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Poesia Revoltada - Ecio Salles
Poesia Revoltada - Ecio Salles
Poesia Revoltada
Ecio Salles
Patrocínio Apoio
Copyright © 2007 Ecio Salles
COLEÇÃO TRAMAS URBANAS
curadoria
HELOISA BUARQUE DE HOLLANDA
consultoria
ECIO SALLES
projeto gráfico
CUBÍCULO
POESIA REVOLTADA
produção editorial
LARISSA DE MORAES e ROBSON CÂMARA
revisão
BRUNO DORIGATTI
revisão tipográfica
BRUNO DORIGATTI
S163p
Salles, Ecio de
Poesia revoltada / Ecio Salles. - Rio de Janeiro: Aeroplano, 2007.
il.;.-(Tramas urbanas; 3)
Anexo
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-7820-000-8
1. Hip-hop (Cultura popular jovem) - Brasil. 2. Rap (Música) -
Aspectos sociais - Brasil. 3. Música e juventude - Aspectos sociais -
Brasil. 4. Poesia de protesto. 5. Movimento da juventude. I. Título. II.
Série.
11 Apresentação — DJ Raffa
13 Prefácio — Omar Salomão
19 Preâmbulo
O rap não é – nem será em sua forma atual – uma cultura de elite,
seja ela dominante ou pensante. Mas é, isto sim, uma forma válida
de manifestação cultural que, como todas as outras, tem sua “elite”,
formada por seus expoentes, seus melhores artistas e seguidores.
No entanto continua, mesmo depois de três décadas, a mais eru-
dita das expressões populares. Pelo preconceito da sociedade e
pela fraca exposição na mídia, fica restrita a poucos. E sua pecu-
liaridade reside aí: ele é ao mesmo tempo popular e erudito.
11
Contra essa corrente, temos rappers se valendo da palavra e de
sua voz como arma que fala pela favela, buscando no passado
brasileiro parentescos capazes de legitimar o seu modo de
expressão. Este livro nos leva a uma profunda reflexão sobre o
papel essencial que tem o hip-hop nas comunidades brasileiras,
e nos conta como alguns legítimos representantes o eternizaram
através de suas poesias urbanas.
Ainda moleque, em 1997, fui para Vigário Geral com meu pai e
Bernardo Vilhena na inauguração do Centro Cultural do Afro
Reggae. No ano seguinte, Ecio publicou um poema meu no jornal
do grupo – na edição que comemorava a primeira turnê deles
pela Europa.
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14 Poesia Revoltada
Sem tentar domar a besta, a ilumina de tal forma que nos faz
pensar sobre toda a cultura brasileira. “A gente vive se matando
irmão/ Por quê?/ Não me olhe assim/ Eu sou igual a você”,
MV Bill questiona e incita. Através dos rappers, Ecio nos apre-
senta o surgimento de um novo discurso sobre a identidade
brasileira. Uma fala imperativa, direta. “É preciso estar atento,
consciente” (MV Bill). O valor da mensagem.
Omar Salomão
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Preâmbulo
Eu moro no pé do morro
que fica ao lado de uma favela
é tão perto que eu acho
que eu faço parte dela.
Trecho de “Raça Brasileira”,
de Zé do Cavaco, Mathias de Freitas e Elaine Machado
19
20 Poesia Revoltada
CAP.01
A poesia revoltada
rap, hip-hop e rappers.
rappers.
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rap, hip-hop e
rappers.
O rap sempre esteve aqui, desde quando Deus falou com Adão,
Moisés e os profetas. Ele cantava rap para eles.
(...) Mesmo Shakespeare já rimava e cantava rap na sua época.
Assim, o rap sempre esteve aqui.
Afrika Bambaataa
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27
28 Poesia Revoltada
O rap e o hip-hop
Os rappers
1 Break beats: parte das músicas em que a batida ganha relevo. Esta é funda-
mentada no recorte e repetição, às vezes alteração de velocidade, de uma célula
rítmica escolhida pelo DJ.
