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Relações Interétnicas

Profª. Luciane da Luz


Prof. Márcio José Cubiak

2017
Copyright © UNIASSELVI 2017

Elaboração:
Profª. Luciane da Luz
Prof. Márcio José Cubiak

Revisão, Diagramação e Produção:


Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI

Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri


UNIASSELVI – Indaial.

306.001
L979r Luz, Luciane da
Relações interétnicas / Luciane da Luz; Márcio José
Cubiak: UNIASSELVI, 2017.

230 p. : il.

ISBN 978-85-515-0100-9

1. Cultura - Identidade Social.


I. Centro Universitário Leonardo da Vinci.

Impresso por:
Apresentação
Caro acadêmico! Este é seu Livro de Estudos de Relações Interétnicas.
Trata-se de um tema bastante presente e relevante para nosso mundo atual.
Trataremos aqui de discutir o retorno da etnia ao cenário político e acadêmico
com força total. Esse ressurgimento de tipos étnicos de engajamento individual
e coletivo está ligado às dinâmicas das sociedades contemporâneas, “pós-
tradicionais” como classificou o sociólogo inglês Anthony Giddens (1991).

Você já deve ter percebido nos noticiários nacionais e internacionais


esses movimentos. Por exemplo, por detrás dos deslocamentos forçados em
massa de populações sírias, palestinas ou iraquianas, existem dezenas de
etnias que compõem esses países. Tais formas de pertencimento acabam sendo
invisibilizados pela categoria de refugiado. Mas, trata-se de um equívoco, um
senso comum.

E é aí que entra a importância da etnia, pois, como veremos, um grupo


étnico preocupa-se em definir as suas identidades em termos de fronteiras
em relação aos outros grupos, resultando em interações que podem levar
a conflitos, segregações, extermínios e outras formas de violência física e
simbólica.

Para entender as questões ligadas ao pertencimento étnico, devemos


refletir sobre a noção de identidade. Temos, ainda, que contextualizar o
desenvolvimento da subjetividade e da identidade ao longo dos tempos
antigos, modernos e atuais. Fundamental, também, entender nosso período
como aquele em que a categoria cultura tornou-se central nas lógicas sociais e
políticas do Ocidente. Neste cenário, a globalização assume papel relevante.

Na Unidade 1, trataremos de caracterizar o desenvolvimento histórico


da noção de identidade. Para isso, faremos uma viagem ao passado para
entender as mudanças ocorridas. Como veremos, a mudança indica que
passamos de uma ideia de identidade fixa para uma noção fluida e flexível.
Daí essencial discutir as categorias de identidade, modernidade, pós-
modernidade, cultura e reconhecimento.

Na Unidade 2, adentraremos nos estudos sobre etnia propriamente


ditos, a partir das chamadas Teorias Sociais sobre as relações étnico-raciais que
poderão nos servir para mostrar como os problemas que ocorrem em nossas
sociedades são decorrentes destas relações. Assim, o conceito de etnia aparece
como uma nova categoria social importante para a análise do século XX, tanto
quanto foi a categoria de classe social para o século XIX. Isso porque através
deles podemos pensar o papel da diferença na produção de hierarquias e
relações sociais, organizando o mundo cultural de seus integrantes, definindo
os “de dentro” e os “de fora”.
III
Na Unidade 3, vamos focar a cultura, a identidade e as diferenças
étnicas e raciais presentes em nosso país. Não é novidade que nosso país
é injusto e socialmente desigual. Porém, podemos perceber que o abismo
é maior para alguns, enquanto outros se beneficiam ou monopolizam as
oportunidades tendo como balizador aspectos sociais como cor, da “raça”,
etnia e gênero.

Bons estudos!

Os autores.

UNI

Você já me conhece das outras disciplinas? Não? É calouro? Enfim, tanto para
você que está chegando agora à UNIASSELVI quanto para você que já é veterano, há novidades
em nosso material.

Na Educação a Distância, o livro impresso, entregue a todos os acadêmicos desde 2005, é o


material base da disciplina. A partir de 2017, nossos livros estão de visual novo, com um formato
mais prático, que cabe na bolsa e facilita a leitura.

O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura interna foi aperfeiçoada com nova diagramação
no texto, aproveitando ao máximo o espaço da página, o que também contribui para diminuir
a extração de árvores para produção de folhas de papel, por exemplo.

Assim, a UNIASSELVI, preocupando-se com o impacto de nossas ações sobre o ambiente,


apresenta também este livro no formato digital. Assim, você, acadêmico, tem a possibilidade
de estudá-lo com versatilidade nas telas do celular, tablet ou computador.
 
Eu mesmo, UNI, ganhei um novo layout, você me verá frequentemente e surgirei para
apresentar dicas de vídeos e outras fontes de conhecimento que complementam o assunto
em questão.

Todos esses ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos nas pesquisas
institucionais sobre os materiais impressos, para que você, nossa maior prioridade, possa
continuar seus estudos com um material de qualidade.

Aproveito o momento para convidá-lo para um bate-papo sobre o Exame Nacional de


Desempenho de Estudantes – ENADE.
 
Bons estudos!

IV
V
VI
Sumário
UNIDADE 1 - PROBLEMATIZANDO AS IDENTIDADES............................................................ 1

TÓPICO 1 – A IDENTIDADE PARA OS ANTIGOS: ESSENCIALISMO IDENTITÁRIO....... 3


1 INTRODUÇÃO...................................................................................................................................... 3
2 O QUE É O ESSENCIALISMO IDENTITÁRIO?............................................................................ 4
3 OS GREGOS E UM OLHAR SOBRE A IDENTIDADE ÉTNICA................................................ 7
4 RELAÇÕES ENTRE IMPÉRIO ROMANO, IDADE MÉDIA E
EUROPA: A IDENTIDADE NACIONAL......................................................................................... 11
RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................................ 22
AUTOATIVIDADE.................................................................................................................................. 23

