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PROCESSO DE PROJETO E PRÁTICA EM CERÂMICA: HIDEKO HONMA E FLÁVIA

SANTORO

Daniela Risso de Barros

Orientação: Prof. Dr. Ana Gabriela Godinho Lima

Artigo de Iniciação Científica (Universidade Presbiteriana Mackenzie – Faculdade de


Arquitetura e Urbanismo, apoio PIBIC Mackenzie/MackPesquisa, agosto de 2013)

Resumo

Este projeto se enquadra no universo da pesquisa qualitativa e discute os processos de


criação e produção envolvidos na prática das ceramistas contemporâneas brasileiras,
Hideko Honma e Flávia Santoro. A discussão é realizada por meio do estudo de autores
como Sennet (2010), Fariello (2005) e Cuff (1991), e da análise dos resultados obtidos em
pesquisa de campo (entrevista com as ceramistas e observação etnográfica de sua prática).
O trabalho tem como uma das finalidades contribuir com a ampliação de estudos
acadêmicos em áreas de práticas criativas. Para isso discorre sobre o papel da técnica e da
habilidade manual em cerâmica, do espaço de trabalho do ceramista, das etapas envolvidas
em seus trabalhos, da forma como se dá a transmissão do conhecimento aos alunos, da
importância da repetição como forma de aperfeiçoamento, entre outros. A argumentação,
que faz uso de imagens, é concluída por meio da análise do objeto finalizado, ou a peça de
cerâmica, apresentando a mesma como o resultado do processo experimentado pelas
ceramistas.

Palavras-chave: Processo – Prática – Cerâmica

Abstract

This project belongs to the qualitative research field and discusses the creation and
production processes involved in the practice of Hideko Honma and Flavia Santoro, both
Brazilian contemporary potters. The discussion happens through two issues: the authors
study as Sennett (2010), Fariello (2005) and Cuff (1991), and the result analysis of field
research (based on potters interviews and ethnographic observations of their practice). One
of the project aims is to contribute to the expansion of academic studies in creative practices
areas. In order to achieve this target some topics are discussed such as: the role of ceramic
technique and handicraft, the potters workplace, the work steps involved, the knowledge
transmission to the students, the importance of repetition as improvement, among others.
The argument uses images and it is concluded through the analysis of the finished object
that reveals the process result experienced by potters.

Key-words: Process – Practice – Ceramic


INTRODUÇÃO

Este trabalho foi desenvolvido no âmbito do Núcleo de Pesquisa Percursos e Projetos:


Arquitetura e Design e está vinculado ao Projeto de Pesquisa Feminino e Plural: Percursos e
Projetos de Arquitetas e Designers (2012-14), financiado pela FAPESP (Fundação de
Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) e pelo MackPesquisa (Fundo Mackenzie de
Pesquisa). O foco desta pesquisa está na investigação dos processos de projeto e de
trabalho em cerâmica envolvidos na prática de ceramistas, exemplificado com a experiência
das ceramistas Hideko Honma e Flávia Santoro. A relevância relaciona-se com os objetivos
de formação em pesquisa e ensino, visando contribuir com o ensino da cerâmica e a
formação de novos pesquisadores, ajudando a ampliar os estudos em um campo carente de
publicações científicas. O objetivo geral é estabelecer relações entre a teoria sobre processo
de projeto e prática, a partir da prática artesanal discutida por Richard Sennet (2009), com a
prática profissional em cerâmica, de acordo com a análise dos processos das ceramistas
selecionadas. A prática pode ser definida como o desenvolvimento e incorporação do
conhecimento experimental diário dos praticantes. "Em geral, a prática é uma ação ou
desempenho, mas o termo também implica um método de ação, no sentido de habitual,
costumeiro ou rotineiro. A prática profissional, então, é o desempenho habitual de atividades
profissionais." (CUFF, 1991: pg.4).

Os objetivos específicos são: 1) investigar aspectos relevantes do espaço de trabalho das


ceramistas, o ateliê, comparando-o com a guilda medieval e o estúdio do artista
renascentista (SENNET, 2009); 2) esclarecer sobre o modo em que se dá a transmissão do
conhecimento – mestre - aprendiz –, na prática (SENNETT, 2009); 3) verificar os processos
de trabalho em cerâmica, por meio da análise das etapas de criação e produção de peças
de cerâmica, esclarecendo também aspectos relativos às técnicas e ferramentas utilizadas
(SENNETT, 2009; FARIELLO, 2005); 4) identificar relações que se estabelecem entre a mão
e a cabeça/mente do ceramista, durante o trabalho manual da cerâmica (SENNETT, 2009);
5) verificar se a repetição da prática traz aperfeiçoamento e pode ser entendida como um
ritual (SENNETT, 2009; FARIELLO, 2005); 6) caracterizar a idealização do utilitário de
cerâmica e a maneira como podem ser percebidos pelos usuários (FARIELLO, 2005), e; 7)
comparar as biografias, práticas e produções das ceramistas estudadas, verificando
empiricamente as especificidades de seus processos e trabalhos.

REFERENCIAL TEÓRICO

O trabalho se fundamentou principalmente nas questões levantadas por Sennett (2009) em


O Artífice, e Fariello (2005) em “Reading” the Language of Objects. O primeiro autor discute
a respeito do trabalho artesanal que envolve habilidade manual, e foi utilizado para
substanciar os processos de projeto e a prática; e a segunda autora que discorre sobre o
processo em que o objeto é criado e a maneira como pode ser percebido, foi estudada para
analisar o objeto como resultado de um processo.

À respeito da pesquisa qualitativa, Denzin e Lincoln (2000) em The Discipline and Practice
of Qualitative Research, e Lima (2013) nas publicações do blog do Projeto de Pesquisa
Feminino e Plural, auxiliaram na metodologia do trabalho. Cuff (1991) em Architecture: the
story of practice, orientou o levantamento etnográfico da pesquisa empírica. Biggs e Büchler
(2010) em Oito Critérios para a Pesquisa em Áreas de Prática Projetual, contribuíram na
construção da argumentação visual. Larsen (1993) em A Potter’s Companion e Adamson
(2010) em The Craft Reader, orientaram a pesquisa nos aspectos relativos ao campo da
cerâmica. E Schon (1983) em The Reflective Practitioner – How Professionals think in
Action, contribuiu no contexto de processo de projeto.

