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O corpo da alma e seus estados: uma perspectiva

amazônica sobre a natureza de ser-se humano1

Anne-Christine Taylor

Dentre as várias “coisas que não precisam ser dade, fomos ensinados, mais notadamente por
ditas”2, está o fato do quão honrada me sinto Strathern (cf., por exemplo, 1992), que a socie-
pelo convite para ministrar esta conferência. dade não está em lugar algum senão no corpo,
Honrada, mas também, igualmente, se não ou seja, na sequência dos conjuntos de relações
em maior medida, horrorizada. Primeiramen- envolvidas em sua construção e desconstrução.
te, porque a ocasião evoca uma série de figuras Esta perspectiva lida efetivamente com as mui-
paternas, mortas ou vivas, no confronto com as tas dificuldades levantadas por reificações socio-
quais todos nós afiamos nossos instrumentos lógicas mais antigas, mas não é fácil reconciliá-la
em nossa juventude e de cuja benevolência cabe, com qualquer visão plausível da individuali-
então, suspeitar; segundo, por eu ser uma antro- dade, sendo difícil imaginar que as pessoas, na
póloga francesa, e às escaramuças – que são um verdade, experimentam a si próprias simples-
dos grandes prazeres do longo relacionamento mente como uma sucessão de concatenações
entre nossas duas comunidades científicas –, eu estruturadas de fragmentos, e ainda mais difícil,
acredito que as apostas foram elevadas muito na ausência de uma subjetividade minimamen-
drasticamente. Terceiro, porque escolher um ca- te estável, dar conta da continuidade relativa da
minho em meio ao campo minado de paradig- tradição. Assim, considerando a importância
mas conflitantes em que consiste a antropologia desses trabalhos, meu objetivo é mostrar como
hoje é uma questão inerentemente estressante. uma imagem corporal é experienciada subjetiva-
O problema que quero considerar aqui, de mente, e como uma pessoa é, desta forma, capaz
importância central para Malinowski, é aque- de reproduzir as estruturas sociais que moldaram
le da relação entre ambiente social e psicologia sua individualidade. Esta é, admito, uma questão
individual. Na verdade, esta conferência é uma absurdamente ampla, mas sua magnitude incita
espécie de resposta ao chamado feito no capítu- o tom provocativo que se ajusta, idealmente, ao
lo introdutório dos Argonautas para estudarmos formato de uma breve palestra. Como Nietzsche
“tudo aquilo que mais intimamente lhe diz res- muito apropriadamente diz, grandes questões
peito [ao homem], o domínio que a vida exerce são como banhos frios: deve-se entrar e sair deles
sobre ele” (Malinowski, 1976, p. 38)3, na medi- o mais rápido possível.
da em que tento aqui definir o que implica, para Como ponto de partida, tomo um paradoxo
um indivíduo, estar vivo e experimentar a indi- menor implícito na etnografia das culturas indí-
vidualidade [selfhood] de um corpo socialmente genas das terras baixas da América do Sul. Por
construído em uma cultura amazônica. Muitas um lado, relatos antropológicos sobre esses gru-
pesquisas recentes se dedicaram a questões deste pos são repletos de afirmações no sentido de que
tipo, de tal maneira que o corpo tem, em grande os índios amazônicos não acreditam que a morte
medida, substituído a sociedade como o prin- possa resultar de causas naturais; ao contrário,
cipal foco analítico de nossa disciplina; na ver- eles a enxergam como causada pela ação humana

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maligna4. Sob tal perspectiva, a morte existe so- naturalística. Isto, entretanto, deixa-nos com o
mente como uma forma de homicídio, evidente problema de dar conta da coexistência de dois
ou clandestino. Esta concepção de mortalidade conjuntos de crenças aparentemente contraditó-
é pensada como estando no cerne de dois tipos rias. É claro que se poderia argumentar, e atual-
de práticas sociais altamente importantes, quais mente se o faz com frequência, que a exigência
sejam, o xamanismo e as várias formas institu- de coerência lógica nas representações específi-
cionalizadas de vingança e hostilidade – ora entre cas de uma sociedade dada não seria mais do que
grupos domésticos, ora entre segmentos tribais e preconceito antropológico, e que descrições que
até mesmo entre tribos ou entidades étnicas. Por apresentam a cultura como um corpo auto-con-
outro lado, em todos esses grupos, sempre nos tido e logicamente impecável de proposições
deparamos com um ou vários mitos sobre a ori- metafísicas não teriam absolutamente nenhu-
gem da mortalidade, nos quais a morte parece ser ma semelhança com o modo como as pessoas
vista por um viés muito mais “naturalista”: como realmente pensam ou agem. Na verdade, dada a
uma característica do mundo tal como ele é e, em ubiquüidade daqueles processos de “criolização”
suma, como um inescapável fato da vida5. Este que muitos antropólogos enfatizam em seus es-
segundo ponto de vista parece implicar que os tudos, assim como a compartimentalização dos
povos amazônicos, no fim das contas, concebem processos mentais defendida pelos psicólogos
a morte como algum tipo de fenômeno natural cognitivistas, deveríamos considerar a possibili-
universal. A ‘racionalidade’ óbvia desta crença, dade da contradição – e, de fato, esperá-la.
do nosso ponto de vista, atrai muitos antropó- Permitam-me dizer desde já que, em termos
logos para um tipo familiar de funcionalismo es- gerais, endosso inteiramente as críticas “cog-
pontâneo, que os leva a explicar a visão vingativa nitivistas” das tradicionais visões antropológi-
da mortalidade como um dispositivo ideológico cas de cultura, tais como aquelas desenvolvidas
necessário para a continuidade de instituições por Boyer (1990; 1993) ou Bloch (1991; 1992;
sociológicas centrais, o pressuposto subjacente 1993) em seus recentes trabalhos. É a mais pura
sendo o de que os índios não acreditam nessa vi- verdade que nenhum povo pensa de fato da for-
são vingativa da mesma maneira que acreditam ma como os antropólogos parecem acreditar, e
na visão naturalista da morte. Afinal, se, de qual- que as pessoas não recorrem a um modelo men-
quer forma, as pessoas estão predestinadas a mor- tal de sua cultura, como alguém faria a um texto,
rer, parece desnecessariamente redundante supor a fim de produzir afirmações e práticas não-
que estão sempre sendo assassinadas; assim, a -contraditórias. Ao mesmo tempo, me oponho
abordagem homicida da mortalidade tende a ser fortemente à visão de que não há sistematicidade
tratada como se fosse meramente um astuto arti- durável na cultura além daquela produzida pe-
fício sociológico. las narrativas antropológicas ou daquela criada
Este tipo de abordagem é certamente inacei- localmente pelas dialéticas da etnicidade. O fato
tável, como de fato qualquer antropólogo que de que a cultura se assenta em grande medida
pare para pensar sobre isto imediatamente reco- naquilo que “não precisa ser dito”, não quer di-
nhece, se não por outra razão, porque a “ideolo- zer que qualquer coisa seja válida, e que não haja
gia” é obviamente experienciada como verdade algum grau de integração entre modelos mentais
e não como falsa consciência. Além disso, com compartimentalizados. Esta afirmação é puro
bases empíricas, os índios parecem adotar a senso comum. Ainda assim, não é fácil definir
visão homicida muito mais fortemente que a e nem dar conta da fonte e da natureza precisa

