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Pensamentos inseridos, pensamentos roubados e sósias impostores
O drama da esquizofrenia
A esquizofrenia é um transtorno mental grave, que acomete cerca de um por cento da
população. É grave porque seus sintomas costumam ser muito severos e incapacitantes. E
também porque na maioria das vezes afeta indivíduos jovens, na segunda ou terceira década de
vida. Contudo, ela pode começar mais cedo ou mais tarde que o habitual, mas estes casos são
mais raros.
É um transtorno passível de comprometer qualquer área do funcionamento mental dos
pacientes, deixando-os muitas vezes definitivamente incapacitados para o trabalho e para o
convívio social, mas suas manifestações mais conhecidas são as alucinações e os delírios, apesar
destes não serem os únicos sintomas da doença. Assim, é comum ouvirmos dizer que os
esquizofrênicos ouvem vozes (as vozes que eles ouvem são chamadas de alucinações) e têm
“manias de perseguição” (estas “manias” são chamadas de delírios). De fato, estes sintomas são
muito frequentes nestes pacientes, embora nem todos apresentem delírios e alucinações: há
pacientes que só têm delírios e pacientes que só têm alucinações; todavia, são mais comuns os
casos que se apresentam apenas com delírios. Além do mais, um portador de esquizofrenia pode
ter outros tipos de sintomas não tão “populares”, como são as famosas “vozes” e as “manias de
perseguição”. Exemplos de alguns destes sintomas incluem ideias de que são controlados por
outras pessoas, de terem seus pensamentos roubados, de terem pensamentos inseridos em suas
mentes, de que seus pensamentos são transmitidos pela rede elétrica, pela rede telefônica ou pela
internet, ou de que, ao assistirem TV, os personagens de um filme ou da novela os insultam ou
fazem comentários jocosos a seu respeito, como aconteceu com Alfredo. Outras excentricidades
do pensamento esquizofrênico incluem o delírio do sósia impostor, também conhecido como
delírio de Capgras, em que os pacientes acreditam que alguém do convívio próximo do paciente
foi malevolamente substituído por um impostor.
Vou explicar com um pouco mais de detalhe o que seriam as alucinações e os delírios.
Embora as alucinações não sejam manifestações do adoecimento do pensamento, elas são
experiências mentais patológicas tão frequentes na esquizofrenia que não falar delas me faria
correr um risco muito alto de ser impreciso cientificamente.
Alucinações: percebendo o que não é sentido
Alucinações são alterações sensoperceptivas e derivam de disfunção dos processos cerebrais de
recepção e tratamento de estímulos sensoriais. Pessoas saudáveis conseguem enxergar, sentir
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cheiros, ouvir música e sentir gostos e toques porque seus aparelhos do sentido (localizados
respectivamente nos olhos, mucosa nasal, ouvidos, boca e superfície corporal) estão preparados
para captar estímulos externos específicos (imagens, odores, sons, sabores e estímulos tácteis)
que serão interpretados pelo cérebro, mais especificamente por uma parte dele chamada córtex
cerebral, ganhando um significado para nossa mente, que chamamos de percepção. Assim, por
exemplo, nossos olhos – mais precisamente, células da retina – convertem sinais luminosos em
sinais eletroquímicos que conduzem ao cérebro através dos neurônios do nervo óptico. No
cérebro, a imagem registrada pela retina será processada pelo córtex visual e integrada com
informações de outros órgãos dos sentidos e da memória em córtices associativos, quando então
é possível “compreender” o que é visto. O processamento cortical sofistica a experiência visual,
na medida em que possibilita um cruzamento daquela informação sensorial “crua” com outros
eventos mentais como a memória, os estados motivacionais e até mesmo sistemas de crenças.
Somente após estes estágios de processamento cortical é que se forma uma percepção. Portanto,
órgãos sensoriais como os olhos, “sentem” os estímulos do ambiente, os quais são “percebidos”
pelo cérebro, após um intenso trabalho de integração da informação que chega até ali. Assim
sendo, na presença de determinados estímulos e estando nossa atenção a eles dirigida, estamos
aptos a compreendê-los porque temos uma aparelhagem apropriada para captar a informação do
meio ambiente, nossos órgãos do sentido; de conduzi-la até centros superiores, e de decodificar e
integrar toda aquela informação com dados armazenados em nossa memória e em sistemas de
crenças, uma função do córtex cerebral. O trabalho desta aparelhagem resulta na “tradução” de
um significado bem abrangente para cada estímulo.
