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Histeria

RESUMO ABSTRACT

O presente artigo tem como propósito The present article was written in order to
oferecer algumas reflexões sobre o tema His- make some considerations of Hysteria from
teria a partir de diferentes enfoques: as con- different focus: as historical as current
cepções tanto históricas quanto atuais da conceptions of hysteria; the hysteria and its
histeria; a histeria e sua relação com a psica- relation to the Psychoanalysis emphasizing the
nálise, enfatizando a importância que as “his- importance of “hysterical people” to Sigmund
téricas” tiveram para Sigmund Freud na Freud in his discovery of uncounsciousness
descoberta do inconsciente e na elaboração and its theory and also the psychoanalytic
da teoria e da técnica psicanalítica, e num technique; and later the writer presents a
terceiro momento, o autor apresenta um caso clinical case which shows the evolution of a
clínico exemplificando a evolução de um tra- patient’s treatment whose diagnostic is hysteria.
tamento de uma paciente cujas manifestações
são de ordem histérica.

Palavras-chave: histeria, psicanálise.


.
Key-words: hysteria, psychoanalysis.

Foi por meio dos atendimentos às histé-


INTRODUÇÃO ricas, que Sigmund Freud, no final do
século XIX, descobriu o inconsciente,
A histeria vem sendo objeto de estu- elaborando um método de tratamento, a
do desde os primórdios da medicina, na Psicanálise. E desde a época de Freud que
Grécia Antiga com Hipócrates. O diagnós- esse tratamento vem sendo utilizado em
tico para a pessoa histérica era conheci- pacientes com o referido diagnóstico.
do como neurose histérica ou histeria de
conversão. Hoje o diagnóstico é nomea-
do como transtorno dissociativo ou con- OBJETIVO
versivo. As pessoas que manifestavam
tais sintomas e comportamentos, expos- CONCEPÇÕES HISTÓRICAS DA
tos no decorrer do presente artigo, fo- HISTERIA
ram alvo de estudo não somente de O termo histeria é derivado da pala-
médicos, mas de neurologistas, psiquia- vra grega hystera e significa matriz. De
tras e até de padres e bispos da época. acordo com Aurélio Buarque de Holan-

Endereço para correspondência: Rua Cel. Spínola de Castro, 2735, Apto.122 - Centro
CEP: 15015-500 – São José do Rio Preto, SP – Tel.: (17) 222-5597 – giovanibelintani@hotmail.com

56 – PSIC - Revista de Psicologia da Vetor Editora, Vol. 4, nº.2, 2003, pp. 56-69
Giovani Belintani
Psicólogo graduado pelo Centro Universitário do Norte Paulista (UNORP). Integrante do
Grupo de Estudos e de Atendimento Psicoterapêutico da Sé Catedral (GEAPSC). Psicólogo
associado ao Centro Riopretense de Estudos Psicanalíticos de São José do Rio Preto (CREP).

da Ferreira, matriz é o “lugar onde algo sas sufocações da matriz eram conside-
se gera ou cria; órgão das fêmeas dos radas a expressão de um prazer sexual
mamíferos onde se gera o feto; útero” e, por conseguinte, de um pecado”
(1988, p. 422). (1998, p. 338). A mulher era vista como
Hipócrates, médico renomado da sendo possuída por um demônio, que a
Grécia Antiga (460-377 a.C) entendia a fazia agir involuntariamente, simulando
histeria como sendo uma doença orgâni- doenças.
ca de origem uterina e, portanto, especi- A Igreja Católica Romana, por meio
ficamente feminina que afetava todo o da Inquisição1, investigava e reconhecia
corpo por sufocações da matriz. Ele su- os casos de bruxaria e mandava para a
punha que a histeria se desenvolvia pela fogueira todos aqueles que se comporta- Durante mais de
privação de relações sexuais, dessecan- vam histericamente. Durante mais de dois séculos, a
do o útero, que perderia peso e se deslo- dois séculos, a caça às bruxas fez muitas
caria pelo corpo em busca da umidade vítimas, mesmo a opinião médica se caça às bruxas fez
necessária. A paciente teria sua respira- opondo contra essa concepção demonía- muitas vítimas,
ção afetada, desenvolvendo convulsões ca da possessão.
mesmo a opinião
se o útero subisse até o hipocôndrio e Ramadam considera que no período
estacionasse nesse órgão. Caso o útero clássico (século XVII até parte do sécu- médica se opondo
prosseguisse sua subida e atingisse o lo XVIII), a histeria era entendida como contra essa
coração, a paciente emitiria sinais de desenvolvida pelo efeito de “um calor
concepção
ansiedade, opressão e vômitos. interno que propagaria através de todo o
Na Idade Média, “período histórico corpo uma efervescência, uma ebulição, demoníaca da
compreendido entre o começo do séc. V manifestando-se sem cessar em convul- possessão.
e meados do séc. XV” (Ferreira, 1988, sões e espasmos” (1985, p. 56). Esse
p. 348-349), a histeria deixou de ser abor- calor seria representante da paixão, en-
dada pela medicina e, sob a influência tusiasmo ou ardor amoroso. Sob essa
das idéias religiosas mais especificamen- perspectiva, a histeria é associada a moças
te as concepções agostinianas, passou a que procuram namorados, jovens viúvas
ser objeto da Teologia. De acordo com ou separadas.
as concepções religiosas da época: “O Em meados do século XVIII com as
homem, dotado de uma alma imortal, colaborações de Franz Anton Mesmer,
seria sujeito a tentação pelo não cumpri- as concepções demoníacas da histeria
mento de seus deveres religiosos ou por cederam às concepções científicas da
não conduzir a sua vida dentro do espí- mesma. A histeria deixa de ser objeto de
rito cristão” (Ramadam, 1985, p. 55). investigação da Igreja para ser uma doen-
Elisabeth Roudinesco e Michel Plon ça dos nervos, cabendo à medicina estu-
afirmam que “as convulsões e as famo- dá-la e tratá-la.