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desta relativa coerência6. Tenho a impressão que um mito caracteristicamente breve e conciso
ela deva residir, em alguma medida, em uma cer- explicando a mortalidade como um resultado
ta propriedade de circularidade inerente aos mo- de um ato de desobediência acidental e intei-
delos mentais compartilhados pelas pessoas de ramente trivial8. Não tenho nenhuma intenção
qualquer cultura; em outras palavras, no fato de de me deter sobre este mito, que termina com
que estes aglomerados conceituais auto-evidentes a afirmação lapidar “que agora haja a morta-
e discursivamente não elaborados, que podemos, lidade”; gostaria apenas de ressaltar dois de
por conveniência, chamar de premissas, devem seus aspectos importantes. Primeiramente, este
se remeter uns aos outros, e é precisamente a mito postula uma abrupta e massiva passagem
partir deste processo circular de mútua referên- de um tempo de indiferenciação, quando ha-
cia que eles ganham sua qualidade de obviedade. via “somente vida”, para um tempo em que
No que se segue, tentarei mostrar o quanto uma havia vida e morte – ou seja, a vida como nós
definição única, precisa e intrincada de personi- a conhecemos. Porém, o mito não diz nada so-
tude e individualidade emerge justamente de tais bre esta mudança brutal e não a descreve. Em
cadeias de noções circulares e não elaboradas, e, outras palavras, ele focaliza um par de termos
ainda, buscarei entender como uma ideia com- polares mais do que a natureza da relação en-
plexa vem a ser desenvolvida sem que ninguém tre esses termos. Segundo, conceitualizando a
nunca efetivamente a pense ou expresse. E isto, origem da finitude como resultado de um ato
é claro, levanta o problema do que as narrativas trivial de transgressão, o mito estabelece uma
antropológicas podem e devem descrever, uma enorme – monstruosa, de fato – desproporção
questão à qual retornarei mais tarde. entre causa e efeito, entre um ato e sua conse-
Os Achuar, povo jívaro das terras baixas do quência. Esta propriedade, comum a muitas
leste do Equador7, oferecem um perfeito exem- narrativas míticas, poderia ser melhor explica-
plo da contradição implícita que mencionei da assumindo-se que certos tipos de mitos são
acima. Em sua visão, doença e morte são, inva- na verdade proposições anti-causais: em outras
riavelmente, o resultado de um ato inspirado por palavras, eles não justificam o mundo e expli-
uma intencionalidade deliberadamente homici- cam como passou a existir ou como alguém
da, operacionalizada através do recurso ao ma- deve se comportar, como se costumava pensar
quinário invisível do enfeitiçamento causado por (­Malinowski incluído); em lugar disso, eles des-
dardos invisíveis. Além disso, eles não fazem dis- crevem o mundo tal como ele é de um modo
tinção precisa, nem mesmo lexicalmente, entre altamente problemático, tornando, assim, pa-
doença e morte, a diferença entre os dois estados radoxal o óbvio. Este é precisamente o motivo
sendo uma questão de grau, antes que de tipo. pelo qual ninguém “acredita” no que dizem os
Isto implica que ambos são vistos como pontos mitos da mesma forma como se acredita, diga-
em um mesmo processo, ligados por uma série mos, na descrição de um espírito. Se é assim, o
de metamorfoses, e não como condições ontolo- que distingue as duas perspectivas sobre a mor-
gicamente distintas. Mais ainda, para eles a do- talidade não é uma questão de conteúdo, mas de
ença é um único fenômeno, sejam quais forem tipo de discurso: uma delas, a visão homicida,
seus sintomas, físicos ou somáticos; não há doen- apresenta a morte como um processo gradual
ças específicas, apenas sofrimento indiferenciado. cujos extremos permanecem indefinidos, e sua
No entanto, como a maioria dos outros ênfase está em explorar a natureza da relação
povos amazônicos, os Achuar também contam processual entre polos não-marcados; a ou-

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tra – a visão mítica e naturalística –, apresenta criaturas; entidades ou shuar deste tipo também
termos nitidamente definidos em uma relação aparecem proeminentemente no discurso e na
paradoxal e, portanto, indefinida. Assim, o que prática xamânicas, bem como nas magias de cul-
apareceu inicialmente como uma contradição tivo e de caça. Entretanto, se estes seres imaginá-
entre conteúdos, ou seja, entre duas concepções rios podem em certas circunstâncias ser definidos
diferentes de morte, pode agora ser visto como como pessoas, ou seja, como parte do “nós”, em
uma articulação provavelmente necessária entre outros contextos eles são bem diferentes de pes-
dois tipos distintos de representação9 de uma soas reais, por várias razões: às vezes porque estão
relação. mortos e outras vezes porque acredita-se que são
Para entender a natureza desta articula- como humanos apenas sob certas condições de
ção, devemos começar olhando mais de perto interação. O que eles de fato compartilham com
a mortalidade como um modo processual de os verdadeiros humanos vivos, no entanto, é a
relação; e isto, por sua vez, implica em entender consciência e a intencionalidade. Essas são pro-
o que estar vivo significa em termos jívaro. Até priedades que para os Achuar não são limitadas
certo ponto, isto é uma questão simples: estar a tipos específicos de seres, mas atribuíveis, em
vivo é ser percebido, e se perceber, como uma determinados contextos, a vários tipos diferentes
pessoa, uma noção localmente abarcada pelo ter- de coisas, incluindo as inanimadas; a vida, em
mo shuar. Esta expressão se refere a um conjunto suma, é um estado mental postulado mais do
multi-folheado de relações entre termos contras- que um estado da matéria.
tivos: então, de acordo com o contexto, o termo Como consequência disso, ser um humano
shuar se refere a “minha parentela bilateral” em vivo e verdadeiro implica em exibir um tipo
oposição a outras, “meu grupo local” em opo- especial de aparência corporal, praticar certos
sição a outros grupos territoriais, “Achuar” em tipos de comportamento comunicativo e social
oposição a outras unidades tribais jívaro, “­Jívaro” e possuir certos estados de consciência. Para
em oposição aos brancos ou outros índios, e especificar esta combinação que define a hu-
assim por diante. Em suma, o termo funciona manidade viva e verdadeira, devemos começar
como um classificador “nós/eles” genérico. por olhar mais de perto a aparência corporal e
Para os nossos propósitos, o interessante sobre explorar algumas noções achuar concernentes
este classificador é que, em determinados contex- ao corpo. Os traços salientes do modelo mental
tos, o “nós” que ele define inclui duas classes de que dão forma a estas ideias são os seguintes.
seres imaginários. Uma delas se refere a espíritos Primeiro, e surpreendentemente, os Achuar
caracterizados pela sua aparência humana ordi- possuem teorias notavelmente não elaboradas
nária e seu comportamento inteiramente não sobre a procriação, e têm, com efeito, muito
-humano e, de fato, inumano: eles são solitários, pouco a dizer sobre a concepção e a formação
cegos, não comem e existem em um estado de de uma criança; questões desta natureza são cla-
desejo generalizado e permanente. A outra classe ramente tidas por eles como irrelevantes. Além
inclui espíritos com aparência não-humana que, disso, a gestação e o nascimento não são rituali-
contudo, comportam-se como seres humanos, zados e não há mitos explicitamente preocupa-
uma vez que usam língua e sinais, seguem regras dos com a concepção e a procriação10. Segundo,
morais e são dotados de emoções humanas. Na se examinarmos as proibições e observâncias
verdade, uma grande parte da mitologia jívaro ligadas às substâncias e funções corporais – um
é dedicada à descrição das ações destas últimas conjunto de práticas geralmente considerado de