TÓPICO 2 – IDENTIDADE E MODERNIDADE............................................................................... 25


1 INTRODUÇÃO...................................................................................................................................... 25
2 O SUJEITO MODERNO: O SUJEITO RACIONAL....................................................................... 26
2.1 RENÉ DESCARTES (1596-1650) E IMMANUEL KANT (1724-1804)........................................ 27
2.2 FRIEDRICH NIETZSCHE E A CRÍTICA AO SUJEITO MODERNO........................................ 30
3 O SUJEITO É SOCIAL: O SUJEITO SOCIOLÓGICO................................................................... 32
4 A MODERNIDADE............................................................................................................................... 34
4.1 VISÕES CONTEMPORÂNEAS SOBRE A MODERNIDADE NAS CIÊNCIAS SOCIAIS..... 38
4.1.1 Anthony Giddens.................................................................................................................... 38
4.1.2 Alain Touraine.......................................................................................................................... 40
4.1.3 Boaventura de Sousa Santos.................................................................................................. 41
4.1.4 Jürgen Habermas..................................................................................................................... 43
LEITURA COMPLEMENTAR................................................................................................................ 45
RESUMO DO TÓPICO 2........................................................................................................................ 47
AUTOATIVIDADE.................................................................................................................................. 48

TÓPICO 3 – IDENTIDADES NA CONTEMPORANEIDADE....................................................... 49


1 INTRODUÇÃO...................................................................................................................................... 49
2 A PRODUÇÃO SOCIAL DAS IDENTIDADES E DAS DIFERENÇAS
NA PÓS-MODERNIDADE................................................................................................................. 50
2.1 O QUE É A PÓS-MODERNIDADE?.............................................................................................. 55
2.1.1 A identidade na alta modernidade de Anthony Giddens................................................. 57
2.1.2 A identidade na modernidade líquida de Zygmunt Bauman.......................................... 59
3 CRISES DE IDENTIDADES, CRISES DE PARADIGMAS.......................................................... 62
3.1 A GLOBALIZAÇÃO E A IDENTIDADE GLOBAL..................................................................... 63
3.2 IDENTIDADES E RECONHECIMENTO...................................................................................... 69
3.3 A CENTRALIDADE DA CULTURA............................................................................................. 73
LEITURA COMPLEMENTAR................................................................................................................ 77
RESUMO DO TÓPICO 3........................................................................................................................ 81
AUTOATIVIDADE.................................................................................................................................. 82

UNIDADE 2 - TEORIAS DA ETNICIDADE, RELAÇÕES DE GÊNERO


E O DEBATE MULTICULTURAL......................................................................................................... 83

VII
TÓPICO 1 – CONTEXTO HISTÓRICO DO CONCEITO DE ETNICIDADE E SUA RELAÇÃO
COM AS CIÊNCIAS SOCIAIS.............................................................................................................. 85
1 INTRODUÇÃO...................................................................................................................................... 85
2 DISCUTINDO A HISTORICIDADE DO TERMO ETNIA E SUA
RELAÇÃO COM AS CIÊNCIAS SOCIAIS......................................................................................... 87
2.1 CONCEITUANDO ETNIA E ETNICIDADE.............................................................................. 94
LEITURA COMPLEMENTAR................................................................................................................ 97
RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................................ 100
AUTOATIVIDADE.................................................................................................................................. 101

TÓPICO 2 – RAÇA, NAÇÃO, ETNIA, IDENTIDADE ÉTNICA, GRUPOS


ÉTNICOS E SUAS FRONTEIRAS......................................................................................................... 103
1 INTRODUÇÃO...................................................................................................................................... 103
2 A IMPORTÂNCIA DO CONCEITO DE RAÇA PARA A CONSTRUÇÃO
DA DESIGUALDADE......................................................................................................................... 103
3 ETNIA, RAÇA E NAÇÃO: APROXIMAÇÕES E DIFERENCIAÇÕES NECESSÁRIAS........... 108
4 IDENTIDADE ÉTNICA, ETNICIDADE, GRUPOS ÉTNICOS E SUAS FRONTEIRAS...... 109
5 A CRÍTICA AO PENSAMENTO DE FREDRICK BARTH E A AMPLIAÇÃO
DO CONCEITO DE ETNICIDADE................................................................................................... 116
6 ETNICIDADE E MODERNIDADE................................................................................................... 120
7 DIÁSPORAS E DESLOCAMENTOS................................................................................................ 121
RESUMO DO TÓPICO 2........................................................................................................................ 124
AUTOATIVIDADE.................................................................................................................................. 125

TÓPICO 3 – GÊNERO E MULTICULTURALISMO - CONCEITOS IMPORTANTES


PARA O COMBATE ÀS DESIGUALDADES SOCIAIS ONTEM E HOJE................................... 127
1 INTRODUÇÃO...................................................................................................................................... 127
2 DO MOVIMENTO FEMINISTA AOS ESTUDOS DE GÊNERO................................................ 127
3 MULTICULTURALISMO......................................................................................................................... 132
3.1 MULTICULTURALISMO E SEU CONTEXTO HISTÓRICO..................................................... 132
3.2 MULTICULTURALISMO NOS EUA............................................................................................. 135
3.2.1 A Lei dos Direitos Civis e as primeiras políticas de ações afirmativas............................ 139
3.3 CONCEITUANDO POLÍTICAS PÚBLICAS E DE AÇÃO AFIRMATIVA............................... 145
RESUMO DO TÓPICO 3........................................................................................................................ 147
AUTOATIVIDADE.................................................................................................................................. 148

UNIDADE 3 - MULTICULTURALISMO, GÊNERO, RAÇA E ETNIA NO BRASIL.................. 149

TÓPICO 1 – AS POLÍTICAS MULTICULTURAIS NA AMÉRICA LATINA E NO BRASIL.... 151


1 INTRODUÇÃO...................................................................................................................................... 151
2 A FRAGILIDADE DAS POLÍTICAS MULTICULTURAIS NA AMÉRICA LATINA............. 151
3 POLÍTICAS MULTICULTURAIS NA COLÔMBIA....................................................................... 152
4 POLÍTICAS MULTICULTURAIS NO PERU................................................................................... 154
5 POLÍTICAS MULTICULTURAIS NA VENEZUELA..................................................................... 156
6 POLÍTICAS MULTICULTURAIS NO MÉXICO............................................................................. 156
7 O SURGIMENTO DAS POLÍTICAS MULTICULTURAIS NO BRASIL................................... 157
7.1 O SISTEMA DE COTAS................................................................................................................... 160
7.2 ESTATUTO DA IGUALDADE RACIAL....................................................................................... 162
7.3 COMUNIDADES QUILOMBOLAS E TRADICIONAIS: UM CAMINHO
PARA O RESPEITO À DIVERSIDADE ÉTNICA-CULTURAL.................................................. 163
RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................................ 165
AUTOATIVIDADE.................................................................................................................................. 166