MÉTODO

Como método, esta pesquisa envolveu quatro procedimentos: 1) na primeira fase,


levantamento e revisão bibliográfica; 2) na segunda fase, vivência nos ateliês das
ceramistas estudadas (enquanto produziam ou ministravam aulas) e entrevista com as
mesmas, etapa que foi realizada a partir dos estudos desenvolvidos na primeira fase e
orientada segundo o método etnográfico, como utilizado por Cuff (1991); 3) na terceira fase,
análise e ponderação qualitativa dos resultados, comparando os dados obtidos em
levantamento teórico e pesquisa de campo e; 4) na última fase, construção da
argumentação com o auxílio de imagens, produzidas pela própria pesquisadora em
pesquisa de campo.

Uma vez que faz parte de um campo de investigação conectado com estudos culturais e
interpretativos, este trabalho se utilizou de uma abordagem qualitativa. A pesquisa
qualitativa, segundo Lima (2013) e Denzin e Lincoln (2000), localiza o pesquisador no
contexto de sua própria pesquisa e se utiliza de métodos empíricos. A tabela 1 abaixo
(Idem: pg.20, Tabela 1.1) sintetiza o contexto metodológico de pesquisa. Em negrito, os
tópicos efetivamente empregados neste projeto:

TABELA 1.1 O Processo de Pesquisa


FASE 1: O Pesquisador como um Sujeito Multicultural
história e tradições de pesquisa; conceitos de si e dos outros; éticas e políticas de pesquisa
FASE 2: Paradigmas e Perspectivas Teóricas
positivismo, pós-positivismo; interpretativismo, construtivismo, hermenêutica; feminismo (s); discursos raciais;
teoria crítica e modelos Marxistas; modelos de estudos culturais; teoria homossexual
FASE 3: Estratégias de Pesquisa
projeto de investigação; estudo de caso; etnografia, observação participativa, atuação etnográfica;
fenomenologia, etnometodologia; teoria fundamentada; história de vida, testemunho; método histórico; ação e
pesquisa aplicada; pesquisa clínica
FASE 4: Métodos de Coleta e Análise
entrevista; observação; artefatos, documentos, e registros; métodos visuais; auto-etnografia; métodos de
gerenciamento de dados; análise assistida por computador; análise textual; grupos alvo; etnografia aplicada
FASE 5: Arte, Práticas, e Políticas de Interpretação e Apresentação:
critério adequado de avaliação; práticas e políticas de interpretação; escrita como interpretação; análise política;
tradições de avaliação; pesquisa aplicada
Tabela 1: O Processo de Pesquisa (traduzido por Daniela Barros)

Cuff (1991) afirma que o discurso e a prática dos arquitetos na maioria das vezes é
diferente, já que, como afirma Sennett (2009), muitas vezes os profissionais não tem a
percepção de todos os conhecimentos que possuem. E podemos estender este comentário
de Cuff (1991) as demais áreas de prática, como a cerâmica. "Sob tais condições, uma
pesquisa válida e confiável requer um equilíbrio entre o auto-relato interno [do pesquisado] e
a observação de alguém de fora [pesquisador]. Juntamente com a observação participante,
os métodos etnográficos podem revelar a sofisticação e a complexidade oculta na aparente
desordem da vida cotidiana." (Idem: pg.7). Portanto, a análise dos resultados dos
levantamentos empíricos desta pesquisa, consideraram dois tópicos principais: 1) os
discursos que as ceramistas fizeram sobre si mesmas durante as entrevistas, no qual
passaram por um processo auto-reflexivo; 2) as ações observadas ao longo de sua prática e
processos de trabalho.

A fase de produção e seleção de imagens, bem como sua articulação com o texto,
constituíram uma etapa específica da argumentação. O texto, sem as imagens, não
descreveria satisfatoriamente os eventos observados e as descobertas realizadas pela
pesquisadora. Essa impressão é corroborada pelas colocações de Biggs e Büchler (2010).

RESULTADOS E DISCUSSÃO

As ceramistas

Hideko Honma (1955 - ), ceramista paulista de família oriental, graduou-se em Educação


Artística (Licenciatura Plena) na Faculdade de Belas Artes de São Paulo, fez mestrado na
Escola de Comunicação e Artes, na USP, sobre História da Arte, e participou de Bienais
Internacionais de São Paulo. Ministrou treze anos de aulas de Estética e História da Arte na
Faculdade Santa Marcelina, período em que começou também a fazer cerâmica. Fez cursos
em São Paulo, inclusive com o ceramista Megumi Yuasa, mas percebeu a necessidade de
aulas com mais didática e então decidiu ir ao Japão. Ficou três meses estudando no Arita
College of Ceramics, em Arita, Saga Ken, Japão e retornou mais cinco vezes para fazer
outros cursos. No país aprendeu torno elétrico, esmalte e trabalho em ateliê. De volta a São
Paulo, começou a trabalhar sozinha em seu sítio em Nazaré Paulista e logo abriu um ateliê
com show room em São Paulo para receber clientes e dar aulas para pagar o aluguel.
Depois de dois anos, comprou o espaço onde é o seu ateliê atual, em Moema. De acordo
com a sua formação, possui influência oriental, que se reflete em seu trabalho. A ceramista
trabalha com queima de alta temperatura em forno à gás com esmaltes de cinzas, criando
peças utilitárias, principalmente no torno elétrico (figura 1). Ela tem muitos clientes
restaurantes, dá aulas, participa de exposições e eventos dentro e fora do ateliê.

A ceramista mineira Flávia Santoro (1968 - ), teve uma formação muito diversificada.
Experimentou trabalhos com argila com as paneleiras em Minas Gerais na adolescência,
mas só assumiu este compromisso quando abandonou a psicologia e foi morar com os
índios Caraíva na Bahia durante oito meses. Estes mestres a ensinaram: buscar argila,
técnicas de modelagem e de complementação, engobe e terra sigilata (materiais naturais
utilizados para decorar as peças), e queimas de fogueira e de buraco, que realizavam na
tribo. Em São Paulo, estudou escultura em cerâmica no ABRA (Academia Brasileira de
Arte); e depois passou quase quatro anos estudando na França na Ècole des Beauxs Arts
de Vallauris, no curso universitário de Cerâmica, chamado Arts du Feu (Artes do Fogo),
formação que envolveu teoria e prática: desenho, modelagem, escultura, decoração e
pintura em cerâmica, esmalte. Nesta escola, também aprendeu a forma de dar aulas, o que
a ajudou em sua didática pedagógica, já que logo que voltou ao Brasil começou a lecionar.
Santoro vê claramente em seu trabalho a busca por algo mais sofisticado, que trouxe da
França e por algo mais rústico, fruto da influência indígena. Ao mesmo tempo que trabalha
com utilitários esmaltados de alta temperatura e a sal (figura 2), também faz esculturas em
queimas de baixa temperatura. De volta ao Brasil, continuou sua formação durante 7 anos
fazendo cursos no Brasil, e também 2 cursos na Itália na escola La Meridiana, em Certaldo.
Atualmente, as técnicas com que mais trabalha são modelagem, torno e placa. Além disso
participa de exposições, dá palestras e workshops.