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particular importância para a compreensão das eles – e não porque esses metabolismos são
ideias indígenas sobre a formação do corpo e o ontologicamente distintos.
modelamento da pessoa – algumas propriedades Somos assim levados à conclusão de que
interessantes começam a emergir. As proibições o que diferencia as espécies é essencialmente
são mais numerosas e rigorosamente observadas a forma ou, mais precisamente, a aparência.
precisamente naquelas práticas e situações que, Como já mostrei em outra ocasião (Taylor
do ponto de vista indígena, envolvem um pro- 1993), do ponto de vista jívaro, esta aparên-
cesso de transformação: fazer uma canoa, pre- cia se refere ao conjunto de formas corporais
parar o veneno curare, padecer por mordida de diferenciadas – particularmente rostos –, es-
cobra. Assim, a relativa escassez e frouxidão das pecíficas a cada classe de seres animados. Es-
proibições ligadas à gravidez e ao parto susten- tas formas existem em número limitado e são
tam a visão de que estes processos não são vistos infinitamente recicladas, o que explica porque
como semelhantes a outras metamorfoses cultu- não existe aqui criação natural e porque o
ralmente enfatizadas. Em outras palavras, e ao nascimento não é visto como um processo de
contrário da maneira como a morte é vista em transformação ou de “fabricação” que adiciona
certos contextos, o nascimento nunca é pensado alguma coisa nova ao mundo. O nascimento
como um processo de transformação, e não há, é um reaparecimento, e a pessoa achuar, des-
portanto, nenhum paralelismo entre o entrar no te modo, chega pronta em termos de atributos
estado de ser um humano verdadeiro e vivo e o corporais. Segue-se disso que a noção Jívaro de
sair dele. Também deveríamos destacar que, em identidade pessoal deve ser enraizada na per-
relação aos seus efeitos, as substâncias corporais cepção de singularidade da forma, e não, como
não formam uma classe distinta de outras subs- as noções ocidentais pós-freudianas nos fariam
tâncias, não corporais: o sêmen, por exemplo, acreditar, em uma realização gradual da inte-
tem as mesmas propriedades que o curare, que gridade e autonomia corporais, uma vez que os
o veneno de cobra, ou que a sensação de quei- corpos jívaro não possuem especificidade orgâ-
mação de pimenta vermelha; e o sangue mens- nica. Ainda assim, assumir que os Achuar, na
trual é apenas sangue, ou, se ele tem qualquer verdade, experienciam a si próprios como sin-
poder, este é proveniente de atributos não es- gularidades puramente genéricas desafia o bom
pecíficos, tais como a potência do vermelho ou senso. Uma forma impessoal particularizada
a de ser pesado. Finalmente, coisas tidas como pode dar ao Eu [self] sua integridade, mas ob-
vivas, ou seja, às quais se atribui intencionalida- viamente não pode lhe conferir subjetividade.
de e consciência, são todas fundamentalmente A subjetividade, entretanto, é primaria-
similares em termos de atributos orgânicos e mente uma questão de refração: ela se origina
mecanismos fisiológicos: um morcego ou um na noção que alguém tem da percepção que
cachorro, ou mesmo um pé de mandioca, são outros têm de seu próprio Eu. E é ai que deve-
todos vistos como organizados da mesma for- mos procurar por uma solução para o enigma
ma. Eles funcionam de acordo com processos que acabei de evocar – de como a experiência
biológicos idênticos, e sua matéria corporal – de um corpo impessoal, externamente criado,
aparências à parte – é a mesma. Se nós humanos pode ser vivenciada subjetivamente. Acredito
não estamos normalmente cientes deste fato, que tal solução possa ser encontrada na teia de
isto se deve a razões epistemológicas – porque noções referentes ao afeto e à memória, se por
nós normalmente não nos comunicamos com memória entendemos a imagem mental que

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formamos de pessoas ou coisas. Como todos magicamente induzida do emissor11. Em suma,


nós sabemos a partir da leitura do belo livro de os Achuar certamente endossariam a afirma-
Gow (1991), a memória, para os povos ama- ção de Wittgenstein de que o corpo é a melhor
zônicos, está intimamente ligada ao parentes- imagem que podemos ter da alma, particular-
co. De certa forma, na verdade, ela é o próprio mente por sua reversibilidade, uma vez que é
parentesco. Nessa visão, relações sociais consis- igualmente óbvio para eles que a alma também
tem na condensação e na memória dos estados é a melhor imagem que podemos ter do corpo
afetivos construídos pelas interações diárias como uma forma personalizada genérica.
nos atos de alimentar, partilhar e trabalhar. A A socialidade, como uma memória ineren-
imagem mental pessoal que se tem dos outros temente afetiva, foi descrita com grande sutile-
como parentes é moldada por esta teia de sen- za e perspicácia pelo que, em Paris, chamamos
timentos; assim, a imagem do Eu, na medida de escola inglesa de americanismo. Contudo, as
em que se baseia na atribuição de imagens que descrições de nossos colegas me parecem, com
outros têm dele, é necessariamente permeada frequência, um tanto unilaterais e, de fato, surpre-
pela memória que os outros possuem de você. endentemente angelicais, uma vez que tendem
Ela é precisamente uma representação desta a minimizar um componente vital das relações
imagem genericamente singular, embora indi- sociais, quais sejam, a hostilidade ou a disposição
vidualizada, da pessoa, denotada pela expressão vingativa. Enquanto os ingleses são muito bons
vernacular wakan, um termo normalmente tra- no que toca ao amor, acredito que nós franceses
duzido como “alma” e que, na verdade, refere-se levamos vantagem na questão do ódio12. A hosti-
à imagem refletida de uma coisa, à aparição de lidade é um aspecto particularmente importante
alguém em um sonho, como também à consci- das relações sociais e das configurações psicológi-
ência daquele que sonha. Sobretudo, refere-se cas a elas inerentes, sobretudo em uma sociedade
ao fantasma de uma pessoa falecida recente- como a dos Jívaro, que é estruturada por vende-
mente, ou seja, a uma memória mutilada, na tas endêmicas e guerras intertribais. Aprender a
medida em que consiste na substantivização odiar, ou antes, absorver o ódio do tecido do am-
da intersubjetividade outrora fundida com a biente social, é tão importante para eles quanto
imagem de uma forma corporal que não existe aprender a amar. E é claro, a hostilidade também
mais. A relação constitutiva entre subjetivida- alimenta a experiência do Eu; ela colore, tanto
de e laços interpessoais nos permite entender quanto o amor, a textura da imagem corporal
porque a visão, a linguagem e, de uma maneira como aparência singularizada que, como vimos,
mais geral, a comunicação constituem um eixo está no cerne da individualidade jívaro.
tão vital na definição da individualidade, uma Se o “Eu” enquanto pessoa é um estado, ele
vez que a imagem refratada é, em grande medi- é também, por natureza, um estado altamente
da, uma descrição implícita, e até às vezes explí- instável, na medida em que a paisagem interior
cita, da pessoa. Os próprios Achuar estão bem da pessoa é moldada pelo entendimento que ela
conscientes desse fato, como pode ser deduzido, tem da percepção que os outros têm dela mes-
dentre outras evidências, da estrutura de seus ma. A integridade da sensação que se tem de si
cantos mágicos de amor. Esses são, invariavel- mesmo é vulnerável em dois aspectos. Primei-
mente, descrições verbais, endereçadas à pessoa ramente, ela está exposta à morte de outros, ao
amada, do estado que ele ou ela está experimen- estilhaçamento daquele espelho do qual depen-
tando ao ver, ou melhor, ao sentir, uma imagem de – uma ocorrência muito frequente na vida

