


essa atitude (a de bajular o playboy) representa uma fuga da
identidade negra e revela o desejo de identificação com a iden-
tidade branca:
Se liga, preto por fora, branco por dentro/ eu falo a verdade, você
me ironiza, eu não me arrependo.

Um comportamento que deriva, como o rap denuncia a todo


momento, da falta de informação:
Você não se informa, não tem consciência, não sabe de nada
(Pare de babar).

Por isso o refrão indica a esperança do rapper:


Espero que você aprenda como nós
e pare de babar o ovo dos playboys.

O final dessa composição é interessante, a mensagem é reen-


dereçada ao playboy, numa passagem em que MV Bill, de certa
forma, abre uma brecha para o reconhecimento de que existe,
ainda que tênue, uma possibilidade de relacionamento sincero
e amistoso entre brancos e negros. Depois de enunciar versos
em que o “playboy” é tratado como “filho da puta”, que só vem
Poesia Revoltada a Nação não-cordial 155

à favela para gastar com “piranha e pó”, e de afirmar que está


“falando somente a verdade”, o rapper aconselha:
Se existe algum playboy que não sabe o que fazer
só vista a carapuça que serve pra você
(Pare de babar).

Ora, parece evidente nas passagens citadas acima que os rappers


trabalham com um conceito de sociedade birracial, dividida em
negros de um lado (o lado de baixo da pirâmide social) e bran-
cos de outro (o lado de cima). Agora, como percebeu Hermano
Vianna, há negros, há brancos. Caetano Veloso detectou esse
aspecto trazido pela cultura hip-hop, percebendo também o seu
conteúdo de novidade: “Grupos de rap, compostos de favelados
que cantam e compõem em português, vêm criando um estilo
independente com uma ênfase no confronto de raças nunca
antes vista na nossa cultura popular, o que faz com que todo o
movimento [...] ilustre a hipótese de o Brasil tender hoje para o bi-
racialismo, em oposição simétrica a uma tendência americana
para o multirracialismo” . (Veloso in Bahiana, 2000: mimeo).

MV Bill é quem, a meu ver, vai propor a ruptura mais explícita


com o modelo multirracial. Primeiro, no videoclipe da música
“Soldado do morro”, em que narra a experiência de jovens fave-
lados envolvidos com o tráfico de drogas. Antes de a música
propriamente dita se iniciar, o rapper, na pele de um repórter de
telejornal, introduz um discurso que explica a razão pela qual
tantos favelados optam pela vida no crime. Nesta fala, o Brasil
que aparece é a contraface daquele que conhecemos através
do discurso mais difundido sobre nós mesmos:
é incrível como no país do Carnaval e do futebol existam verda-
deiros campos de concentração, onde crianças matam e morrem
ao desenvolverem seu trabalho para os traficantes
(MV Bill, 2001: Soldado do morro).

O Brasil do Carnaval se mostra, por exemplo, nos sambas que


Cláudia Matos, em Acertei no milhar, denominou “apologético-
nacionalistas”. Um exemplo clássico desse gênero é o “Hino do
158 Poesia Revoltada

Carnaval brasileiro”: “Salve a morena/ a cor morena do Brasil


fagueiro/ [...]/ salve a lourinha/ dos olhos verdes cor da nossa
mata”, de Lamartine Babo. Cláudia Matos mostra como, nesse tipo
de samba, as gradações hierárquicas entre etnias e classes sociais
simplesmente desaparecem. Aqui, “morenas, louras e mulatas se
equivalem em brilho e brasilidade” (Matos, 1982: 52).

Esse samba, cuja interpretação do Brasil, ao que me parece, é


ainda hoje sedutora, mostra apenas uma faceta do prisma social
brasileiro. Por isso, Cláudia chama a atenção para o caráter per-
feitamente monológico do texto, “tanto quanto um outro que se
encarniçasse em apresentar o povo brasileiro como um eterno
sofredor que só tivesse para si a fome, a ignorância, a miséria,
a opressão” (Matos, 1982: 52). Cabe indagar se não seria o rap
uma espécie de texto avesso ao apologético-nacionalista, e tão
monológico quanto.

Ao que me parece, em alguns momentos, o discurso rapper radi-


caliza-se a ponto de apresentar embaraçosos laços com o ponto
de vista que pretendia refutar, nomeadamente o discurso propria-
mente racista e o da democracia racial.

Vejamos o caso do rap “Declaração de guerra”. A composição


imagina uma guerra em que os negros brasileiros finalmente
fazem justiça depois de mais de três séculos de opressão:
Acenda a vela à meia noite/ é o código da revolução/ os generais
nem imaginam que os pretos estão do lado de cá
(MV Bill: Declaração de guerra).

O rapper se mostra desencantado com promessas, sobretudo


as do governo, que nunca se realizaram ao longo da história
do Brasil:
Chega de ouvir esse discurso social
chega de ouvir o lenga-lenga racial.

Agora, sua intenção é formar o exército dos sem-terra, sem-fama,


sem-grana, dos trombadinhas, mendigos e traficantes, para o
qual convoca “as putas, pobres, padres, índios e bichas”, num
Poesia Revoltada a Nação não-cordial 159

apelo que curiosamente remete a uma canção de Caetano Veloso:


“Índios e padres e bichas, negros e mulheres/ e adolescentes/
fazem o carnaval” (Veloso, 1984: “Podres poderes”).

Desta vez, no entanto, o tom do discurso é virulento, violento


e radical:
Vida longa aos pretos/ fim de vida aos brancos/ fim do açoite
a sede da alforria nos conduz a um caminho incerto.

Interessante é a mensagem dirigida às facções do narcotráfico,


exigindo que “parem com as guerras vermelhos e terceiros4/ somos
brasileiros”. A partir deste ponto o discurso do rapper incorre em
algumas contradições que merecem atenção. Ao apelar para a
união entre negros favelados que, ao optarem pelo crime, aca-
baram tornando-se – para continuar na linha de pensamento de
MV Bill – “irmãos inimigos”, ele recorre a um conceito tipicamente
europeu, portanto branco, que é a nacionalidade. Além disso
a palavra “brasileiros”, a rigor, deveria incluir negros, índios e...
brancos; além de japoneses, italianos, alemães e os mais variados
hibridismos étnicos e culturais. Ao mesmo tempo, as afirmações
de Bill envolvem um grande risco: em certo sentido, elas essencia-
lizam a identidade negra.

Dino Black, ex-integrante do grupo de Gog, já tinha expressado


essa confiança numa essência racial irredutível. Referindo-se a
um convidado especial que participou da gravação de uma faixa
no disco do grupo, Dino Black assim se expressa:
Tydoz, um branco com atitudes negras
(Gog: Qual é o pó?).

Disse Hegel que os fatos e personagens importantes na história


do mundo sempre ocorrem duas vezes. Karl Marx completaria
dizendo que a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa
(Marx, 1987-1988: 7). Nos anos 30, Francisco Alves, então o maior

4 Referência às duas principais facções do narcotráfico no Rio de Janeiro:


Comando Vermelho e Terceiro Comando.
160 Poesia Revoltada

cantor do país, fez um show em que interpretava músicas de


Ismael Silva, sambista negro do Estácio e um dos “inventores”
do formato das escolas de samba. Ovacionado, Francisco Alves,
instado pela platéia, convidou Ismael para subir ao palco. Ato
contínuo, o cantor apresentou o sambista: “Este é Ismael Silva,
o preto de alma branca!”.

Não diria que a frase pronunciada por Dino Black mais de 70


anos depois chegue a ser uma farsa na exata acepção da pala-
vra, mas é bastante contraditória. Ele, Dino, não chega a inver-
ter simetricamente a proposição infeliz de Francisco Alves; o
branco não tem a “alma” negra, mas as “atitudes”. Ao contrário
do que se pode inferir deste verso do Racionais:
se você se considera negro, para negro será mano
(Racionais: Voz ativa).

Aqui parece que a cor da pele é que define quem é negro e quem
não é, numa atitude que acaba se aproximando da maneira pela
qual a sociedade brasileira classifica, e portanto discrimina,
racialmente os indivíduos no Brasil.

Certamente, este é uma postura atribuível ao que Gayatri Spi-


vak chamava “essencialismo estratégico” (apud Hall, 2003: 344).
Um momento necessário na afirmação da identidade negra, em
que pese as contradições envolvidas aí. Cabe, então, perguntar,
como Stuart Hall, se ainda estamos nesse momento. De todo
modo, creio que a afirmação positiva da identidade contida
em grande parte das letras de rap representem uma efetiva, e
afetiva, mobilização do “essencialismo estratégico”. O recorte
muito dicotômico entre “negros” e “brancos” já me parece um
passo, embora compreensível, para além da estratégia.

Por outro lado, a própria diversidade interior ao rap, conforme


expus na introdução, demonstra o grande fracionamento de
modos de ser que implicam atitudes diferentes, opostas até,
que comprovariam a inviabilidade de estruturar – a partir de
critérios raciais, sociais ou de engajamento na cultura hip-hop
Poesia Revoltada a Nação não-cordial 161

– uma identidade essencial, não apenas assumidamente negra,


mas francamente oposta à identidade branca. Cabe indagar:
numa guerra como a imaginada pelo rapper MV Bill, quantos
“brancos” e quantos “negros” iriam real e simetricamente cor-
responder à organização bipolar prevista em seu sonho? Um
rapper como Suave, do Jigaboo, propõe em seus versos uma
discussão que problematiza a afirmação identitária tão decidida
que encontramos na retórica de MV Bill ou Gog (via Dino Black).
Qual é a cor do teu estilo, e que predomina/ alguns têm pouco
outros têm bastante melanina/ a minha cor é transparente como
um copo d’água/ porque pra mim a tua cor não quer dizer nada/
eu faço rap sendo preto, branco ou amarelo/ não sou racista nem
nazista sou da raça mista/ não discrimino mas às vezes sou dis-
criminado/ por ser um rap louro, branco e de olho claro
(Jigaboo: Qual a cor?).

Por outro lado, a adesão do público negro e pobre poria abaixo


qualquer crença nesse sentido: embora importante, o número de
pessoas que aderem à política racial preconizada nas letras dos
raps ainda é significativamente menor, no Brasil, do que aquele que
prefere a proposta de outras estéticas, em sua maioria absoluta-
mente conciliadoras, quando não francamente filiadas ao ideário
da mestiçagem – mais ou menos em termos freyreanos – como
valor maior. Os próprios dados fornecidos pelas pesquisas do
censo demonstram que permanece uma distância entre possuir
determinadas características atribuíveis à raça negra e sentir-se
negro. Todos os rappers incluídos neste estudo, em maior ou
menor grau, expressam de maneira dramática o reconhecimento
dessa contradição.

Talvez seja justamente esse reconhecimento que induza à radi-


calização do discurso por parte dos rappers que, alheios às ques-
tões mal resolvidas que possam interferir em seu trabalho, estão,
através de suas músicas e performances, concretizando o desejo,
que Gilberto Freyre tanto temia, de formação de uma comunidade
diferenciada dentro do espaço da nação. Segundo Freyre, “a pos-
sibilidade de as diferenças deixarem de interagir, mantendo-se
162 Poesia Revoltada

absolutamente afastadas, é um perigo constante para qualquer


sociedade [...]. A ameaça [está] na ‘constituição de um ‘Nós’ dentro
do ‘Nós’ nacional” (Freyre apud Vianna, 1995: 88). Um movimento
que justifica o título desta seção: “a nação não-cordial”.