A poesia revoltada - rap, hip-hop e rappers 33
São eles: Racionais MCs (SP); MV Bill (RJ) e Gog (DF). Foram
escolhidos tão somente em virtude de serem, na minha opinião,
expressivos o suficiente para representar um tipo de rap que
selecionei, e terem consolidado uma carreira, de certo modo, não
restrita a um círculo fechado. Em suma, todos eles comungam
algumas características relevantes para o encaminhamento a
que me propus: são afro-brasileiros e se reivindicam como tais;
nasceram em comunidades pobres de grandes centros urbanos
do país (São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília); seus trabalhos con-
seguiram projeção nacional e gozam de notável reconhecimento
por parte de um público que transcende as fronteiras de suas
comunidades; todos se sentem, segundo pude notar, parte de
um movimento ou de uma cultura comum, que se define por
recorte racial e posicionamento político.
CAP.02 CAP.02
Capítulo
ar,
cultura popul
arte à margem 37
ar,
cultura popul
arte à margem
u ltura popular,
c
arte à margem
A história das artes não é uma única história, mas, em cada país, pelo menos
duas: aquela das artes enquanto praticadas e usufruídas pela minoria rica,
desocupada ou educada, e aquela das artes praticadas ou usufruídas pela
massa de pessoas comuns.
Eric Hobsbawn
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Rap: cultura popular, arte à margem 39
1 “A arte popular não tem gozado de tamanha popularidade junto aos filósofos
e teóricos da cultura [...]. Quando não é completamente ignorada, indigna até de
desdém, ela é rebaixada a lixo cultural, por sua falta de gosto e reflexão” (Shuster-
man, 1999: 99). Ou ainda: “O rap é um dos gêneros de música popular que mais se
desenvolve atualmente, mas também um dos mais perseguidos e condenados. Sua
pretensão ao status artístico submerge numa inundação de críticas abusivas, atos
de censura e recuperações comerciais” (Shusterman, 1999: 143).
44 Poesia Revoltada
Rap e contranarrativa
CAP.03
Rap e contranarrativa
CAP.03
Rap e contranarrativa
Sobre o sampling1 e a síncopa
Os quatro primeiros pontos destacados por Richard Shuster-
man em sua caracterização do pós-moderno (tendência para
uma apropriação reciclada, mistura eclética de estilos, adesão
entusiástica à tecnologia e desafio às noções de autonomia)
articulam-se, basicamente, à prática do sampling. Com efeito, o
sampling é a mais importante novidade formal trazida pelo rap.
Apesar de não ser o único gênero a utilizar o procedimento, o
rap é sem dúvida o que explora em maior profundidade as suas
possibilidades. O rap constitui efetivamente – com a música
techno – a primeira forma de expressão a utilizar de modo sis-
temático as técnicas de reprodução sonoras as mais sofistica-
das, não apenas para difundir suas produções, mas igualmente
para elaborá-las, tanto na sua forma quanto no seu conteúdo
(Béthune, 1999: 10).
56
Rap e contranarrativa 57
Cabe lembrar que, nem sempre, a citação é feita por vias eletrô-
nicas. Muitas vezes os rappers referem-se a versos de outros
2 Os exemplos de fato não são numerosos, mas essa escassez revela um outro lado
dos problemas enfrentados pelos rappers: muitos artistas não autorizam a gravação
de samples de suas músicas sem o pagamento de vultosos direitos autorais (e às
vezes, nem assim).
3 Beat: trata-se da batida, o ritmo, que o DJ utiliza em cada música.
60 Poesia Revoltada
Com isso quero dizer que a síncopa implica, no que diz respeito
à música de maneira geral, uma quebra de princípios. Significa
o exercício da liberdade, pela musicalidade negra, em relação às
amarras engendradas pelas regras clássicas do padrão musical
a que estamos habituados. Sugiro ainda que ela, pelo menos
metaforicamente, representa o desejo de liberdade também na
vida social, na qual os negros são continuamente estigmatiza-
dos por conta da cor da pele e outros traços fenotípicos, como
se fossem prisioneiros da própria negritude. Nas palavras de
Paul Gilroy: “Suas síncopes características ainda animam os
62 Poesia Revoltada
Acrescento que o rap pode ser entendido como narrativa não ape-
nas nos moldes tradicionais, mas, sob certos aspectos, também
naqueles definidos por Walter Benjamin em seu estudo sobre
a obra de Nikolai Leskov (Benjamin, 1995). Apesar de a maioria
dos rappers designarem sua arte a partir de comparações com
o reino da informação – jornalismo e afins4 –, a própria estrutura
de sua narrativa implica a possibilidade de uma interpretação
daquilo que é explicado, dessa maneira agindo na consciência de
cada ouvinte (conforme Benjamin postula para a afirmação da
verdadeira narrativa). Assim, se a linguagem jornalística assume
postura, digamos, neutra, ao relatar os fatos – no que se mos-
traria “incompatível com o espírito da narrativa” (Benjamin, 1995:
203) –, o rap, quando faz, faz de maneira pedagógica, não apenas
relatando o fato, mas tentando ensinar algo com ele.