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de um Achuar e que provoca, como primeira Como Severi (1993) demonstrou para a cura
reação, uma raiva intensa e socialmente direcio- kuna da loucura, a terapia xamânica é uma forma
nada. Segundo, ela está exposta à instabilidade de cura baseada na construção de uma estrutura
crônica das relações em uma sociedade basea- pragmática complexa na qual o xamã produz
da em uma frouxa trama de parentelas, cujas uma descrição, geralmente incompreensível ao
fronteiras variam constantemente no fluxo de paciente, de sua interação comunicativa com
vendetas endêmicas e de alianças cambiantes. A espíritos estrangeiros. O xamã, desse modo, cria
vida tradicional entre os Jívaro gera, então, um um análogo do estado de confusão do paciente,
tipo de paranoia latente, racional, uma vez que com a diferença crucial de que ele, o xamã, do-
membros da família próxima podem tornar- mina este mundo caótico através da visão e da
-se suspeitos de traição em períodos de confli- palavra e se comunica com seus habitantes por
to aberto. A suspeita cai primeiramente sobre intermédio de seus espíritos familiares, enquanto
os afins, é claro, mas pode incluir até mesmo o paciente, por sua vez, está preso a um estado de
consanguíneos do mesmo sexo, como irmãos colapso comunicativo consigo mesmo e com os
ou filhos13. Esta incerteza constante sobre a real outros. É através dessa transmutação da desor-
natureza dos sentimentos que os outros nutrem dem interna e muda em uma clara, estruturada
por alguém não pode deixar de ter consequên- e explícita, embora incompreensível, alteridade
cias para a textura e os fundamentos da indi- que as pessoas são afinal restauradas a um estado
vidualidade14. Eu diria que é aí que a doença normal de autoconsciência; ou seja, um estado
entra. A doença, nos termos jívaro, é o sofri- no qual o Eu e o mundo podem coexistir em ní-
mento experienciado pelos indivíduos quando veis aceitáveis de ambiguidade.
se veem sobrepujados pela ambiguidade do Os Jívaro, entretanto, possuem uma outra
ambiente social e então perdem um sentido maneira de lidar com a fragilidade da individu-
nítido de sua identidade; ou seja, quando sua alidade. Eles recorrem a uma experiência ritual
percepção do Eu é obscurecida pela incerteza. que é, em muitos sentidos, uma imagem espe-
Na verdade, eu conjeturaria que é o alto nível lhada da cura xamânica. Eu me refiro aqui à
de ansiedade gerado pela extrema imprevisibi- busca pelas assim chamadas visões arutam, nas
lidade das relações sociais inerentes à existência quais a pessoa pode, no curso de um ritual pri-
jívaro que explica porque qualquer aflição, não vado envolvendo isolamento, jejum rigoroso e
importando sua origem e seu caráter aparente- a ingestão de grandes doses de drogas alucinó-
mente benigno, transforma-se em sintoma de genas, receber uma mensagem ou visão relati-
feitiçaria se perdura por mais de poucos dias ou va a seu futuro. O espírito responsável por essa
até mesmo horas, e porque a taxonomia rela- profecia, o arutam ou “coisa antiga”, assume a
tivamente detalhada de patologias que os in- forma de um Jívaro morto que, depois de uma
formantes Achuar desenvolvem em abstrato se complicada e amedrontadora série de metamor-
reduz tão rapidamente a um único e massivo foses, aparece brevemente em pessoa para aquele
contraste entre a “saúde” e o sofrimento indife- ou aquela que o busca e lhe dirige a palavra. No
renciado – o que vale dizer, ao morrer15. caso dos homens, essa mensagem geralmente se
É esta quebra de clareza na percepção do Eu, refere ao resultado de um ato de guerra ou de
experienciado como sofrimento e conceitualiza- um assassinato por vingança, o qual, é claro, eles
do como uma investida homicida intangível, que se sentem então compelidos a concretizar. A ex-
justifica recorrer à prática terapêutica xamânica. periência arutam está, assim, diretamente ligada

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àquelas situações e relações interpessoais mais e da intersubjetividade que informa a noção de


densamente carregadas de imprevisibilidade e se wakan, e seus significados específicos estão en-
baseia na mesma lógica que subjaz ao recurso à raizados na construção ritual de um contexto
cura xamânica. Desnecessário acrescentar que a particular de interação, mais do que em uma
estrutura pragmática da interação entre aquele elaboração de conteúdo. Em segundo lugar, o
que busca o espírito e este último é tão complexa efeito ou resultado da busca pelo arutam brota
quanto aquela implicada na cura xamânica – em de um evento de hipercomunicação, de uma
certo sentido, com efeito, até mais complexa. espécie de saturação de certeza e de significado
(Refiro-me aqui à maneira pela qual as circuns- não-ambíguo. Contudo, esse vislumbre de um
tâncias estereotipadas envolvendo o encontro ri- destino livre de qualquer imprevisibilidade deve
tual são constitutivas do significado do evento). permanecer indescritível, na medida em que é
Irei, portanto, me limitar a sublinhar duas ca- estritamente proibido falar sobre a mensagem
racterísticas proeminentes da busca pelo arutam. recebida do arutam. Se alguém fizesse isso, ime-
Primeiro, ela se centra no enquadramento diatamente perderia o benefício da visão ou, na
ritual das interações ordinárias sobre as quais a verdade, a própria visão ou mensagem como um
subjetividade, tal como percebida pelos Jívaro, tipo de substância anímica [soul-stuff] por meio
se constrói. Assim, quando os Achuar falam da da qual o senso do Eu é fortalecido. E isso, afinal,
mensagem arutam como uma espécie de ‘alma’ é a motivação primária para se submeter à expe-
que a partir de então se tornará uma parte de- riência mística, bem como seu resultado final: a
les, estão evocando uma reificação, projetada aquisição de invulnerabilidade, manifestada pela
no futuro, de uma imagem do Eu enraizada em contundência do discurso e da atitude, por uma
um tipo especial de relação intersubjetiva, aquela pintura facial de um certo tipo e por uma rai-
entre eles próprios – mais precisamente, um esta- va aguçada – ou seja, por um impulso homicida
do modificado de sua consciência – e o arutam. intensificado16. Em suma, assim como a doença
Essa hipóstase tem como modelo a introjeção de leva a uma perda da capacidade de se comunicar
uma imagem atribuída do Eu que subjaz aos es- a não ser pela linguagem muda dos sintomas, o
tados normais de subjetividade. Portanto, assim estado de ultra bem-estar proporcionado pelo
como o wakan – a alma do corpo – sobrevive encontro com um arutam implica a suspensão da
brevemente ao recém-falecido como uma subs- troca linguística e a manifestação de um leque de
tantivização da memória que os parentes vivos signos indiretos ou ‘sintomas’ expressando uma
guardam dele, também a visão arutam que ele condição de individualidade amplificada.
ou ela recebeu encapsula a descrição, ou imagem, Portanto, se compararmos os dois tipos de
que o espírito faz de seus futuros Eus. O wakan, experiência ritual brevemente evocadas aqui, a
em suma, é uma reificação de uma memória atri- cura xamânica e a busca pelo arutam, temos, de
buída, enquanto a ‘alma’ arutam é uma reificação um lado, uma descrição mediada de um caos
da individualidade projetada. Paradoxalmente, controlado por meio da qual um indivíduo pode
isso é, de fato, tudo o que em última instância se livrar do sofrimento ocasionado por uma es-
resta das pessoas, sob a forma da ‘coisa antiga’ ou magadora ambiguidade e pela erosão da indivi-
arutam que elas um dia se tornarão. Em outras dualidade que ela implica e, de outro, uma visão
palavras, o ritual arutam não está ligado a uma ou “audição” secreta, também mediada, marcada
elaborada teoria cosmológica ou ontológica. Ele por uma certeza absoluta, que dramaticamente
é baseado na mesma percepção da subjetividade intensifica a força da individualidade. Eu falo