Nos pacientes que apresentam alucinações, esta aparelhagem parece estar funcionando
mal, porque eles enxergam e ouvem coisas ou, menos frequentemente, sentem cheiros ou gostos
na ausência de estímulos externos de qualquer modalidade. Algo parecido como “perceber” um
estímulo, sem, de fato, tê-lo “sentido”. É comum as pessoas entenderem este fenômeno como se
os olhos ou os ouvidos ou quaisquer outros órgãos do sentido levassem informações a partir do
nada para o córtex cerebral, mas, mais adequado é dizer que nestas situações o córtex cerebral
“trabalha” anormalmente, gerando informações na ausência dos “pacotes” de dados sensoriais
comumente veiculados pelos sentidos.
Alucinações são, portanto, sintomas que se caracterizam pela presença de uma percepção
na ausência de um estímulo precipitante, ou percepções sem sensações. Portadores de
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esquizofrenia podem ter qualquer modalidade de alucinação, mas as mais comuns são as
alucinações auditivas, do tipo “vozes”. Na verdade, em esquizofrênicos as alucinações auditivas
são tão frequentes, que quando um paciente se queixa de outros tipos de experiências
alucinatórias, os psiquiatras costumam reforçar a investigação clínica através de exames de
imagem para estarem seguros de que outras condições médicas, como tumores do cérebro, não
estejam por trás de seu aparecimento. É possível que a maior frequência de alucinações auditivas
na esquizofrenia se deva a processos patológicos alterando mecanismos neurais que possibilitam
compreender o discurso interno (inner speech) como um produto da própria mente. Em termos
cognitivos, o discurso interno (também denominado pensamento verbal, discurso encoberto ou
monólogo interno) poderia ser definido como a experiência subjetiva da linguagem e, em termos
subjetivos, como a sensação de que nossa mente “conversa” conosco.
“Vozes” podem “dizer” coisas desagradáveis aos pacientes, ameaça-los, acusa-los, dar
ordens a eles, além de comentar seus comportamentos. Imagine como deve ser perturbadora a
experiência de ter uma alucinação auditiva como estas, de ouvir que coisas lhe são ditas sem que
haja ninguém por perto ou alguém se dirigindo diretamente a você. Juntamente dos delírios, as
alucinações são consideradas os sintomas “positivos” da esquizofrenia. Evidentemente, a
expressão “sintoma positivo” não tem um contexto de algo bom ou favorável, mas o significado
de que algo a mais do que deveria ocorrer em condições normais está acontecendo. Em relação
às alucinações, percepções sem sensações (o trabalho “a mais” do córtex sensorial); no caso dos
delírios, pensamentos, crenças ou conclusões desconexos com a realidade ou até mesmo
bizarros.
Delírios são pensamentos doentes
Os delírios são as manifestações mais perturbadoras de doença acometendo o pensamento. Eles
são as formas mais “populares” de sintomas do pensamento, tendo sido frequentemente
retratados no cinema, onde pacientes delirantes geralmente apresentam comportamento violento.
Na vida real nem todos os pacientes com delírios são violentos; ao contrário, uma minoria deles
apresenta comportamentos agressivos. A maior parte dos pacientes delirantes está assustada ou
perplexa e pode, até mesmo, comportar-se de forma arredia, tentando se esconder ou se preservar
do contato com outras pessoas, a quem podem atribuir poderes de dominar suas mentes, por
exemplo, através da inserção ou da subtração de pensamentos, emoções e ações. No entanto,
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ou de ser controlado (influenciado) através de controle remoto, de forma muito parecida com o
que acontecia com Alfredo.