1
Inquisição: “Tribunal permanente, distinto do ordinário, dirigido pelo bispo, encarregado pelo
papado de lutar contra as heresias por meio do processo de Inquisição”. (Larousse Cultural,
1999, p. 351)

Histeria – 57
Mesmer sustentou que as doenças fruto de um abuso sexual realmente vi-
nervosas tinham como origem um vido pelo sujeito na infância (sedução
desequilíbrio na destribuição de real). Num segundo momento, apresen-
um fluído universal. Assim, bas- tando a noção de fantasia4, renuncia à
tava que o médico, transformado teoria da sedução, introduzindo as idéias
em magnetizador, provocasse cri- de um trauma, não de ordem física, mas
ses nos pacientes, em geral mulhe- sim de ordem psíquica. Na Comunica-
res, para curá-los mediante o ção Preliminar dos Estudos sobre a his-
restabelecimento do equilíbrio do teria, Freud nos alerta para o fato de que
fluído. (Roudinesco & Plon, 1998, a conexão entre o acontecimento preci-
p. 338) pitante e o desenvolvimento da histeria
freqüentemente é bem clara. E completa
Em 1843, na Inglaterra, o médico es- que “em outros casos, a conexão causal
cocês James Braid substituiu a teoria do não é tão simples. Consiste somente no
fluído da histeria pela idéia de estimu- que poderia ser denominado uma rela-
lação físico-químico-psicológica da ção simbólica entre a causa precipitante
histeria, mostrando a inutilidade das in- e o fenômeno patológico – uma relação
tervenções do tipo magnética. Braid evi- tal como as pessoas saudáveis forma os
dencia a palavra hipnotismo2 nos seus sonhos” (Freud, 1895/1974, p. 45).
estudos científicos. Ainda na segunda Roudinesco e Plon (1998, p. 340) es-
metade do século XVIII, com os estudos crevem que foi nos Estudos sobre a his-
e pesquisas do neurologista francês Jean- teria, que Freud propôs “os grandes
Martin Charcot, a histeria é tratada como conceitos de uma nova apreensão do in-
uma neurose. A moderna noção de uma consciente: o recalcamento, a ab-reação,
neurose histérica subentendia uma cau- a defesa, a resistência e, por fim, a con-
sa traumática de ordem genital tornan- versão”. Citam também que com a pu-
do-se uma doença funcional, de origem blicação, em 1900, de A Interpretação
hereditária, afetando tanto os homens dos Sonhos, “o conflito psíquico incons-
quanto as mulheres. Charcot utilizava a ciente é que foi reconhecido por Freud como
hipnose3 para demonstrar o fundamento a principal causa da histeria” (Roudinesco
de suas hipóteses. Ele hipnotizava as lou- & Plon, 1998, p. 340). E continuam enfa-
cas do hospital parisiense Salpêtrière, tizando os achados de Freud, que “ao lado
fabricando sintomas histéricos para su- da realidade material, existia uma reali-
primi-los de imediato, comprovando o dade psíquica do sujeito”, que era de
caráter neurótico da doença. igual importância na história do seu de-
Sigmund Freud, médico austríaco, senvolvimento. E afirmam que “em se-
entre 1888 a 1893, usufruindo dos acha- guida, a teorização da sexualidade
dos de Charcot sobre os aspectos trau- infantil permitiu a Freud identificar o
máticos da histeria, afirma com sua conflito nuclear da neurose histérica, de-
Teoria da Sedução que o trauma vivido senvolvendo os conceitos de Complexo
pelo paciente histérico era de origem de Édipo e Angústia de Castração”
sexual, sublinhando que a histeria era (Roudinesco & Plon, 1998, p. 340).

2
Hipnotismo: “conjunto de técnicas que permite provocar um estado de hipnose”. (Larousse
Cultural, 1999, p. 495)
3
Hipnose: “estado artificial provocado por sugestão, que se caracteriza por uma sucetibilidade
aumentada pela influência do hipnotizador e por uma diminuição da receptividade às outras
influências”. (Larousse Cultural, 1999, p. 495)
4
Fantasia: “forma de realização de desejos encenada na imaginação”. (Moore & Fine, 1992, p. 74)