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O corpo da alma e seus estados: uma perspectiva amazônica sobre a natureza de ser-se humano | 221

deliberadamente de mediação no caso da busca outro modo generalizados. Prossegui mostrando


pelo arutam porque, embora aquele que busca o que a superfície apropriada para os humanos en-
espírito esteja só durante o ritual, não é ele pró- quanto uma classe de seres - ou seja, sua aparên-
prio quem recebe a mensagem da aparição, mas cia - é concebida como retirada de um estoque
sim seu wakan, a alma de seu corpo, sendo todo finito de formas distintivas e recicláveis. Assim,
o sentido das drogas e do jejum o de induzir um o senso do Eu jívaro é baseado na fusão de uma
estado de consciência dissociada. Então, de fato, imagem corporal singular, porém, genérica e da
a estrutura que subjaz à situação de comunicação percepção emocionalmente carregada que outras
em ambos os casos é similar. Na sessão de cura, pessoas têm dessa imagem corporal, por meio da
o paciente está ‘como morto’, inteiramente pas- qual ela vem a ser experienciada como unicamen-
sivo, enquanto o xamã gradualmente identifica te pessoal. Argumentei, então, que porque a indi-
a si próprio com os componentes de desordem, vidualidade é texturizada pela intersubjetividade,
figurados como criaturas e línguas estrangeiras, e porque a intersubjetividade é ela própria criada
assim os ordena enquanto os descreve. No ritual no contexto de relações sociais, e porque as rela-
arutam, aquele que busca o espírito também está ções sociais entre os Jívaro envolvem laços de pa-
figurativamente morto (durante seu período de rentesco instáveis e formas institucionalizadas de
isolamento, seus parentes devem evitar evocar violência recíproca – porque, em suma, eles vivem
sua imagem, do mesmo modo como evitariam em um mundo permeado de incerteza e hostili-
pensar sobre uma pessoa recentemente falecida), dade –, o senso achuar do Eu é altamente vulne-
de modo que sua ‘alma’, sua consciência desin- rável. Ele oscila entre estados de incerteza, erosão
tencionalizada, pode gradativamente se tornar e colapso, de um lado, experienciados como um
parecida com a pessoa verdadeiramente morta sofrimento indiferenciado, homicida, que requer
que, por fim, aparecerá para ele; e essa intera- tratamento xamânico e, de outro, estados de am-
ção com uma entidade que está estruturalmente plificação provocados por uma experiência mística
tão ‘fora’ da sociedade quanto os estrangeiros de certeza.
encontrados pelo xamã gera uma clareza abso- Isso me leva ao cerne do meu argumento.
luta, não apenas como cura – o que é realmente Em termos analíticos, uma pessoa ou um Eu
um retorno ao Eu – mas, sobretudo, como uma não é uma coisa, uma essência específica molda-
amplificação do Eu ou de um estado de super da por uma teoria explícita ou implícita, ou, em
-individualidade. outras palavras, um conceito indígena. Ser uma
Permitam-me resumir essa breve descrição pessoa humana viva não é um estado definido
das noções jívaro sobre a pessoa e a experiência enquanto tal – não há nenhum discurso canôni-
do Eu que elas implicam. Comecei mostrando co sobre ‘a pessoa’, e ninguém jamais dirá ‘essa é
que a pessoa é definida negativamente, em baixo a nossa ideia do que um homem ou uma mulher
-relevo, por assim dizer, pela intersecção de um é’ –, mesmo que esse estado seja circunscrito de
certo número de pressupostos inexplícitos acerca maneira precisa pela articulação de um conjunto
da animação (vista como subjetividade impu- de premissas não explícitas. Ser uma pessoa é,
tada), da socialidade (vista como comunicação portanto, um leque ou um gradiente de confi-
ordenada e, portanto, implícita nas noções indí- gurações relacionais, um conjunto de nexos em
genas de animação) e, finalmente, da forma, su- uma cadeia de metamorfoses simultaneamente
perfície ordenada, aquele princípio de especiação aberta e delimitada. A cadeia é aberta porque a
que divide um modelo ou matéria fisiológica de própria morte é um processo sem fim, como é a