MV Bill está de volta tentando conscientizar vocês/ parando para
pensar, botando a cabeça no lugar/ [...]/ sem armas, unidos, sem
violência entre nós/ [...]/ entre irmãos, informação necessidade/
apesar de ser uma letra pode se tornar verdade/ depende dela,
depende dele, depende de mim, depende de você
(MV Bill: Atitude errada).
4 Além disso, Chuck D, líder do grupo Public Enemy, denominou o rap como “a CNN
dos negros”. Já uma das canções mais conhecidas de MV Bill, que acabou virando
uma espécie de marca de sua atividade, intitula-se “Traficando informação”.
64
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66 Poesia Revoltada
5 Em uma entrevista para a revista Showbizz, Mano Brown mostrava sua preocu-
pação inicial com o silêncio compenetrado do público durante a apresentação dos
Racionais. “No começo eu estranhava, achava que eles não estavam curtindo. Depois
é que me contaram: ‘Mano, eles prestam atenção na letra’” (Brown, 1998: 26).
Rap e contranarrativa 69
midade
Poesia Revoltada
74
Um senão: da legitimidade do rap 75
Thaíde começa:
Quem não conhece Nelsão, aquele cara comprido,/ magro parece
um palito e com o cabelão/ [...]/ tô ligado que ele é do nordeste /
minha rima vai mostrar que eu também sou cabra da peste/ vou
me transformar em tesoura, cortar o cabelo dele/ e pôr debaixo
do tapete com uma vassoura / eu vou até o fim dessa batalha/ vai
ser difícil superar a minha levada / no verso eu faço a treta/ te dou
um nó de letra/ abro e enfio o microfone na tua cabeça/ [...]/ você
não me assusta/ então cresça e apareça.
CAP.05
A palavra armada
CAP.05
A palavra armada
Uma fronteira não é o ponto onde algo termina, mas, como os
gregos reconheceram, a fronteira é o ponto onde algo começa a
se fazer presente.
Martin Heidegger
90
A palavra armada 91
ou
Acreditando que a mente é a mais farta munição
(Matemática na prática)
ou ainda:
Estou aqui novamente/ com meu calibre pesado, nervoso para
disparar/ mensagens à queima-roupa/ sem chance de escapar”
(Comunicação verbal).
1 Marcelo D2, líder do grupo, volta e meia toca no assunto em suas letras, como
por exemplo: “Enquanto você brinca de Ice-T/ pessoas pagam com a vida aqui e ali/
então não venha com esse papo que o rap é só seu/ que caiu no seu quintal/ saia
dessa utopia e caia na real/ antes que seja tarde e você se dê mal/ rap é cultura de
rua e não vou dizer mais nada/ para bom entendedor meia palavra basta/ rappers
reais será que existe isso?” (Planet Hemp, 1999: “Rappers reais”). Em outra faixa,
D2 canta: “Eu vou tentando rimar/ cê vai tentando entender/ hip hop Rio é Planet
Hemp/ [...] eu sou do Rio, eu sou do hip-hop” (“Hip Hop Rio”).
92
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94 Poesia Revoltada
Já disse e digo de novo/ que o gatilho não falha/ [...] é um, é dois, é
três, o meu cartucho eu descarrego de uma vez/ a mente é a arma,
a voz é a bala/ sai tudo de uma vez
(Se liga).
José Carlos dos Reis Encina, vulgo Escadinha, que em 1999 lan-
çou um disco de rap,2 criou um refrão com sentido semelhante,
que dá o que pensar:
Chega de morte, ilusão, seu pai é um novo homem
troquei a paz de um fuzil pela guerra de um microfone
(Filho).