VIII
TÓPICO 2 – DESIGUALDADES E VIOLÊNCIA DE GÊNERO NO BRASIL.............................. 167
1 INTRODUÇÃO...................................................................................................................................... 167
2 DENUNCIANDO AS DIFERENÇAS SOCIALMENTE CONSTRUÍDAS
ENTRE OS GÊNEROS.......................................................................................................................... 168
2.1 RELAÇÕES ENTRE GÊNERO NA SOCIEDADE BRASILEIRA ATUAL................................ 170
2.1.1 A violência de gênero.............................................................................................................. 172
2.1.2 Desigualdades de gênero no mundo do trabalho............................................................... 175
2.1.3 A falta de representação das mulheres na política brasileira............................................ 178
2.1.4 Assédio moral e sexual e Violência de Gênero.................................................................... 181
RESUMO DO TÓPICO 2........................................................................................................................ 187
AUTOATIVIDADE.................................................................................................................................. 188

TÓPICO 3 – AS DESIGUALDADES BRASILEIRAS EM TORNO DA RAÇA............................ 189


1 INTRODUÇÃO...................................................................................................................................... 189
2 A PERTINÊNCIA POLÍTICA E TEÓRICA DA CATEGORIA “RAÇA” NA ATUALIDADE.191
2.1 RACISMO CIENTÍFICO: UM EXEMPLO BRASILEIRO EM NINA
RODRIGUES (1862-1906)................................................................................................................. 193
2.2 GILBERTO FREYRE (1900-1987), A MISCIGENAÇÃO E A DEMOCRACIA RACIAL......... 197
2.3 CRÍTICAS À IDEIA DE “DEMOCRACIA RACIAL” E OS ESTUDOS RACIAIS
BRASILEIROS.................................................................................................................................... 201
3 RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS NA SOCIEDADE BRASILEIRA ATUAL............................... 203
3.1 RAÇA E POBREZA.......................................................................................................................... 204
3.2 A VIOLÊNCIA................................................................................................................................... 205
3.3 MOVIMENTO NEGRO E RAÇA................................................................................................... 208
LEITURA COMPLEMENTAR................................................................................................................ 209
RESUMO DO TÓPICO 3........................................................................................................................ 214
AUTOATIVIDADE.................................................................................................................................. 215
REFERÊNCIAS.......................................................................................................................................... 216

IX
X
UNIDADE 1

PROBLEMATIZANDO AS
IDENTIDADES

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
Esta unidade tem por objetivos:

• destacar o conceito de identidade, problematizando sua história e desen-


volvimento;

• discutir o conceito de identidade no mundo atual, suas tensões e fronteiras


simbólicas;

• apontar a centralidade da cultura, da Teoria do Reconhecimento e das di-


nâmicas de globalização para a produção social das identidades.

PLANO DE ESTUDOS
Esta unidade está dividida em três tópicos. Você encontrará atividades que
visam a compreensão dos conteúdos apresentados no final de cada tópico.

TÓPICO 1 – A IDENTIDADE PARA OS ANTIGOS: ESSENCIALISMO


IDENTITÁRIO

TÓPICO 2 – IDENTIDADE E MODERNIDADE

TÓPICO 3 – IDENTIDADES NA CONTEMPORANEIDADE

1
2
UNIDADE 1
TÓPICO 1

A IDENTIDADE PARA OS ANTIGOS:


ESSENCIALISMO IDENTITÁRIO

1 INTRODUÇÃO
Aquilo que o sujeito é acompanha os acontecimentos e contextos
socialmente objetivados na forma de relações sociais e de fronteiras que se deslocam
constantemente. E muitas das atuais questões polêmicas ligadas às mudanças nos
padrões identitários – aos níveis individuais e coletivos – estão ancoradas em
afirmações nebulosas localizadas nesses passados.

A identidade não é um problema somente dos modernos. Ela se apresenta


como uma importante referência para indivíduos e sociedades em todos os tempos.
Fronteiras são demarcações históricas que existem desde muito tempo. Porém, há
uma mudança qualitativa quanto ao que se define por identidade em nossa época,
que se tornou um conceito mais polissêmico e crítico.

Neste tópico, vamos fazer uma jornada pela história. As relações entre
diferentes culturas em períodos da antiguidade até os dias de hoje e de que maneira
esses encontros promoveram identidades e diferenças. Com isso, esperamos abrir
caminhos para o aprofundamento de seus conhecimentos sobre a historicidade
dos conceitos. Como veremos a seguir, mesmo no passado as fronteiras não eram
percebidas apenas como geográficas.

Para realizar tal caracterização, discutimos a essencialização das identidades


antigas, que fundamentam muitos dos atuais discursos étnicos e nacionalistas.
Exemplificamos essa noção identitária com a análise da civilização greco-romana e
seu “legado” para a Idade Média.

Em seguida, o tópico aborda essa herança antiga sobre o essencialismo


identitário e a maneira como este se desdobrou na Idade Média, especialmente
com a conformação dos Estados nacionais, que não deixou de ser uma imposição
identitária que pretendia integrar todo o conjunto de populações num dado
território.

Para isso, sugerimos uma desconstrução da nossa imagem tradicional da


Idade Média como um período de servos e reis, cavaleiros, castelos, feudalismo,
doenças etc. Esses fenômenos são materializações de intensos processos humanos
de construção de unidade e de fronteiras.

Vamos lá?

3
UNIDADE 1 | PROBLEMATIZANDO AS IDENTIDADES

2 O QUE É O ESSENCIALISMO IDENTITÁRIO?


A identidade é um tema bastante complexo em nossos dias. Mas nem
sempre foi assim. As visões sobre a identidade acompanham os indivíduos e sua
história em cada época. Ter uma identidade, mesmo que não nesse termo – que é
um conceito recente – representava no passado “aquilo que você é”, isto é, a sua
essência.