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As epidemias histéricas do fim do línguas e danças. Nasceu quase morta
século XIX contribuíram de tal maneira com o cordão umbilical enrolado no pes-
para o nascimento e difusão do freudis- coço. A parteira acreditava que ela não
mo que a própria noção de histeria desa- iria sobreviver. Foi então que Dominga
pareceu do campo da clínica. A partir de de Adviento prometeu a seus santos que
1914, ninguém mais ousou falar em his- se lhe fosse concedida a graça de viver
teria, a tal ponto que a palavra foi identi- não se cortaria o cabelo da menina até a
ficada com a própria psicanálise. noite de seu casamento. Mal acabava de
O debate sobre histeria ressurge com fazer a promessa, a criança começou a
a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), chorar, mais viva do que nunca. Quando
quando as discussões geravam em torno tinha 9 anos, Adviento faleceu, e Ángeles
de uma nova forma de etiologia traumá- vai morar com seus pais pela primeira
tica e da neurose de guerra. Por fim, vez, mas por pouco tempo. Sua mãe a
depois da Segunda Guerra Mundial expulsa de casa quando encontra uma de
(1939-1945), com o desenvolvimento suas bonecas flutuando dentro de uma
dos trabalhos da medicina psicossomá- tina5 e, acreditando que aquilo fosse um
tica de inspiração psicanalítica, o termo feitiço africano contra ela, alega que não
histeria de conversão teve uma atenção haveria lugar para as duas na casa. As-
especial. sim, Ángeles volta a morar com os es-
A partir da década de 1960, com os cravos. Aos 11 anos foi mordida por um
debates norte-americanos e ingleses so- cachorro no tornozelo esquerdo numa
bre a Self Psychology e os borderlines, a ocasião que estava com a mulata Caridad
idéia de personalidade múltipla, termo del Cobre. Elas faziam compras para a
utilizado para caracterizar a personali- festa de aniversário de 12 anos da meni-
dade do indivíduo histérico, é alvo de na. Márquez escreve que “era assunto de
estudos de médicos, psiquiatras e psica- todo dia os cães sem dono morderem al-
nalistas. guém quando andavam perseguindo ga-
tos ou brigando com os urubus por
O ROMANCE DE GABRIEL alguma carniça de rua...” (1994, p. 15).
GARCÍA MÁRQUEZ Dois dias após a festa, Caridad del Cobre,
Do amor e outros demônios, obra do por descuido, comenta com Bernarda
escritor colombiano Gabriel García Cabrera sobre a mordida do cachorro em
Márquez, conta a história da adolescen- sua filha. Bernarda decide examiná-la
te Sierva Maria de Todos los Ángeles. numa noite enquanto a menina dormia,
Seu pai, Ygnacio, é um crioulo rico. Sua temendo que a filha pudesse ter sido mor-
mãe, Bernarda Cabrera, foi uma plebéia dida por um cachorro raivoso. Cabrera
pobre até conhecer Ygnacio. Ángeles foi decide não dar importância para o fato
fruto de um plano da mãe para casar com uma vez que o critério da época era o de
Ygnacio por causa dos seus bens mate- não se pensar em raiva, enquanto não se
riais. Rejeitada pelos pais, ela foi criada manifestavam os primeiros sintomas.
junto com os escravos do próprio pai. Ela Critério este que não foi aceito pelo pai,
recebia da escrava Dominga de Adviento que, imediatamente, procura o mais no-
todo carinho e cuidado materno, neces- tável e discutido médico da cidade Abre-
sário para a sua criação. Ángeles cres- nuncio de Sá Pereira Cão, para que ele
ceu aprendendo a cultura africana, suas examinasse sua filha. Ygnacio assume os

5
Tina: “vaso grande de pedra ou de metal, para nele tomar banho”. (Larousse Cultural, 1999,
p. 872)

Histeria – 59
cuidados da filha e a administração da Cáceres y Virtudes, em conversa com o
casa. Assim, Ángeles volta a morar com pai, questiona-o a respeito das manifes-
seus pais. Márquez, se referindo ao pai, tações da filha e sugere que ela estaria
escreve: “A primeira coisa que fez foi sendo possuída pelo demônio. O pai,
devolver à menina o quarto de dormir de aceitando as orientações do bispo, leva
sua avó marquesa, de onde fora tirada a filha para o convento de Santa Clara
para dormir com os escravos” (1994, p. para ser exorcizada. Ángeles é presa no
38-39). Ángeles, não contente nesse pavilhão solitário, que serviu de cárcere
novo ambiente, foge logo na primeira da Inquisição, e amarrada à cama pelas
noite e volta para o aconchego dos es- mãos e pés, depois de três meses após
cravos, no seu mundo africano. A criada ter sido mordida pelo cachorro e não
Caridad del Cobre, em obediência à or- apresentando nenhum sintoma de raiva.
dem de Ygnacio, fica responsável pelos Certo dia no refeitório do convento, du-
cuidados da menina. Abrenuncio de Sá rante o almoço, Ángeles fora rodeada por
Pereira Cão, na sua consulta com Ánge- noviças que admiravam seu colares. Uma
les, diz que o prognóstico não era alar- delas tentou arrancá-los, deixando-a
mante. “A ferida estava longe da área de muito irritada.
maior risco, e ninguém lembrava que ti-
vesse sangrado. O mais provável era que Sierva Maria se encabritou. Com
Sierva Maria não contraísse raiva”, e um repelão, tirou de cima as guar-
sugere para a menina a receita da felici- diãs que tentavam subjugá-la. Su-
dade. “...toquem música, encham a casa biu na mesa, correu de uma ponta
de flores, façam cantar os passarinhos, a outra gritando como uma pos-
levem-na para ver o pôr-do-sol no mar, sessa de verdade que não se deixa
dêem-lhe tudo o que possa fazê-la feliz” dominar. Quebrou tudo quanto en-
(Márquez, 1994, p. 51). Mas nada disso controu no caminho, pulou pela
podia evitar que Ángeles tivesse sua pri- janela e desfez os caramanchões
meira crise e, durante as duas semanas do pátio, alvoroçou as colméias e
seguintes, teve vertigens, convulsões, derrubou as cercas dos estábulos
espasmos, delírios, solturas de ventre e e dos currais. As abelhas se dis-
de bexiga, retorcia-se no chão uivando persaram e os animais em dispa-
de dor e de fúria. Submeteu-se ao trata- rada se precipitaram uivando de
mento dos escravos sendo trancada nua pânico até os dormitórios da clau-
na dispensa de cebolas. Passou pelas sura. (Márquez, 1994, p. 104)
mãos de outros três médicos, de curan-
deiros e de mestres em feitiçaria. Com a Daí por diante, todos os aconteci-
índia Sagunta, Ángeles foi vítima da mentos eram atribuídos ao malefício de
receita de Santo Humberto. A índia es- Ángeles. Noviças declararam que ela voa-
fregava seu corpo lambuzado com un- va com umas asas transparentes que emi-
güentos6 de índios contra o corpo nu da tiam um zumbido fantástico. Boatos se
menina que era submetida à força. Com espalharam pelo convento de que os por-
Sagunta, o pai desiste de procurar ajuda cos estavam envenenados, de que as
de médicos e passa a buscar apoio divi- águas provocavam visões premonitórias,
no. O bispo do lugar, Dom Toríbio de de que uma das galinhas espantadas saiu