2 O disco intitula-se Fazendo justiça com as próprias mãos. Foi lançado quando
Escadinha ainda cumpria pena em Bangu I, por tráfico de drogas. Ele, no entanto,
não gravou propriamente o CD. Vários rappers, entre os quais MV Bill e Gog, empres-
tam a voz a composições de Escadinha, redigidas na prisão. O Racionais participa
do disco com uma música própria, “O homem na estrada”, a qual teria, segundo o
próprio, influenciado Escadinha a mudar de vida.
A palavra armada 95
fonemas /p/, /t/ e /r/, que são os que melhor mimetizariam a sono-
ridade de fuzis ou metralhadoras. Nesse rap, MV Bill narra o cerco
de policiais a um criminoso:
Mais de vinte PM cercando a casa/ para o que será?/ Para matar,
para matar, para matar/ Para matar, para matar, para matar...
(MV Bill: Um crioulo com uma arma).
4 “Nessa época [início dos anos 70], eram comuns os conflitos étnicos em que gan-
gues de hispânicos se encontravam com as dos negros para tirar suas diferenças de
maneira violenta, levando muitas vezes à morte. Dentro dessa realidade cruel, o break
se tornou o elemento de união número um para os jovens que integravam aquelas
gangues, os quais buscaram através da dança uma alternativa para a solução de seus
problemas. Então, quando as gangues se encontravam nas ruas, decidiam suas diver-
gências de forma sadia e inteligente: com o box (rádio-gravador) na mão, conjuntos de
agasalhos das mais diversas marcas (Nike, Adidas, Puma...), tênis de couro com cadar-
ços grossos e coloridos, chapéus de golfista, boinas e bonés, caracterizando o visual b.
boy, as gangues mostravam no break quem era o dono do pedaço” (DJ TR, s/d, mimeo).
A palavra armada 101
música rap procura chamar a atenção dos jovens negros nos cen-
tros urbanos para diversos problemas, especialmente a violência
policial, com a qual se confrontam diariamente. Eles entendem
que, longe de “servir e proteger”, a polícia na verdade representa
um dos mais graves problemas das comunidades negras (Best &
Kellner, 1999: mimeo).
Vale a pena dedicar alguma atenção a esse modo de agir, que faz
o rapper sentir-se em casa em determinados espaços – os da
favela ou os dedicados à cultura dela advinda – e fora dela em
outros. Essa oposição, a meu ver, engendrou uma desconfiança
mútua entre a sociedade branca dominante, que é a que habita
de fato a cidade, e os negros subalternos, dela excluídos. O ine-
vitável convívio social impõe a exposição da distância significa-
tiva entre os que gozam do conforto oferecido pela sociedade,
e os que sofrem as injustiças graças à sua classe ou sua cor,
quase sempre a ambas. O rap será a linguagem dessa cesura.
O primeiro verso desse rap, “aqui a visão já não é tão bela”, é sinto-
mático da oposição ostensiva que o rap estabelece entre a favela
e a cidade. MV Bill, por sua vez, ironiza de forma cruel a visão
romantizada da favela como lugar dotado de uma beleza pito-
resca, ao mesmo tempo em que estabelece, de forma muito sutil,
um parâmetro para a cisão entre a favela e a zona sul carioca,
parodiando a famosa composição de Vinicius de Moraes e Tom
Jobim, “Garota de Ipanema”:
Que coisa linda, cheia de graça
família disputando o seu almoço na praça
(MV Bill in Cidade Negra: A voz do excluído).
Gog, por sua vez, nos leva para uma longa viagem através da
capital do país. Naturalmente, o seu roteiro também é a vasta
zona periférica:
Aqui a visão já não é tão bela
Brasília periferia, Santa Maria é o nome dela
E Gog:
Se não passamos pela sua cidade/ com certeza ela estará na pró-
xima viagem/ periferia, esta foi nossa mensagem
(Gog: “Brasília periferia”).
Hey boy o que você está fazendo aqui/ meu bairro não é seu lugar/
[...]/ a vida aqui é dura/ [...] onde a miséria não tem cura/ [...]/
a solução é roubar/ e seus pais acham que a cadeia é nosso lugar.