Tal ideia tem gerado hoje críticas e novos modelos teóricos propostos para
entender como funcionam as identidades contemporâneas, articulando identidade
e diferença.

Porém, como dissemos, nem sempre foi assim. Os povos antigos e da Idade
Média tinham outra concepção identitária, autossuficiente, fechada em si mesma.
Os outros povos não tinham uma identidade específica. Eram os diferentes:
selvagens e bárbaros cujas palavras são invenção do passado.

Na filosofia grega, a discussão sobre a essência ou não essência foi inaugurada


por Heráclito e Parmênides, continuada por Platão, Aristóteles e seus discípulos.
Segundo a visão essencialista, existe uma unidade ontológica, isto é, uma essência,
uma alma única, fixa e que unifica o ser, apesar de não serem acessíveis à nossa
experiência cotidiana, conforme afirmava Platão. Essas essências existem em si
mesmas. Quando pensamos num sapato, por exemplo, não enxergamos a ideia de
sapato. Mas, quando vemos um sapato na nossa frente, estamos experimentando
um conceito materializado de sapato, mas não sua essência. A essência do sapato
é imutável, existindo não nas nossas mentes, mas como modelos atemporais
presentes no mundo inteligível. Para acessar tais ideias, somente através da Razão.
Enquanto Ser, somos a materialidade, um traço apenas da essência do “Ser”, este
eterno, imutável, perene. Vejamos a reflexão realizada por Claude Dubar:

Etimologicamente, a identidade (do latim idem: o mesmo) é aquilo que


permanece o mesmo ao longo do tempo. É o que Platão, a partir de
Parmênides, chamava a essência do que existe (os seres, étants), aquilo
que não se relaciona com sua aparência - o que se percebe pelos sentidos
-, mas sua realidade “essencial” que é invisível e imutável. A essência,
segundo Platão, não se conhece pelos sentidos, mas pelo espírito (o noos)
que «vê» as Ideias e as reconhece (teoria da “reminiscência”). Podemos
lembrar o mito da caverna: os humanos vivem em meio às sombras,
às aparências, às miragens: se quiserem ver (em grego theorein), daí
para conhecer o Real, eles devem sair da caverna, subir até o alto da
montanha e contemplar o céu das ideias (DUBAR, 2010, p. 336).

Neste sentido, a filosofia socrático-platônica inaugurou um dualismo


metafísico entre o corpo e a alma. Ele, neste sentido, formula uma metafísica
em torno do Ser. Na sua argumentação, o corpo ligava-se aos sentimentos,
àquilo que pode afastar o ser de uma existência ideal. Tal existência só poderia
ser fundamentada na alma, que é a própria Razão. Como veremos, tal tradição
filosófica foi incorporada à tradição cristã desde os primeiros anos da nova religião
monoteísta.

4
TÓPICO 1 | A IDENTIDADE PARA OS ANTIGOS: ESSENCIALISMO IDENTITÁRIO

FIGURA 1 – IDENTIDADE: SOMOS O QUE APARENTAMOS?

FONTE: Disponível em: <http://4.bp.blogspot.com/-uqLbwHO4-n4/TjRSfJlO-NI/


AAAAAAAAAFs/0sZ4LILb0dM/s1600/carteirra_identidade.jpg>. Acesso em: 13 jun. 2017.

Para as identidades clássicas (aqui em oposição às contemporâneas), não era tão


claro para nós que a construção social da diferença envolve a conformação de oposições
binárias: podem indicar exemplos de binarismos em situações como homem-mulher,
masculino-feminino, escuridão-luz, quente-frio, bem-mal, cru-cozido, ou civilizado-
bárbaro, superior-inferior, nós-eles, negro-branco etc. (WOODWARD, 2015).

O que é esse binarismo? Trata-se de um modo de classificação simbólico


do mundo e da experiência individual e social a partir de dois polos opostos e
desconectados entre si. Assim, no binarismo de gênero, por exemplo, ser homem e
ser mulher são situações que nada têm a ver entre si. Estrutura, assim, uma divisão,
bem como hierarquias e papéis distintos. Se o doce não é o salgado, então, o doce
existe por si próprio. Mas a própria definição e ideia de doce só pode ser construída
em torno de outros conceitos, como amargo, salgado etc. Por mais que os discursos
identitários essencialistas invisibilizem este fato, está claro para todos. Para povos
antigos e mesmo contemporâneos, estabelece-se uma visão de senso comum em
cada um desses elementos que em oposição são independentes. A diferença era
concebida como uma entidade independente, existindo independente de outras
identidades (WOODWARD, 2015).

Neste sentido, o essencialismo identitário representaria uma ideia de que a


identidade de uma pessoa indicaria “aquilo que se é”, dando pouca ou nenhuma
ênfase ao fato de que “é na relação com o outro que me identifico como o não
outro” (OLIVEIRA, 2006, p. 24). E é exatamente essa condição relacional que o
essencialismo nega ou invisibiliza.

Para compreender a dimensão de si mesmo é preciso ter um outro parâmetro,


um outro ser humano. Então, o que podemos entender por essencialismo?
Essencialismo refere-se à necessidade de estabilizar determinados
grupos sociais enquanto sujeitos políticos. Ou seja, o processo de
essencialização procura garantir a legitimidade da representação

5
UNIDADE 1 | PROBLEMATIZANDO AS IDENTIDADES

política de determinado grupo estabelecendo uma fronteira nítida que


torne possível distinguir seus membros na sociedade como um todo.
Esse processo engendra um grave problema: leva ao ‘congelamento’
e à descontextualização de identidades e diferenças como se fossem
entidades fixas, visto que impõe a partir da esfera política uma visão
única do que as distingue. O essencialismo dá margem, portanto, ao
surgimento de aspirações de cunho totalitário para fins de estabilização
política, pois tende a eliminar a partir da própria esfera pública
qualquer outra interpretação possível do que caracteriza a diferença ou
a identidade em questão (TOSOLD, 2010, p. 169).

