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Manifesto Para Sair do Mal-Estar no Trabalho

Vincent de Gaulejac e Antoine Mercier


(Paris, Editora Desclée de Brouwer, 2012, pp. 182, ISBN 978-2-220-06489-5)
Elaborado por Sérgio Barroca

Em razão do modelo gerencialista adotado nas organizações contemporâneas ocasionar constantes malefícios à saúde
dos trabalhadores, Vincent de Gaulejac1 e Antoine Mercier2 discutem, por meio de um manifesto, as causas e os sintomas deste
fenômeno, sugerindo ações individuais, coletivas e políticas como alternativas em favor da saúde psicossocial dos
trabalhadores, do meio ambiente, da democracia e da sociedade. O manifesto não objetiva, exclusivamente, denunciar os males
do trabalho e seus responsáveis, mas, acima de tudo, adotar soluções efetivas de contenção desses males. A partir de casos de
suicídios em organizações francesas, os autores argumentam que a organização – um conceito abstrato – se utiliza de premissas
reais baseadas na neutralidade, urgência, controle e objetividade, formando, assim, a ideologia gerencialista a serviço do
poder. É uma racionalidade instrumental no tratamento de problemas humanos e sociais, causando, com isto, desde
sintomas de adoecimento até o suicídio. Emprega técnicas de gestão centradas na otimização de resultados, e não na geração de
conhecimento para melhoria da vida em sociedade. Utiliza da mobilização psíquica, da interiorização dos valores e do ideal
empreendedor como formas de dominar o trabalhador – a variável de ajuste – fazendo-o acreditar que seu sucesso será
alcançado, exclusivamente, por meio da organização. Estas imposições produzem mal-estar e suas causas, geralmente, estão
relacionadas à:
1. Cultura da urgência e intensificação do trabalho: as organizações cultuam o desempenho de produzir mais, melhor
e mais rápido, com menos pessoas, meios e custos. Este contexto gera a cultura do assédio generalizado e da mudança
permanente, que impulsionam à aquisição de novas competências e à flexibilização, com aumento e intensificação da
carga de trabalho, criando um constante clima de ameaça e insegurança.
2. Instrumentalização da organização: a intensificação do trabalho é facilitada pela instrumentalização da organização
com a institucionalização dos maus tratos, extraindo a humanidade do trabalhador, privando-o de debater e definir
suas próprias formas e condições de trabalho, mobilizando-o subjetivamente sem a menor possibilidade de
questionamento.
3. Obsessão da avaliação: para controlar criou-se uma obsessão avaliadora, a “quantofrenia” – a esquizofrenia da
quantificação – um princípio legitimador da dominação, uma ferramenta para racionalizar a gestão e calcular os custos
e a eficácia do funcionamento dos serviços, com isto, os valores humanos são desvirtuados levando à
individualização, à supressão do espaço deliberativo e à modificação do sentido do trabalho.
4. Injunções paradoxais: a multiplicidade de centros de decisão exacerbam as tensões e as injunções paradoxais, que
surgem de duas demandas contraditórias e incompatíveis, levam a pessoa à incapacidade de escolher, sendo apontada,
então, como incompetente. A gestão induz o trabalhador a aceitar coletivamente algo que reprova individualmente e a
queixa é vista como uma resistência. Porém, quanto mais concordar, mais perderá a subjetividade e mais será
chamado a se engajar na organização. Assim, o ideal teórico da organização é concebido sem contestações,
contradições ou falhas e as pessoas são seus elementos maleáveis e dóceis.
5. Norma como ideal e exigência do sempre mais: a organização idealiza o trabalho prescrito. Mas as situações
imprevistas representam o real que deve ser enfrentado, em especial, pelo coletivo, para construir soluções às
contradições. Entretanto, o vínculo do indivíduo é com a organização que preconiza o reconhecimento individualizado
e não mais com a atividade ou com o coletivo. A responsabilidade do sucesso, então, recai sobre o trabalhador, apesar
deste não ter influência sobre as condições de trabalho ou a obsolescência, resultando na pressão por resultados, na
crise de valores sociais, econômicos e de lealdade, no reinado da suspeita e na exigência de ser fora do comum num
mundo comum.
6. Individualização da luta por lugares e isolamento dos indivíduos: a excelência acaba por produzir exclusão, pois a
competitividade induz a luta por lugares gerando perdas e individualidade. Isto, isoladamente, pode não provocar
consequências imediatas. Mas, gradativamente, a sobreposição de fatos pode causar sérios reflexos físicos, psíquicos e
sociais. Os constrangimentos impostos, separadamente, são até suportáveis. Contudo, a acumulação sistemática é uma
espiral de reforço recíproco, o indivíduo não consegue sair desta armadilha, se sente fracassado e isola-se, pois não
tem condições de confrontar a organização que estimula a motivação, o comprometimento e o investimento subjetivo
intenso.