6
Ungüento: “nome que os antigos davam a substâncias aromáticas e a essências com que per-
fumavam e embalsamavam os corpos; medicamento feito à base de resina, gorduras e princípios
ativos diversos, para ser aplicado sobre a pele”. (Larousse Cultural, 1999, p. 896)

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voando por cima dos telhados até desa- se, como tantos outros, em conse-
parecer no horizonte do mar. Assim, a qüência da crueldade dos exorcis-
cela de Ángeles se transformou no cen- mos. (Márquez, 1994, p. 172)
tro da curiosidade de todos e ela passou
a receber visitas constantes das freiras. Mas, todo o esforço de Delaura foi
Elas queriam que a menina levasse até o em vão, pois o bispo não considera suas
demônio seus pedidos mais impossíveis. conclusões e ordena que prossiga os pre-
Ángeles, aproveitando da situação, se parativos para as sessões de exorcis-
divertia imitando vozes de degolados, de mos. Delaura se apaixona por Ángeles e
mortos, de monstros satânicos, etc. Uma recitações de versos de amor tomam lu-
noite sua cela é assaltada por um grupo gar das supostas rezas do exorcismo. As-
de freiras que roubaram seus colares. sim, eles puderam ficar juntos durante
Durante a fuga, a comandante do assalto as noites em que Delaura dormia com ela
tropeça nas escadas e fratura o crânio. em sua cela, até o momento que seu de-
Márquez escreve que “suas companhei- sejo foi afetado pelo seu arrependimen-
ras não tiveram um instante de paz en- to moral, permitindo que os dois jovens
quanto não devolveram à dona os colares apaixonados permanecessem virgens.
roubados. Ninguém mais tornou a per- Delaura é destituído de seu cargo e en-
turbar as noites da cela” (1994, p. 106). caminhado para ser enfermeiro de pacien-
Cayetano Alcino del Espírito Santo tes leprosos em um hospital. O próprio
Delaura y Escudero, padre espanhol com bispo é quem assume as sessões de exor-
36 anos de idade, é indicado pelo bispo cismo.
para ser o exorcista de Ángeles. Desde No dia 27 de abril, a cela de Ángeles
os primeiros encontros, Delaura sabia foi invadida. Vieram buscá-la pois as
que não se tratava de um caso de posses- sessões de exorcismos teriam início.
são demoníaca e supunha que a moça
estava somente assustada. Ele vai ao en- Arrastaram-na para o tanque, la-
contro de Ygnacio para colher informa- varam-na a baldes de água, des-
ções a respeito de sua ferida no tornozelo, pojaram-na aos puxões de seus
e, na conversa com o médico Pereira Cão, colares e puseram-lhe o camiso-
ele pôde aprender bastante sobre a raiva lão brutal dos hereges. Uma irmã
e que essa doença era facilmente con- jardineira cortou-lhe a cabeleira
fundida com possessões demoníacas. até a altura da nuca com quatro
mordidas de uma tesoura de po-
O médico fez uma exposição eru- dar e atirou-a numa fogueira ace-
dita e inteligente sobre a raiva des- sa no pátio. A irmã cabeleireira
de a origem da humanidade, sobre acabou de tosar-lhe os cabelos até
seus estragos impunes e a incapa- o tamanho de meia polegada,
cidade milenar da ciência médica como usavam as clarissas debaixo
para impedi-los. Deu exemplos da mantilha, e foi lançando-os ao
lamentáveis de como sempre fora fogo à medida que cortava. Sierva
confundida com a possessão demo- María viu a deflagração dourada,
níaca, assim como certas formas de ouviu o crepitar da lenha virgem
loucura e outras perturbações do e sentiu a exalação acre de chifre
espírito. Quanto a Sierva María, queimado sem que se movesse um
depois de quase cento e cinqüenta músculo de seu rosto impenetrá-
dias, não parecia provável que a vel. Por fim lhe puseram uma ca-
contraísse. O único perigo, con- misa-de-força, a cobriram com um
cluiu Abrenuncio, era que morres- trapo fúnebre, e dois escravos a