Como você pode perceber, na lógica das identidades essenciais existiria um


núcleo que seja “comum” e “fixo”. Este centro orientaria o indivíduo para e na vida
social. E um dos fenômenos sociais corriqueiros em torno da identidade é que se
tende a perceber estas identidades como “naturais”. É como se sempre existissem.

E quando essa situação se torna um problema? A partir da ampliação das


relações de interdependência social entre as diversas partes do mundo, o controle
identitário baseado em lealdades tradicionais como raça, nação, gênero torna-se
mais frágil. Na velocidade das interações atuais, esse abalo pode desconcertar os
sujeitos. Muitos optam por radicalizar seu discurso em torno de fundamentalistas
religiosos, nacionais, étnicos, capitalistas etc. Numa visão radical do essencialismo
identitário, essas identidades “não contemporâneas com o seu tempo” fariam “mal
aos corpos dos que as carregam” (BURITY, 1997, p. 145).

Apesar disso, como aponta Stuart Hall (2006), essas versões serviram para
equilibrar e estabilizar o mundo social, apontando “quadros de referência que davam
aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo social” (p. 7). Conforme o autor:
[...] A lógica do discurso identitário assume um sujeito estável, isto é, temos
assumido que há algo que nós podemos chamar de nossa identidade, o
que, em um mundo que muda rapidamente, tem a grande vantagem
de permanecer imóvel. Identidades são uma forma de garantia de que
o mundo não está se desmoronando tão rapidamente quanto algumas
vezes parece. É um tipo de ponto fixo do pensamento e do ser, uma base
de ação, um ponto parado no mundo em transformação. Este é o tipo de
garantia última que a identidade parece nos prover (HALL, 2016, p. 317).

Assim, ao contrário do que afirmam as identidades tradicionais, clássicas,


a identidade não é algo que se tem, mas é o efeito precipitado (logo, instável) de
atos de identificação social. Quer dizer, os processos de construção identitária são
marcados pela ambiguidade fundamental dos próprios fenômenos identitários.
Todas as identidades seriam contingentes às condições históricas, sociais, culturais,
políticas (BURITY, 1997, p. 139-140).

Neste sentido, essa visão essencialista estimula nos seus adeptos a ilusão de
um conjunto de características autênticas e que são partilhadas e experimentadas
por um grupo inteiro. É com este caráter que falamos, por exemplo, em identidade
brasileira. Quando nos referimos a essa identidade, todas as diferenças internas
do país são anuladas em torno de uma unidade. E nós sabemos que cada região
brasileira possui características sociais e culturais muito distintas, que tornam
complexo pensar uma unidade!

6
TÓPICO 1 | A IDENTIDADE PARA OS ANTIGOS: ESSENCIALISMO IDENTITÁRIO

Como localizar na história o aparecimento de identidades essencialistas,


como a identidade étnica ou nacional? Essa discussão sobre essencialismo na
identidade está muito abstrata para você? Vamos exemplificar com o caso dos
gregos antigos e da identidade na Idade Média. Estes períodos são a base de duas
importantes identidades essencialistas: a étnica e a nacional.

3 OS GREGOS E UM OLHAR SOBRE A IDENTIDADE ÉTNICA


Como vimos, é óbvia a associação entre identidade e essência-unidade no
pensamento grego. Vamos agora adentrar na história desse povo. Esse exercício,
uma pessoa de hoje pensar sobre gregos que viveram há 2.400 anos, é complicado.
Corre-se o risco de muitas simplificações. Precisamos suspender algumas noções
básicas de viver em sociedade nos dias de hoje. Ou ser um estudioso familiarizado
com o pensamento mítico, filosófico dos gregos e sua vinculação a um sentido
da vida comunitária nas cidades-estados, da estreita relação entre vida pública,
palavra falada e espaço público.

Uma brevíssima história da Grécia antiga

A Grécia antiga nunca chegou a formar um Estado unificado. Costuma-


se dividir a História grega antiga segundo alguns períodos: Pré-homérico
(século XX-XII a.C.); Homérico (séculos XII-VIII a.C.); Arcaico (séculos VIII-
VI a.C.); Período Clássico (V-IV a.C.). O primeiro conjunto de populações
indicadas como gregos antigos ocupou a região da Península Balcânica por
volta de 4000 a.C. Essas populações pioneiras eram originárias do Oriente
Próximo. Como o terreno era acidentado, pouco fértil e com verões e invernos
rigorosos, esses grupos deslocavam-se constantemente pelo território,
ocupando ilhas e regiões da Ásia, como Jónia (Turquia), e da Europa.
FIGURA 2 – MAPA DO IMPÉRIO DE ALEXANDRE, O GRANDE

FONTE: Disponível em: <http://2.bp.blogspot.com/-ddiWsqMFVPQ/VQDMeqa9GzI/


AAAAAAAADYY/RIkQqqFIzpE/s1600/o%2Bimp%C3%A9rio%2Bde%2Balexandre%2Bo%2
Bgrande.JPG>. Acesso em: 13 jun. 2017.

7
UNIDADE 1 | PROBLEMATIZANDO AS IDENTIDADES

De maneira geral, o período clássico é, também, a “clássica” versão


que conhecemos, em torno da Polis, do pensamento filosófico, da isonomia,
da democracia ateniense (dependente da escravidão), cujo ápice deu-se no
século IV a.C.

No século V a.C. ocorreram as Guerras Médicas, quando os gregos


se uniram para conter as tropas persas que procuravam ocupar os territórios
helênicos. Com o declínio das cidades-estados gregas, surge Alexandre,
o Grande, da Macedônia, que ficou famoso por suas vastas conquistas
territoriais, espalhando alguns traços da unidade grega para estas regiões,
fundando cidades etc. Alexandre foi proclamado Rei da Macedônia e seus
domínios em 336 a.C.

FONTE: Funari (2002) e Le Roux (2010)

Então, como pensar a experiência histórica dos gregos antigos em termos


de identidade? Sugerimos observar em termos de grupo étnico. Havia condições
de uma identificação em termos de ancestralidade, de religião, de estrutura mítica,
de costumes, de língua, conforme sugere o historiador Ciro Flamarion Cardoso
(2002). E quais foram essas identificações comuns?