7. Degradação do amor em trabalhar: a teoria do capital humano, de origem neoliberal, incita a transformação de
pessoas e famílias em centros de lucros, garantindo a renda familiar e a proliferação da teoria gerencialista. O
assalariado é chamado a comprometer-se intensivamente e mobilizar-se subjetivamente para responder às exigências
do mercado de trabalho e não mais com a atividade de trabalho em si. Mobilidade, adaptabilidade e empregabilidade
são as palavras de ordem da revolução gerencialista.
8. Perda do sentido e da significação do trabalho: até mesmo os servidores públicos são evocados a trocar a cultura e
valores públicos pelos privados para acelerar a produtividade. Mesmo a política é contaminada pela ideologia
gerencialista. Antes de um projeto coletivo de bem-estar, a ideologia gerencialista se submete à economia e à
avaliação de resultados quantitativos ao invés da democracia e da construção de uma sociedade mais harmoniosa. A

1
Sociólogo clínico e professor-emérito da Universidade Paris-Diderot e presidente da Rede Internacional de Sociologia Clínica (RISC),
estuda a dimensão existencial das ligações sociais e as causas do mal-estar que acometem os sujeitos.
2
Jornalista da Radio France, discute questões de distúrbios profissionais baseadas na visão objetivista e positivista da hipermodernidade que
molda o indivíduo a uma estrutura hegemônica sem a possibilidade de oferecer uma análise criteriosa e relevante da conjuntura e da
realidade.
1
competição e a instrumentalização são mais consideradas do que o desenvolvimento da sociedade, conduzindo a perda
do sentido e da significação do trabalho.
9. Formas de reconhecimento geram insatisfação crônica: o modelo gerencialista, geralmente, passa despercebido na
sociedade, pois não é um sistema de dominação política, religiosa ou científica. Simplesmente, propõe a excelência. A
priori, não há oposição “lógica” a isto. O interesse privado precede o público e o organizacional-acionário precede o
coletivo, gerando o não reconhecimento. O modelo confere valores de reificação, onde somente pela organização
alcançar-se-á o sucesso. Dissemina-se a redução da liberdade e o aumento do controle, impondo um sofrimento
individual que deveria ser substituído pela contestação coletiva. Não alcançando o sucesso e a mobilização coletiva,
instala-se a insatisfação, que em longo prazo, tornar-se-á crônica.
10. Ameaça, insegurança e lógica da obsolescência: a crise financeira faz crescer os índices de desemprego e de
precarização das condições de trabalho, acirrada pela concorrência, que motiva organizações a exigirem maior
qualificação, adaptabilidade, flexibilidade e mobilidade do trabalhador vulnerabilizando-o e causando obsolescência,
insegurança e exclusão.
11. A crise dos valores, a malversação e os conflitos de lealdade: a crise do simbólico nas organizações degradam o
direito, a democracia e a razão, favorecendo a cúpula da organização e não os trabalhadores, acarretando perda salarial
e de produtividade. Consultores contratados maquiam os números, fraudando-os e falsificando resultados, imputando
à lógica de mercado. Eclode, então, a degradação da ética profissional, causando dissonância cognitiva e conflitos de
lealdade.
12. O corte de cima para baixo: a elite prescreve a excelência e o povo acaba excluído. Esta contradição entre prescrito
e real, reproduzida pelos gestores, diminui a confiança entre trabalhadores e dirigentes, que para melhorar resultados,
incentivam e priorizam a “redução de custos”, geralmente, ligado à demissão. Neste sentido, o ganho produz perdas.
Para os autores, o mal-estar no trabalho não é uma doença em si, mas um sintoma que atinge pessoas, organizações e
sociedade. Por isto, é preciso uma discussão realizando ações nas esferas individual, coletiva e política.
Individualmente deve-se: (a) proteger-se psiquicamente, sem constrangimento, procurando ajuda para se reconhecer
como sujeito; (b) compreender a ideologia gerencialista que naturaliza o sofrimento e apresenta uma forma de atuação perversa
baseada em quatro princípios: a empresa é um universo funcional; construída sob um modelo experimental; dominada por uma
concepção utilitarista da ação; e com uma visão instrumental do homem; (c) recusar o psicologismo e a individualização, pois
o sofrimento é um fenômeno social e mundial e deve ser modificado focando-se no coletivo; (d) denunciar a destruição do
ambiente causada pela competição e excelência que impõem a eficácia e a produtividade naturalizando o modelo; (e) aprender
a lidar com paradoxos e a dupla linguagem, por meio da compreensão da dinâmica do sistema de causas e efeitos.