Em ambulatórios de esquizofrenia ou em enfermarias onde estes pacientes são internados
é muito comum ouvi-los dizer que seres extraterrestres, inimigos ou até mesmo seus vizinhos
tomaram sua mente de assalto e, desde então, não sentem mais seus pensamentos, emoções e
movimentos corporais como seus. Um paciente que atendi há alguns anos em um ambulatório
público inicialmente não se expressava verbalmente, embora nada sugerisse que tivesse algum
problema na capacidade de falar. À medida que foi se sentindo mais confortável em minha
presença, decidiu entregar-me um bilhete em que havia escrito: eu vim disfarçado porque eles
estão em toda a parte, até aqui. Eu não posso mais sair de casa pra não ser seguido, “tão”
querendo me matar, sou observado e controlado por satélite. Voltava do trabalho à noite e uma
nave espacial apareceu e fizeram isso. Tem uma mulher trabalhando pra eles aqui. Este paciente
apresentava uma mistura de ideias persecutórias e de influência, pois se sentia “observado” e
“controlado” por satélites, em um verdadeiro enredo de perseguição. Ele também acreditava que
uma “agente” dos extraterrestres que tinham feito “aquilo” a ele estava infiltrada naquele
ambulatório.
Indivíduos com ideias de influência podem dizer que suas mentes foram substituídas por
mentes que não são mais capazes de controlar e que, por esta razão, elas os obrigam a fazer
coisas que não fariam normalmente. Temas de “substituição” são recorrentes na esquizofrenia e
um dos mais surpreendentes é o delírio de substituição por um sósia, ou delírio de Capgras, no
qual os pacientes acreditam que alguém de sua convivência foi substituído por outra pessoa, só
que de aparência idêntica. Estes delírios fazem parte do grupo de delírios de falso
reconhecimento. Tanto as ideias de influencia quanto as de substituição por um sósia parecem se
seguir a experiências mentais peculiares. Estas experiências sempre antecedem o aparecimento
das ideias delirantes e costumam ser a razão para o aparecimento destas falsas crenças tão
bizarras.
Os pacientes apresentando delírios de influência experimentam vivências de passividade,
as quais derivam de fortes sensações de perda dos limites do “eu” (ou do self); isto é, eles
parecem perder a convicção normalmente sustentada por pessoas saudáveis, de que a origem de
seus pensamentos, sentimentos, intenções e de seus movimentos corporais é a sua própria mente.
Quando se perde esta convicção, o que sobra é uma desagradável experiência de se assistir
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passivamente aos próprios eventos mentais. Já os pacientes que desenvolvem delírios de falso
reconhecimento ou de substituição por um sósia vivenciam uma espécie de falso insight de que
aquela pessoa conhecida, embora tenha todas as características físicas da pessoa que conhecem,
não parece mais ser ela mesma, por alguma razão sutilmente incômoda e indescritível. Estes
pacientes têm uma experiência do tipo “algo está errado com esta pessoa, que se apresenta como
meu irmão (ou qualquer outra pessoa próxima): este sujeito se parece com ele, tem tudo dele,
mas, algo nele não me convence de que é mesmo meu irmão”. Esta estranha experiência deriva
do prejuízo da capacidade de integrar informações de ordem puramente sensorial a respeito das
pessoas familiares (seu rosto, seu corpo, sua voz) com informações mais subjetivas sobre elas,
como seu temperamento, humor e estilo pessoal.
Frente às peculiares vivências de passividade e de estranhamento de alguém muito
familiar, as quais são sensações decorrentes de disfunção de circuitos neuronais específicos e não
o resultado de reflexão, o cérebro “exige explicações”. Tais experiências bizarras acontecem
porque algo funciona mal no cérebro, provocando estados mentais de perplexidade, inquietação,
perturbação e dúvida, chamados conjuntamente de estados de saliência, os quais são intoleráveis
pela mente. Estes estados podem ser aliviados através de manobras racionais, que os tornam
compreensíveis, às vezes à custa de alguma precipitação. Um dos papéis do nosso cérebro é
gerar inferências sobre as coisas e o mundo, fazendo-o através da configuração de sistemas de
crenças, que são probabilidades de que proposições sobre as coisas e o mundo sejam verdadeiras.