Figura 1: Peças Hideko Honma. Figura 2: Peças Flávia Santoro.

Espaço de trabalho do ceramista

“A oficina é a casa do artífice.” (SENNETT, 2009: pg. 67). A oficina, ateliê ou estúdio, como
pode ser chamado, é o local de trabalho do ceramista, onde desenvolve, produz e queima
suas peças. A ceramista Hideko Honma possui dois espaços: o ateliê em Moema, São
Paulo, onde dá aulas e vende suas peças; e o ateliê em seu sítio em Nazaré Paulista, São
Paulo, onde trabalha sozinha aos fins de semana e obtém as cinzas para seus esmaltes. O
ateliê do sítio possui espaços para a criação e produção de seus utilitários, fornos e
ferramental necessário, onde também possui ajudantes e um torneiro. O ateliê de Moema
(figuras 3-5), projetado por Douglas Honma: na parte de oficina, há diversos tornos, mesas,
pias, prateleiras e ferramentas, é o espaço de sala de aula e a ceramista também pode
trabalhar à noite quando deseja; no térreo, além da loja, há um espaço para armazenar
argila, um espaço de café, integrado com a área de esmaltação e fornos, e com um
pequeno jardim externo, que Honma acha importante pois traz a ligação com a natureza.

Figuras 3-5: Ateliê de Honma - oficina, loja, café/espaço externo/esmaltação.

O ateliê atual de Flávia Santoro, no sítio Samadi, em Cunha é um espaço amplo, bem
iluminado e integrado com a natureza. Sua oficina foi pensada em três espaços separados
por portas: espaço para trabalhar, para queimar e loja. O ateliê (figuras 6-8) também foi
construído em dois níveis, por causa do terreno: o primeiro espaço possui tornos, mesas
para modelagem, prateleiras e pias; o segundo é um espaço semiaberto por causa dos
fornos que abriga, com local para esmaltação e para guardar lenha e gás e uma cave para
manter sua argila; por fim, o terceiro espaço é onde expõem suas peças. Neste sítio,
Santoro obtém sua argila, produz e vende suas peças, e recebe alunos para workshops.

Figuras 6-8: Ateliê de Santoro - oficina, espaço fornos/esmaltação, loja.

Sennett (2009) lembra da guilda medieval, oficina que possui uma hierarquia conforme o
conhecimento adquirido de seus membros. “Numa oficina, as habilidades do mestre podem
valer-lhe o direito de mandar, e a possibilidade de absorver essas habilidades e aprender
com elas pode dignificar a obediência do aprendiz (...).” (Idem: pg.68). Haviam três níveis de
hierarquia nas guildas que eram encarnados por homens. Os níveis eram: “mestres”,
“jornaleiros” e “aprendizes”. O “aprendiz” estudava por sete anos na guilda e se
apresentasse um trabalho que demonstrasse as habilidades fundamentais absorvidas, se
tornava um “jornaleiro”. Trabalharia remuneradamente por mais cinco a dez anos, até
revelar competência gerencial e ser capaz de demonstrar que podia tomar o lugar do
“mestre”. O “mestre” possuía autonomia (impulso que move a trabalhar de forma expressiva,
por si mesmo); enquanto “jornaleiros” e “aprendizes” aceitavam a autoridade do “mestre”.

A transmissão dos conhecimentos concretos e práticos do ofício era fundamental às oficinas


artesanais medievais. “No artesanato, deve haver um superior que estabelece os padrões e
treina.” (Idem: pg.68). A relação entre “mestre”, “jornaleiros” e “aprendizes”, atualmente nos
ateliês de cerâmica brasileiros, pode ser vista respectivamente entre: o ceramista mais
habilidoso, normalmente o dono do ateliê; os profissionais remunerados que trabalham com
e para o mestre mas não possuem o mesmo grau de capacidade e autonomia que ele; e os
alunos do ateliê, que são assistidos e orientados pelo mestre e às vezes também por outros
profissionais do ateliê. A presença de Honma é realmente entendida como um mestre que
orienta e controla a qualidade, por meio também de seu olhar experiente. Os alunos
reconhecem sua autoridade de professora, que propõe sempre novos desafios, e confiam
em sua orientação. Pode-se observar que os alunos repetem o mesmo processo e os
mesmos gestos e posições específicas das mãos de Honma. O “olhar” de Santoro, como um
mestre, também demonstra muita atenção com os alunos adolescentes do ICCC (Instituto
Cultural da Cerâmica de Cunha), que parece ter o objetivo de incentivar os alunos a
voltarem ao trabalho.

As guildas medievais valorizavam o empenho coletivo ao invés das diferenças individuais;


assim um objeto era reconhecido pelo local e oficina onde eram produzidos e não pelo
artesão que o tinha feito. “A oficina de artesanato teve prosseguimento na forma do estúdio
do artista, cheio de assistentes e aprendizes” (Idem: pg.80), isso ocorreu a partir do
Renascimento. Nesta época, na venda de uma ampla variedade de produtos, a identificação
do fabricante tornou-se cada vez mais importante, assim como a originalidade, característica
do profissional que trabalha sozinho. Esta pressupõe uma unidade, uma única mente
criadora, e portanto um único artista. O estúdio renascentista existia por causa do talento
único do mestre que tinha o objetivo não de produzir, mas de criar as suas obras.
Diferentemente do trabalho agregado de originalidade dos artistas do Renascimento, o
trabalho dos artífices medievais evoluía lentamente e em consequência do esforço coletivo
dos membros da guilda. A originalidade, presente no estúdio do artista, também pode ser
entendida como “uma nova forma de autoridade” (Idem: pg. 95).