Em agosto de 1999, Toure publicou artigo no New York Times que


causou muita polêmica. O autor defendia a prerrogativa dos homens
negros na condução do que ele denomina “a nação hip-hop”. O pri-
meiro parágrafo do referido artigo diz o seguinte: “Eu vivo em uma
nação que nenhum cartógrafo jamais respeitará. Um lugar com sua
própria língua, cultura e história. É uma nação tanto quanto Itália
ou Zâmbia. Um lugar que meus conterrâneos chamam de Nação
Hip-hop, provavelmente invocando todo o orgulho nacionalista
acumulado através da história. O caminho de nossa nacionalidade
foi pavimentado por um punhado de pais: Muhammad Ali com
sua infinita arrogância, Bob Marley com sua verdadeira música
rebelde, Huey Newton com seu audacioso estilo político, James
Brown com sua obsessão pelo funk”(Toure, 1999).

Toure articula todo o seu texto em torno da idéia da cultura hip-hop


como uma espécie de nação dentro da nação. Nos Estados Unidos,
pode-se dizer, inclusive, que essa nação dispõe de uma economia
própria, movimentando milhões de dólares anualmente. Mas o pri-
meiro aspecto que Toure destaca é a existência de referências his-
tóricas para os negros de hoje, simbolizadas nas figuras de homens
cuja atividade – artística, desportiva ou política – foi decisiva para
mobilizar a auto-estima da comunidade negra americana.

No Brasil o processo é semelhante. Além da influência notória de


Bob Marley e James Brown, as letras e os discursos dos rappers
criaram ídolos, na maioria das vezes herdados dos movimentos
negros anteriores, os quais servem de estímulo à conformação
pretendida pelo hip-hop de uma identidade negra legítima e bra-
sileira. Segundo o Racionais:
Precisamos de um líder de crédito popular/ [...]
que seja negro até os ossos/ um dos nossos
(Racionais: Voz ativa).
Poesia Revoltada a Nação não-cordial 163

Zumbi dos Palmares é, por conta disso, citado como herói por inú-
meros raps. Artistas como Jorge Benjor e Tim Maia também são
sempre mencionados. Há uma certa escassez de nomes, o que
motiva a denúncia, comum no rap, de que a história do Brasil foi
falsificada – “lavagem cerebral, vamos acordar nossos irmãos/
[...] / nossa história totalmente manipulada” (Gog: “Qual é o pó?”)
– mediante a rasura da participação dos afro-descendentes.

X,5 líder do extinto grupo de rap Câmbio Negro, do Distrito Federal,


compôs um rap, intitulado “Esse é meu país”, em que narra uma
outra possibilidade de Brasil. O rapper, desde o primeiro verso,
aponta os quesitos centrais que deveriam ser respeitados no seu
ideal de nação: “Igualdade racial, social/ negro e branco tratado
de igual pra igual”. Esse seria o Brasil dos sonhos dos rappers.
E no caso desse rap, a narrativa é desenvolvida na forma de um
sonho mesmo. A música termina com o som de um despertador,
acordando o rapper para uma realidade diametralmente oposta
à que seu discurso encenou. Antes de acordar, no entanto:
Boas escolas, analfabetismo inexistente/ saúde em alta, bons
hospitais, atendimento eficiente/ mortalidade infantil há muito
eliminada/ pobreza não se vê, foi erradicada, criminalidade cai
90%/ todos têm moradia, ninguém ao relento/ policiais educados,
segundo grau completo/ recebem salário digno, equipamento
moderno/ não abusam do poder, não há brutalidade
(Câmbio Negro: Esse é meu país).

O rapper não esquece quase nenhum – faltou mencionar as


questões indígena e homossexual, pelo menos – dos segmentos
sociais alijados do processo de modernização do país: “Mulhe-
res no governo, com certeza invejável/ tratadas como se deve,
com o respeito devido”; “Vários negros no Senado, trabalho
reconhecido/ anos de faculdade, lugar ao sol merecido”; “Prê-
mio Nobel dado a um físico nordestino”; “Idosos têm os seus
direitos assegurados”.

5
Lê-se /éks/, não confundir com o rapper Xis.
164 Poesia Revoltada

Na obra dos rappers estudados aqui, é possível perceber fres-


tas por onde se revela, mais que a crítica ao modelo vigente,
o sonho de uma outra possibilidade de nação, como se pode
depreender do rap de Gog:
não, meu mundo não é esse aqui.
O meu é um sonho ainda a construir
(Gog: Prepare-se).

O Racionais expressa isso de forma contundente quando canta


“eu vou procurar/ sei que vou encontrar/ a minha fórmula
mágica da paz” (Racionais: “Fórmula mágica da paz”), ou então
em “Mundo mágico de Oz”:
Sair um dia das ruas é a meta final/ viver decente
sem ter na mente o mal/[...]
será que Deus tá provando minha raça?/ Só desgraça/[...]
é preciso morrer pra Deus ouvir minha voz?
ou transformar aqui no mundo mágico de Oz
(Racionais: Mundo mágico de Oz).

Em ambos os casos, é fácil detectar como a aridez do mundo


que o rapper percebe nas suas composições só autoriza uma
solução se for por meio de algo além da capacidade e da com-
preensão humana, de algo impalpável, do campo do impossível
ou do divino. Em “Gênesis”, Mano Brown declama:
Deus fez o mar, as árvores, as crianças, o amor. O homem me deu a
favela, o crack, a trairagem, as armas, as bebidas, as putas.

Acontece que o rapper vive no mundo dos homens, onde rara-


mente acontecem milagres. Por isso, na maior parte do tempo o
rapper canta a dureza da vida nas periferias dos centros urba-
nos. Dureza que se reflete nas palavras que o rapper escolhe
para compor suas canções.

Já assinalei anteriormente que os fonemas oclusivos, com des-


taque para o surdo /p/, têm uma presença marcante em algumas
letras de rap, notadamente nas de MV Bill. Certamente isso
acontece porque palavras de uso recorrente no rap, como “preto”,
Poesia Revoltada a Nação não-cordial 165

“pobre”, “polícia”, acabem fazendo com que o fonema se destaque,


mera coincidência. Mas também é possível que as constantes
reproduções onomatopaicas dos sons de tiros sendo deflagrados
reforcem essa impressão. O caso é que, coincidentemente ou não,
Gog compôs um rap onde o fonema em questão adquire uma nova
dimensão. Intitulado “Brasil com p”, o rap expressa justamente o
Brasil que o rapper vê, que é a antítese do país com o qual o rapper
sonha, a nação que ele, a um só tempo, denuncia e repudia.
Pesquisa publicada prova/ Preferencialmente preto, pobre, pros-
tituta pra polícia prender/ Pare, pense: por quê?/ [...]/ Presídio,
porões, problemas pessoais, psicológicos/ perdeu parceiros, pas-
sado, presente/ pais, parentes, principais pertences/ [...]/ prevejo
populares portando pistolas/ pronunciando palavrões/ promoto-
res públicos pedindo prisões/ pecado, pena: prisão perpétua
(Gog: Brasil com p).

Das cento e dezessete palavras contidas na letra, apenas uma


não começa pela letra “p”, a última do último verso: “palavras
pronunciadas pelo poeta, irmão”. A repetição do fonema con-
corre para expressar uma experiência social extremamente
contraditória, na qual os “pretos”, os “pobres”, as “prostitutas”,
numa palavra, os párias sociais, vivem numa situação rebai-
xada, desfavorecidos em todos os sentidos. Por outro lado, o
recurso formal demonstra uma destreza digna dos jogos ver-
bais realizados pelos repentistas brasileiros. Contudo, no caso
dessa composição é possível evocar da repetição dos “pês” a
sensação de prisão – mais uma palavra iniciada por essa con-
soante. Ao repetir incessantemente o fonema, o poeta cria um
clima sufocante, um labirinto do qual não há saída possível.
A única saída, eu arriscaria dizer, está no ouvinte, aquele a quem
o poeta se dirige. Afinal, o único vocábulo que não se inicia por
“p” é justamente o vocativo “irmão”, o único que escapa do cír-
culo vicioso criado pelo rapper. Mesmo a si próprio Gog designa
como poeta, não como rapper, talvez querendo dizer que sozinho
ele não é capaz de romper o encadeamento perverso do Brasil
com “p”, isolado ele é prisioneiro do círculo. É necessário que “a
166 Poesia Revoltada

congregação dos manos”, aqueles cinqüenta mil a que se refere


Mano Brown, dê vazão à revolta expressa pelo rap de maneira a
realmente “mudar as coisas por aqui”, como quer KL Jay.

O que Gog está dizendo na sua composição é que talvez este


seja o único caminho capaz de romper com o Brasil com“p” e dar
lugar ao novo.

No título do livro indiquei minha compreensão do rap como forma


poética que tem na revolta um de seus principais ingredientes.
Segundo Octavio Paz, revolução e revolta têm a mesma origem
(rodar, enrolar, desenrolar), mas a primeira implica uma visão
cosmogônica e histórica, a outra representa o presente caótico
ou tumultuoso. Portanto, “para que a revolta cesse de ser alvo-
roço e ascenda à história propriamente dita, deve transformar-se
em revolução” (Paz, 1996: 262). Digo isso porque, remetendo à
epígrafe que escolhi para este trabalho, creio que o caminho da
revolta é ascensional. Com todas as contradições e erros, diante
de tudo que li, ouvi e percebi, acredito que o rap brasileiro trouxe
uma grande novidade no campo estético e outra no campo
social. Há pouco mais de um século e meio, homens brancos,
num momento crítico de definição de identidade, começaram a
forjar, através de suas narrativas românticas, o discurso que deu
forma à nação brasileira. Hoje um novo discurso se eleva, e ele
mostra seu inconformismo frente ao fato de ter sido excluído
naquele primeiro momento. Agora esse inconformismo explode,
nos samples dos DJs e nas vozes do rap. Não podemos ignorar
que os sonhos e as utopias contidas nas letras, nos gestos e nos
traços destes negros artistas apontam para um tempo em que o
equilíbrio entre a nação “cordial” e a nação excluída será, final-
mente, possível. Ou não será ascensional o caminho da revolta.
167
ANEXO
O som negro do gueto:
a senzala contra a casa-grande

168

ANEXO
O som negro do gueto:
a senzala contra a casa-grande

ANEXO
O som negro do gueto:
contra a
casa-grande
ANEXO

O som negro do gueto:


Não há perigo de que o problema negro venha surgir no Brasil.
Antes que pudesse surgir seria logo resolvido pelo amor.
Oliveira Viana

Então Macunaíma enxergou numa lapa bem no meio do rio uma


cova cheia d’água. [...]. O herói depois de muitos gritos por causa
do frio da água entrou na cova e se lavou inteirinho. Mas a água
era encantada [...]. Quando o herói saiu do banho estava branco
louro e de olhos azuizinhos, água lavara o pretume dele. E nin-
guém mais seria capaz de indicar nele um filho da tribo retinta
dos tapanhumas.

O restante da história é conhecido: lavando-se na mesma água


“suja da negrura do herói”, Jiguê ficou da “cor do bronze novo”,
enquanto Maanape, devido ao fato de a água encantada ter-se
esborrifado para fora da cova no segundo banho, permaneceu
negro, “só que as palmas das mãos e dos pés dele são ver-
melhas por terem se limpado na água santa” (Andrade, 1985:
29-30). E assim, no romance de Mário de Andrade, Macunaíma
e os dois irmãos alegorizam a velha fábula – ou mito, como pre-
fere Renato Ortiz (1985: 35) – segundo a qual o Brasil é formado
pelo encontro das três raças: a indígena, a negra e a branca.