Mas o cérebro também tem de ser capaz de revisar e atualizar estas crenças quando elas mostram
falhas em sua capacidade preditiva. Mas a revisão e a atualização não são precisas nos pacientes
delirantes. É como se a mente dos pacientes com vivências de passividade pensasse: “até este
momento acreditei que meus pensamentos, emoções e impulsos tivessem origem em mim, no
entanto, agora sinto que não é bem assim, pois alguns pensamentos parecem não ser pensados
por mim, algumas emoções parecem não ser produzidas em mim e alguns impulsos parecem
estranhos a mim...”, corrigindo anomalamente estas crenças, para: “logo, é possível que sejam
produzidos por alguém e ‘inseridos’ em minha mente”, formando-se, assim, um delírio de
influência. No caso dos indivíduos com falsos reconhecimentos, a “correção” se daria mais ou
menos deste jeito: “até este momento acreditei que este sujeito fosse meu irmão, mas tenho um
incômodo sentimento de que há algo muito estranho nele, que insiste em me fazer duvidar de sua
identidade, logo, é possível que ele tenha sido substituído malevolamente por um impostor”. Esta
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é uma das possíveis variantes dos delírios de falso reconhecimento. É impossível para a mente de
quem tem experiências tão marcantes quanto as de passividade ou de estranhamento de pessoas
familiares não ir atrás de uma explicação para elas, a fim de aplacar os sentimentos de
inquietação que suscitam. Os delírios de influência e substituição por um sósia são, portanto,
manobras cognitivas, “explicações”, para lidar com vivências bizarras como as de passividade e
de estranhamento de um conhecido.
As “explicações” fornecidas por muitos pacientes para suas experiências de passividade e
de falso reconhecimento são muito semelhantes e até mesmo estereotipadas, independentemente
da cultura. E estas “explicações” incluem os “ajustes” feitos pelos cérebros destes
desafortunados pacientes em suas crenças a respeito da própria mente e das pessoas próximas a
elas.
Experiências de passividade e de falso reconhecimento derivam de problemas em
circuitos neurais muito complexos e especializados, respectivamente, no processamento de
informações referentes aos limites do “eu” e de características não puramente sensoriais que nos
permitem identificar pessoas conhecidas (considere que em situações normais você reconheceria
seu irmão mesmo que ele sofresse uma cirurgia plástica que modificasse brutalmente seu aspecto
visual, utilizando outras pistas, como seu temperamento, estilo afetivo e até mesmo a modulação
de sua voz). Estes problemas geram experiências bizarras de passividade e de falso
reconhecimento os quais “clamam por uma explicação” ou por uma atualização das crenças a
eles relacionadas. Nas raras vezes em que estes circuitos estão disfuncionais, o tipo de crença
que é adicionada às crenças pré-existentes na tentativa de explicar aquelas estranhas experiências
parece ser muito semelhante entre os todos pacientes, inclusive os que são de culturas muito
diferentes. Apesar de bizarras, estas crenças representam um “alívio explicativo” às sensações de
perplexidade e estranheza que surgem quando alguém perde a capacidade de reconhecer a
unidade da própria mente ou alguém muito familiar.
Vivências de passividade derivam de prejuízos ao automonitoramento
Indivíduos saudáveis têm uma forte sensação de identidade, constituída tanto por uma memória
autobiográfica – a recordação de uma sucessão de eventos já vividos, iniciada remotamente e que
conduz inexoravelmente ao dia de hoje – quanto por uma experiência interior de se serem os
proprietários ou a origem de todos os eventos mentais que experimentam. Algo como saber que
sou eu, sempre fui eu e sempre serei eu quem pensa meus pensamentos e sente meus sentimentos
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e minhas emoções, assim como conseguir se lembrar de que num momento “x” pensei um
pensamento “p” ou senti uma emoção “e”. A experiência do “eu” é construída a partir de
processos que incluem o monitoramento dos próprios eventos mentais ou automonitoramento
mental, os quais abrangem circuitos neurais responsáveis pela diferenciação da atividade neural
gerada “dentro” do cérebro (como os pensamentos, as imagens mentais e as lembranças) da
atividade neural gerada “de fora” (as percepções). Quando você pensa em sua mãe, sua mente
gera uma imagem dela que, além de muito semelhante à imagem visual construída a partir da
presença dela, é perfeitamente distinguível desta percepção, ou seja, apesar da semelhança entre
as duas “imagens”, você sabe muito bem quando está vendo sua mãe e quando está pensando
nela. A atividade de automonitoramento mental contribui muito para a configuração de nossa
identidade, a partir da construção de um “eu” separado do mundo.