Coletivamente é preciso: (a) compreender que a racionalidade instrumental é a negação do ser humano por se opor à
individualidade. Quando a atividade faz sentido, facilitado pelo coletivo, o equilíbrio mental e psíquico é preservado,
mobilizando as capacidades reflexivas e criadoras, ou seja, a cooperação pode inverter o processo de adoecimento; (b) perceber
o papel do gerenciamento na mediação e na construção da organização mais próximo do real; (c) favorecer a resolução de
conflitos, sintomas das tensões ligadas à complexidade e à contradição, antes que virem paradoxos; (d) encontrar o prazer na
atividade de trabalho por meio do fazer comum e coletivo, admitindo que o gerencialismo somente reconhece o resultado sem
oferecer os meios necessários para produzi-los, responsabilizando o trabalhador pelo seu sucesso ou fracasso.
Politicamente necessita-se: (a) combater o utilitarismo e o positivismo, que restringem a contestação, permitindo o
pensamento, a crítica, a reflexividade, o debate, a discussão e o diálogo; (b) reintroduzir os espaços deliberativos e de
confrontação de ideias, considerando o trabalhador como sujeito reflexivo e coletivo, portador de direitos e liberdades que
devem ser assegurados; (c) repensar a avaliação subjetiva, instituindo um espaço deliberativo que valoriza as mediações e
relativiza a lógica financeira em favor da lógica social e existencial; (d) entender que, para a organização, conflitos são
considerados disfunções e que o indivíduo deve ser adaptado às normas, em vez de incentivado à cooperação e à harmonia,
com o interesse individual conjugado ao organizacional; (e) restaurar a confiança do trabalhador, por meio da escuta atenta,
para proteger a saúde e o sucesso coletivo, a justiça e a equidade, não subestimando a capacidade de trabalho e de percepção,
pois, a verdadeira liberdade se dá pelo acesso ao direito e à garantia.
Os autores finalizam o manifesto dizendo que o modelo gerencialista tem levado à criação destrutiva e à exaustão dos
recursos do planeta e das pessoas, de tal modo, que não há tempo de recuperação. O caos e as crises naturalizaram-se, em
especial, a ambiental, a do trabalho e a financeira, degradando as condições de trabalho. A competição, a concorrência não
regulada e a desterritorialização dos mercados financeiros representam as causas estruturais da degradação do mercado e das
condições de trabalho. Assim, é preciso: reequilibrar os interesses privados e coletivos; promover a economia solidária contra a
sociedade de mercado; reequilibrar as ligações entre capital e trabalho; reconciliar a gestão à sociedade; considerar pessoas
como recursos é inverter a lógica entre economia e social; compreender a empresa como construção social e recurso da
humanidade e não o contrário; perceber que a finalidade da atividade humana é fazer a sociedade e um mundo melhor;
combinar ações individuais, organizacionais e políticas para sair do mal-estar do trabalho; saber que o sofrimento é individual,
mas as causas são coletivas, por isto, é imprescindível transformar a gestão; não se pode incentivar o desempenho e os
resultados em detrimento da saúde e da vida; é preciso denunciar, debater e combater; criar uma política para diagnosticar as
causas da violência no trabalho; e preferir a mediação, a escuta e a confrontação à simples prescrição.
Com argumentos competentes e oportunos, os autores denunciam que a ideologia gerencialista tem se utilizado da
racionalidade instrumental – vinculada a resultados – excluindo das discussões a racionalidade subjetiva – voltada para o bem-
estar da sociedade, fenômeno, este, também estudado e denunciado por Guerreiro Ramos. Além disto, organizações têm
formatado e convertido trabalhadores em corpos dóceis, úteis e produtivos, conforme discutido por Foucault. Assim, para que
este contexto seja revertido, Gaulejac e Mercier apresentam alternativas efetivas e viáveis para minimizar o mal-estar nas
organizações, por meio de uma mobilização individual, coletiva e política, servindo de pauta para debates e intervenções em
instituições públicas e privadas. Agora, encontram-se nas mãos de trabalhadores, gestores, agentes públicos e estudiosos a
promoção das discussões e a proposição de soluções para amenizar este quadro degradante.
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