Já retornarei ao tema das três raças. Por enquanto registre-se


que, fábula ou mito, essa idéia tem ainda muita força e mais de
um exemplo busca demonstrar a sua verdade. Desde o episó-
dio histórico das lutas de resistência à invasão holandesa, em

170
O som negro do gueto: 171
a senzala contra a casa-grande

1654, no estado de Pernambuco, em que se destacaram o negro


Henrique Dias, o índio Felipe Camarão e o branco André Vidal
de Negreiros, cerrando fileiras na defesa do Império, até hoje se
pode sentir essa presença, conforme ironiza Marilena Chauí em
sua avaliação dos mitos fundadores da nação brasileira: “Sabe-
mos todos que somos um povo novo, formado pela mistura de
três raças valorosas: os corajosos índios, os estóicos negros e
os bravos e sentimentais lusitanos” (Chauí, 2000: 6).

O questionamento, e mais ainda a oposição, a esse mito fundador


será a causa de um sem-número de problemas para a reflexão
acerca da questão racial no Brasil. Não que incomode a percep-
ção dessa origem tripartite, tampouco os contatos, as miscige-
nações e os hibridismos que entraram nessa relação. O aspecto
perturbador seria antes o abismo entre o reconhecimento dos
três elementos na construção da identidade nacional e a situ-
ação desfavorável vivida por duas das pontas desse triângulo e,
em certa medida, pelos frutos de suas interações.

Lidar com esse problema, neste país, não é tarefa das mais fáceis.
Na opinião de Antônio Sérgio Guimarães: “Qualquer estudo sobre
o racismo no Brasil deve começar por notar que, aqui, o racismo
é um tabu” (Guimarães, 1999: 37). Não apenas nos diversos tra-
balhos teóricos, mas também nas conversas de família ou de
bar, parece haver um certo consenso de que a questão racial não
representa um problema no Brasil. É possível que isso aconteça
devido a duas razões principais.

Em primeiro lugar, porque, até este momento, tem imperado uma


resoluta indefinição racial1 por parte do povo brasileiro. Basta
dizer que o resultado da Pesquisa Nacional por Amostra de Domi-
cílio, do IBGE, em 1976, revelou 135 definições de cor diferentes
por parte dos entrevistados, embora uma parte considerável
delas, notadamente as mais estranhas (“cardão”, “cor-firma”,

1 O conceito é, sem dúvida, problemático. Seu uso neste trabalho será discutido
adiante.
172 Poesia Revoltada

“enxofrada”, “roxa”, “saraúba”) não representassem mais que um


percentual irrisório do total, que no final das contas resumiam-se
às tradicionais branca, negra ou preta e diversas tonalidades de
morena. De qualquer forma, resta até hoje o que percebeu Skid-
more, “o reconhecimento por parte de brasileiro e visitantes mais
atentos de que os termos raciais não estão muito bem definidos
na sociedade brasileira” (Skidmore, 1994: 151).

Em segundo lugar, porque a construção de uma nação orgulhosa-


mente mestiça, alheia a conflitos de ordem racial e étnica, repre-
sentou na história do país o discurso vitorioso. Não é exagerada
a percepção de Guerreiro Ramos, de que toda uma geração de
estudiosos (e seus leitores) aderiu de uma maneira ou de outra à
temática da democracia racial, a ponto de refutar pronta e feroz-
mente qualquer argumentação contrária, de cunho acadêmico ou
não, a essa visão do Brasil como paraíso racial (Ramos, 1957).

Somente a partir da década de 50 haverá mudanças significati-


vas nesse quadro. Até essa época, o debate acerca da questão
era dominado pelo discurso que advogava a inexistência de
conflitos de ordem racial entre nós. Mesmo as nuanças pos-
síveis de se encontrar de um autor para outro, em última ins-
tância, concorriam para os mesmos efeitos. No final, a idéia de
Brasil como país isento de semelhantes tensões acabava pre-
valecendo.2 Haver, no mesmo continente, uma nação em que o
racismo se exercia de forma inequívoca e em que as diferenças
étnicas eram mais nítidas acabava reforçando esse discurso,
fornecendo sempre um argumento aparentemente irrefutável:
“Racistas são os Estados Unidos, o Brasil não!”. Com efeito, o
modelo norte-americano, diz Guimarães, era evidentemente
baseado na violência, no conflito, na segregação enfim. Esse
modelo, que ficou vulgarmente conhecido como Jim Crow, era
“sancionado por regras precisas de filiação grupal, baseadas
em arrazoados biológicos que definiam as ‘raças’”. Quanto ao

2
Ver as obras, por exemplo, de Gilberto Freyre, Donald Pierson, Marvin Harris e os
primeiros escritos de Thales de Azevedo.
O som negro do gueto: 173
a senzala contra a casa-grande

modelo brasileiro, este optava por uma “refinada etiqueta de


distanciamento social e uma diferenciação aguda de status e
de possibilidades econômicas, convivendo com eqüidade jurí-
dica e indiferenciação racial, baseado sobretudo em diferenças
fenotípicas, e cristalizado num vocabulário cromático” (Guima-
rães, 1999: 39).

A rigor, prevalece no Brasil uma forma de percepção racial base-


ada preferentemente na cor, não na hereditariedade. Essa carac-
terística será estudada por Oracy Nogueira, que propõe a diferen-
ciação entre preconceito de marca e preconceito de origem, este
último baseado na regra de uma gota de sangue (one drop rule).

O preconceito racial de marca se exerce quando o que o sus-


tenta é a aparência do indivíduo, tomando por pretexto para as
suas manifestações os traços físicos, a fisionomia, os gestos,
o sotaque. O de origem se revela “quando basta a suposição de
que o indivíduo descende de certo grupo étnico, para que sofra
as conseqüências do preconceito” (Nogueira, 1985: 79).

A combinação dessas dificuldades impõe o que, a meu ver, é o


problema maior: o fato de que realmente há especificidades no
tocante às relações raciais no Brasil que precisam ser pensadas
sem dogmatismos. Como apontou Oracy Nogueira, a simples afir-
mação de sua existência é insuficiente, “uma vez que não é pos-
sível ignorar o flagrante contraste entre o clima de relações inter-
raciais que predomina nos Estados Unidos e o que caracteriza o
Brasil. Ademais, o reconhecimento da existência do preconceito
leva à questão seguinte de se saber se, num e noutro países, o
preconceito apenas difere em intensidade ou se a diferença deve
ser considerada como qualitativa” (Nogueira, 1985: 79).

Apesar de o método comparativo (entre Brasil e EUA) não ser


a prioridade neste trabalho, cabe assinalar que essa é uma
dificuldade a mais para a análise das relações raciais no Brasil.
Sobretudo em virtude de estar lidando com o rap, uma forma
que se cristalizou nos Estados Unidos, a sombra das questões
raciais nesse país acaba sempre pairando sobre qualquer ini-
174
175
176 Poesia Revoltada

ciativa de se analisar o caso brasileiro. De qualquer forma, é no


contexto das dificuldades apontadas aqui que me proponho a
estudar a forma pela qual o rap coloca as questões de identi-
dade, raça e nação no Brasil na passagem do século XX ao XXI.

Da raça ao racismo

Minha intenção aqui é menos passar a limpo as reflexões sobre


o conceito de raça e suas implicações sociais do que propor
uma base sobre a qual o objetivo prioritário deste trabalho foi
estabelecido. Refiro-me à sugestão de que o texto rapper possa
constituir-se como uma forma estética crítica das noções de
cordialidade e democracia racial, que se impuseram como uma
poderosa auto-imagem do Brasil.

Esses conceitos não serão encarados exclusivamente segundo as


formulações de seus respectivos autores, mas também segundo
as interpretações nem sempre ortodoxas que lhe foram acres-
centadas pela sociedade em geral. Quero dizer que serão levados
em consideração os novos sentidos que os conceitos passaram
a ter em virtude de seu uso no universo extra-universitário, ou do
chamado senso comum, o qual se caracteriza, conforme Alfredo
Bosi, por seu “caráter difuso, mesclado intimamente com toda a
vida psicológica e social do povo”, ao contrário da prática acadê-
mica, que é concentrada e especializada, quase sempre versando
sobre materiais “já trabalhados pela literatura específica dos
temas” (Bosi, 1992: 320). Afinal, os próprios rappers pertencem a
esse universo, e a crítica que fazem das idéias de Brasil expres-
sas por aqueles conceitos deve-se menos à leitura da bibliografia
especializada que à sensibilidade com que percebem, a partir da
observação atenta da cultura na qual vivem, os processos con-
traditórios entre o que ouvem aqui e ali sobre a nação brasileira e
o que vêem no dia-a-dia de suas comunidades.

Na construção e na análise desses conceitos – a democracia


racial, a cordialidade (na acepção vulgar) e seus correlatos –
que assombram a consciência da nação, um autor desempe-
O som negro do gueto: 177
a senzala contra a casa-grande

nhará papel central: Gilberto Freyre. Toda a literatura a respeito


da problemática da identidade nacional, após a década de 1930,
converge necessariamente para a sua obra, sobretudo Casa-
grande & senzala. A importância de Freyre no âmbito deste
trabalho reside no fato de que talvez seja possível sintetizar a
visão dos rappers sobre o Brasil como anti-freyreana. Aqui, seja
qual for o acesso que os rappers tiveram à sua obra, o Brasil
dos manos é, na maioria das vezes, o oposto daquele surgido da
obra de Freyre e de suas inúmeras interpretações.

Porém, antes de chegar a este ponto, uma vez que se falou muito
até aqui de raça e racismo, noções às quais inevitavelmente
retornarei no decorrer deste trabalho, talvez caibam duas ou
três palavras a respeito desses conceitos.

O verbete “raça” do Dicionário de Relações Étnicas e Raciais


define: “um grupo ou categoria de pessoas conectadas por uma
origem comum” (Banton, 2000: 447). Naturalmente, esse é apenas
o começo da história. A partir dessa formulação sumária ocorrem
tantas modificações no conceito, as quais variam de acordo com
os diferentes contextos históricos, culturais, sociais etc., que já
não é possível defini-lo numa única sentença. Na verdade, desde
princípios do século XVI, o termo tem conhecido vários significa-
dos (ver Banton, 2000: 447; Cashmore, 2000: 451-3).

Em outros termos, a discussão sobre raça muitas vezes condu-


ziu a um pensamento que a entendia como alguma essência,
uma determinação biológica que não dependeria de interpre-
tação ou de contextos específicos. Um pensamento que, atual-
mente, está amplamente desmentido. Afinal, a própria história
da humanidade evidencia que a noção de raça pura não se
sustenta – as misturas são a constante. Aliás, sob o ponto de
vista da ciência genética, sequer existem raças. O que há é a
incessante mistura entre os diversos povos.

Ainda assim, considero de pouco rendimento simplesmente des-


cartar a noção de raça uma vez que, queiramos ou não, ela conti-
nua a definir formas determinadas de relações sociais. Paul Gilroy,
178 Poesia Revoltada

um crítico feroz dos movimentos de absolutização ou essencia-


lização da marca racial, também lembra que o problema com as
tendências que simplesmente abandonam o essencialismo racial,
por considerar a “raça” um constructo inoperante, é que elas têm
se mostrado “insuficientemente consciente[s] do poder de resis-
tência de formas especificamente racializadas de poder e subor-
dinação” (Gilroy, 2001: 87).