Histeria – 61
levaram à capela numa padiola de década de 60, o Concílio Vatica-
soldados. (Márquez, 1994, p.193- no II decretou que apenas alguns
194) sacerdotes, nomeados pela Igreja,
poderiam expulsar demônios. Para
De acordo com Araújo, as duas natu- regulamentar os rituais quase clan-
rezas pelas quais a Inquisição julgava os destinos, o papa lançou em 2000
crimes eram: “De um lado, estavam um manual oficial do exorcismo.
aqueles contra a fé, que eram considera- Fez questão de destacar que casos
dos os mais graves e tinham as penas suspeitos devem ser encaminha-
mais severas; de outro, os contra o mo- dos primeiro a um psiquiatra.
ral e os costumes, que comportavam toda (2003, p. 72)
uma gama de modalidades, tais como bi-
gamia7, sodomia8, feitiçaria etc., e que, CONCEPÇÕES ATUAIS DA
inclusive, se misturavam com o campo HISTERIA
religioso”. O caso de Ángeles ajusta-se No atual Manual de Classificação de
no segundo tipo de crime. Conseqüente- Transtornos Mentais e de Comporta-
Esses transtornos
mente, como punição, ela tem sua cabe- mento da CID-10, a histeria é citada na
foram ça raspada, deve vestir o sambentino, ser categoria dos transtornos neuróticos, re-
anteriormente presa e ficar amarrada. Como assinala lacionados ao estresse e somatoformes,
Araújo, “seu único motivo para a con- mais especificamente na subcategoria
classificados como denação foi a materialização do demô- transtornos dissociativos (ou conversi-
tipos diversos de nio nos imaginados sinais de raiva” vos). Esse transtorno é caracterizado por
histeria de (2000, p. 12). uma perda parcial ou completa da inte-
Ángeles sente muita a ausência de gração normal entre as memórias do
conversão, mas Delaura e fica sem saber os motivos pe- passado, consciência de identidade e
agora parece los quais ele não ia mais vê-la durante as sensações imediata, e controle dos mo-
melhor evitar o noites. No dia 29 de maio, quando deve- vimentos corporais. “Nos transtornos
ria ser levada para sua última sessão de dissociativos presume-se que essa capa-
termo histeria exorcismo, a guardiã encontra-a morta cidade de exercer um controle consciente
tanto quanto na cama. e seletivo está comprometida em um grau
possível, em Dessa forma ficam ilustradas na obra que pode variar de dia para dia ou mesmo
de Gabriel García Márquez vidas como a hora para hora”. (CID-10, 1993, p. 149)
virtude de seus de Ángeles, que foram vítimas de uma Esses transtornos foram anteriormen-
muitos e variados crença religiosa e objetos de investigação te classificados como tipos diversos de
significados. da Inquisição da Igreja Católica Romana. histeria de conversão, mas agora parece
Os repórteres Alexandre Mansur e melhor evitar o termo histeria tanto
Luciana Vicária escrevem: quanto possível, em virtude de seus mui-
tos e variados significados.
Até o século XIX, crises histéricas Para que o diagnóstico desse trans-
ou casos de dupla personalidade torno seja preciso e verdadeiro, é neces-
eram interpretados por padres ca- sário que estejam presentes os seguintes
tólicos como possessões demo- critérios:
níacas. Com o avanço da ciência, a) os aspectos clínicos, que não são cita-
varreu-se o obscurantismo. Na dos aqui para os transtornos perten-

7
Bigamia: “estado de bígame; aquele que tem, simultaneamente, dois cônjuges”. (Larousse
Cultural, 1999, p. 141)
8
Sodomia: “coito anal; pederastia”. (Larousse Cultural, 1999, p. 835)

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centes a essa categoria: amnésia dis- volva o transtorno dissociativo são os
sociativa, fuga dissociativa, estupor eventos traumáticos ocorridos na vida do
dissociativo, transtorno de transe e indivíduo, especialmente abuso físico e
possessão, transtornos motores disso- sexual na infância.
ciativos, convulsões dissociativas,
anestesia e perda sensorial dissociati- Na maioria dos estados dissocia-
vas, transtornos dissociativos (ou con- tivos, representações contradi-
versivos) mistos, outros transtornos tórias do próprio indivíduo são
dissociativos (ou conversivos) e trans- mantidas em compartimentos
torno dissociativo (ou conversivo) não mentais separados, porque estão
especificado; em conflito umas com as outras.
b) nenhuma evidência de um transtor- Na forma extrema de transtorno
no físico que pudesse explicar os sin- dissociativo de identidade (perso-
tomas; nalidade múltipla), essas represen-
c) evidência de causação psicológica na tações separadas do self assumem
forma de clara associação no tempo a uma existência metafórica de per-
acontecimentos e problemas estressan- sonalidades distintas, conhecidas
tes ou relacionamentos perturbados como personalidades alternati-
(ainda que negados pelo indivíduo). vas. (Kaplan et al., 1997, p. 603)

No Compêndio de psiquiatria de O Manual de diagnóstico e estatísti-


Kaplan, Sadock e Grebb (1997), o ter- ca de transtornos mentais (DSM-IV) é
mo histeria é citados nos transtornos citado por Kaplan et al. (1997, p. 603)
somatoformes, especificamente nos para mostrar que existem critérios diagnós-
transtornos de somatização e nos trans- ticos específicos para quatro transtornos
tornos dissociativos. dissociativos. Esses transtornos, anterior-
De acordo com Kaplan et al. (1997, mente eram conhecidos como neurose
p. 584): “O transtorno de somatização é histérica do tipo dissociativa: a amnésia
caracterizado por múltiplos sintomas dissociativa caracteriza-se pela “incapa-
somáticos que não podem ser adequada- cidade para recordar informações, geral-
mente explicados com base em exames mente relacionadas com um evento
físicos e laboratoriais.” E continuam: “o estressante ou traumático, ingestão de
nome anterior para este transtorno era substâncias ou uma condição médica
histeria” (Kaplan et al., 1997, p.584). Os geral”. A fuga dissociativa caracteriza-
autores citam os processos psicológicos se por “viagens súbitas e inesperadas
que contribuem para a formação dos sin- para longe de casa ou do trabalho, asso-
tomas como sendo “inconscientes, cul- ciada com uma incapacidade para recor-
turais e desenvolvimentais” e que a dar o próprio passado e confusão acerca
motivação para a produção dos sintomas da própria identidade pessoal ou adoção
são os “fatores psicológicos inconscientes” de uma nova identidade” (Kaplan et al.,
(Kaplan et al.,1997, p. 585). 1997, p. 603). O transtorno dissociativo
Os transtornos dissociativos são ca- de identidade é caracterizado pela “pre-
racterizados pela perda que o indivíduo sença de duas ou mais personalidades
tem de ser único, de ter uma única per- distintas dentro de uma única pessoa” e
sonalidade. Nesse caso, o indivíduo sente o transtorno de despersonalização, ca-
a falta dessa identidade ou uma confu- racterizado por “sensações recorrentes
são envolvendo sua identidade, ou tem ou persistentes de distanciamento do
múltiplas identidades. Estudos revelam próprio corpo ou mente”. Os autores
que uma das causas para que se desen- continuam citando o DSM-IV como tam-