6 A autora explica ainda que só é possível falar desse rap, do seu lugar de branca
de classe média, na medida em que se compromete com o seu discurso, com aquilo
que ele denuncia.
A palavra armada 123
CAP.06
Da ginga do samba
à marra do rap
CAP.06
Da ginga do samba
Antes dos rappers, os sambistas ocuparam o posto de porta-
vozes da favela. O samba cumpriu, e continua cumprindo, um
inestimável papel na história da sociedade e da música brasi-
leiras. Ganhou o estatuto de música brasileira por excelência,
porque foi capaz de engendrar, conforme se depreende da lei-
tura de O mistério do samba, de Hermano Vianna, uma tal empa-
tia por parte de setores da elite que logrou se configurar num
lado musical do processo de fusão e cruzamentos que formou
a sociedade brasileira, “uma empatia que poderia, na utopia
freyreana, reunir sobrados e mucambos” (Vianna, 1995: 90).
126
Da ginga do samba à marra do rap 127
Agora o ritmo dos morros, das favelas, não pretende levar a ale-
gria, mas uma mensagem de desafio, de reação e de transfor-
mação de uma realidade opressiva. Tampouco essa mensagem é
lançada a “milhões de corações brasileiros”. Mano Brown se diz
apenas um rapaz latino-americano
apoiado por mais de cinqüenta mil manos
(Capítulo 4, versículo 3).
Por isso, pode-se dizer que o público do rap é restrito àqueles com
quem os rappers querem dialogar. Refiro-me ao público preten-
dido pelos rappers, não ao que acabou consumindo seus discos.
Este abarca um amplo espectro, que parte da juventude pobre
da periferia e chega até a juventude rica dos bairros nobres da
cidade, passando por intelectuais, artistas e demais pessoas inte-
ressadas na novidade radical que grupos como o Racionais, a meu
ver, representam na sociedade brasileira contemporânea. Esse
público, todavia, formou-se à margem da vontade dos rappers que
priorizo aqui. Marshall Berman, em entrevista ao caderno Mais!, da
Folha de São Paulo, afirmou que “o paradoxo do rap é que a música
é ouvida não só por pessoas que de fato vivem em situações de
perigo mas também por pessoas que levam uma vida tradicional,
que estudam medicina ou direito” (Berman, 2001).
olhar para trás/ [...]/ sim, ganhar dinheiro ficar rico enfim/ mui-
tos morreram sim, sonhando alto assim/ me digam quem é feliz,
quem não se desespera/ vendo nascer seu filho no berço da misé-
ria,/ um lugar onde só tinham como atração o bar/ e o candomblé
pra se tomar a benção
(Racionais: Homem na estrada).
Revoltada
CA
P
CAP.07
142
Poesia Revoltada a Nação não-cordial 143
1 Embora nem por isso sempre despolitizadas: versos como “eu só quero ser feliz/
andar tranqüilamente na favela em que nasci” (Cidinho e Doca: “Rap da felicidade”)
são bastante politizados. Mas não deixam de indicar uma certa acomodação com
as condições sociais que dão origem às favelas, o que passa longe do ideário polí-
tico do rap.
Poesia Revoltada a Nação não-cordial 147
Gog, por sua parte, retoma na maioria das vezes uma perspectiva
de conteúdo acentuadamente africanista. Em suas composi-
ções é fácil perceber que o rapper faz questão de reafirmar sua
filiação a um dos lados de uma divisão racial que, no seu enten-
der, é bastante visível na sociedade brasileira. Não só o rapper
fica do lado do povo, mas coloca essa opção numa perspectiva
histórica; os próprios termos pelos quais opta denotam que
seu olhar se estende até o período colonial (“plebeu” x nobre;
“escravo” x senhor), quando as divisões sociais teriam fornecido
os subsídios das contradições que vigoram na atualidade:
“Eu sou plebeu até a cabeça e o apogeu/ no negro escravo correu
sangue meu/ meu ancestral sofreu e o seu?”
(Gog: É o terror).
3 O grupo se desfez em 2001. Dino Black atualmente faz parte, com os outros rema-
nescentes do Gog, do grupo Viela 17 (alusão a uma viela da favela de Brasília onde
moram alguns dos rappers).