Mal ou bem, continua sendo a raça, entendida como tal ou como


marca de classe/status social, que define quem sobe pelo ele-
vador social e quem vai pelo de serviço. Estou de acordo com
Antônio Sérgio Guimarães quando diz que, apesar da repulsa
que possa suscitar o conceito de “raça”, uma vez que faz pas-
sar por realidade natural “os preconceitos, interesses e valores
sociais negativos e nefastos”, é preciso reconhecer que sob o
ponto de vista social, o conceito goza de plena realidade. E, de
resto, “o combate ao comportamento social que ele enseja é
impossível de ser travado sem que se lhe reconheça a realidade
social que só o ato de nomear permite” (Guimarães, 1999: 9).

O que significa dizer que o conceito de raça resiste à sua própria


precariedade. Porque, apesar de todo o esforço dos biólogos,
desde a metade do século XX, em demonstrar a inviabilidade da
categoria raça como meio de classificação dos seres humanos,
ela tem permanecido decisiva nos diferentes estudos que se
preocuparam com os destinos da nação.

Também para Jacques D’Adeski, o fato de, geneticamente, ser


impossível a classificação de raças conforme o modelo da taxio-
nomia clássica (brancos, negros, amarelos etc.) não implica que
se tenha de abandonar o conceito de raça. Baseando sua argu-
mentação no trabalho de Pierre-André Taguieff, D’Adeski busca
demonstrar a importância da manutenção do termo. Afinal,
como bem observa Taguieff, para o homem comum os complexos
modelos teóricos dos geneticistas contemporâneos não signi-
ficam muita coisa (D’Adeski, 2001: 45). Por isso, ele continuará
a perceber (e a discriminar, por vezes) os indivíduos segundo
O som negro do gueto: 179
a senzala contra a casa-grande

aquelas características que lhe são mais visíveis – a cor da pele,


a forma do nariz, a textura do cabelo – e que remetem quase ine-
vitavelmente ao que se entende por raça. Afinal, a atitude racista
se nutre de diferenças fenotípicas, como a cor da pele. Dessa
maneira, a noção de raça, por mais que a Biologia a tenha posto
em questão, permanece um elemento maior da realidade social,
na medida em que põe em marcha formas coletivas de diferen-
ciação que podem estimular comportamentos discriminatórios.

Isso é tanto mais importante quanto se sabe que, no Brasil,


criou-se desde muito cedo a convicção de que o racismo não
criou raízes. Joel Rufino dizia que “a idéia de que ‘aqui não
temos desses problemas’ está profundamente enraizada em
nossas cabeças” (Santos, 1984: 40). É possível dizer que a idéia
de nação mestiça, acomodando as diferenças de raça em prol
de uma unidade fraterna entre a casa-grande e a senzala, ou
entre os sobrados e os mucambos, informou a crença genera-
lizada de que não há racismo no Brasil – “pois o Brasil é isto:
combinação, fusão, mistura” (Freyre apud Vianna, 1995: 83).

Uma outra maneira de enxergar a questão seria colocá-la em


termos de diferença e diversidade. Aí veremos que, no Brasil,
exaltou-se sempre a diversidade, mas sempre se evitou a dis-
cussão mais aprofundada a respeito da diferença. Afinal, o Bra-
sil diverso, miscigenado, fruto do encontro das três raças é uma
auto-imagem que teve muito sucesso em se afirmar. Por outro
lado, sempre que um discurso que privilegiasse a diferença se
insinuou, suas asas foram logo cortadas. É sintomático que
Wilson Martins, por exemplo, tenha escrito recentemente que
“o clima de animosidade racista [...], perpetuado nos Estados
Unidos, não se verificou no Brasil e só se manifesta quando o
insuflam as chamadas associações de defesa, cujo caráter
racista é inegável” (in Freyre, 2001: 16).

Em outras palavras, para o tipo de pensamento expresso por


Martins, a diversidade brasileira só é bem-vinda por ter asse-
gurado a formação da nacionalidade brasileira em um contexto
180 Poesia Revoltada

razoavelmente adverso, quando vários prognósticos condena-


vam o seu futuro em virtude da miscigenação. Admitindo que
este foi, sem dúvida, um passo importantíssimo, não me é pos-
sível deixar de notar que, quando essa diversidade se via amea-
çada por quaisquer manifestações de diferença, de afirmação de
uma identidade que escapasse ao escopo da miscigenação, isso
significava a manifestação de características anti-brasileiras.
É interessante, por exemplo, como Freyre lida com o assunto.

Defendendo a grandeza da literatura brasileira, que “não cede


o primeiro lugar a nenhuma outra na América Latina” (2001: 46),
entre cujos autores pontificavam não poucos mestiços, Freyre
dirá que, por exemplo, Machado de Assis e Lima Barreto eram
ambos mulatos, porém “o primeiro jamais tocava no assunto
enquanto Barreto, por vezes, dramatizava sua condição de
‘negro’ e ‘plebeu’ de modo de certa forma não brasileiro” (2001:
46-7. Grifo meu). O que é digno de nota, uma vez que não se trata
de um caso isolado. Afinal, para Freyre, até mesmo o suicídio
do presidente Getúlio Vargas, um gesto violento e incompatível
com nossa índole pacífica, foi considerado uma atitude “não-
brasileira” da parte de um político (Freyre, 2001: 48).

O que Wilson Martins e Freyre negligenciam é que as “associa-


ções de defesa” ou os “Limas Barretos” da vida são personagens
que se dão conta de que a diferença, como diria Muniz Sodré, não
é um ponto de partida, mas de chegada. “Ponto de partida são
as possibilidades concretas de diferenciação” (Sodré, 1999: 15).
Neste sentido, a discriminação significa o não reconhecimento
do outro nesse processo de diferenciação. Ora, para Martins,
as associações de defesa é que são racistas e não as pressões
externas que lhes dão origem. O mesmo vale para Lima Barreto,
que não se reconheceu nas possibilidades estreitas que a socie-
dade mestiça brasileira lhe oferecia e, num ambiente fortemente
racista como aquele do começo do século, teve que “dramatizar
sua condição de negro” porque seu ponto de partida era muito
limitado. O poema “Emparedado”, de Cruz e Sousa, exemplifica
O som negro do gueto: 181
a senzala contra a casa-grande

bem de que modo eram fechadas, em sua época, as possibilida-


des de diferenciação na sociedade brasileira e como era difícil
para o artista não “dramatizar” a condição negra, pelo menos
quando esta era indisfarçável.

“Não! Não! Não! Não transporás os pórticos milenários da vasta


edificação do Mundo, porque atrás de ti e adiante de ti não sei
quantas gerações foram acumulando, acumulando pedra sobre
pedra, pedra sobre pedra, que para aí estás agora o verdadeiro
emparedado de uma raça” (Cruz e Sousa, 1961: 665).

Aqui a diferença aparece muito mais como parte de escolhas,


nem sempre tranqüilas, às vezes inconscientes, outras confli-
tuosas. Mas essas escolhas representam o desejo dos homens
de participar da sociedade, da nação, em condições de igual-
dade. Nesse ponto, começa a atuar o racismo, de forma evi-
dente ou sutil. O fato é que ainda hoje, “as relações humanas
são atravessadas e muitas vezes determinadas por diferenças
materializadas na variedade dos modos de crer, perceber, tra-
balhar, vestir-se e parecer somaticamente. A estética negativa
do estrangeiro lastreia sempre os julgamentos na prática do
Gesichtskontrolle (controle de rostos), ou seja, a decisão coti-
diana sobre quem pode entrar em clubes, boates, restauran-
tes de luxo ou mesmo ser aceito para seguros de automóveis”
(Sodré, 1999: 17).

Enquanto o “controle de rostos” for uma prática comum em nossa


sociedade, a noção de raça continuará tendo sua importância,
pelo menos como noção cultural e social (não biológica), até
porque só a partir daí se poderá pensar a questão das “relações
raciais” no Brasil. Apesar das notórias diferenças com a realidade
dos Estados Unidos e de outros países, também aqui o debate a
respeito de grandes temas, como identidade nacional e democra-
cia, não poderá passar ao largo do problema racial. Como comple-
tou Sodré, a respeito do Gesichtskontrolle, “o nome da prática é
alemão mas sua incidência é transnacional” (Sodré, 1999: 17).
182
183
184 Poesia Revoltada

Só branco em minha alma crivada de raças: estratégias de


branqueamento.

De meados do século XIX até o início do XX, as doutrinas que pro-


pugnavam a raça como uma determinação biológica davam o tom
dos estudos a respeito das diferenças raciais. Segundo as conclu-
sões desses pretensos cientistas, tornava-se evidente a distinção
entre as raças em termos de superioridade e inferioridade irredu-
tíveis. Naturalmente, a raça negra era exposta como inferior, em
contraste com a branca, superior.

A “água encantada” na qual se lavou Macunaíma3 certamente


faria muito sucesso, caso não pertencesse unicamente ao reino
da ficção. Naquele momento, a mestiçagem implicava graves
problemas para o projeto de formação da nação brasileira, uma
vez que a presença da marca negra (e também indígena) no
processo traria uma nódoa, uma mancha difícil de “limpar”, que
inviabilizaria o desenvolvimento de uma civilização moderna
nos moldes ocidentais.

Esses problemas foram resolvidos de forma diferente nas obras


dos autores que lidaram com a questão da identidade brasileira.
Sílvio Romero e Nina Rodrigues, por exemplo, tinham opiniões dís-
pares. O primeiro acreditava numa solução – o branqueamento da
população – a concretizar-se em dois a seis séculos. O segundo,
mais pessimista, refutava essa hipótese, considerando a nação
brasileira irremediavelmente condenada pela marca negra na

3 A analogia que faço desde o início deste capítulo entre o trecho citado de Macu-
naíma e as teorias raciais que vingaram no Brasil tem caráter meramente ilustra-
tivo. A obra de Mário de Andrade é mais complexa que o tratamento dado aqui e,
para que tivesse algum desdobramento além do retórico, mereceria uma análise
muito mais aprofundada. De resto, assinalo minha concordância com Muniz Sodré:
“apesar de assimilador de diferenças [...] em seu percurso, Macunaíma não se ade-
qua ao paradigma da mestiçagem com que acena a maioria das obras identitárias
[...]. Na verdade, o próprio de Macunaíma é não ter identidade viável, seja indígena,
negra, branca ou mestiça. É um personagem singular, logo inassimilável pelos
padrões identitários oficiais, embora interpretável como figura que nacionaliza a
invenção” (1999: 96).
O som negro do gueto: 185
a senzala contra a casa-grande

cultura e no fenótipo dos brasileiros. Em comum entre os dois,


e praticamente entre todos os outros pensadores da época, o
fato de proclamarem a superioridade do branco e a prerrogativa
do modelo europeu na afirmação da nacionalidade brasileira. É
difícil indicar uma exceção indiscutível no panorama das teorias
surgidas na época. Manoel Bonfim, por exemplo, que se diferen-
ciava substancialmente de outros autores, como os citados, ainda
assim não deixava de proclamar sua crença na superioridade do
padrão europeu de cultura. (ver Ortiz, 1985; Sodré, 1999).