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passagem do ‘nós’ para o ‘eles’, de Jívaro a estran- até recentemente a grande maioria dos homens
geiro; é delimitada, entretanto, porque ser um achuar havia experienciado encontros arutam,
Eu vivo só pode ser definido por contraste seja a é igualmente verdade que essas buscas místicas
um estado de ser menos do que vivo, na doença, dizem respeito apenas a um estado extremo da
seja a um estado de ser mais do que vivo, por personitude jívaro, e não à ‘Jivaronidade’ en-
meio da aquisição de um arutam. E esse é o mo- quanto tal, e a maioria dos informantes diria
tivo pelo qual tanto encontramos as oposições que se poderia viver uma vida jívaro ordinária e
rígidas e problemáticas estabelecidas nas narra- ser um Jívaro (ainda que reconhecidamente de
tivas míticas – vida versus morte – quanto, no segunda classe) sem nunca experienciar um en-
ritual e em outros campos da prática, encontra- contro arutam. Assim, ao afirmar que o comple-
mos vida e morte como um processo contínuo. xo arutam se situa no coração da cultura jívaro,
Essa é a chave para o paradoxo com o qual co- antes que em sues contornos, criamos uma ima-
mecei esta palestra, que diz respeito à existência gem equivocada não apenas do próprio com-
de duas noções aparentemente contraditórias de plexo arutam como da cultura jívaro em geral.
morte. Não se trata, com efeito, de duas con- Tampouco essa distorção ótica é uma particu-
cepções diferentes e compartimentalizadas da laridade dos estudos jívaro. Suspeito que muitas
mortalidade, uma naturalística e outra perse- de nossas descrições etnográficas estejam de fato
cutória, mas antes de duas perspectivas mutua- baseadas em uma mistura similar entre ‘cultura’
mente implicadas, uma focando nos termos em e ‘estados extremos’. Por exemplo, qualquer des-
lugar da relação entre eles, a outra focando na crição que pretenda caracterizar a cultura sim-
relação e colocando os termos entre parênteses. bólica desta ou daquela sociedade por meio da
Além disso, a atualização das diferentes ocasiões generalização de conceitos deduzidos de qual-
em que a noção do Eu é evocada forma uma quer tipo de discurso especializado só pode estar
cadeia: a busca pelo arutam leva ao homicídio, errada: errada porque é cega à importância da
agressão e suspeição, que são a causa da doen- prática e da contextualização, porque assume a
ça e da desorientação, que, por sua vez, exigem cultura como um sistema de linguagem e pensa-
ou tratamento xamânico ou outras buscas pelo mento compartilhados (reservadas diferenças de
arutam, e assim por diante. Isso significa que os sexo e a geração) por todos. Premissas semânti-
diferentes tipos de relações e de autocriações dis- cas podem, com efeito, ser compartilhadas por
cutidas aqui estão relacionadas não apenas estru- todos, mas a pragmática muito provavelmente
turalmente, mas também praticamente. não o é: na medida em que as condições de uso
A abordagem da questão da personitude determinam como essas premissas são elabora-
delineada acima tem algumas implicações mais das, expressas e experienciadas, a afirmação de
amplas, sobre as quais, à guisa de conclusão, eu que uma dada representação é comum “à socie-
gostaria de chamar atenção. A maior parte dos dade” é com certeza insustentável se seu signifi-
estudiosos dos Jívaro, eu própria incluída, tende cado está enraizado em situações de interação e
a considerar o complexo do arutam – porque é em formas de contextualização que não são de
intelectualmente espetacular e também devido modo algum coletivas.
a seus aspectos esotéricos –, como o próprio Meu segundo ponto é, em certo sentido, uma
coração da cultura jívaro, a base mesma de sua consequência do primeiro. Se minha descrição
identidade, tanto para os índios quanto para da pessoa e da individualidade achuar como um
seus etnógrafos. Ainda assim, se é verdade que repertório de diferentes estados de ser tem uma

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validade mais do que local, então será necessário a Amazônia e, na verdade, muito mais além. A
rever nossa abordagem do problema da acultu- particularidade da cultura achuar deve, portanto,
ração. Será necessário, em particular, não mais enraizar-se no estabelecimento de um certo tipo
pensar a aculturação como uma erosão gradual e de circularidade lógica entre esses fragmentos
a consequente reformulação das crenças centrais cognitivos e nocionais. Essa é uma visão de senso
de uma cultura. Entre os Achuar, a aculturação comum e, portanto, uma conclusão bastante
sempre esteve presente, situada no próprio cerne capenga, mas nem por isso precisa ser uma con-
ou ‘meio-termo’ do sistema cultural: não se trata clusão derrotista. Ela nos permite, em particular,
tanto de uma questão de perda, mas da sensa- contornar aquela situação, semelhante ao princí-
ção de não se ser mais compelido a definir o Eu pio da incerteza dos físicos, em que se nos con-
pela experienciação de toda a gama de estados centramos em mecanismos cognitivos, deixamos
que ele normalmente implica. A aculturação a cultura escapar, e se descrevemos a cultura da
começa em uma condição de aprisionamento maneira tradicional, contrariamos aquilo que a
em um estado de normalidade indefinida ou pesquisa cognitiva nos ensinou sobre o funciona-
não marcada, devido ao não mais engajar-se nas mento da mente. Mecanismos cognitivos como
situações de interação características dos estados tais não constituem nossa província enquanto
extremos; portanto, um Jívaro aculturado, ou antropólogos, primeiramente porque, em últi-
potencialmente aculturado, é simplesmente um ma instância, eles provavelmente são invarian-
ser ordinário, aquilo os próprios Achuar, muito tes e, em segundo lugar, porque é praticamente
apropriadamente, chamam de nangami shuar, impossível reproduzir os protocolos experimen-
uma “pessoa apenas” [just-so person], o tipo de tais agora em uso na psicologia cognitiva em si-
indivíduo que tem a capacidade de entrar e sair tuações normais de campo. Mas tampouco é a
da sua ou de outras culturas com facilidade, des- cultura aquilo que costumávamos considerá-la.
de que ele permaneça em seus meios-termos ou Obviamente não podemos continuar dizendo
‘estados zero’. “os Achuar pensam que...”, porque o conteúdo
Em nenhum momento afirmei estar apresen- do pensamento que geralmente nos propomos
tando uma teoria indígena, ou mesmo explici- a descrever não é, de fato, o que eles realmente
tando um conjunto de representações coletivas pensam. E, ainda assim, nós devemos, em certo
implícitas ou inconscientes sobre a pessoa, a sentido, continuar dizendo exatamente isso – esta
vida ou a morte; simplesmente segui algumas é realmente a boa notícia. Pois, se nosso objetivo
das conexões entre aglomerados de “coisas que é adquirir (e compartilhar com nossos leitores)
não precisam ser ditas”. Creio, no entanto, que uma compreensão dos pensamentos e experiên-
mesmo essa minha apresentação superficial des- cias de povos cujos pressupostos e estilos de vida
sa cadeia de relações tenha sido suficiente para são diferentes dos nossos, só podemos fazê-lo, é
evocar a singularidade estilística da cultura jívaro. claro, enunciando e explicitando a grande parcela
Tomados separadamente, vários elementos dos da cultura que “não precisa ser dita”, que escapa
esquemas conceituais sobre os quais ela se funda às conceitualizações indígenas porque está incor-
podem ser encontrados disseminados por toda a porada e é adquirida na prática, antes que pelo
Amazônia; da mesma maneira, os mecanismos discurso. Certamente, a versão da cultura que
cognitivos e, mais especificamente, as estrutu- somos, assim, levados a produzir, em nenhum
ras lógicas subjacentes à pragmática da cultura sentido espelha o universo mental de nossos in-
achuar também podem ser encontrados por toda formantes. Porém, não vejo como poderíamos