Os indivíduos que desenvolvem vivências de passividade parecem perder, de forma mais
ou menos extensa, a coesão dos complexos componentes mentais que participam da construção
da identidade, particularmente da experiência interior de ser a origem dos próprios fenômenos
mentais, devido a prejuízos da capacidade de automonitoramento. No entanto, desde que somos
muito pequenos, e praticamente todos os dias, perdemos transitoriamente a capacidade de
perceber que somos a origem de nossos eventos mentais: quando sonhamos. Ninguém há de
discordar que os sonhos são produtos de nossa mente, só que durante um sonho não temos esta
convicção. Normalmente enquanto sonhamos não só não percebemos que estamos sonhando,
como acreditamos fortemente que estamos acordados. Nos sonhos, tudo o que acontece parece
muito real e quase nunca ficamos desconfiados de que o que ali se passa possa não ser a
realidade ou possa ser fruto de imaginação, mesmo quando sonhamos com situações fisicamente
impossíveis, como conseguir voar, respirar em baixo da água ou encontrar pessoas que já
morreram. Portanto, quando sonhamos, a certeza de estarmos acordados é mantida mesmo
quando sonhamos com situações impossíveis na vigília. Esta certeza é tão forte que nestes casos
ficamos surpresos com nossas habilidades e podemos até nos questionar sobre as razões de não
termos lançado mão delas outras vezes. Algumas dúvidas ou desconfianças a respeito daquelas
experiências tão insólitas podem até ser esboçadas durante um sonho, tais como “puxa, mas esta
pessoa com quem acabei de falar não tinha morrido?”. Mas, na maioria das vezes estas dúvidas
não são suficientes para abalar a firme convicção de que não estamos sonhando. Possivelmente
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isso acontece para a proteção do sono, que tem suas funções fisiológicas e não é um mero “modo
descanso” de nossa mente.
Portanto, enquanto sonhamos nossa mente produz uma série de imagens e sons que não
são interpretados, naquele momento, como produtos de nossa mente. Ao contrário, achamos que
as imagens e sons vêm “de fora”, do ambiente em que aquele sonho acontece e, por esta razão,
são experimentadas como parte do cenário e não como imaginação. Isso ocorre porque durante o
sono existe uma suspensão dos processos mentais de automonitoramento. Além disso, as
imagens e sons presentes em sonhos não possuem um estímulo sensorial real (uma sensação) que
as desencadeie, logo, quando sonhamos, alucinamos. Assim, alucinações são fenômenos
patológicos na esquizofrenia e fenômenos fisiológicos durante a fase REM do sono (a fase em
que sonhamos) e estudos recentes mostram que, tanto na esquizofrenia quanto no sono REM
existe um aumento da atividade cerebral da dopamina, um neurotransmissor tradicionalmente
relacionado à atividade de formação de crenças e de relações de causa e efeito pelo córtex pré-
frontal, cuja hiperatividade está por trás da formação de sintomas positivos da esquizofrenia. É,
ainda, possível que alucinações auditivas sejam o resultado de perda da capacidade de monitorar
os próprios pensamentos, particularmente os do discurso interno e, consequentemente, de
percebê-los como produtos de nossa mente. De fato, muitos pacientes sofrendo de esquizofrenia
se queixam de ouvirem os próprios pensamentos em voz alta.
Levando em conta que os delírios de influência podem ser compreendidos como
decorrentes de inferências errôneas feitas por nosso cérebro diante de experiências bizarras
derivadas de prejuízos ao funcionamento de circuitos de automonitoramento como as vivências
de passividade, em que há perda da experiência de um “eu” coeso, vejamos agora que tipo de
informação deve ser processado por estes circuitos.
Neuropsicologia das vivências de passividade e dos delírios de influência
A forte sensação que temos de que nossos eventos mentais se originam de nossa própria mente é
tão familiar, que falar a respeito de certeza de que nossas emoções são nossas emoções e de que
nossas ideias são realmente nossas ideias pode parecer um tanto quanto estranho. Não obstante,
as experiências de passividade vividas pelos portadores de esquizofrenia, e o exemplo da
abolição da capacidade de perceber que imagens oníricas são geradas na mente durante os
sonhos me parecem muito convenientes para tentar explicar as avarias nos processos de
automonitoramento que levam às vivências de passividade e alucinações.