154 Poesia Revoltada
Aqui parece que a cor da pele é que define quem é negro e quem
não é, numa atitude que acaba se aproximando da maneira pela
qual a sociedade brasileira classifica, e portanto discrimina,
racialmente os indivíduos no Brasil.
Zumbi dos Palmares é, por conta disso, citado como herói por inú-
meros raps. Artistas como Jorge Benjor e Tim Maia também são
sempre mencionados. Há uma certa escassez de nomes, o que
motiva a denúncia, comum no rap, de que a história do Brasil foi
falsificada – “lavagem cerebral, vamos acordar nossos irmãos/
[...] / nossa história totalmente manipulada” (Gog: “Qual é o pó?”)
– mediante a rasura da participação dos afro-descendentes.
5
Lê-se /éks/, não confundir com o rapper Xis.
164 Poesia Revoltada
168
ANEXO
O som negro do gueto:
a senzala contra a casa-grande
ANEXO
O som negro do gueto:
contra a
casa-grande
ANEXO
170
O som negro do gueto: 171
a senzala contra a casa-grande
Lidar com esse problema, neste país, não é tarefa das mais fáceis.
Na opinião de Antônio Sérgio Guimarães: “Qualquer estudo sobre
o racismo no Brasil deve começar por notar que, aqui, o racismo
é um tabu” (Guimarães, 1999: 37). Não apenas nos diversos tra-
balhos teóricos, mas também nas conversas de família ou de
bar, parece haver um certo consenso de que a questão racial não
representa um problema no Brasil. É possível que isso aconteça
devido a duas razões principais.
1 O conceito é, sem dúvida, problemático. Seu uso neste trabalho será discutido
adiante.
172 Poesia Revoltada
2
Ver as obras, por exemplo, de Gilberto Freyre, Donald Pierson, Marvin Harris e os
primeiros escritos de Thales de Azevedo.
O som negro do gueto: 173
a senzala contra a casa-grande
Da raça ao racismo
Porém, antes de chegar a este ponto, uma vez que se falou muito
até aqui de raça e racismo, noções às quais inevitavelmente
retornarei no decorrer deste trabalho, talvez caibam duas ou
três palavras a respeito desses conceitos.
3 A analogia que faço desde o início deste capítulo entre o trecho citado de Macu-
naíma e as teorias raciais que vingaram no Brasil tem caráter meramente ilustra-
tivo. A obra de Mário de Andrade é mais complexa que o tratamento dado aqui e,
para que tivesse algum desdobramento além do retórico, mereceria uma análise
muito mais aprofundada. De resto, assinalo minha concordância com Muniz Sodré:
“apesar de assimilador de diferenças [...] em seu percurso, Macunaíma não se ade-
qua ao paradigma da mestiçagem com que acena a maioria das obras identitárias
[...]. Na verdade, o próprio de Macunaíma é não ter identidade viável, seja indígena,
negra, branca ou mestiça. É um personagem singular, logo inassimilável pelos
padrões identitários oficiais, embora interpretável como figura que nacionaliza a
invenção” (1999: 96).
O som negro do gueto: 185
a senzala contra a casa-grande
Neste capítulo, o autor determina três tarefas para si, entre as quais
realizar: “uma leitura crítica da elaboração do mito da democracia
racial por Gilberto Freyre” (Hanchard, 2001: 61-62). Entretanto, o
autor não fornece uma única linha em que Freyre tenha utilizado
as palavras que dão nome ao mito. A que mais se aproxima fala
em democracia social (Freyre apud Hanchard, 2001: 71. Grifo meu).
Ao que parece, Hanchard interpretou as palavras de Freyre
segundo o entendimento mais comum, o de que social aqui é
sinônimo de racial.
5 Guimarães lembra que Freyre era até avesso a ela, “posto que evocava uma con-
tradição em seus termos (as raças são grupos de descendência e portanto fecha-
dos, ao contrário da democracia que ele, Freyre, pregava)” (Guimarães, 2001: 12).
203
204 Poesia Revoltada
A voz cordial
Desde já, quero deixar claro: não acredito que virar pelo avesso o
traço negativo que marca a racialização das relações possa repre-
sentar uma solução definitiva e permanente. Estou tentando dizer
que, num país que se julga imune a tensões de natureza racial,
O som negro do gueto: 207
a senzala contra a casa-grande
211
212 Poesia Revoltada