Em sentido semelhante ao de Romero, é bastante esclarecedor


o pensamento de Oliveira Viana (ver Skidmore, 1976; Munanga,
1999). Segundo esse autor, a importância numérica do elemento
foi suprimida pela miscigenação, que o fez diluir-se na popu-
lação na branca. Em suas palavras, “aqui o mulato, a começar
pela segunda geração quer ser branco, e o homem branco (com
rara exceção) acolhe-o, estima-o e aceita-o no seu meio” (apud
Skidmore, 1976: 90).

Na interessante percepção de Kabengele Munanga sobre as


afirmações de Viana, a mestiçagem cumpriu um papel decisivo
na desconstrução da identidade negra. “A elite ‘pensante’ do
país tinha clara consciência de que o processo de miscigenação,
ao anular a superioridade numérica do negro e ao alienar seus
descendentes mestiços graças à ideologia do branqueamento,
ia evitar os prováveis conflitos raciais conhecidos em outros paí-
ses”, ao mesmo tempo em que garantiria a liderança do país ao
segmento branco. (Munanga, 1999: 78. Grifo meu).

Esse processo é mostrado, de modo inequívoco, num quadro do


pintor espanhol Brocos y Gómez. O título do quadro é sugestivo:
Redenção de Cam. Ao contrário da tela As meninas, de Velásquez,
cujo rigor e inventismo formal intrigou toda a geração posterior de
intérpretes, e cujo entendimento talvez não tenha sido captado
plenamente nem mesmo por Foucault na sua conhecida descri-
ção do quadro, a de Brocos y Gómez implica uma menor distância
entre as palavras e as coisas, permite um entendimento mais
186 Poesia Revoltada

imediato e prático de sua “representação”. Foi o que fez o médico


e antropólogo físico João Batista de Lacerda.

No I Congresso Universal das Raças, realizado em agosto de 1911


na Universidade de Londres, João Batista de Lacerda, então dire-
tor do Museu Nacional, representou o Brasil na qualidade de dele-
gado oficial do governo brasileiro. Seu objetivo: “defender a tese
do branqueamento da raça através da mestiçagem, como forma
de resolver os conflitos e a questão racial brasileira” (Seyferth,
1985: 83). Esse esforço traduziu-se na publicação de um texto,
publicado como “Memória” apresentada ao referido Congresso e
intitulado Sur les Métis au Brésil.

No quadro, uma senhora negra, já idosa, olhando para o alto,


no rosto uma expressão que poderia ser de gratidão; sentados,
um casal – a mulher de pele escura, o homem de pele clara –,
no colo da mulher um bebê branco, de fenótipo indisfarçavel-
mente europeu. A legenda que o acompanha não deixa margem
a dúvidas: “Le nègre passant au blanc, à la troisième génération,
par l´effet du croisement des races”. Giralda Seyferth acha que
o quadro é mais significativo do que a própria explicitação da
teoria no texto da “Memória”. E mais importante que a previsão
nele contida seria a postura das personagens, em especial a
da senhora negra, e a ausência do avô materno. “O marido é
branco, seus ancestrais são dispensáveis. Ele não precisa legi-
timar a cor da sua pele; o que importa é a aparência, não os seus
ancestrais, uma vez que a suposição básica do branqueamento
é a superioridade dos genes brancos” (Seyferth, 1985: 87).

Aliando perspectivas teóricas contidas no pensamento de Gobi-


neau – que, apesar de seu racismo visceral, admitia a existência
de miscigenações positivas – com pressupostos do darwinismo
social, a partir dos quais tornava-se possível acreditar que se
poderia chegar à raça pura através da diversidade, João Batista
de Lacerda conseguiu formular uma teoria otimista, na ótica do
racismo, sobre o futuro da nação, uma vez que previa a inevitá-
vel extinção das raças não brancas mediante um processo de
O som negro do gueto: 187
a senzala contra a casa-grande
188 Poesia Revoltada

seleção sexual que, enfim, iria “purgar” os descendentes dos


mestiços dos seus traços negros. Desse modo, estipula em um
século o prazo para o desaparecimento do mestiço na população
brasileira e, nesse mesmo período, “prevê a extinção do negro
em razão de sua incapacidade de se assimilar à civilização”
(Seyferth, 1985: 93).

Até agora, nada indica que qualquer das previsões realizadas na


virada do século XIX para o XX venha a se realizar. Na passagem
do XX para XXI, depois de tudo isso, os rappers têm proclamado
com veemência uma identidade negra que parece ignorar, ou
antes contrariar, os discursos eugenistas do passado ou os que
celebravam a contribuição negra e o hibridismo da nação. Esse
segundo ponto de vista ganha fôlego na década 1930, a partir da
publicação de um clássico: Casa-grande & senzala.

Superando os traumas da formação mestiça da nação brasi-


leira, que imperaram nos anos anteriores, a partir dessa década
passa-se a uma concepção favorável desse aspecto, o que dará
origem a outros problemas, entre os quais o do mito da demo-
cracia racial.

Gilberto Freyre e a democracia racial

Já comentei que a idéia de Brasil como uma democracia racial


vem sofrendo sérios abalos desde a década de 50, quando foi
organizada a série de estudos sobre a questão racial no Brasil
patrocinada pela Unesco (cf. Maio, 1997). As comemorações pelo
centenário da Abolição, em 1988, também foram um relevante
marco representativo do questionamento a essa idéia de Brasil
(cf. Hanchard, 2001). Por minha vez, desejo incluir o rap – princi-
palmente aquele produzido a partir do início da década de 90 –
como uma das mais importantes formas de contestação do mito.

Mais recentemente, no final de 2001, houve uma importante


mudança nesse contexto. Com a fala do ministro da Justiça
José Gregori reconhecendo a existência de racismo no Brasil,
O som negro do gueto: 189
a senzala contra a casa-grande

em declaração oficial com vistas à III Conferência Mundial das


Nações Unidas Contra o Racismo, Discriminação Racial, Xeno-
fobia e Intolerância Correlata, o governo brasileiro, talvez pela
primeira vez na história, admite o que os movimentos negros no
Brasil já vinham denunciando há muito tempo: que a democra-
cia racial brasileira não corresponde a uma realidade absoluta.

Mesmo assim, não se deve desprezar a força de que goza esse


conceito na sociedade brasileira. Ele representa ainda a auto-
imagem através da qual o brasileiro passou a se ver após a Aboli-
ção (um período superior a um século, portanto), e que foi quase
sempre um motivo de orgulho, apesar de todas as contradições.
Como demonstra Marilena Chauí, “a força persuasiva dessa
representação transparece quando a vemos em ação, isto é,
quando resolve imaginariamente uma tensão real e produz uma
contradição que passa despercebida. É assim, por exemplo, que
alguém pode afirmar que os índios são ignorantes, os negros são
indolentes, os nordestinos são atrasados, os portugueses são
burros, as mulheres são naturalmente inferiores, mas, simultane-
amente, declarar que se orgulha de ser brasileiro porque somos
um povo sem preconceitos e uma nação nascida da mistura de
raças” (Chauí, 2000: 8).

Numa síntese bastante apurada, Kabengele Munanga explica


que o mito da democracia racial “exalta a idéia de convivência
harmoniosa entre os indivíduos de todas as camadas sociais e
grupos étnicos, permitindo às elites dominantes dissimular as
desigualdades e impedindo os membros das comunidades não-
brancas de terem consciência dos sutis mecanismos de exclusão
da qual são vítimas na sociedade”. Esse mito teria se aprofun-
dado de tal modo na sociedade brasileira que acabaria servindo
para encobrir os conflitos raciais. Assim, abriu espaço para que
todos se reconhecessem como brasileiros e, por outro lado, criou
empecilhos à tomada de consciência por parte das comunida-
des subalternas sobre suas características culturais, as quais,
segundo Munanga, poderiam ter contribuído para a construção e
expressão de uma identidade própria. (Munanga, 1999: 80).
190 Poesia Revoltada

Esse processo pode ser exemplificado por uma experiência


pessoal narrada pelo antropólogo Peter Fry. Nos Estados Uni-
dos, Fry teria descoberto, justamente quando pensava estar
apresentando uma iguaria tipicamente brasileira para amigos
afro-americanos nos EUA, que havia lá um prato semelhante,
chamado soul food, igualmente uma herança culinária de
um prato elaborado pelos escravos com as sobras do porco
desprezadas pelos seus senhores. A diferença é que lá, soul
food é símbolo da cultura negra americana. Aqui, a feijoada é
praticamente um símbolo nacional. Fry argumenta ainda que
também o samba e o candomblé “são, em grau maior ou menor,
utilizados como símbolos nacionais brasileiros e, como tal, exi-
bidos em cartazes e guias turísticos” (Fry, 1982: 47 et passim).
Essa indistinção ocasionou, por outro lado, a expropriação de
referenciais da negritude para a história da cultura branca, de
modo que heróis reconhecidos como negros em outros lugares,
passam por brancos no Brasil (cf. Hanchard, 2001).

Desse modo percebe-se que a democracia racial é limítrofe do


fenômeno conhecido por fábula das três raças. Para Roberto
DaMatta, esta foi a solução encontrada pela elite nacional, ainda
no século XIX, para justificar, racionalizar e legitimar as diferen-
ças internas do país uma vez concretizada a independência,
considerando-se que, agora, tornava-se urgente a invenção de
uma identidade para a nação que surgia.

A ideologia que sustentaria esse processo se daria, na opinião


do antropólogo, na forma da fábula das três raças, “uma ideolo-
gia que permite conciliar uma série de impulsos contraditórios
de nossa sociedade, sem que se crie um plano para sua trans-
formação profunda” (DaMatta, 1984: 68).

Entretanto, Renato Ortiz problematiza a terminologia proposta


pelo antropólogo, propondo em seu lugar a noção de mito. Em
Cultura brasileira e identidade nacional, Ortiz entende que o
conceito de mito sugere “um ponto de origem, um centro a
partir do qual se irradia a história mítica” (1985: 38). Se no pri-
O som negro do gueto: 191
a senzala contra a casa-grande

meiro momento, entre o final do século XIX e começo do XX, o


mito é considerado ambíguo, no segundo ele já pode se afirmar,
graças ao movimento realizado justamente por Gilberto Freyre.
Inicialmente, devido às dificuldades próprias a um período de
transição, a afirmação da nacionalidade esbarrava nas teorias
racistas ou racializadas que, no mínimo, desconfiavam da mes-
tiçagem. Nas palavras de Ortiz, isso implicava obstáculos con-
cretos que impediam o mito das três raças de se ritualizar, por-
que as condições materiais para a sua afirmação eram apenas
simbólicas. Nesse momento “ele é linguagem e não celebração”
(Ortiz, 1985: 39).

Já a partir dos anos 30, sobretudo com a publicação de Casa-


grande & senzala, acontece um importante deslocamento nessa
situação. Com a passagem da noção de raça para a de cultura
(graças à influência do culturalismo de Franz Boas), através da
qual passa a ver “o negro e o mulato no seu justo valor – sepa-
rados dos traços de raça os efeitos do ambiente ou da experi-
ência cultural” (Freyre apud Araújo, 1994: 27), Freyre rompe com
o racismo que permeava o pensamento de cunho sociológico
anterior e consagra-se como aquele que irá recuperar aspec-
tos positivos e importantes da mestiçagem para o processo de
formação do Brasil (Ortiz, 1985: 40 et passim; Araújo, 1994: 28).
“O mito das três raças torna-se então plausível e pode se atuali-
zar como ritual. A ideologia da mestiçagem, que estava aprisio-
nada nas ambigüidades das teorias racistas, ao ser reelaborada
pode difundir-se socialmente e se tornar senso comum, ritu-
almente celebrado nas relações do cotidiano, ou nos grandes
eventos como o carnaval e o futebol. O que era mestiço torna-se
nacional” (Ortiz, 1985: 41).