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O psiquiatra Irwin Feinberg propôs, no final da década de 70, uma teoria bastante
interessante a respeito das vivências de passividade de portadores de esquizofrenia, considerando
a abolição da sensação de integração do “eu”, existente nestes indivíduos. Sua teoria sugere que
prejuízos em processos integrativos denominados de “mecanismos de retroalimentação descarga
corolária” estejam por trás das vivências de passividade. Apesar do nome rebuscado e pomposo
(que a partir de agora vou abreviar como mecanismos DC ou simplesmente DC), creio que não
será difícil compreender do que se trata. Mecanismos DC são tradicionalmente utilizados para
explicar como enxergamos o mundo de forma estável apesar de movimentarmos nossos olhos a
todo o momento. DC é uma cópia de um comando motor que foi enviado do cérebro para os
músculos, cuja função não é de produzir movimento, mas servir como informação para outras
regiões do cérebro responsáveis pelo controle e sequenciamento de movimentos e pela adequada
interpretação da informação sensorial. DC é também chamada de cópia eferencial e tem um
importante papel na alteração da resposta de sistemas sensoriais que serão estimulados em uma
ação motora, o que é fundamental para a criação de percepções mais fidedignas do mundo, por
exemplo, quando temos de interpretar determinados estímulos visuais em diferentes contextos de
movimento. Assim, sabemos diferenciar facilmente quando movimentamos nosso braço
voluntariamente e quando ele está sendo movimentado por outra pessoa. Quando movemos o
nosso braço voluntariamente não sentimos sua movimentação passivamente, como vinda de fora,
mas como uma ação produzida por nossa vontade, em razão da ação dos mecanismos DC, que
mandam a cópia do comando motor (que fora, primeiramente, enviada aos músculos do braço) a
regiões do cérebro que computam informações sobre as consequências sensoriais daquele
movimento. Quando mexemos nosso corpo voluntariamente sabemos quais as consequências dos
movimentos gerados (se ele é movido para frente, para trás, para cima ou para baixo, se o braço é
mergulhado em água fria ou quente, qual a velocidade dos movimentos, etc.) porque a cópia
eferencial informa o cérebro sobre estas variáveis. Quando é outra pessoa que movimenta nosso
braço não existe DC e, portanto, não há consequências antecipáveis daquele movimento. Um
exemplo mais caricato da ação dos mecanismos DC inclui a explicação da razão pela qual não
conseguimos produzir cócegas em nós mesmos. O caráter de imprevisibilidade das ações
produzidas externamente, geralmente por outra pessoa, é que as fazem provocar a sensação de
cócegas.
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preocupações, como são as ideias delirantes de perseguição. Estas ideias têm algum grau de
parentesco com crenças que pessoas saudáveis podem sustentar em circunstâncias específicas.
Por exemplo, a maioria das pessoas se sente desconfortável em lugares nos quais não estão bem
ambientados e não conhecem as outras pessoas, como em uma festa em que não há pessoas
conhecidas. Nesta situação é comum à maioria das pessoas que haja um aumento de
preocupações de escrutínio social, do tipo “será que vou ser aceito por estas pessoas?”, ou, “o
que devem estar pensando de mim?”, ou, “será que estão percebendo meu desconforto?”
Costumamos dizer que em uma circunstância como esta, aumentam-se as chances de
aparecimento de um tipo especial de preocupação ou crença de se estar sendo mais olhado ou
percebido do que o habitual. Evidentemente este tipo de preocupação não costuma ter
intensidade delirante na maioria das pessoas, embora existam pessoas para quem situações como
a descrita no exemplo acima são insuportáveis e podem até mesmo subverter sua capacidade de
testar a realidade. Tais preocupações podem ser chamadas de ideias supervalorizadas. Um
pensamento ou uma ideia supervalorizada não preenche todos os critérios de uma ideia delirante,
na medida em que permite alguma argumentação lógica; todavia, trata-se de um sistema de
crenças um pouco mais invasivo e acentuado, com algum potencial lesivo da interpretação da
realidade, embora apenas transitoriamente. A maioria das pessoas se sente aliviada deste
conforto quando se percebem integradas àquele ambiente social.
As ideias de perseguição, embora implausíveis e incompatíveis com a realidade, parecem
se organizar como uma exacerbação de nossa necessidade de monitoramento do ambiente social
em busca de ameaças em potencial. Como boa parte das ameaças a que estamos sujeitos podem
vir de outras pessoas, elas costumam ocupar um espaço considerável dos conteúdos de nossos
pensamentos. Crenças associadas ao monitoramento do ambiente social variam desde
preocupações simples com a avaliação social, como temores de rejeição e sentimentos de
vulnerabilidade social, até níveis crescentes de atenção a estresse social, como pensamentos de
que outras pessoas provocam ou tentam irritar, tentam atrapalhar deliberadamente ou, na forma
mais severa, passam a conspirar contra o sujeito.