Para Claude Mossé (2004, p. 7), a civilização grega é, “antes de mais nada,
civilização da pólis, civilização política”. E conforme Jean-Pierre Vernant (2002), a
pólis estimulou o desenvolvimento de novas mentalidades, especialmente entre os
atenienses e suas colônias. Esta resultou em transformações materiais que foram
incorporadas à vida: a predominância da palavra no debate público, a publicidade
das suas manifestações políticas e culturais e uma ideia de interesse comum entre
os seus habitantes.

Segundo Leister (2006), os gregos destacam-se pela laicização da concepção


do mundo operada na pólis. O universo dos deuses vai cedendo lugar às ações
humanas e o destino dos homens não mais é definido pelos deuses, mas sim pela
lei. Os gregos desse período tornam os mitos em explicações sociais e filosóficas, não
relacionadas aos deuses e aos destinos das pessoas. Neste contexto, o privilégio da
cidadania era obtido por nascimento, e o grego obtinha a cidadania da pólis a que
pertenciam os seus pais: para “a identidade helênica”, a cidade-estado grega era a
única possibilidade de civilização: “fora dela, só a barbárie” (LEISTER, 2006, p. 18).

O alemão Werner Jaeger (1986), em sua obra clássica “Paideia: a formação


do homem grego”, afirma que os gregos foram originais no sentido de localizar
o problema do homem mítico, que seria fundamental na epopeia, na tragédia, na
poesia, para depois se ligar a uma preocupação filosófica, desdobrando-se numa
concepção inédita de homem. Este possui uma essência em meio ao mundo e suas
leis gerais. Tal essência não deve ser confundida com individualidade. É, antes,
como dono de uma Razão.

8
TÓPICO 1 | A IDENTIDADE PARA OS ANTIGOS: ESSENCIALISMO IDENTITÁRIO

O que ele quer dizer com “Paideia”? Ele implica a ideia de uma formação
moral, religiosa, cívica comum reproduzida através da educação grega. E isso
quer dizer o estudo e o conhecimento em termos da poesia, filosofia, retórica,
matemática, música, astronomia, idioma, elementos essenciais da “alma” do
cidadão grego do período a partir do século V a.C. Este conjunto era ensinado
através das Academias ou por professores particulares, por filósofos nas ruas,
pelas peças teatrais. Era uma moral do dia a dia, a fim de orientar o cidadão ao bem
comum e aos valores gregos. Para Jaeger, havia uma unidade e um núcleo comum
de ideias entre os gregos (JAEGER, 1986).

Temos, então, uma civilização excepcional para aquela época. Tal conjunto
de valores era compartilhado entre os cidadãos das poleis. Escravos e estrangeiros
não eram obrigados ou educados em termos gregos, com exceções. Tal educação
de valores tinha início na infância, tanto para homens quanto para mulheres,
apesar das distinções nas formas de ensinar e no objetivo destes conhecimentos.
Vale dizer que a sociedade grega era uma sociedade de cidadãos, mas a plenitude
cidadã era reservada somente aos homens.

FIGURA 3 – A IMPORTÂNCIA DA PÓLIS

FONTE: Disponível em: <http://www.historiadigital.org/artigos/socrates-na-construcao-da-


democracia-grega/>. Acesso em: 13 jun. 2017.

Então, pensar os gregos antigos implica pensar em isolamento social?


Eram, então, os gregos antigos uma sociedade fechada em si mesma em relação
ao mundo? Nada mais longe da verdade. Os povos gregos (também chamados
de helênicos) mantiveram relações com o Egito, a Síria, o Irã, regiões da Turquia,

9
UNIDADE 1 | PROBLEMATIZANDO AS IDENTIDADES

antes mesmo dos períodos Arcaico e Clássico. Havia interação e laços comerciais e
culturais entre os povos do Mar Mediterrâneo. Havia, sim, um sentimento de “ser
grego” compartilhado nos modos de vida e nas instituições sociais.

A construção das identidades gregas na Antiguidade não foi um fenômeno


estático. A percepção dos gregos sobre os outros povos foi se alterando. Seja pela
sua ideia de Paideia comum, pela língua ou pelas guerras com povos invasores.
Para o historiador François Hartog (2004), as Guerras Médicas foram centrais na
formação do bárbaro (bárbaroi) em oposição ao grego (héllenes). A partir deste
momento, a diferença entre gregos e não gregos torna-se política. O bárbaro é
aquele que não compartilha uma pólis ou laços comuns em torno da educação, da
língua e de costumes comuns.

Antes dessas guerras contra persas, havia, entre os séculos VII e VI a.C.,
uma fascinação pelos povos como egípcios e localizados no Oriente Próximo
(HALL, 2001). A identidade helênica vinha sendo construída de “forma agregativa
por meio da percepção de similaridades com grupos de pares” (HALL, 2001,
p. 218-219). Ao longo deste período, os bárbaros eram aqueles que não falavam
grego. Que eram incompreensíveis, portanto. Mas a partir do século VI a.C. houve
mudanças cruciais para a cristalização da identidade grega.

Estes bárbaros, selvagens, “outros”, representavam demarcações simbólicas


negativas para a definição da identidade grega. Aos poucos foi se constituindo
uma identidade centrada no discurso da defesa da autonomia, da liberdade e da
lei como valores gregos. Este é o período de consolidação de oposições a grupos
externos de bárbaros, especialmente em função das Guerras Médicas contra os
persas. Nesse jogo de alteridades, “os gregos e atenienses se tornaram plenamente
gregos, enquanto os bárbaros permaneceram bárbaros” (HARTOG, 2004, p. 95).

E num período de decadência das cidades-estados gregas, especialmente de


Atenas, surgiu um invasor ao norte de suas terras: a Macedônia, a partir do século
IV a.C. Depois das conquistas territoriais de Felipe II e de seu filho e sucessor,
Alexandre, O Grande, conformaram condições para a formação de um novo cenário
político, econômico e cultural, dominando aquilo que era a Grécia antiga. De sua
expansão, estabelece-se outro momento para a identidade grega. Durante o período
do Império Helenístico, estiveram sob domínios gregos e macedônicos parte do norte
da África e das extensões da Ásia. Em cada terra conquistada eram criadas colônias
gregas, cujo modelo de educação era aquilo que dava sentido a uma experiência de
ser grego. Mesmo que este “grego” more numa região distante da Ásia.