De qualquer modo, as análises de Ortiz e DaMatta confluem num


ponto básico. Fábula ou mito, a construção da origem nacional
baseada na união das três raças se constituiu “na mais poderosa
força cultural do Brasil, permitindo pensar o país, integrar ide-
almente sua sociedade e individualizar sua cultura” (DaMatta,
192 Poesia Revoltada

1984: 68). Essa força continuou a atuar até os dias de hoje. A


despeito dos movimentos em sentido contrário, é perceptível o
mal-estar que esse debate ainda provoca.

Em Casa-grande & senzala, Gilberto Freyre demarcou a esfera


em que o tema da identidade brasileira passaria a se desdobrar
a partir da publicação do livro, em 1933. Uma idéia central para
a elaboração do entendimento do Brasil contido em sua obra
será a de equilíbrio de antagonismos. Freyre indica, já antes do
início da colonização, a presença de distintas forças culturais
– “a européia e a africana, a católica e a maometana, a dinâ-
mica e a fatalista” – agindo sobre o português e “fazendo dele,
de sua vida, de sua moral, de sua economia, de sua arte um
regime de influências que se alternam, se equilibram ou se hos-
tilizam” (Freyre, 1992: 82). Trata-se de um dualismo de cultura
e de raças que será um antecedente importante da própria for-
mação brasileira, garantindo-lhe a plasticidade, a flexibilidade,
o equilíbrio, a indefinição; características sempre referenciadas
por Freyre no tocante à sociedade brasileira, desde o início equi-
librada sobre antagonismos, desarmonias. (Freyre, 1992: 82).

Até mesmo o título de dois de seus principais livros – Casa-


grande & senzala e Sobrados & mucambos –, como argutamente
percebeu Elide Rugai Bastos, denotam uma dicotomia em que de
um lado a casa-grande e o sobrado simbolizariam a dominação;
de outro a senzala e o mucambo representariam subordinação;
e finalmente a conjunção “&” entre as palavras, designaria a
interpenetração de ambos (Bastos, 2000). Daí, chega-se a uma
importante sugestão de Gilberto Freyre: a de que no Brasil os
extremos tendem à confraternização, à conciliação. Este seria
um traço especialíssimo da formação brasileira, e não à toa
está referido ao longo de praticamente toda a obra Casa-grande
& senzala: “Somos duas metades confraternizantes que se vêm
mutuamente enriquecendo de valores e experiências diversas,
quando nos completarmos num todo não será com o sacrifício
de um elemento ao outro” (Freyre, 1992: 390).
O som negro do gueto: 193
a senzala contra a casa-grande

Sem deixar de reconhecer as contradições inerentes à sua pró-


pria formulação, Freyre postula uma certa excepcionalidade4 das
relações sociais e raciais no país, centrada na mencionada con-
fraternização, que terá uma poderosa ingerência sobre pratica-
mente toda a reflexão a respeito desse problema (o das relações
sociais e raciais), até os dias de hoje. Nas suas palavras: “Sem
que no Brasil se verifique perfeita intercomunicação entre seus
extremos de cultura – ainda antagônicos e por vezes até explo-
sivos, chocando-se em conflitos intensamente dramáticos como
o de Canudos – ainda assim podemos nos felicitar de um ajus-
tamento de tradições e de tendências raro entre os povos for-
mados nas mesmas circunstâncias imperialistas de colonização
moderna dos trópicos”. Em suma, o contato entre o conquistador
e o indígena jamais implicou, sob a ótica do autor, a antipatia ou
o ódio tão evidentes nos países de colonização anglo-saxônica e
protestante (Freyre, 1992: 226).

Isso porque, aqui no Brasil, essas relações foram suaviza-


das pelo “óleo lúbrico da profunda miscigenação, quer a livre
e danada, quer a regular e cristã sob a bênção dos padres e
pelo incitamento da Igreja e do Estado” (Freyre, 1992: 226).
A excepcionalidade racial do Brasil em face das outras nações
americanas – embora Hasenbalg (1996: 235) explique que, na
verdade, essa suposta excepcionalidade possa ser reivindicada
por diversos países da América Latina – consistiu na pedra de
toque da teoria de Freyre, pois foi o que permitiu definir a sin-
gularidade brasileira em meio às outras nações, superando o
trauma da mestiçagem.

Esse delicado equilíbrio de antagonismos é que permitirá a


Freyre caracterizar a sociedade brasileira como mestiça, resul-
tado do cruzamento de raças, culturas, costumes em favor
da consolidação de uma idéia de nação que não conseguia se
resolver, já em princípios do século XX, devido ao peso que o

4 Carlos Hasembalg tece uma série de questionamentos a esse respeito


(ver Hasembalg, 1996).
194
195
196 Poesia Revoltada

pensamento pessimista sobre a mestiçagem racial tinha na


discussão. Esse é, sem dúvida, um grande mérito do trabalho
de Gilberto Freyre. “Reconhecendo o valor da influência dos
negros e dos índios, a reflexão desenvolvida por Gilberto parecia
lançar, finalmente, as bases de uma verdadeira identidade cole-
tiva, capaz de estimular a criação de um inédito sentimento de
comunidade pela explicitação de laços, até então insuspeitos,
entre os diferentes grupos que compunham a nação” (Araújo,
1994: 30).

Até então, prevaleciam os rigores pseudo-cientificistas já men-


cionados páginas atrás. Sobretudo se levarmos em considera-
ção que nessa época ainda havia quem acreditasse em medição
de crânio como método de avaliação racial, o que Freyre con-
traria: “Aliás na inferioridade ou superioridade de raças pelo
critério da forma do crânio já não se acredita; e esse descrédito
leva atrás de si mesmo muito do que pareceu ser científico
nas pretensões de superioridade mental, inata e hereditária,
dos brancos sobre os negros” (Freyre, 1992: 353). No entanto,
a questão não é tão simples quanto parece. As contradições a
que me referi um pouco acima – entre os extremos antagônicos
de cultura e a sua suavização através do processo de miscige-
nação – não constituem um aspecto episódico de Casa-grande
& senzala, mas participam, intrinsecamente, da obra em seu
todo. Por isso, Hermano Vianna salientava no livro as passagens
que poderiam constar do “panfleto mais furioso que pretenda
refutar o tal mito da democracia racial” (Vianna, 2000: 21).

Realmente, é possível encontrar desde o prefácio cenas de


“senhores mandando queimar vivas, em fornalhas de engenho,
escravas prenhes, as crianças estourando ao calor das cha-
mas”, até a denúncia da “sifilização do Brasil” pelos portugue-
ses, recorrente em várias páginas do livro. E isso sem contar
os casos em que as senhoras, e não os senhores, cometem as
violências: “Não são dois nem três, porém muitos os casos de
O som negro do gueto: 197
a senzala contra a casa-grande

crueldade de senhoras de engenho contra escravos inermes”


(Freyre, 1992: 392-93).

Pode-se dizer que o centro aglutinador dessas tensões seja o


patriarcalismo, a força centralizadora do senhor, a unir em torno
de si, autoritariamente, as várias pontas desses extremos. Ricardo
Benzaquen de Araújo destaca o patriarcalismo como uma das
categorias que recebem maior destaque em Casa-grande & sen-
zala. Ela nos remeteria “ao ideal de uma família extensa e híbrida
[...], na qual senhoras e escravas, herdeiros legítimos e ilegítimos
convivem sob a luz ambígua da intimidade e da violência, da dis-
ponibilidade e da confraternização” (Araújo, 1994: 54). Vale res-
saltar, no entanto, que o entendimento da mestiçagem, conforme
a interpretação de Freyre, impõe mais incertezas e ambigüidades
que a mera afirmação do caráter harmônico das relações entre
senhores e escravos no Brasil colonial nos fazia crer.

Nada em Casa-grande & senzala parece restringir-se a um único


aspecto, a apenas o seu lado positivo ou negativo. As disparidades
concorrem para acentuar a extrema heterogeneidade da forma-
ção da sociedade brasileira. Freyre parece mesmo fazer questão
dessa complementaridade de antagonismos. Chegava mesmo a
sugerir que, a despeito de ainda haver um enorme vácuo entre os
dois extremos de cultura, em nenhum outro lugar, fora o Brasil,
se verificaria “igual liberalidade com o encontro, a intercomuni-
cação e até a fusão harmoniosa de tradições diversas, ou antes,
antagônicas, de cultura, como no Brasil” (Freyre, 1992: 123).

Entretanto, Araújo compreende a miscigenação em Casa-grande


& senzala como um processo em que as identidades envolvidas
não se dissolvem, não dão lugar a uma nova figura. Com isso,
o mestiço se afirmaria como alguém que preserva a “indelével
lembrança das diferenças presentes na sua gestação (Araújo,
1994: 44). Porém, nessa forma mosaical proposta pelo autor
há peças que, a meu ver, não se encaixam perfeitamente. As
propriedades singulares de cada povo que formou o cadinho
198 Poesia Revoltada

brasileiro podem não ter desaparecido, mas se dissolveram ine-


vitavelmente no processo de hibridização.

No Brasil a política da miscigenação sempre se desenvolveu em


busca de uma essência brasileira, com prejuízo de outras iden-
tidades que se diluíam em meio à consolidação da identidade
nacional por excelência. Já vimos o que se pensava a respeito
na passagem do século XIX para o XX. Posteriormente, Freyre
vai elevar o nível da conversa, reconhecendo o valor do negro e
do índio. Mesmo assim, quando vislumbrava o futuro da Nação,
mostrava-se satisfeito em perceber que “os negros estão agora
desaparecendo rapidamente do Brasil, fundindo-se com os
brancos e com os ameríndios e constituindo-se numerosa popu-
lação de ‘morenos’” (Freyre, 2001: 139).

Por isso, não estou inteiramente de acordo com Ricardo Benza-


quen de Araújo, quando a certa altura afirma: “diferença, hibri-
dismo, ambigüidade e indefinição: parecem ser estas as princi-
pais conseqüências da idéia de miscigenação utilizada em CGS”
(Araújo, 1994: 46). Com relação à ambigüidade e à indefinição, sua
análise não poderia ter sido mais precisa; entretanto desconfio do
item diferença, até porque, como reconhece Araújo, essas carac-
terísticas não implicam qualquer diminuição ou perda para Por-
tugal, vale dizer para o branco dominante. Creio que a diferença
só tinha valor na medida em que referendava a capacidade do
homem branco de dominar os antagonismos em si próprio – uma
vez que Freyre vê o português desde antes da expansão colonial
como meio-termo entre Europa e África – e subjugar uma reali-
dade pontuada de extremos opostos (Freyre, 2001: 140).

Não há, como vimos, espaço na teorização de Freyre para as mani-


festações de diferenças disruptivas, que provocassem ruídos no
equilíbrio de antagonismos que formou o amálgama nacional.
Mesmo as descrições de violência e crueldade entram como um
senão no contexto mais geral de harmonização dos contrários
que, segundo Freyre, prevaleceu na construção da nação bra-
sileira. Na sua preferência por títulos duplos – Casa-grande &
O som negro do gueto: 199
a senzala contra a casa-grande

senzala, Sobrados & mucambos ou o nunca concluído Jazigos &


covas rasas – não houve como encaixar o quilombo, que talvez
constituísse uma iniciativa não brasileira da parte dos africanos
escravizados no Brasil.