Percebe-se que o ateliê de cerâmica contemporâneo brasileiro pode ser um misto da oficina
de artesanato medieval – por causa de sua organização a partir da transmissão do
conhecimento e valorização do coletivo – com o estúdio do artista renascentista, devido à
originalidade empregada nas peças de cerâmica e ao reconhecimento, na maioria das
vezes, de um único artista que assina as peças. Santoro acredita que essa caracterização
depende do ateliê, já que há aqueles onde artistas trabalham sozinhos, como no caso de
seu ateliê em Cunha, e outros que possuem uma hierarquia com mestre, ajudantes, e
alunos. Acredita também que um mesmo ateliê pode possuir as duas características, como
o seu antigo ateliê em Itaipava; comparando-o com a guilda medieval pois tinha alunos e
ajudantes/discípulos que partilhavam momentos em grupo, e com o estúdio do
Renascimento, já que Santoro trabalhava sozinha em sua criação. Honma também acredita
em um misto entre o ateliê do artista e a oficina coletiva, como descreve seu ateliê em
Moema; vê o seu trabalho particular como algo solitário, e o trabalho com os alunos como
algo mais aberto. Ela lembra, ainda, que no Renascimento os artistas passam a assinar
suas obras e que isso continua, mas diz que “nos dias de hoje, parece que há um retorno,
há uma necessidade de fazer esse trabalho em conjunto novamente”, resgatando assim o
trabalho coletivo da transmissão do conhecimento das guildas medievais.

Transmissão do Conhecimento

O espaço do ateliê é muito importante, pois além de valorizar o trabalho original do mestre,
mantém a troca que existe em um trabalho coletivo, por meio da vivência, da troca de
experiências, da orientação e do aprendizado, e do compartilhamento de momentos formais
e informais (SENNETT, 2009: pg.88). Assim a transmissão do conhecimento é característica
fundamental da maioria dos ateliês de cerâmica. Honma acredita que precisa retribuir à
natureza tudo o que dela recebe, e é esse trabalho que diz realizar com os alunos, “toda vez
que eu ofereço algo para um aluno, eu sei que ele vai me dar um retorno, e eu sei que com
isso eu vou crescer mais e vou poder ajudar outros alunos... acho que a minha proposta é
essa.” As orientações e demonstrações, em aula (figura 9-11), são individuais ou em
pequenos grupos, onde Honma se explica, falando sobre cada etapa do exercício, qual a
posição correta das mãos, sobre a postura do corpo e a respiração (como se estivesse
orientando a concentração).

   
Figuras 9-11: Honma ensinando.

Santoro gosta muito também de dar aulas e explica, “porque eu sinto que quando estou
dando aulas, estou me perpetuando, meu trabalho está se perpetuando nos meus alunos.”,
não porque queira que seus alunos façam o mesmo trabalho que ela, mas eles passam pelo
mesmo processo e técnica da forma como ela aprendeu com seus mestres, principalmente
em sua experiência na França. Santoro ensina diversas técnicas, ela explica o exercício a
ser realizado com desenhos no quadro e realiza demonstrações, orientando cada etapa do
trabalho, ela diz aos alunos, “a gente aprende também quando a gente observa” (figuras 12-
14). Sugere que os alunos desenhem a peça que irão desenvolver ou se utilizem de
imagens de referência, como parte de seu processo de projeto e criação.

Figuras 12-14: Santoro ensinando.

Percebe-se então que a técnica é ensinada nos ateliês de cerâmica por meio de muitos
exercícios repetidos e até, em alguns casos, através da cópia de um modelo, parecido com
o trabalho do aprendiz nas guildas medievais que se utilizava do “princípio da imitação: a
cópia como aprendizado.” (Idem: pg.72). Cada mestre, professor/ceramista, desenvolve uma
didática de trabalho, mas a criatividade artística e a intuição são muito mais difíceis de
serem ensinadas, a intuição pode apenas ser incentivada (Idem: pg.89). Por isso a
originalidade do mestre no Renascimento dificultava a transferência do conhecimento no
estúdio destes artistas. Parte do conhecimento que os ceramistas possuem provêm da sua
experiência, são os gestos que foram adquirindo e se transformaram em prática; muitas
vezes o ceramista não sabe explicar o que o levou a determinado resultado. Esse
conhecimento, explicado mais adiante, é o conhecimento tácito, “não dito nem codificado em
palavras” (Idem: pg.92). Sennett (2009) sugere então que, “a oficina bem gerida deve
equilibrar conhecimento tácito e explícito. Os mestres devem ser insistentemente induzidos
a se explicar, para expressarem o conjunto de passos e soluções que absorveram em
silêncio (...)” (Idem: pg.93).

Honma dá aulas de torno elétrico, ensinando da maneira como aprendeu no Japão. Ela
comenta que há métodos de ensinar criatividade, mas que pensa ser algo muito pessoal e
que o sofrimento e o esforço do aluno, podem ser um caminho interessante para a criação,
acreditando que aquele que não dispõem de tudo que necessita tem que buscar um
caminho novo para conseguir, rompendo assim fronteiras, como os artistas que observa na
história. “Tem que sofrer”, ela explica. Diz, então, que não consegue ensinar a criatividade e
este sofrimento, “eu ensino a técnica, dou a técnica pro aluno do que eu sei (...) e é muito
interessante (...) são vários tipos de personalidade e eu ensino as mesmas coisas e cada
um pega e me dá um retorno diferente, isso assim é muito enriquecedor”. Santoro, por sua
vez, acredita que existe uma limitação ao ensinar e isso também depende da personalidade
e criatividade do aluno, pois comenta que há alunos (a maioria) que não desenvolvem nada
além da técnica que ela ensinou, já outros, ela descreve, “vão além do que você foi” e
naturalmente criam. Ainda assim entende que é extremamente importante estimular a
criatividade no aluno, como pôde ser observado em suas orientações quanto à livre criação,
aos alunos no ICCC, a partir da técnica de escultura humana ensinada.

Sennett (2009: pg.72) pondera que é necessário deixar claro que o trabalho dos grandes
mestres estabelece os termos de referência, mas que o conhecimento é acumulativo e
cresce com o tempo por meio da experiência (aplicação das lições apreendidas). Além
disso, “A diferença entre a imitação bruta do procedimento e a compreensão mais ampla de
como usar o que se sabe constitui (...) uma marca de todo desenvolvimento de
capacitações.” (Idem: pg.73). Assim, o aluno/aprendiz, com o tempo deve aprender a
desenvolver de forma criativa as suas próprias peças. Santoro também considera que com o
passar do tempo o aluno vai adquirindo outros conhecimentos sem o seu direcionamento,
percebe este crescimento nos alunos que constantemente voltam para outros workshops.
Ela diz, “isso tem a ver com o tempo, sim, o tempo e a prática, que a pessoa vem e repete,
essa repetição dessa técnica traz também um pouco de criatividade”.