Histeria – 63
bém possuidor de uma categoria diagnós- sendo um procedimento inútil e sem sen-
tica de transtorno dissociativo sem outra tido. Ao abandonar gradualmente a hip-
especificação para transtornos dissocia- nose, Freud adota um novo modelo de
tivos que “não satisfaçam os critérios tratamento: a técnica da associação li-
diagnósticos dos demais transtornos dis- vre9.
sociativos”. Elisabeth von R. mostrou-lhe a resis-
tência, quando se negava a responder o
ESTUDOS SOBRE A HISTERIA que estava se passando pela sua mente
(Freud, 1895) nos momentos em que ele a interrogava.
Freud, em 1895, publica seus Estu- Ela foi a paciente responsável pela des-
dos sobre a histeria em que apresenta coberta da necessidade de se elaborar
seus achados e conclusões a respeito da os traumas recalcados com a ajuda da
histeria. Essa obra é composta pelo rela- interpretação de Freud.
to de cinco casos clínicos, sendo que qua-
tro deles foram atendidos pelo próprio Os sintomas de Elisabeth von R.
Freud. As pacientes de Freud foram Frau começaram entrar na conversa,
Emmy von N., Miss Lucy R., Katharina também: desencadeavam-se no
e Fraülein Elisabeth von R. O caso Anna momento em que ela falava da
O. é o primeiro caso clínico citado na erupção deles, e amainavam quan-
obra. Ela foi atendida por Josef Breuer, do terminava de contar toda a sua
médico austríaco, que teve com Freud história. Mas Freud também pre-
uma relação bastante significativa, tanto cisava aprender a lição mais difí-
afetiva quanto profissional. cil de que a cura não era uma
Freud (1895/1974), nessa obra enfa- explosão melodramática de per-
tiza a importância que suas pacientes ti- cepções. Apenas o relato rara-
veram para a construção da teoria e mente bastava; os traumas tinham
técnica psicanalítica. As histéricas en- de ser elaborados. O ingrediente
sinaram a Freud alguns dos principais final na recuperação de Elisabeth
rudimentos da Psicanálise. Emmy von von R. foi a interpretação dos in-
N., por exemplo, se aborrecia quando dícios que Freud lhe apresentou
Freud a questionava de onde veio isto e à qual ela resistiu veemente-
ou aquilo e pedia para ele que a deixasse mente por algum tempo: ela ama-
falar o que ela tinha a dizer. Assim, ou- va seu cunhado, e havia reprimido
vir para Freud, “tornou-se mais do que desejos perversos pela morte de sua
uma arte, tornou-se um método, uma via irmã. O fato de aceitar esse desejo
privilegiada para o conhecimento, à qual imoral pôs termo a seus sofrimen-
os pacientes lhe davam acesso” (Gay, 1989, tos. “Na primavera de 1894”, con-
p. 80). A escuta do terapeuta e a fala do tou Freud, “soube que ela ia a um
paciente foram ganhando reconheci- baile exclusivo, ao qual tratei de
mento de tal forma que a hipnose, como conseguir acesso, e não deixei es-
técnica terapêutica, foi perdendo seu capar a oportunidade de ver minha
valor, sua importância. Com a ajuda de ex-paciente a voar numa dança li-
Emmy von N., reconhece a hipnose como geira” (Gay, 1989, p. 81-82).

9
Associação livre: “método que consiste em exprimir indiscriminadamente todos os pensamentos
que ocorrem ao espírito, quer a partir de um elemento dado (palavra, número, imagem de
um sonho, qualquer representação), quer de forma espontânea”. (Laplanche & Pontalis, 1992,
p. 38)

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Enfim, Freud deve muito, não somente Breuer a ela, “assombrosamente pouco
a Elisabeth von R. e a Emmy von N., mas desenvolvida em termos sexuais” (Gay,
também a Miss Lucy R. e a Katharina por 1989, p. 75). A doença fatal do pai é en-
elas terem contribuído tão ativamente na tendida como sendo o acontecimento que
elaboração da técnica e teoria psicanalí- precipitou sua histeria. Ela desenvolveu
tica: observação atenta, passividade aler- sintomas crescentes de incapacidade,
ta o que Freud chamaria de atenção durante os meses que cuidou do pai: fra-
flutuante10, interpretação hábil, associa- queza por não ter apetite, uma série de
ção livre sem o recurso da hipnose e ela- tosse nervosa e, após seis meses, foi atin-
boração. Rothged, em referência aos gida por um estrabismo convergente.
Estudos sobre a histeria, afirma que “Freud Também apresentava dores de cabeça,
originou os desenvolvimentos técnicos, acessos de agitação, perturbações da
juntamente com os conceitos teóricos vista, paralisias parciais e perda de sen-
primordiais de resistência, defesa e re- sibilidade. Sua sintomatologia foi se mo-
calcamento provenientes daqueles” dificando com o tempo, chegando a
(2001, p. 119). Em seu artigo E o verbo representar lapsos mentais, longos inter-
se fez carne, Maria José Ceranto Garcia valos de sonolência, rápidas alterações
enfatiza que “o esclarecimento da etio- de ânimo, alucinações com cobras cegas,
logia da histeria se dá paralelo ao de- caveiras e esqueletos, crescentes difi-
senvolvimento da psicanálise” (2000, culdades de fala. Desenvolveu duas per-
p. 30). sonalidades contrastantes, uma delas
bastante rebelde. Ela era visitada por
O CASO ANNA O. Breuer todos os dias. Durante suas con-
Josef Breuer atendeu por um ano e sultas ela contava muitas histórias a ele,
meio, com início em dezembro de descobrindo juntos que seus sintomas se
1880, Anna O. (pseudônimo de Bertha amenizavam devido essa liberdade para
Pappenheim). Caso este que seria re- falar. Procedimento este que ficou conhe-
conhecido como o “caso fundador da cido como a cura pela fala, como fun-
psicanálise” (Gay, 1989, p. 74). ção o processo de catarse11. Anna O. teve
Anna O., durante o seu tratamento, seu momento de cura pela fala quando,
foi dando importantes contribuições para passando por um período de hidrofobia12,
a formação da teoria psicanalítica. Ela ela se recorda que havia visto sua dama
realizou sozinha grande parte do traba- de companhia inglesa de quem não gos-
lho de imaginação, ensinando Freud so- tava, deixar que um cãozinho bebesse de
bre a importância da escuta do analista. um copo. Quando o nojo reprimido veio
Anna O. adoeceu quando tinha 21 a tona, a hidrofobia desapareceu. Dessa
anos. Apresentava uma tendência para forma, todos os sintomas, as contrações
ficar em um devaneio sistemático, seu paralisantes, as várias alucinações, etc.,
teatro particular como ela mesma defi- foram expulsos pela fala. Seus sintomas
nia. Tinha uma vida bastante monótona, revelaram ser resíduos de sentimentos e
totalmente restrita à família e, como re- impulsos que ela se sentira obrigada a
lembrou Freud sobre o julgamento de reprimir. Anna O. se tornou uma pionei-