Cabe perguntar: isso significa que Freyre tenha, como sugerem


muitos críticos, diagnosticado nossa situação colonial como uma
representação paradisíaca? Sobre este ponto, ele é bastante
ambíguo. Ao comentar passagem de Oliveira Lima em que este
afirma o caráter promissor da solução brasileira para a questão
racial, Freyre se mostrará consciente de não ser o Brasil nenhum
paraíso. Mas, “quanto às relações raciais, a situação brasileira
provavelmente é a que mais se aproxima daquilo que se imagine
como um paraíso nesse setor” (Freyre, 2001: 42).

A questão da democracia racial de Freyre seria, então, fruto


de interpretações equivocadas. Segundo Ricardo Benzaquén
de Araújo e Hermano Vianna, essa responsabilidade teria sido
injustamente depositada na conta de Gilberto Freyre. Porém, os
autores não indicam quem exatamente teria feito o depósito. O
sujeito dessa oração continua indefinido, embora se saiba que
a discussão ganhou fôlego a partir da publicação dos traba-
lhos dos sociólogos que integraram o chamado grupo da USP,
sobretudo Florestan Fernandes (cf. Guimarães, 1999), do qual
participava Fernando Henrique Cardoso, que foi presidente do
país entre 1994 e 2002.

Muitos textos que tematizam esse assunto, quando falam em


democracia racial, vinculam-na à figura de Freyre, mas não
informam onde colheram a informação. Michael Hanchard, por
exemplo, abre o capítulo 3 de seu livro, intitulado precisamente
“Democracia racial”, com uma longa citação de Casa-grande &
senzala, na qual Freyre aborda o caráter confraternizante do
português. Daí, Hanchard conclui que “a variante brasileira [da
excepcionalidade racial], pontuada pelo mito da democracia
racial, aparece em sua forma mais elaborada em Casa-grande
& senzala, Sobrados & mucambos e outros trabalhos de Freyre”.
200 Poesia Revoltada

Neste capítulo, o autor determina três tarefas para si, entre as quais
realizar: “uma leitura crítica da elaboração do mito da democracia
racial por Gilberto Freyre” (Hanchard, 2001: 61-62). Entretanto, o
autor não fornece uma única linha em que Freyre tenha utilizado
as palavras que dão nome ao mito. A que mais se aproxima fala
em democracia social (Freyre apud Hanchard, 2001: 71. Grifo meu).
Ao que parece, Hanchard interpretou as palavras de Freyre
segundo o entendimento mais comum, o de que social aqui é
sinônimo de racial.

O fato é que praticamente toda a crítica refere a formulação


do conceito de democracia racial inevitavelmente à obra de
Gilberto Freyre, notadamente Casa-grande & senzala. Contudo,
não há neste livro – e tudo indica que em nenhum outro do autor
– nenhuma página onde apareça ipsis litteris o termo “demo-
cracia racial”. É possível então que o polêmico conceito tenha
aparecido menos em decorrência das afirmações do autor, que
mais parecia evitá-lo, que das inúmeras interpretações da sua
obra. É forçoso concordar com o antropólogo Hermano Vianna,
para quem a atribuição a Freyre pela criação do mito deve-se a
leituras apressadas de Casa-grande & senzala (Vianna, 2000).

Em um texto apresentado à ANPOCS em 2001, Antônio Sérgio


Guimarães parte da produção jornalística e acadêmica de inte-
lectuais pioneiros no estudo das “relações raciais” para traçar a
“cronologia de cunhagem do termo ‘democracia racial’”. Segundo
o autor, tudo indica que a expressão foi usada pela primeira vez
por Roger Bastide. Num artigo publicado no Diário de São Paulo
no dia 31 de março de 1944, Bastide refere-se a uma visita que
teria feito a Freyre pouco antes, em Apipucos, narrando sua visão
da mistura de raças no interior do bonde onde viajava de regresso
para a cidade: “isso constituía uma bela imagem da democracia
social e racial que Recife me oferecia [...], na passagem crepus-
cular do arrabalde pernambucano” (Bastide apud Guimarães,
2001: 6. Grifo do autor).
O som negro do gueto: 201
a senzala contra a casa-grande

Guimarães localiza também o primeiro uso do termo na litera-


tura acadêmica especializada: em 1952, na introdução ao pri-
meiro volume de uma série de estudos sobre relações raciais no
Brasil, patrocinados pela Unesco, Wagley escreveria que “o Bra-
sil é renomado mundialmente por sua democracia racial” (apud
Guimarães, 2001: 2). Nessa data, ao que parece, o conceito já
desfrutava de uma forte difusão. Seu uso era importante sobre-
tudo porque se contrapunha, na esfera política, à ascensão do
nazi-fascismo na Europa, cuja repercussão chegava também ao
Brasil. Coincidentemente ou não, este é também o momento em
que o conceito começa a receber as primeiras críticas.

Freyre, ainda de acordo com Guimarães, só virá a utilizar a expres-


são em 1962, no bojo da construção do luso-tropicalismo como
teoria para a análise da realidade brasileira. Freyre desfere um ata-
que ao espaço que os negros brasileiros vinham cedendo à idéia de
negritude, esboçada no circuito África-Caribe por Leopold Senghor,
Aimé Césaire, Franz Fanon entre outros. Dirá Freyre que, sendo ele
um “adepto da ‘vária cor’ camoneana”, não poderá admitir nem a
mística da negritude nem o mito da branquitude: “dois extremos
sectários que encontrariam a já brasileiríssima prática da demo-
cracia racial através da mestiçagem” (apud Guimarães, 2001: 12.
Grifo meu).

Mais adiante, na década de 60, Florestan Fernandes vai conce-


ber a idéia de democracia racial como um mito, num contexto
em que a democracia, no seu sentido mais abrangente, estava
sendo duramente cerceada. Em 1964, como anotou Guimarães,
amadurecia a idéia de que a democracia racial não era mais
um projeto ou um ideal a se concretizar (Guimarães, 2001: 13).
“As circunstâncias histórico-sociais apontadas fizeram com
que o mito da ‘democracia racial’ surgisse e fosse manipulado
como conexão dinâmica dos mecanismos societários de defesa
dissimulada de atitudes, comportamentos e ideais ‘aristocrá-
ticos’ da ‘raça dominante’. Para que sucedesse o inverso, seria
preciso que ele caísse nas mãos dos negros e dos mulatos; e
202

que estes desfrutassem de autonomia social equivalente para


explorá-lo na direção contrária, em vista de seus próprios fins,
como um fator de democratização da riqueza, da cultura e do
poder” (Fernandes apud Guimarães, 2001: 14).

Com isso, rompia-se o pacto vigente entre 1945 e 1964, que


incluía os negros, seja como movimento organizado, seja como
elemento fundador da nação. A partir do golpe militar, junto com
os direitos civis parece ter desaparecido também a crença na
“democracia racial”. De agora em diante, lembrariam dela como
um mito. De certo modo, um engodo a ser rejeitado definitiva-
mente. Mas de outro, como preferiria Peter Fry (e Antônio Sérgio
Guimarães também), como uma chave importante para a com-
preensão da sociedade brasileira.

Sem poder ser inteiramente responsabilizado pelo “mito” – na


verdade, ele talvez tenha nascido de uma conjunção de fato-
res protagonizada sobretudo pelos autores citados aqui (Bas-
tide, Wagler, Florestan) –, e sem ter propriamente cunhado a
expressão,5 Freyre não deixa de colaborar para a sua legitima-
ção. Não é por acaso que ele faz pouco do termo enquanto a sua
evidência permanece de certo modo consensual na sociedade,
mas recorre a ele imediatamente quando a situação se polariza
na África e a idéia de “negritude” ganha espaço no Brasil (Gui-
marães, 2001: 13).

A meu ver, com toda consideração pela profundidade e alcance


da obra de Gilberto Freyre, o Brasil da democracia racial é um
pouco o efeito de sua reflexão e também de sua imaginação. Hoje,
os antagonismos brasílicos vêm-se equilibrando cada vez mais
precariamente. E a urbanização talvez tenha afastado demais
as casas-grandes das novas senzalas, as quais vão ganhando
cada vez mais os contornos de quilombos – lugares também de
resistência e conflito, não mais apenas de interpenetração.

5 Guimarães lembra que Freyre era até avesso a ela, “posto que evocava uma con-
tradição em seus termos (as raças são grupos de descendência e portanto fecha-
dos, ao contrário da democracia que ele, Freyre, pregava)” (Guimarães, 2001: 12).
203
204 Poesia Revoltada

A voz cordial

Ao lado da democracia racial, outro conceito procura dar conta


da especificidade do Brasil: o de cordialidade. Curiosamente, a
expressão proposta por Sérgio Buarque de Holanda foi, desde
o início, mal interpretada; e o uso mais corrente do termo hoje
remete justamente às interpretações equivocadas, passando
por cima de seu sentido original. Em Raízes do Brasil, Sérgio
Buarque preconizou que a cordialidade seria a nossa contri-
buição para a civilização: “daremos ao mundo o homem cordial”
(1995: 146). Essa expressão – que na verdade diz respeito à
indistinção entre as esferas pública e privada que caracteri-
zaria nossa formação social – continua rendendo confusões,
sempre entendida como sinônimo de bondade.

Não vou me deter muito neste debate. Para quem desejar se


aprofundar mais indico a leitura de Literatura e cordialidade, de
João César de Castro Rocha. Ali veremos que a acepção cotidiana
da cordialidade, que é a mais freqüente, tem muito a ver com a
visão de Gilberto Freyre, que associava a sociabilidade brasileira
à miscigenação. Em Sobrados & mucambos, Freyre afirmava que
“a simpatia à brasileira transforma esse rito como já dissemos
essencialmente apolíneo de amizades entre homens em expan-
são caracteristicamente brasileira, dionisiacamente mulata, de
cordialidade” (apud Castro Rocha, 1999: 164).

Por esse viés, a idéia de cordialidade é instantaneamente assi-


milada à de democracia racial, dando origem a uma espécie de
par explicativo de nossa singularidade de nação: o Brasil cor-
dial, terra da democracia racial. Isso me parece ficar claro, por
exemplo, em um texto como o de Joel Rufino dos Santos, que
num capítulo de seu livro O que é racismo? (Santos, 1984: 42)
convida “as pessoas que ainda crêem na ‘democracia racial bra-
sileira’, ‘na cordialidade inata do brasileiro’, e balelas que tais, a
prestarem um pouco mais de atenção à sua volta”. Passa daí à
citação de casos de tortura e racismo denunciados nos jornais.
O som negro do gueto: 205
a senzala contra a casa-grande

O mesmo pode ser identificado num texto de Muniz Sodré, onde


argumenta que “a obra de Gilberto Freyre atrai os que não duvidam
da democracia racial nem de sua cordialidade idiossincrática”
(Sodré, 1999: 104); ou numa passagem em que Roberto DaMatta
coloca o termo ao lado da questão das três raças, criando um
plano em que a hierarquização e o conflito na sociedade brasi-
leira são contrapostos por esta questão, que uniria “a sociedade
num plano biológico e natural, domínio unitário, prolongado nos
ritos de umbanda, na cordialidade, no carnaval, na beleza da
mulher (e da mulata) e na música...” (DaMatta, 1984: 70).