Assim, como pensar a experiência grega em termos de identidade étnica?


O grande autor clássico dos estudos sobre etnia é Frederik Barth (1998), em sua
obra “Grupos étnicos e suas fronteiras: a organização da cultura das diferenças
culturais”. A partir de sua reflexão, pode-se apontar um grupo étnico como um
modelo de organização social e de fixar uma identidade relacional em termos de
diferença. A continuidade de um grupo étnico não está ligada à manutenção de

10
TÓPICO 1 | A IDENTIDADE PARA OS ANTIGOS: ESSENCIALISMO IDENTITÁRIO

uma cultura, tradição antiga. Os traços culturais podem mudar. Depende, sim, da
delimitação de limites entre os grupos e de reforçar laços de solidariedade.

“A etnicidade é um conceito de organização social que nos permite descrever


as fronteiras e as relações dos grupos sociais em termos de contrastes altamente
seletivos, que são utilizados de forma emblemática para organizar as identidades
e as interações” (POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 1998, p. 183).

É nessa relação que se formam os sentidos do “nós” e os “outros”, os


de “dentro” e de “fora”. É um jogo contraditório, de confronto, diferenciação e
contraste. Mas, também, um jogo de dominação e subordinação. A etnicidade
depende de relações e de contrastes para delimitar fronteiras. Dependendo de
contextos e relações de força, ele se mostra nas relações sociais. O foco então se
torna a fronteira étnica e as maneiras de pertencer ou excluir, porque a identidade
étnica implica uma série de restrições e prescrições que governam as situações de
contato.

Na visão de Barth (1998), cada indivíduo participa, consciente ou não, na


construção da etnicidade do seu grupo. Na medida em que os agentes se valem
da identidade étnica para classificar a si próprios e os outros para propósitos de
interação, eles formam grupos étnicos em seu sentido de organização.

É na medida em que os indivíduos usam essas categorias para


organizarem-se a si e aos outros que eles constituem grupos étnicos.
Nesse contexto, a cultura não desaparece da análise, mas ela só tem
importância na medida em que os atores lhe atribuem importância, não
valendo, portanto, enquanto dados objetivos na definição do fenômeno
(ARRUTI, s.d., p. 205).

Neste sentido, numa tentativa de sintetizar e fechar esta discussão, John


Hall (2001, p. 216) diz que um grupo étnico se define “não pela soma de diferenças
objetivamente observáveis”, mas por apenas “aquelas diferenças que os membros
do grupo, eles próprios, percebem como diferenças significantes”. Do ponto de
vista da experiência grega, então, temos as poleis, as guerras e a noção de Paideia e
não versões biológicas de identidade. Tratou-se de uma experiência de vida social
e comunitária.

4 RELAÇÕES ENTRE IMPÉRIO ROMANO, IDADE MÉDIA E


EUROPA: A IDENTIDADE NACIONAL
Como aponta Pedro Paulo Funari (2000, p. 77), Roma designa “uma cidade
antiga e todo um império”, um imenso conglomerado de terras que, no seu auge,
se estendia da Grã-Bretanha ao rio Eufrates, do Mar do Norte ao Egito. Sobre qual
Roma tratamos? Pela complexidade de sua história, aqui analisamos as identidades
no tempo do Império Romano.

11
UNIDADE 1 | PROBLEMATIZANDO AS IDENTIDADES

Os romanos consolidaram na antiguidade um grande e vasto império ao


longo de sua existência, subordinando aos seus domínios diversos povos, entre
eles, os próprios gregos. E a extensão das terras romanas na Antiguidade incluía
uma variedade de línguas, religiões e tradições distintas. O processo lento e
complexo da produção do social da identidade romana teve seu ápice na expansão
imperial e no culto à figura do imperador romano. Conforme o romano Cícero,
em “Da República”, a glória de Roma relaciona-se à observância dos costumes
ancestrais, de modelos de arte, arquitetura, religião e leis.

Como ponto de partida, a construção de “uma identidade romana” ao


modo que os gregos estabeleceram como padrão não foi uma preocupação do
império. O historiador Norberto Guarinello (2010) diz que o Império Romano
não foi o resultado de embates identitários. Nem que sua história se explica pelo
conflito ou acomodação de identidades.

Brevíssima história de Roma antiga

A história da Roma antiga, que inclui partes da África, Europa


e Ásia, liga-se à fundação da pequena Roma, surgida no século VIII a.C.
Todos lembramos da lenda de Rômulo e Remo, irmãos que num primeiro
momento foram criados por uma loba até serem encontrados. Segundo esta
lenda, citada por Tito Lívio, Eneias, príncipe derrotado na Guerra de Troia,
estabeleceu-se na região do Lácio, onde casou-se com uma herdeira latina,
Reia Sílvia. Rômulo e Remo eram seus filhos numa relação com o deus Marte
e por isso foram atirados no rio Tibre. Foram encontrados e amamentados
por uma loba e, depois, criados por camponeses. E, quando adultos, os dois
irmãos voltaram a Alba Longa, depuseram Amúlio e em seguida fundaram
Roma, em 753 a.C.

Conforme Paulo Funari (2000, p. 77), “Roma designa uma cidade


antiga e todo um império, um imenso conglomerado de terras que, no
seu auge, se estendia da Grã-Bretanha ao rio Eufrates, do Mar do Norte
ao Egito”. Roma e suas extensões conheceram três formas de organização
política, que influenciaram a própria estrutura social e a vida cotidiana das
pessoas. Costuma-se dividir sua história em: Monarquia (753 a.C. - 509 a.C.),
República (509 a.C. - 27 a.C.) e Império.

O Império Romano nasceu oficialmente em 27 a.C. e terminou –


dependendo do ponto de vista – com a conquista de Roma pelos godos,
chefiados por Alarico, em 410 d.C., ou em 476 d.C., data da queda do último
imperador do Ocidente, em consequência dos repetidos assaltos dos povos
germânicos (LE ROUX, 2010).