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sequer imaginar esse universo sem que inventás- xões entre modelos mentais – não é tão grande
semos para nós mesmos e para nossos leitores um quanto pode parecer à primeira vista.
tipo de “substituto” discursivo para uma cultura A mudança de perspectiva que sugeri não é
na qual não fomos socializados, dando-nos desse uma pretensão absurda e não implica nenhuma
modo os meios de atingir algum grau de empatia revisão importante de objetivo ou de método.
com a vida e os pensamentos do povo que es- Entretanto, ela parece oferecer à antropologia al-
tamos estudando. Devemos, em outras palavras, gum tipo de futuro enquanto empreendimento
tratar a rede de pressupostos frequentemente intelectual válido, o que, certamente, é mais do
inexplícitos e não elaborados que é constitutiva que pode ser dito seja do objetivismo brando que
da cultura como se ela fosse uma metafísica, por- praticamos por tanto tempo, seja do veículo auto-
que essa construção ficcional é necessariamente destrutivo projetado pelos militantes mais zelosos
nosso procedimento essencial – com efeito, nos- do pós-modernismo. Além do mais, deslocamen-
so único procedimento – para trazer à luz e para tos menores de ponto de vista do tipo que estou
verificar a circularidade necessária da combina- advogando são bastante típicos da tradição inte-
ção de premissas encontrada em qualquer cultu- lectual de nossa disciplina; com efeito, a ocorrên-
ra, assim como o único meio que nos permite cia dessas mudanças sutis, que frequentemente
o exercício daquela “introspecção analógica” que passam despercebidas, é precisamente o que faz
está no cerne de nossa disciplina. E isso significa a antropologia aparecer para os leigos como uma
que podemos prosseguir alegremente trabalhan- reexposição sem fim dos mesmos problemas, ao
do em nossas monografias sócio-cosmológicas, passo que seus praticantes sentem que ela está em
desde que respeitemos dois conjuntos de con- um progresso constante. Assim, gostaria de pen-
dições. Primeiro, temos que prestar muito mais sar que a banalidade da minha conclusão é uma
atenção do que antes aos aspectos contextuais do espécie de prova de que a abordagem que estou
discurso e da comunicação, deixar de supor que a defendendo não é totalmente alheia ao grande câ-
cultura é um texto coletivo e ser mais realistas em none tão notavelmente modelado e ilustrado pelo
nossa descrição de quem pensa o que e como em cientista cuja memória honramos hoje.
cada circunstância. Segundo, devemos aceitar
que nossas descrições etnográficas são complexos
experimentos mentais antes que versões precisas Notas
dos sistemas indígenas de pensamento, e vê-las
como ferramentas conceituais inerentes à prática 1. Esta fala foi originalmente apresentada na “Confe-
e à escrita da antropologia. Pode ser que essa fer- rência em homenagem à Malinowski” [Malinowski
ramenta seja incômoda; porém, se levarmos em Memorial Lecture], em 1993 e publicada sob a forma
consideração a complexidade do fenômeno com de artigo no periódico Journal of the Royal Anthro-
pological Institute (vol. 2, n. 2, 1996, pp. 201-215).
que, de comum acordo, supõe-se que a antropo-
2. A expressão se refere a um artigo de M. Bloch publicado
logia trabalha, precisamos reconhecer em nossas em Kuper 1992 com o título “What goes without saying.
monografias instrumentos bastante econômicos The conceptualization of Zafimaniry society”. [N.T.: A
(em todos os sentidos do termo), e a despropor- expressão what goes without saying, ou things that go
ção entre nossos meios – uma complexa ficção without saying refere-se a algo dotado de um caráter
controlada que não almeja uma descrição realís- auto-evidente, que dispensa explicitação, ou seja, “coisas
que não precisam ser ditas”.] Ao longo desta palestra, irei
tica de fenômenos mentais – e nossos fins – a
frequentemente me referir às hipóteses apresentadas nesse
descoberta e a verificação da natureza das cone- texto. Gostaria de agradecer à Bloch por seus comentários

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O corpo da alma e seus estados: uma perspectiva amazônica sobre a natureza de ser-se humano | 225

iluminadores sobre um rascunho anterior deste trabalho e balho de campo entre 1976 e 1979, em 1984 e em
pela sua ajuda no preparo do mesmo para a publicação. 1992. Ela também se ancora, é claro, na extensa lite-
3. N.T.: Tradução extraída da versão brasileira do livro. ratura sobre os Jívaro, particularmente nos trabalhos
4. Essa é uma simplificação brutal. Seria mais preciso de Brown (1985), Harner (1972), Karsten (1935) e
dizer que a agência intencionalmente maligna que Pellizzarro (1978; 1980).
causa a morte é geralmente antropomorfizada, mas 8. Para algumas versões publicadas desse mito como ele é
não necessariamente humana. Para exemplificações contado pelos Schuar do Equador, ver Pellizzarro (1980).
da visão que supõe uma agência estritamente humana 9. Implícita nessa formulação está a ideia de que a dife-
ver, por exemplo, Capistrano de Abreu (1941: 140-1) rença entre os discursos mítico e ritual é inerente a seus
sobre os Kashinaua e Harner (1972: 152-3) e Des- respectivos significados; i.e., parte do sentido de uma
cola (1994: 257-70) sobre os Jívaro Shuar e Achuar. narrativa mítica é derivado do fato de que ela é implici-
Entre os Piaroa, o agente pode ser uma divindade, tamente contrastada com um pronunciamento ritual e
um animal ou um feiticeiro estrangeiro (Overing, vice-versa. Embora seja perfeitamente legítimo isolar tais
1985); entre os Yagua, ele pode ser humano ou corpos de discurso para propósitos analíticos, em algum
vegetal (Chaumeil, 1983: 264-311); entre os Guajiro ponto, suas interconexões, mesmo que pareçam inteira-
(Perrin, 1992: 209-12) e os Tukano (Reichel-Dolma- mente negativas, devem ser levadas em consideração.
toff, 1971: 80-6) ele pode ser um animal (enquanto 10. Com a exceção de um corpo de mitos relativos à mudan-
animal ou sob a forma de Mestre de animais). ça da cesariana letal para o parto “natural”. Esses mitos
5. Uma amostra desses mitos é analisada por Lévi-S- são comuns ao menos entre os Shuar, Achuar e Agua-
trauss (1967). runa. De acordo com essas narrativas, o nascimento de
6. Dois pontos estão em questão aqui. O primeiro é o pro- uma criança costumava in illo tempore implicar a morte
blema da integração de modelos mentais. Entre os an- da mãe, uma vez que era necessário cortar a barriga das
tropólogos, a discussão sobre este ponto se centrou, na gestantes para que os bebês pudessem nascer. Os ratos se
medida em que existiu, na maneira pela qual a cognição compadeceram das mulheres e fizeram um acordo com
de domínio específico [domain-specific cognition] po- elas, ensinando-as o parto natural em troca de uma par-
deria, por meio da capacidade de meta-representação, cela de suas colheitas de amendoim, para algumas versões
ser culturalmente elaborada (Atran, 1993 [seguindo shuar deste mito, ver Pellizzarro (Ib., Idem).
Sperber, 1990]; Bloch, 1993; Sperber, 1993). Como 11. Esses cantos pertencem a uma classe de enunciações
aponta Bloch, esse tema, que obviamente é de interesse chamadas anent, um tipo de discurso anímico [soul-
vital para os antropólogos, ainda foi muito pouco ex- -speech] que transcende canais normais de comuni-
plorado. O segundo ponto é a questão da unidade de cação. Aqui segue um breve exemplo de uma dessas
uma dada cultura. Antropólogos ‘cognitivistas’ que, em invocações, silentemente dirigida por uma mulher a
nome do realismo psicológico, se recusam a conside- seu marido ausente:
rar a cultura como a manifestação de um script com- Go flock to my little father’s heart/ make him return
partilhado subjacente ou, a fortiori, como expressão to me crying pitifully/ go flock to his thoughts (and
de estruturas inconscientes, têm muita dificuldade de make him cry) “why does this feeling came to me?”/
dar conta desse aspecto de seu objeto de pesquisa. Eles fly to his thoughts and make him awaken in tears/
tendem a contornar o problema argumentando que (saying) “why do I awaken thus?/ Oh, she’s angry at
a coerência e a sistematicidade são simplesmente um me/ she is going to leave me!”/ make him awaken
produto da etnografia, ou ainda, que a própria noção with this thought/ crying, crying, go flock to him/
de cultura é desprovida de significado. A cultura pode my little wakan, go flock to him (tradução minha;
bem não ser muito mais que “uma orquestra de segun- a versão vernacular, juntamente com dados linguís-
da classe tocando uma melodia lembrada pela metade”, ticos, pode ser lida em Taylor & Chau, 1983: 118-
sem a ajuda de um condutor (Lawson, 1993: 206), mas 119). [Se junte ao coração do meu pequeno pai /
ainda nos resta explicar como e porque todos se lem- faça-o voltar para mim chorando lastimosamente /
bram da mesma melodia, ainda que imprecisamente, e Vá se juntar aos seus pensamentos (e faça-o chorar)
porque o nível de cacofonia em qualquer “cultura” dada ‘porque estou me sentido assim?’ / Voe até seus pen-
é, com efeito, surpreendentemente baixo. samentos e faça-o acordar chorando / (dizendo) ‘por
7. Esta conferência se baseia em dados coletados por P. que eu acordo, então? / Oh, ela está com raiva de
Descola e por mim mesma durante 26 meses de tra- mim / ela vai me deixar!’ / faça-o acordar pensando