Certamente, é à noção descrita por João César de Castro Rocha


– à acepção de base freyreana – que se referem aqueles que
duvidam desse caráter cordial de nossas relações sociais.
Como cordialidade remete, etimologicamente, àquilo que vem
do coração, é natural que se associe esse conceito a aspectos
positivos como bondade, afetividade, gentileza. E também que
se insista no fato de que o brasileiro já nada tem de cordial.

Mesmo assim, é impressionante a força, a quase unanimidade


que essas noções acabaram adquirindo numa nação que abriga
a segunda maior população negra do mundo (atrás apenas da
Nigéria). Isso, a meu ver, começa a mudar radicalmente com a
popularidade do rap, notadamente do grupo Racionais MCs,
uma vez que estabelece com a sociedade uma relação mais
densa e mais tensa do que os movimentos negros até aqui pude-
ram lograr, trazendo para a arena das manifestações culturais
populares um conteúdo, digamos, hostil e menos esperável
por parte dos entusiastas do Brasil miscigenado. Creio mesmo
que Gilberto Freyre talvez entendesse que os rappers têm uma
forma não-brasileira de expressar-se culturalmente.

A identificação pela imprensa e setores da intelectualidade da


crescente hostilidade, inclusive a proveniente do discurso rapper,
contrapõe-se não à cordialidade como proposta por Holanda,
mas àquela oriunda da obra de Freyre ou, mais amplamente, das
interpretações do senso comum.
206 Poesia Revoltada

Pode-se até discutir se a cordialidade ainda dá o tom de nossas


relações sociais. Mas, sem dúvida, há pelo menos duas décadas
é perceptível a radicalização da hostilidade no ambiente urbano
contemporâneo. Embora esse não seja um fenômeno novo, ele
autoriza, ao lado dos textos preferentemente celebrativos, uma
leitura a contrapelo, mais duramente crítica, do legado de Gil-
berto Freyre. Para Muniz Sodré, por exemplo, as críticas que lhe
são dirigidas têm fundamento na medida em que sua obra se
apresenta como um manancial de fórmulas conciliatórias e, por
outro lado, porque a síntese cultural levada a cabo pela mestiça-
gem não foi capaz de erradicar o racismo. Segundo esse ponto
de vista, “conciliação e síntese são caminhos da discriminação
que não se assumem como estereótipos de dominação” (Sodré,
1999: 104).

A meu ver, o resultado das tentativas de formação – e, às vezes,


de imposição, como salienta Sodré – de uma identidade brasi-
leira baseada na miscigenação teve como resultado uma situa-
ção na qual o indivíduo até reconhece o que ele não é, nem pode
vir a ser: “branco”. Mas ele também sabe o que, definitivamente,
não quer ser. E, diante não apenas do que se pode ler em obras
acadêmicas mas também do que se pode observar nas relações
sociais cotidianas, o que ele não quer ser é “negro”. Ao assumir
e promover a identidade racial negra, os rappers dão início a um
processo de auto-definição que pode ser tão produtivo quanto
positivo. Afinal, os artistas do mundo hip-hop já são racializados
de antemão. O processo de racialização é dado sempre de fora;
é o olhar do outro que define, rotula e, às vezes, estigmatiza. Os
rappers, por sua vez, trabalham essa questão em outro pata-
mar: o da afirmação positiva da condição racial e, por extensão,
territorial, valorizando a identidade negra e favelada.

Desde já, quero deixar claro: não acredito que virar pelo avesso o
traço negativo que marca a racialização das relações possa repre-
sentar uma solução definitiva e permanente. Estou tentando dizer
que, num país que se julga imune a tensões de natureza racial,
O som negro do gueto: 207
a senzala contra a casa-grande

todos os problemas que os negros e outras etnias vivem se devem,


conseqüentemente, a razões sociais, não raciais. Como, na minha
opinião, os problemas raciais existem de fato, pergunto-me: como
superar esta situação se se parte do pressuposto de que não há
racismo, nem raças!, e que no Brasil é tudo misturado e harmô-
nico? Acho que esse é o papel determinante que os rappers estão
cumprindo, o de exibir a ferida. A partir do rap podemos discutir
as coisas como elas são. Não biologicamente, é claro, mas social-
mente há negros, há brancos (como notou Hermano Vianna) e a
relação não é nada cordial.6 Neste momento, então, as possibi-
lidades concretas de diferenciação passam a apresentar uma
perspectiva melhorada, mais abrangente. O indivíduo agora acha
um espaço mais confortável para ser negro e, mais importante,
pode escolher ser negro.

6 Já mencionei haver manifestações anteriores na história cultural brasileira


que realizam um movimento semelhante. Entretanto, a ênfase que o rap coloca
na questão racial e, sobretudo, a insistência na desconstrução do “mito da demo-
cracia racial” me parecem realmente informações novas trazidas pela música rap.
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Imagens:
índice e créditos

PÁG.18 MV BILL, em uma edição do Conexões Urbanas, evento


promovido pelo Grupo Cultural AfroReggae em favelas
do Rio de Janeiro. Foto: Ierê Ferreira/ arquivo AfroReggae.
PÁG.19 PUBLIC ENEMY, Fear of a Black Planet (1990). Capa do CD.
PÁG.27 PUBLIC ENEMY, ingresso para show. São Paulo, 1991.
PÁG.30 AFRIKA BAMBAATAA, ilustração a partir de foto.
PÁG.35 DMN, H.Aço (1999). Capa do CD (detalhe).
PÁG.41 VIELA 17, SNJ, APOCALIPSE 16, entre outros.
Montagem capas de CD. (arquivo pessoal)
PÁG.48 DUIN, grafiteiro da Santa Crew (crew de Santa Teresa,
no Rio de Janeiro). Foto: Ierê Ferreira/arquivo AfroReggae.
PÁG.49 AIRÁ, O CRESPO. Grafiteiro carioca.
PÁG.53 OS GÊMEOS. Graffiti (detalhe). Vigário Geral, Rio de Janeiro.
Foto: Ierê Ferreira/ arquivo AfroReggae).
PÁG.60 DUGHETTU, grupo carioca. Foto: arquivo pessoal/
Oficina de Fotografia do grupo Spetaculu.
PÁG.71 THAÍDE E DJ HUM. Preste Atenção (1996). Detalhe do
encarte do CD. Foto: JC Santos.
PÁG.80 RAPPIN HOOD. Foto: arquivo F&A.
PÁG.87 JORGE LUCIANO, B.Boy.
Foto: Ierê Ferreira/ arquivo AfroReggae).
PÁG.92 DJ TR, da Cidade de Deus, Rio de Janeiro. Já atuou ao lado
do rapper MV Bill (a quem considera o principal responsável
por sua iniciação no movimento). Foi coordenador da ATCON
(Associação Atitude Consciente). É membro da Zulu Nation
Brasil e autor de Acorda Hip-hop! - Despertando um
Movimento em Transformação (publicado na mesma coleção
em que saiu este livro). Também foi Pesquisador do Projeto
“Geração Hip-hop” (SESC-RJ/ FINEP) e Educador Social.
(Arquivo LUB – Liga Urbana de Basquete).
PÁG.93 DEF YURI, rapeador, compositor, colunista, produtor e
ativista da cultura hip-hop, desenvolveu trabalhos no projeto
Coalizão Social e na ONG Viva Rio, com foco em arte, cultura,
segurança pública, direitos humanos, justiça social, rede de
participação cidadã, prevenção à violência, comunicação e
campanhas temáticas como “Hip-hop na linha de frente
contra o tabaco” e “Aliança hip-hop pelo sim”. Em 2005, atuou
em Porto Príncipe, Haiti, como consultor do programa de
desarmamento, desmobilização e reinserção da ONU.
Foto: Arquivo pessoal.
PÁG.102 DJ KL JAY, Racionais MCs.
Foto: Ierê Ferreira/ arquivo Afro-Reggae.
PÁG.114 ATITUDE FEMININA, grupo de rap brasiliense.
Foto: Welber de Souza.
PÁG.116 GOG, rapper brasiliense no evento de lançamento do
CD Hip-Hop pelo Rio. Foto: Ierê Ferreira/ arquivo AfroReggae.
PÁG.119 MANO BROWN, Racionais MCs.
Foto: Ierê Ferreira/ arquivo AfroReggae.
PÁG.123 DJ KL JAY, KL Jay na Batida, Equilíbrio (2002).
Detalhe do encarte do CD.
PÁG.132 DJ RAFFA, um dos principais produtores de rap do
Brasil. Filho do maestro Cláudio Santoro, Raffa começou
no hip-hop como b-boy. Integrou o grupo Os Magrellos.
Tornou-se engenheiro de som, produtor e uma grande
referência da cultura hip-hop no país.
Foto:Márcio Motokane.
PÁG.133 JAPÃO, rapper do grupo Viela 17, Brasília.
Foto: Márcio Motokane.
PÁG.138 DMN, H.Aço (1999). Detalhe do encarte do CD.
PÁG.151 GOG, rapper. Foto: Jandir Ribeiro.
PÁG.156 MV BILL, apresentação no Conexões Urbanas, evento
promovido pelo Grupo Cultural Afro Reggae em favelas
do Rio de Janeiro. Foto: Ierê Ferreira/ arquivo AfroReggae.
PÁG.167 CÂMBIO NEGRO, grupo de rap brasiliense. Capa do CD
Câmbio Negro (1998).
PÁG.174 BATUQUE NO GUETO, Bragga. Grafite (detalhe).
Favela Furquim Mendes, em Vigário Geral,
Rio de Janeiro. Foto: Ierê Ferreira/ arquivo AfroReggae.
PÁG.182 RACIONAIS MCs, Sobrevivendo no Inferno (1998).
Capa CD (detalhe).
219

PÁG.187 REDENÇÃO DE CAM, Brocos y Gómez (1895).


Óleo sobre tela (reprodução).
PÁG.194 NEGA GIZZA, Cidade de Deus.
Foto: Ierê Ferreira/ arquivo Afro Reggae.
PÁG.195 GOG. Foto: Jandir Ribeiro.
PÁG.203 CELSO ATHAYDE, produtor e empresário de hip-hop,
coordenador da Central Única de Favelas - CUFA, recebendo
o Prêmio Orilaxé (categoria Direitos Humanos), do AfroReggae,
em 2006. Foto: Rogério Resende.
PÁG.208 MANO BROWN, Racionais MCs. Foto: Ierê Ferreira.
220
221
Sobre
o autor
Nascido no bairro de Olaria, subúrbio carioca, Ecio Salles é mes-
tre em Literatura Brasileira pela UFF. Sua dissertação abordou
a produção textual da cultura hip-hop no Brasil. Foi coordena-
dor de Pesquisa e Conteúdo do grupo artístico Afro Samba, do
Grupo Cultural Afro Reggae; hoje, integra o Conselho Editorial
da revista do grupo, a Conexões Urbanas. Atualmente, é douto-
rando em Comunicação e Cultura pela ECO-UFRJ.
Este livro foi composto em Akkurat.
O papel utilizado para o miolo foi o Pólen Bold 90g/m2.
Para capa o papel é o Supremo Alta Alvura 250 g/m2.

A impressão e o acabamento foram feitos pela gráfica


Imprinta Express LTDA. em novembro de 2007, no Rio de Janeiro.

Todos os recursos foram empenhados para identificar e obter as


autorizações dos fotógrafos e seus retratados. Qualquer falha
nesta obtenção terá ocorrido por total desinformação ou por erro
de identificação do próprio contato. A editora está à disposição
para corrigir e conceder os créditos aos verdadeiros titulares.

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