Processos - projeto e prática: argila transformada em cerâmica

Sennett (2009: pg.138) afirma que os artífices possuem consciência material e é a


curiosidade sobre o material que possuem que os impulsiona a realizar um trabalho de boa
qualidade. Devido ao poder de transformação do material a ser trabalhado, o processo
criativo é repetido: “[o] criador encontra o material no estágio do processo e por meio da
aplicação de tecnologia – antiga ou novo – um objeto é criado.” (FARIELLO, 2005: pg.148).

A peça de cerâmica encontrada nos ateliês, como afirma Reigger (In: ADAMSON, 2010:
pg.35) é formada por argila que é moldada em seu estado plástico, utilizando as mais
diversas técnicas para sua transformação, entre as mais comuns estão (figuras 15-17):
modelagem manual, utilização de placas ou “cobrinhas” de argila, e torno elétrico. É possível
também a utilização de argila líquida em moldes de gesso. Depois de acabada e seca, a
peça passa por duas queimas: a primeira, chamada de queima do biscoito, onde pode
receber camadas de engobe (barro colorido mole) em sua superfície e a segunda, queima
do esmalte (a uma temperatura mais alta que a primeira), na qual recebe uma camada de
um material vitrificante em sua superfície (o vidrado/esmalte). Essas queimas, em forno
elétrico, à gás ou à lenha, fazem a argila endurecer e todo o processo a transforma para que
ela se torne um objeto resistente e cheio de marcas estéticas deixadas pela criatividade do
ceramista que a produziu. Na Idade Média, os objetos desenvolvidos na Guilda, de forma
coletiva, eram criados durante a prática, na manipulação da matéria. É a partir do
Renascimento que há a incorporação do desenho como processo de projeto para a criação
das peças em três dimensões; como no caso do saleiro de Cellini, que utilizou da prática
bidimensional do desenho para o desenvolvimento das três dimensões em ouro (SENNET,
2009: pg.83).

Figuras 15-17: Técnicas: modelagem manual, placas, “cobrinhas” (autoria de Daniela Barros)

Hideko Honma explica que raramente as suas peças aparecem do acaso e que a sua
criação surge de uma necessidade de uso, em que busca formas para atingir um
determinado fim, já que suas peças são utilitárias. Fazem parte de seu processo de criação
desenhos, pesquisas na internet e em livros, observação à sua volta, experiências em
viagens, restaurantes ou até sonhos; aproveitando estas ideias, idealiza formas, tamanho de
peças ou ferramentas que pensa em utilizar. Ela possui cadernos de anotações com
desenhos e etapas a seguir (figura 16). Às vezes, ela também tem encomendas e deve
trabalhar a partir do pedido, seguindo conceitos ou cores pré-estabelecidos pelo cliente.
Comenta que existem meses que se sente mais criativa e outros mais produtiva, mas
entende que isso faz parte de seu trabalho e em algumas situações precisa trabalhar com o
prazo do cliente, ela explica, “quando você desenvolve técnicas, mesmo que você não
esteja inspirada, você tem a técnica e você põe a técnica ao seu serviço”. O processo de
trabalho da ceramista para a confecção de pratos (figuras 19-20), inclui as seguintes etapas,
segundo sua descrição: pesar e amassar 800gr. de barro, em que é auxiliada pelo seu
ajudante, que também prepara o torno e seu ferramental; utilizar discos de madeira no torno,
onde trabalha o barro utilizando sempre as medidas, por exemplo 15cm. de base; furar
então o monte de barro, abrir seu fundo e subir as paredes do cilindro (preocupando-se
particularmente com a base que deve ser levemente côncava); depois abaixar a borda e
passar um pedacinho de couro nela; cortar a peça do disco com fio de nylon ao terminar;
esperar secar e no dia seguinte normalmente já é possível dar acabamento (preocupa-se
em utilizar como referência para o diâmetro do pé na base a medida interna da curva do
prato); em uma semana de secagem as peças vão para a queima de biscoito no forno
elétrico; prepara seus vidrados com cinzas de vegetação (sendo, cinzas, terra ou argila,
mais de 50% da composição de seus vidrados), esmalta os pratos e queima em forno à gás.
Comentou ter lido muito sobre design: “Bruno Munari e Bauhaus”, como menciona, pois
acredita que é importante saber sobre a peça em relação ao corpo.

Figura 18: Caderno de desenhos; Figura 19: Honma torneando; Figura 20: Prato Hideko Honma.

Flávia Santoro declara que seu processo de criação tem início, na maioria das vezes, com
uma motivação interior (que pode ser um sonho) e assim, ela explica que seus projetos
possuem uma base ideológica baseada em algum sentimento seu. Depois da ideia, ela
desenha ou busca imagens de referência; esses desenhos podem ser croquis das peças
com suas dimensões e também moldes bidimensionais ou decorações da superfície (figura
21). Comenta que podem ocorrer mudanças na peça em relação ao projeto original,
mudando também as técnicas de produção e queimas que estavam designadas, ela explica
que isso ocorre por causa da interferência de seu momento pessoal. Fazem parte das
etapas de seu processo de trabalho para a confecção de xícaras (figura 22-23), segundo
sua própria descrição: preparar a argila, que busca na nascente de seu sítio, e demora
aproximadamente uma semana para fazer; amassar um monte de barro e no torno elétrico
fazer as peças em série (geralmente 15); no dia seguinte, com as peças um pouco secas,
dar acabamento também no torno e fazer as alças em placas de argila e “colá-las” nas
xícaras, uma a uma; as peças então secam em um local protegido por três semanas e
Santoro as prepara para a queima do biscoito, passando engobe; depois da queima de
biscoito em forno a lenha, esmaltar com vidrados que são preparados pela ceramista no dia
anterior (60% destes são a base de cinzas de suas queimas a lenha); enfornar as peças e
realizar a queima de alta temperatura em forno a lenha ou forno a gás; quando as peças
saem do forno, ela passa por um momento de apreciação e observação de seu trabalho,
estudando e anotando as avaliações que faz das peças, do forno e dos vidrados,
considerando esta como uma das etapas de seu trabalho. Ao final de sua descrição,
Santoro diz, “a cada fornada eu estou aprendendo.” A ceramista também explica que a
leitura teórica é uma prática e que passou muitos anos estudando a técnica de queima de
sal (que produz efeitos especiais na superfície das peças).

Figura 21: Desenhos e moldes; Figura 22: Santoro torneando; Figura 23: Xícaras Flávia Santoro.