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226 | Anne-Christine Taylor

isso / chorando, chorando, se junte a ele / meu pe- independentemente de seu status taxonômico, são
queno wakan, se junte a ele.] imediatamente atribuídas à agressão xamânica.
12. A perspectiva irênica de alguns americanistas britânicos 16. Isso só é verdade para os homens. As mulheres não pro-
está ligada à sua ênfase na moralidade, i.e., nos valores curam sistematicamente o encontro com arutam e o
normativos da socialidade, tal como expressa por seus experienciam mais raramente que os homens. A “força”
informantes e incorporada em suas práticas; ver, por escondida (kakarma-) – antes que a ira – que elas assim
exemplo, Belaunde, 1992; Gow, 1991; McCallum, adquirem é geralmente descrita em termos de uma vida
1989; Santos-Granero, 1991. Por outro lado, os ameri- mais longa e de um maior bem-estar, de relações privile-
canistas franceses, que geralmente aderem a uma abor- giadas com as entidades que controlam a fertilidade ade-
dagem estrutural-durkheimniana, tentam construir um quada das plantas de roça, animais domésticos e humanos,
modelo das relações sociais observadas enfatizando o e de relações afetivas seguras com os parentes. Vale lembrar
aspecto “construtivo” (no sentido sociológico) do con- também que os encontros femininos com arutam ocorrem
flito. Para exemplos disso, ver Albert, 1985; Clastres, nas roças das mulheres, e não na floresta, e que parecem
1972; Carneiro da Cunha & Viveiros de Castro, 1985; acontecer apenas em tempos de crises emocionais agudas.
Combes & Saignes, 1991; Erikson, 1986 (dois destes
são franceses unicamente por filiação intelectual).
13. A mãe é praticamente o único parente próximo que Referências bibliográficas
sempre escapa às suspeitas. Porém, não se deve ima-
ginar que a vida familiar entre os Jívaro seja persis-
tentemente conflituosa e tomada pela incerteza. Em ALBERT, Bruce. Temps du sang, temps des cendres: repré-
circunstâncias normais, as relações entre os membros sentations de la maladie, système rituel et espace politi-
de um grupo doméstico ou local são descontraídas que chez les Yanomami du sud-est Amazonie brésilienne.
e frequentemente ternas. Ainda assim, ninguém fica Tese, Universidade de Paris, Nanterre, 1985.
surpreso ou particularmente indignado – em oposição ATRAN, Scott. Core domains versus scientific theories:
a enraivecido – quando membros próximos de uma evidence from systematics and Itza-Maya folkbiolo-
mesma família se desentendem e se envolvem em uma gy. In: HIRSCHFELD, Lawrence. A. & GELMAN,
vendeta. Nesses casos, o grupo se divide e uma ou ou- Susan. A. (orgs.). Mapping the mind: domain specifi-
tra parte se junta a uma unidade territorial diferente. city in cognition and culture. Cambridge: Cambridge
14. Penso que isso também contribui para explicar a im- University Press, 1993.
portância de formas de discurso mágico nessa cultura, BELAUNDE, Luisa Elvira. Gender, commensality and
tais como os anent, feitos para modelar ou modificar community among the Airo Pai of western Amazonas.
os afetos de outros. Tese, Universidade de Londres, 1992.
15. Os Achuar distinguem e dão nome a uma variedade de BLOCH, Maurice. Language, anthropology and cogniti-
doenças. Algumas – geralmente patologias epidêmicas ve science. Man (N.S.) 26, 183-198, 1991.
– são rotuladas como “doença de branco”; outras são ______. What goes without saying: the conceptualization
consideradas “endógenas” e inicialmente se lida com of Zafimaniry society. In: KUPER, Adam. Conceptua-
elas recorrendo a plantas medicinais ou a formas do- lizing society. London & New York: Routledge, 1992.
mésticas de cura “mágica”. Esses males são pensados ______. Domain specificity, living kinds and symbolism.
como “acidentais” apenas no sentido de que o agente In: BOYER, Pascal. Cognitive aspects of religious symbo-
responsável por infligi-los pode tê-lo feito não-inten- lism. Cambridge: Cambridge University Press, 1993.
cionalmente, mas é claro que a não-intencionalidade BOYER, Pascal. Tradition as truth and communica-
dessa intencionalidade imputada é inerentemente tion: the cognitive description of traditional discourse.
suspeita; se uma doença se prolonga ou se agrava, a ­Cambridge: Cambridge University Press, 1990.
suspeita rapidamente dá lugar à certeza de um dolo ______. Cognitive aspects of religious symbolism. Cambrid-
deliberado. Julgamentos acerca do “status da saúde” ge: Cambridge University Press, 1993.
de indivíduos ou mesmo de comunidades inteiras são, BROWN, Michael F. Tsewa’s gift: magic and meaning in an Ama-
portanto, altamente dependentes da forma percebida zonian society. Washington: Smithsonian Institute, 1985.
das relações sociais: em tempos de conflito iminente CAPISTRANO DE ABREU, João. Grammatica, textos
ou aberto, não apenas as pessoas tendem a se tornar e vocabulario Caxinauas. Rio de Janeiro: Edição de
incomumente propensas a adoecer, como suas doenças, Sociedade Capistrano de Abreu, 1941.

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traduzido de
TAYLOR, Anne-Christine. The Soul’s Body and Its States: An Amazonian
Perspective of Being Human. The Journal Of The Royal Anthropological Institute.
Vol. 2, No. 2 (Jun., 1996), pp. 201-215.

cadernos de campo, São Paulo, n. 21, p. 213-228, 2012


228 | Anne-Christine Taylor

tradutores Eduardo Soares Nunes


Doutorando em Antropologia Social / UnB

Roberta Cerri
Mestranda em Antropologia Social / UnB

Marcela Stockler Coelho de Souza


Mestranda em Antropologia Social / UnB

revisora Marcela Stockler Coelho de Souza


Professora Doutora em Antropologia / UnB

Recebida em 26/08/2012
Aceita para publicação em 01/10/2012

cadernos de campo, São Paulo, n. 21, p. 213-228, 2012

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