10
Atenção flutuante: “segundo Freud, modo como o analista deve escutar o analisando: não deve
privilegiar a priori qualquer elemento do discurso dele, o que implica que deixe funcionar o
mais livremente possível a sua própria atividade inconsciente e suspenda as motivações que
dirigem habitualmente a atenção. Essa recomendação técnica constitui o correspondente da
regra da associação livre proposta ao analisando”. (Laplanche & Pontalis, 1992, p. 40)
11
Catarse: “efeito salutar provocado pela conscientização de uma lembrança fortemente emocional
e/ou traumatizante, até então reprimida”. (Ferreira, 1988, p. 136)
12
Hidrofobia: “horror a água e a quaisquer líquidos”. (Larousse Cultural, 1999, p. 492)

Histeria – 65
ra ativista social, líder de causas femi- por trás dos sintomas neuróticos era de
nistas e de organizações de mulheres ju- natureza sexual e conflitiva. No decor-
dias. Mas Breuer omitiu a verdadeira rer de suas pesquisas, Freud vai dando
causa que o fez interromper o tratamen- uma importância cada vez maior a se-
to com Anna O. Ele terminou a exposi- xualidade, tanto para a compreensão da
ção do caso, apresentando a paciente neurose como para a compreensão do
como liberta de seus sintomas e afirman- indivíduo normal. Ele escreve, em seu
do que o término do tratamento ocorreu trabalho Um caso de histeria:
devido ao desejo de Anna O. de encerrá-
Se é verdade que as causas das
lo por motivos de mudança. Não é o que
perturbações histéricas devem ser
afirma Luiz Alfredo Garcia-Rosa quan-
encontradas nas intimidades da
do escreve que “o que motivou o térmi-
vida psicossexual dos pacientes, e
no do tratamento foi um fenômeno que,
que os sintomas histéricos são a
apesar de ser hoje em dia bastante co-
expressão de seus desejos mais se-
nhecido, impossibilitou Breuer de con-
cretos e reprimidos, então a eluci-
tinuar a relação terapêutica com Anna O.:
dação completa de um caso de
o fenômeno da transferência13 e da con-
histeria implica certamente a re-
tratransferência14” (1999, p. 39).
velação dessas intimidades e a di-
Para Breuer, o fato de ele falar de sua
vulgação desses segredos. (Freud,
paciente com uma freqüência acima do
1972, pp. 5-6)
comum, não lhe parecia indício de ne-
nhum envolvimento emocional. A mulher CASO CLÍNICO
do médico se tornou triste e ciumenta por O terceiro e último momento deste
escutá-lo e percebê-lo empolgado com artigo é composto por um caso clínico
sua paciente. Breuer, porém, perceben- citado por Carlos Estevam (1995), em
do o que estava se passando, perturbou- seu livro Freud.
se e resolveu encerrar o tratamento. Anna Arlete, de 34 anos, sofria de crises
O., sabendo de sua decisão, desenvolve nervosas, manifestando sensações de
uma de suas piores crises. A paciente sufocamento, contração do corpo, para-
apresentava contrações abdominais de lisia dos membros e perda dos sentidos.
uma crise de parto histérica. Breuer foi O tratamento pelo método psicanalí-
chamado para consultá-la e quando ela tico, basicamente, consiste na investiga-
o viu disse que seu filho estava chegan- ção da história do paciente com o
do. Breuer atendeu Anna O. e a hipnoti- objetivo de descobrir as causas do con-
zou livrando-a da crise. No outro dia, flito psicológico que foi resolvido por ele
Breuer viaja com sua esposa de férias de forma incompleta por manter no in-
para Veneza. consciente representações (pensamentos,
Dessa forma, Freud conclui que a imagens, recordações) ligadas a uma
excitação emocional que se encontrava pulsão15, operação esta conhecida como