A partir de observações empíricas realizadas para a pesquisa, percebeu-se que as


ceramistas têm muita atenção em relação à peça a ser desenvolvida, acompanhando todas
as etapas e conferindo na execução da peça, as medidas do projeto idealizado. Ambas
também trabalham com muito envolvimento, como se o corpo e o barro fossem um todo
único. A tranquilidade de Honma e a concentração de Santoro transmitem essa impressão.
Para se realizar um bom trabalho é necessário que o ceramista adquira consciência do
próprio corpo na relação com a argila, como Sennett (2009: pg.196) afirma: “Tornamo-nos
aquilo em que trabalhamos.” E assim existe uma relação entre o ceramista e o material com
o qual trabalha. Honma comenta com os alunos que quando a pessoa transforma o barro,
ela também se transforma.

Técnica e habilidade manual

Para o ceramista, o desenvolvimento do trabalho manual da cerâmica implica em um alto


grau de habilidade manual. A mão é a parte do corpo que possui a maior variedade de
movimentos, assim essa habilidade pode ser desenvolvida quando o ceramista controla
suas mãos da maneira como deseja. A mão é capaz de: pinçar objetos entre o polegar e o
indicador; suster objetos na palma e mexê-los com movimentos de impulso e fricção entre o
polegar e os demais dedos; segurar objetos com segurança em uma mão e trabalhar nele
com a outra, graças à pegada côncava (SENNETT, 2009: pg.171).

As mãos passam por tentativas e erros para que o artesão aprenda a melhor maneira de
utilizá-las como ferramentas. É muito importante diminuir o medo de cometer erros, pois a
técnica se desenvolve entre a segurança, a maneira correta de fazer algo – e a curiosidade
– a disposição de experimentar por meio do erro (Idem: pg.178). Percebe-se que faz parte
do processo de projeto e de produção da cerâmica, a tentativa e a experimentação, seja na
preparação de testes para um novo vidrado, no treino de centrar o barro no torno (quando
se prepara o barro para começar a trabalhá-lo) ou no esforço de fazer uma peça nova, onde
o ceramista se desafia e também aprende sobre si, como Sennett afirma, “as pessoas
podem aprender sobre si mesmas através das coisas que fazem” (Idem: pg.18).

A mão é talvez a ferramenta mais importante para o ceramista, pois além de possibilitar
tantos movimentos, ela também permite controlar o uso de outras ferramentas. O artífice
tem uma relação de amor por seus instrumentos, cada ferramenta tem sua finalidade e uma
tarefa a desempenhar. Na cerâmica, elas são utilizadas desde a modelagem, até o
acabamento e a esmaltação. Sempre aprende-se algo com a limitação de alguma
ferramenta, pois isso desafia o artesão a criar novas ou consertar as antigas, fazendo
improvisações ou dando outra função as existentes. Neste processo, o artesão pode
repensar a maneira de fazer as coisas durante seu trabalho.

Honma acredita que o iniciante do trabalho no torno, deve fazer o menor uso de
ferramentas, utilizando mais as mãos e o corpo; mas que depois de ter apreendido a
técnica, a pessoa pode fazer o uso de qualquer ferramenta. Para a ceramista, as
ferramentas essenciais são o corpo com boa postura e o torno. Fala sobre as ferramentas
que aprendeu a utilizar no Japão, ferramentas japonesas que dão formas arredondadas às
peças no torno. Comenta que esta ferramenta japonesa curva (figura 24) é entendida como
a continuação das mãos, pois possui uma forma arredondada similar a curvatura dos dedos.
Santoro considera, “ferramentas são importantes, um ateliê bem equipado é importante”, ela
precisa de torno, maromba para reciclar o barro, rolo, entre outros, mas diz que utiliza
poucas ferramentas, já que procura buscar a simplificação e utilizar muito a sua mão, pois
foi essa a maneira que aprendeu com os índios e os franceses. Ela afirma que a habilidade
está nas mãos, que é sua principal ferramenta. Durante a observação da confecção de uma
peça escultórica, depois de terminado o trabalho inicial no torno, ela altera a forma da peça
manualmente, apenas os dedos é que modelam a forma (figura 25).

Figura 24: Ferramenta japonesa (Honma); Figura 25: Modelagem manual (Santoro).

A coordenação e cooperação entre as mãos é de fundamental importância no trabalho com


a argila e o ceramista deve explorar de que maneira as mãos operam melhor juntas; por
exemplo na modelagem com as mãos no torno elétrico, em que a roda girando faz todo o
bloco de argila subir em espiral e passar pela forma côncava da mão, que também dá
sustentação ao barro em todo este processo. Sennett (2009: pg. 185) lembra que “a
coordenação funciona muito melhor se as duas mãos operarem juntas desde o início”. A
independência das mãos também pode ser necessária quando se deseja fazer mais de uma
atividade ao mesmo tempo. É indispensável conhecer e saber controlar a força das mãos e
dos dedos e reconhecer suas diferenças para que se possa tirar proveito delas, e até
mesmo para que se possa fortalecer o membro mais fraco. Normalmente é a mão mais
fraca que segura o objeto e a mais forte que o trabalha, o que lembra a maneira de Hideko
Honma tornear um pedaço de barro, onde a mão mais forte vai a frente da mais fraca,
pressionando a argila a subir; além disso observa-se em sua prática no torno a maneira
como suas mãos cooperam e se coordenam e a habilidade que demonstra em seus gestos
(figura 26). O autocontrole se mostra relevante, ao passo que a força deve ser dosada,
como no método de Flávia Santoro amassar o barro (figura 27). Esse método consiste em
batidas da palma da mão em blocos de argila que vão sendo cortados e juntados de forma
coordenada. O autocontrole, neste caso, garante o jeito certo de amassar o barro e evita
que os membros do corpo da ceramista sejam machucados.

Figura 26: Mãos de Honma no torno; Figura 27: Santoro amassando o barro.