Nestes quase vinte anos ouvindo pessoas apresentando pensamentos doentes – dentre eles
muitos esquizofrênicos, os quais, sem sombra de dúvida, têm as formas mais curiosas de
comprometimento do pensamento (tanto é assim que, apesar de outros transtornos mentais
afetarem o pensamento, a esquizofrenia é considerada o transtorno mental cuja “marca
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registrada” são distúrbios do pensamento) – tenho procurado entender os mecanismos que estão
por trás deste processo de adoecimento. Aprendi que o pensamento é como um organismo ou um
tecido e como tal, pode adoecer. Também aprendi que ele não é um fenômeno cognitivo isolado,
mas é forjado a partir das influências de outras funções da mente, como os estados de humor, a
memória, os níveis atencionais e as motivações. Para entender de maneira mais adequada os
processos envolvidos no adoecimento do pensamento, somos obrigados a deixar de lado nossa
familiaridade com o ato de pensar. É verdade que, em razão das sensações compartilhadas por
todos de que ninguém nos ensinou a ter pensamentos (apesar de podermos aprender a sofisticá-
los, felizmente) e de não nos lembrarmos do dia em que começamos a pensar, matrizes da
patente convicção de que pensar seja a mais humana de todas as características humanas, é difícil
que paremos para refletir sobre a complexidade e a maravilha deste processo.
Meus pacientes com distúrbios do pensamento me estimularam a ir atrás de respostas a
respeito da origem de seus problemas, fazendo com que descobrisse um impensável volume de
informações sobre o assunto nas áreas de neuropsicologia, psicobiologia e ciência cognitiva.
Estas informações não só explicam que, da mesma forma que um organismo ou um tecido,
pensamentos doentes podem responder favoravelmente a fármacos, mas também que sua
manipulação através da psicoterapia e de outras modalidades de reabilitação psíquica não
farmacológica não são processos etéreos e impossíveis de serem explicados de forma
materialista. Os resultados de tratamentos psicoterápicos, da mesma forma que o aprendizado,
podem ser explicados como decorrentes de mudanças nos padrões de comunicação entre
neurônios. Além disso, nos últimos trinta anos vêm se estabelecendo um crescente corpo de
pesquisa sobre circuitos neuronais especializados no processamento cognitivo de variáveis
sociais, os quais podem estar danificados em diversos transtornos mentais, particularmente a
esquizofrenia e o autismo. Logo acima afirmei que outras pessoas são uma fonte em potencial de
problemas para um indivíduo. Isso é verdade, mas também é verdade que outras pessoas podem
ajudar na resolução de diversos problemas, através da colaboração e do aprendizado social.
Somos seres sociais e nossa mente parece ter evoluído para operar de forma muito eficaz em um
meio em que boa parte da informação relevante para a sobrevivência provém das outras pessoas.
Esta informação deve ser rápida e adequadamente captada, processada e disponibilizada para que
a resultante de nosso comportamento seja a mais adaptativa possível.
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Assim, saber como reconhecer prontamente quem são meus amigos e meus inimigos,
quem pode ser leal e quem pode me trair ou me agredir, assim como entender – e de certa forma,
conseguir prever ou antecipar – os desejos, as crenças e as intenções de outras pessoas constitui
uma habilidade fundamental a todo o ser humano. Usamos estas capacidades em nosso cotidiano
não só para nos defendermos ou fazermos parcerias, mas para atos tão singelos como
compreender o que outra pessoa nos diz. Isso mesmo, a compreensão do discurso falado de
alguém não se baseia exclusivamente na capacidade de conhecer o significado das palavras que
ouvimos, mas se trata de um processo muito mais complexo, composto também pela capacidade
de, ao ouvirmos o discurso de nosso interlocutor, compreendermos seus estados emocionais
através de uma série de “pistas” que por ele nos são dadas, principalmente pela prosódia e por
suas expressões faciais, em um verdadeiro “rastreamento” de seus estados emocionais. A
prosódia é a “musicalidade” do discurso e através dela as pessoas revelam muito a respeito de
suas emoções. Sabemos que a prosódia de alguém com raiva é muito diferente da prosódia de
alguém que está alegre. As expressões faciais nos revelam muito a respeito dos estados mentais
de outros humanos porque alterações muito sutis do formato de certas partes constituintes das
faces, como os olhos, sobrancelhas e boca nos dão muitas informações a respeito de seus estados
mentais. De fato, desde cedo o ser humano é extremamente hábil em detectar e interpretar as
delicadas alterações dos formatos destas partes das faces humanas porque elas veiculam
informações essenciais para a compreensão dos estados mentais dos outros, a fim de que seja
possível entender as pessoas e prever seus comportamentos.