13
Transferência: “deslocamento de padrões de sentimentos, pensamentos e comportamentos,
originalmente experienciados em relação a pessoas significativas durante a infância, para uma
pessoa envolvida em um relacionamento interpessoal atual”. (Moore & Fine, 1992, p. 208)
14
Contratransferência: “conjunto de reações inconscientes do analista à pessoa do analisando e,
mais particularmente, à transferência deste”. (Laplanche & Pontalis, 1992, p. 102)
15
Pulsão: “processo dinâmico que consiste numa pressão ou força (carga energética, fator de
motricidade) que faz o organismo tender para um objetivo. Segundo Freud, uma pulsão tem a
sua fonte numa excitação corporal (estado de tensão); o seu objetivo ou meta é suprimir o
estado de tensão que reina na fonte pulsional; é no objeto ou graças a ele que a pulsão pode
atingir a sua meta”. (Laplanche & Pontalis, 1992, p. 394)

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recalque16. Assim, Arlete desenvolve sin- única lembrança era de que, quando Ar-
tomas que estão ligados a algum proces- lete tinha 7 anos foi atingida por uma fe-
so psíquico inconsciente que recalcou bre muito forte, acompanhada de delírio.
alguma experiência afetiva dolorosa Os médicos não descobriram a causa.
ocorrida na sua vida. Afirma Estevam Outros sonhos e associações de idéias,
(1995, p. 114) que “o histérico não sabe em que a cabeça do pai aparecia mistu-
qual é a causa do seu mal porque o que rada com a cabeça do homem que vio-
ele vê são apenas os sintomas: a causa lentou a menina, acabaram revelando ao
está recalcada no inconsciente”. psicanalista que Arlete se recordava de
Utilizando as técnicas da psicanáli- um traumatismo ainda mais antigo do
se, tais como a livre associação de idéias que o que sofrera na praia. Quando ti-
e a interpretação de sonhos, é possível nha 5 anos, ela estava brincando com seu
ajudar o paciente a reviver experiências pai numa cama e num momento foi to-
emocionais dolorosas e, com o analista, mada de pavor. Começou a se debater e
elaborá-las. a dizer nervosamente que havia segura-
Arlete, com seu analista, pôde relem- do nos cabelos. De fato, durante a brin-
brar de fatos que para ela foram trauma- cadeira, seus dedos tinham tocado nos
tizantes emocionalmente. Quando tinha pêlos do púbis do pai. Isso a assustara, e
7 anos de idade, Arlete costumava ficar como não sabia o que era, chamava de
brincando numa praia pouco freqüenta- cabelos. A palavra cabelos se associava à
da que havia perto de sua casa. Um dia, dolorosa experiência que vivera na praia,
ela estava sozinha se distraindo com suas razão pela qual a cabeça de seu pai apare-
brincadeiras de criança quando se apro- cida em seus sonhos misturada com a ca-
ximou dela um homem completamente beça do homem que a violentara.
despido. Ele estava tomando banho de Todos esses fatos reunidos explicam
mar sem roupa e quando saiu da água, perfeitamente a histeria de Arlete. Com-
dirigiu-se até ela. Arlete assustou-se, não preende-se por que razão suas crises de
conseguindo sair de onde estava. Ficou histeria apresentavam aqueles sintomas:
paralisada por medo. O homem aprisio- paralisia do corpo, exceto da cabeça, sen-
nou a menina em seus braços, seguran- sação de sufocamento, etc. Vê-se que os
do-a pelos punhos e obrigou-a a se deitar sintomas estavam ligados aos conflitos
na areia. Deitou-se sobre ela para pos- psíquicos intensos que, desde a infância,
suí-la. Ela não podia fazer nada para se não a abandonaram até a idade de 34
esquivar, pois o homem, muito mais for- anos. Depois de se submeter ao tratamen-
te do que ela, mantinha-a imobilizada to. Quando sua saúde começou a melho-
segurando-a com as duas mãos em volta rar, Arlete pôde finalmente dizer: “Sem
do pescoço. Durante todo o tempo que a psicanálise, eu não teria conhecido, em
durou a cena, a sensação mais profunda toda minha vida, um só momento de fe-
que Arlete experimentava era a de que licidade” (Estevam, 1995, p. 117).
estava sendo estrangulada. A impressão
que a dominava era a idéia de que havia
perdido o corpo e a única coisa que lhe CONCLUSÃO
restava era apenas a cabeça.
Sua família jamais suspeitou de tal Este artigo nos trouxe informações a
fato. Quando interrogados a respeito, a respeito de um, entre muitos outros,

16
Recalque: “operação pela qual o sujeito procura repelir ou manter no inconsciente representações
(pensamentos, imagens, recordações) ligadas a uma pulsão”. (Laplanche & Pontalis, 1992,
p. 430)

Histeria – 67
transtorno mental e de comportamento, mais adequado e aprimorado, compreen-
o transtorno dissociativo (ou conversi- são, acolhimento e respeito.
vo), a antiga neurose histérica ou histe- Curar, do latim curare significa cui-
ria de conversão. dar, tratar. Assim, acredito que, cuidando
Hoje, quando tenho um paciente com dos nossos pacientes por meio de experi-
tais manifestações em tratamento psico- ências afetivas e emocionais, portanto,
terapêutico, penso na responsabilidade terapêuticas, desenvolvemos, com eles, a
que me cabe como profissional e ser hu- possibilidade de cura ou os recursos para
mano para com aquela pessoa: tentar aju- se ter uma melhor qualidade de vida.
dá-la na elaboração dos seus traumas, Este deve ser o nosso objetivo e a ra-
não somente físicos, mas também de or- zão pelo qual praticamos a nossa profis-
dem psíquica. são de psicólogos.
Com os avanços da medicina e com
os da psicologia, mais especificamente
Encaminhado em 27/08/03
os da psicanálise, podemos oferecer aos Revisado em 11/11/03
nossos pacientes, além de um tratamento Aceito em 29/12/03

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