Ligação da mão à mente

Sennett (2009) acredita que os trabalhos que envolvem habilidade manual fazem uso
constante da mão e também da cabeça/mente e afirma que nestes casos “a técnica estará
sempre intimamente ligada à expressão.” (Idem: pg.169). O autor também cita Kant ao
afirmar que “A mão é a janela que dá para a mente.” (Idem). As mãos altamente capacitadas
são capazes de desenvolver valores e assim o fabricante deixa marcas pessoais no objeto
que produz, representando nele a sua presença (Idem: pg.176). Fariello (2005: pg.150)
considera como “objetos criativos” aqueles realizados com um propósito consciente pela
aplicação da mente e da habilidade das mãos, que se transformam na evidência da
presença da mente humana trabalhando no processo de fabricação.
Santoro relata que vê no trabalho de seus diferentes alunos que cada produção se
apresenta de uma maneira, e justifica dizendo que isso está ligado “ao sentimento e à
mente” do estudante. Assim, ela conclui que somos capazes de reconhecer as peças de
outros ceramistas, a partir do momento que conhecemos seu trabalho, pois diz que as
diferenças entre as peças dos ceramistas ocorrem também por causa do formato da mão de
cada um. Ela acredita que não é possível alguém realizar uma peça exatamente igual a de
outra pessoa, pois explica “cada pessoa tem uma tendência de formular na prática alguma
coisa que é interna dela”. Honma acredita ainda que além da personalidade de cada um que
se apresenta em suas peças, vê diferenças no próprio trabalho de uma pessoa. Ela cita seu
próprio exemplo – um trabalho muito intenso em que está produzindo mais de 2000 peças
para um evento – ela faz 100 peças por dia e percebe que há leves diferenças nas peças,
elas não são idênticas, a ceramista explica, “é por causa do meu dia, então eu impregno
essa peça à maneira que eu estou vivendo naquele momento, porque eu não sou uma
pessoa exatamente igual todos os dias”. Ela reflete à respeito de não se preocupar para que
todas as peças fiquem iguais, e diz “estou deixando que este sopro faça parte”, acredita que
está gravando em cada peça um momento seu.

Aperfeiçoamento por meio da repetição

“A repetição para um ceramista manual faz parte de sua natureza.”, afirma Bernard Leach
(In: LARSEN, 1993: pg.59). Em concordância, Sennett (2009: pg.193) afirma que “o tempo
necessário para que alguém se torne um especialista costuma ser estimado em 10 mil
horas”, para que “as habilidades mais complexas fiquem gravadas tão profundamente que
se transformem em conhecimento tácito e prontamente acessível.” É por meio da repetição
da técnica que os ceramistas são capazes de incorporar os movimentos realizados durante
a produção do artefato de cerâmica. Por isso adquirir habilidade artesanal e manual
demanda tempo pois a consolidação de uma prática é possível ao se transformar
gradualmente os atos da mão em conhecimento tácito (Idem: pg. 92). O conhecimento tácito
(SCHÖN, 1983) é aquele incorporado somente por meio da prática, uma vez que é
subentendido, e não é capaz de ser transmitido em palavras. É por isso que o exercício de
experiência material de repetição da prática se faz importante, já que a técnica pode ser
ensinada mas muitos conhecimentos que são apreendidos por meio do fazer não são
possíveis de ser transferidos pelo mestre.

Essa marca de dez mil horas de Sennett (2009) se traduz em dez anos de prática diária de
três horas. Os sete anos de prática dos artesãos nas guildas medievais, até se tornarem
mestres, corresponderiam a pouco menos de cinco horas por dia. Hideko Honma considera
que além de estudos teóricos, levou dez anos de “trabalho braçal” até considerar que estava
fazendo algo bem feito, que realmente valia a pena. Se somados, os anos de estudo de
Flávia Santoro corresponderiam a doze anos de cursos, faculdade e workshops. Dessa
forma, percebe-se que o tempo e a repetição são indispensáveis na aprendizagem, já que “a
habilidade é uma prática decorrente de treinamento” (SENNETT, 2009: pg.64). Mas ao
mesmo tempo “o puro e simples movimento repetido torna-se um prazer em si mesmo.”
(Idem: pg.196), e essa sensação à respeito da prática repetida é capaz de elevar seu
caráter de rotina, pois a cada movimento o ceramista aprende e desenvolve novas
habilidades, e pode também, como acredita Schön (1983), refletir sobre o que faz. “Fazer
algo repetidas vezes é estimulante quando se está olhando para frente. A substância da
rotina pode mudar, metamorfosear-se, melhorar, mas a recompensa emocional é a
experiência de fazer de novo.” (SENNETT, 2009: pg.196).

Honma considera a repetição dos exercícios no torno muito importante para o aprendizado
desta técnica. Na sua experiência no Japão ela teve que fazer mil cilindros iguais, e por isso
também obriga os alunos a fazerem inúmeros deles. Ela ficou pouco mais de dois meses
repetindo o mesmo exercício, pôde dar acabamento em apenas cem que foram
selecionados pelo professor e não pôde participar da esmaltação e queima das cinco peças
que passaram pela avaliação do mestre. Na época, não valorizou esta experiência, mas
depois percebeu que era capaz de fazer qualquer peça no torno a partir daquele
aprendizado. Seus alunos realizam o mesmo exercício por diversas aulas, são peças
repetidas nas mesmas medidas e formas, que passam pela avaliação da professora e às
vezes devem ser desmanchadas. Honma diz aos alunos: “desmanchar e fazer de novo é tão
bom...vocês não sabem como é bom”. Observou-se em seu ateliê que mesmo os exercícios
realizados de maneira errada são analisados como forma de aprendizado e assim refeitos
de uma maneira melhor. Santoro acredita que por meio da repetição o ceramista vai se
aprimorando e a cada repetição, ele faz melhor. Ela conta que em seu trabalho seriado (no
qual faz vinte xícaras ou trinta bowls, por exemplo), ela geralmente descarta as primeiras
peças pois sente que ainda precisa repetir de duas a três vezes até conseguir fazer a forma
da peça que idealizou para então fazer as outros iguais.

“A capacidade de concentração física segue regras próprias, baseadas na maneira como as


pessoas aprendem a praticar, a repetir e a aprender com a repetição.” (SENNETT, 2009: pg.
194). Lembrando a maneira como Hideko Honma e Flávia Santoro trabalham a
concentração na prática do torno. Honma apresenta uma especial preocupação com a
postura e a respiração, assim como a maneira em que as mãos se envolvem com a argila.
Santoro, por sua vez, considera que o tornear do barro necessita de uma força que não é só
física, mas mental e explica sobre a utilização do “terceiro olho” localizado na testa, que
auxilia na busca do equilíbrio. Ela diz que nesta concentração, ocorre um certo afastamento
do que está ao redor; e a partir de observação, percebeu-se que seu corpo interage por
inteiro com o barro, ela explica “a peça é uma extensão do seu corpo”.

Rotina ou ritual?