A compreensão daquilo que as pessoas falam não depende exclusivamente do
conhecimento dos significados das palavras, mas também da habilidade de rastrear
intencionalmente nossos interlocutores através da interpretação de sua prosódia e expressões
faciais e corporais. Este rastreamento consiste na compreensão do discurso das pessoas tendo
como pano de fundo seus desejos, intenções e crenças, e é um papel de estruturas cerebrais que
compõem o cérebro social, que processa a cognição social.
O autismo se caracteriza como um transtorno em que os pacientes têm dificuldades em
compreender as pessoas e o que elas dizem em razão de prejuízos cognitivos sociais. Autistas
parecem não conseguir compreender que outras pessoas – e talvez eles próprios – têm estados
mentais. Isso faz com que estes pacientes manifestem desde muito cedo formas muito peculiares
e disfuncionais de relacionamento interpessoal. Alguns se dirigem a elas como o fazem com
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objetos, outros nem estão muito interessados em pessoas, mas só em determinados tipos de
objetos ou partes deles. Quando pequenos, os autistas já apresentam um comportamento
sugestivo de que algo não vai bem com suas mentes: por exemplo, ao contrário de crianças
saudáveis, as crianças portadoras de autismo parecem não se interessar por pessoas, não
costumam acompanhar o olhar de outras pessoas nem de entenderem que quando alguém aponta
algo com o dedo indicador, está fazendo referência a alguma coisa do ambiente que desejam
destacar. A psicologia moderna também já documentou exaustivamente que a direção do olhar
de alguém é uma pista muito confiável a respeito dos seus desejos e intenções e indivíduos
saudáveis sabem disso desde muito cedo. Crianças autistas têm, ainda, dificuldades em participar
de jogos de faz de conta e de aprenderem por imitação, importantes artifícios no
desenvolvimento de habilidades cognitivas sociais. Elas também usam poucos gestos para se
expressar, o que lhes causa uma série de dificuldades emocionais e de interação social.
No início dos anos noventa um psicólogo inglês, Christopher Frith, sugeriu pela primeira
vez que indivíduos com esquizofrenia poderiam apresentar alterações psicológicas semelhantes
às de indivíduos portadores de autismo, isto é, da capacidade de compreender que outras pessoas
têm desejos, intenções e crenças e que tais dificuldades poderiam estar por trás de muitos de seus
sintomas de pensamento. Este pesquisador sugeriu que, em função das dificuldades que pacientes
esquizofrênicos têm de rastrear os estados mentais de outras pessoas, eles podem acabar por
desenvolver pensamentos doentios a respeito dos outros. É impressionante como a imensa
maioria dos pensamentos delirantes de esquizofrênicos diz respeito a intenções malévolas dos
outros: os vizinhos, o pai, a mãe, o chefe, os desconhecidos e até mesmo os personagens de um
filme que passa na TV ou os locutores de um programa de rádio. É muito comum que pacientes
com esquizofrenia parem de assistir televisão ou de ouvir rádio por acreditarem que os atores da
TV ou locutores se referem a eles, insinuando coisas a seu respeito, ofendendo-os, contando seus
segredos ou enviando mensagem cifradas, como acontecia com Alfredo. De acordo com Frith e
com muitos outros pesquisadores que passaram a estudar o assunto em profundidade, estas
dificuldades referem-se prejuízos na capacidade de compreender os desejos, intenções e crenças
dos outros, fazendo com que indivíduos sofrendo de esquizofrenia tomem conclusões errôneas a
respeito do comportamento de outros seres humanos, o que, grosso modo, também compromete
sua flexibilidade cognitiva e sua capacidade de atualizar sistemas de crenças.
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