Fariello (2005: pg.163) discute sobre o ritual vivido pelo ceramista que produz as peças e o
ritual experimentado pelos usuários que utilizam as peças. No seu ponto de vista, há mais
do que uma repetição de etapas que transformariam a prática do ceramista em uma rotina;
como afirma Sennett (2009: pg.196), a repetição é também estimulante para o
artesão/artista. "Como muitos artesãos podem testemunhar, a satisfação do processo no
estúdio é encontrada em uma prática em constante evolução e na experiência de perder a si
mesmo no ato de fazer." (FARIELLO, 2005: pg.171). Dessa maneira, a prática em cerâmica
deixa de ser apenas uma rotina, quando o ceramista é capaz de criar, refletir e aprender a
cada dia sobre o que faz. Essa atividade se transforma em um ritual quando há uma
conscientização intensa das ações que a constituem.

Honma conta que o aluno iniciante não valoriza esta repetição, mas percebe que depois de
um tempo os alunos tem um enorme prazer de fazer e ver as peças prontas, o que também
dá orgulho à ela. Para a ceramista, repetir não só o processo mas fazer diversas peças
repetidas é interessante, pois o ceramista tem mais liberdade em trabalhar nas peças sem
medo de perdê-las, já que não são únicas e ele é capaz de fazer outras iguais. A repetição,
além de trazer satisfação, facilita o processo, como explica a ceramista, “vai ficando muito
fácil... parece que o seu corpo, o seu gesto, a sua ação, parece que vai se tornando uma
coisa só, o barro, a peça e você... a forma vai saindo sozinha.” Santoro considera a
repetição prazerosa, porque traz aperfeiçoamento, ela explica “cada vez que eu repito, eu
sinto que eu fiz a forma melhor, que ela está mais bonita... então isso invoca meu processo
criativo e me deixa feliz”. Mas também considera que há etapas de todo o processo repetido
que são mais cansativas e que não gosta muito. Flávia completa: “ceramista é um vício, é
mais que um prazer... quando eu acabo uma fornada, eu já estou pensando na outra”.

CONCLUSÃO

Como conclusão, recorremos à noção de Fariello (2005: pg.154), de que os “objetos


criativos” devem ser lidos a partir de um olhar profundo e da vivência do usuário com o
objeto, que revela histórias e significados por meio de cor, forma, proporção, equilíbrio, além
de valores adquiridos por meio do seu uso. É a partir da experiência do usuário com a peça
de cerâmica que ele se aproxima do ceramista e dos processos de fatura que deram origem
ao artefato cerâmico, que são estudados nesta pesquisa.

Segundo Fariello (2005), o objeto pode ser lido sendo considerado como um documento,
uma metáfora ou um ritual. “Como um documento, o objeto é um registro físico do processo
que o produziu.” (Idem: pg.149). Ele é, portanto, a evidência do ato criativo e das decisões
de projeto, é o resultado do que aconteceu no ateliê entre o ceramista e a argila,
evidenciando o sucesso ou o fracasso do ceramista. As peças criadas e produzidas por
Honma e Santoro são, sob essa perspectiva, o resultado dos processos de criação e
produção pelo qual passaram, que envolvem diversas etapas desde o projeto ou idealização
do utilitário, a preparação ou o amassar da argila, a produção da peça envolvendo diversas
técnicas, acabamentos da superfície e queimas; transformando assim a argila e deixando
suas marcas na peça de cerâmica. O objeto como metáfora carrega mais de um significado,
que pode não estar ligado a sua função tradicional de atender a uma necessidade, já que
vai adquirindo diversos valores, conforme o uso que tiver (Idem: pg.160). Assim, um pote
entendido como um recipiente, pode conter alimento, mas também pode conter histórias,
lembranças e significados importantes para o usuário/dono deste objeto. As peças utilitárias
de cerâmica de Honma e Santoro, idealizadas para um determinado fim, já apresentam sutis
características de suas personalidades e podem ainda, adquirir outros diversos significados
para o usuário que experimentá-las. O objeto como ritual revela o ritual do fazer e do conter.
Apresenta a repetição do processo, que traz aperfeiçoamento ao ceramista, como um ritual
(como pôde ser observado nos ateliês de Honma e Santoro) e também permite que o
usuário participe deste ritual por meio do uso do objeto terminado, como que em um
segundo ato criativo. O que caracteriza essas experiências como um ritual é a percepção
consciente do objeto, seja durante a sua criação ou sua utilização. Fariello (2005) levanta a
questão da possibilidade de transferência de significado do artista/artesão ao usuário por
meio do objeto, e assim “o objeto possui uma incrível capacidade de transformar a
experiência diária, como o fabricante originalmente transformou o material.” (Idem: pg.163).

Acredita-se que o objetivo desta pesquisa de discutir a teoria sobre processos de trabalho e
prática artesanal com a prática profissional das ceramistas Honma e Santoro tenha sido
alcançado. Podemos concluir que a peça cerâmica resulta de um prática repetida dentro do
ateliê (organizado a partir de um misto de trabalho individual e coletivo), que é possível
graças ao desenvolvimento da habilidade manual e a capacidade de expressão do
ceramista por meio de sua criação, incluindo as diversas etapas de produção. O utilitário de
cerâmica, como resultado, tem ainda efeito sobre o seu usuário dependendo da maneira
que desempenhará sua função; assim como teve efeito sobre seu fabricante, o ceramista,
de acordo com a forma pelo qual foi criado e produzido (Idem: pg.149).

Hideko Honma explica que faz utilitários porque, “me dá uma satisfação muito grande fazer
peças que eu possa usar.” Ela começou a fazer utilitários criando louças de uso doméstico
para a sua família e percebeu que seus filhos participavam em sua criação fazendo
comentários. Ela achou isso muito bonito, pois era algo que fazia que envolvia o alimento e
sua família apreciava. A ceramista diz, “faço cerâmica, porque me dá essa satisfação muito
grande”. Flávia Santoro, trabalha com esculturas e utilitários e tem paixão por estes, pois
sente prazer em usar peças utilitárias que sejam objetos de arte, “...é um colírio para os
olhos, é um colírio para o paladar”. “Embelezar, é uma motivação pra mim... e dar um prazer
sensório para aquelas pessoas que estão comprando os utilitários”, conclui a ceramista.

REFERÊNCIAS

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- RIEGGER, Hal. Primitive Pottery. (In: ADAMSON, Glenn (ed.). The Craft Reader. New
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- SCHÖN, Donald A. The Reflective Practitioner – How Professionals Think in Action. USA:
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- SENNETT, Richard. O Artífice. Rio de Janeiro: Record, 2009.

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