12
TÓPICO 1 | A IDENTIDADE PARA OS ANTIGOS: ESSENCIALISMO IDENTITÁRIO

FIGURA 4 – MÁXIMA EXTENSÃO DO IMPÉRIO ROMANO – III a.C.

FONTE: Disponível em <https://s-media-cache-ak0.pinimg.com/originals/e3/9d/fd/


e39dfd2db2ce90db3aa264144158c10c.jpg>. Acesso em: 13 jun. 2017.

FONTE: Funari (2002) e Le Roux (2010)

Havia um sistema de valores compartilhados, que favoreceu a integração


imperial? Na leitura de Patrick Le Roux (2010), os territórios dominados pelo
império experimentaram formas de administração hierárquica estruturada em
torno de funcionários e de leis da autoridade central. Elas visavam “controlar,
verificar, equilibrar e repartir” as atividades locais.

Além disso, existe uma visão clássica em torno de uma comunidade cultural
mediterrânea cuja potência criativa era a civilização romana. Isso levaria a destacar
um processo de assimilação da cultura romana pelos povos bárbaros dominados,
chamada de “romanização”, como apresentada. Esse termo está ligado a noções de
desenvolvimento, aculturação e à forma como os nativos adotaram e assimilaram
a cultura “romana”. A romanização tradicionalmente observada pela História
defende a ideia de difusão da cultura romana para regiões menos urbanas, mais
“bárbaras”. Tratava-se, em muitos casos, de uma “missão civilizatória romana”.
Essa crítica entende que:

A integração propiciada pelo Império não representou, assim, um


consenso, nem a paz geral que muitas vezes se propugna, mas um
sistema de exploração contra o qual as alternativas eram escassas, dada
a imensa dispersão geográfica e cultural dos insatisfeitos, dada a falta
de alternativas viáveis ao Império (GUARINELLO, 2010, p. 127).

13
UNIDADE 1 | PROBLEMATIZANDO AS IDENTIDADES

Agora, havia uma delimitação cultural que reforçou a elitização da ordem


romana por meio de duas fronteiras: a cultura e língua grega e a língua latina. Não
havia, necessariamente, a imposição dos modos de vida dos romanos ou gregos
em suas colônias. Estas eram restritas aos ‘nativos’ gregos e romanos que viviam
nessas terras coloniais.

FIGURA 5 – CASAL ROMANO

FONTE: Disponível em: <http://www.institutoandreluiz.org/1_casal_romano.JPG>. Acesso


em: 13 jun. 2017.

A identidade romana, assim, ligava-se muito à própria história de Roma


e sua elite militar e política. Pode-se dizer que entre estes indivíduos e famílias
nobres havia uma ligação identitária mais consistente. Norberto Guarinello
(2010) defende que a identidade romana não era uma imposição, mas sim, uma
característica geral de comportamentos que deveriam ser compartilhados entre os
súditos. Enquanto se é grego por ascendência e descendência, no caso romano, é
possível se tornar um, através da Lei e do Direito.

Tecendo comparação entre identidade grega e romana, a cidadania helênica


era bastante restrita aos habitantes de fora, nos “confins do mundo”, ao passo que
a romana era muito mais ampla e flexível do que a ateniense. Havia possibilidades
de ascensão social diferentes entre gregos e romanos. Ser romano era preocupação
para aqueles que tinham possibilidades de pertencer à elite romana.

Isso não quer dizer que os romanos relativizavam as culturas de seus povos
dominados ou não se sentiam superiores. Pelo contrário, queremos dizer apenas
que a identidade romana era um assunto restrito à elite econômica, política, militar
e “sagrada”, ou alguns poucos segmentos mais ricos da sociedade romana.

14
TÓPICO 1 | A IDENTIDADE PARA OS ANTIGOS: ESSENCIALISMO IDENTITÁRIO

E o que temos de relação entre a identidade nacional e a história do Império


Romano? É a partir da Idade Média e com a reconfiguração do Império Romano
após a tradicional “Queda de Roma” para os bárbaros que esta identidade restrita
e fundamentada em memória e direito vai dar contornos à identidade nacional. Ela
fundamenta-se no pertencimento a um território imperial, a uma língua (latim), ao
conjunto de leis e direitos herdados do Império Romano.

Segundo a tradição historiográfica, a Idade Média tem início com a queda do


Império Romano tomado pelos “bárbaros”. O que foram essas invasões bárbaras?
Uma guerra do tipo Game of Thrones pelo poder real? Um processo complexo de
fatores interligados? Vamos investigar esta última alternativa.

Devido a complicadores políticos, demográficos, sociais e militares, o


poder imperial ligado a Roma foi, em 395 d.C., dividido em duas partes: o Império
Romano do Ocidente e o Império Romano do Oriente, cuja capital era Bizâncio,
atual Constantinopla (Turquia). Os estudos, pesquisas e discursos que apontam
os bárbaros deram ênfase aos aspectos externos, negligenciando os aspectos e a
desorganização interna. Essa desestruturação do poder imperial é lida a partir da
ideia do “Declínio do Império Romano” (BARROS, 2009).

UNI

O que foi viver na Idade Média?

As pessoas que viveram essa época possuíam um imaginário social bastante fértil numa
relação muito próxima de situações do universo sagrado e profano. Além disso, as populações
medievais não registravam o tempo como nós fazemos hoje. Este tinha um sentido biológico
e cíclico para a vida. É por isso que as celebrações religiosas ou não – como a celebração do
ano-novo – ressaltavam um ciclo eterno e a repetição de eventos.

Resultado de um processo social de caracterização, a Idade Média foi interpretada na Idade


Moderna como atraso, crises e trevas. A visão negativa sobre a Idade Média teve início a partir
do século XV, no período do Renascimento. Para muitos, a Idade Média foi época sombria,
“um tempo oco, caracterizado pela ausência da razão e ausência do gosto” (LE GOFF, 2005, p.
59). Porém, as grandes mudanças nas mentalidades tiveram início na Idade Média. O próprio
Renascimento não foi um acontecimento, mas um longo processo iniciado no século XII.

De uma maneira geral, apontamos a memória do Império Romano, o cristianismo e a conversão


dos povos bárbaros e combate aos infiéis, e esse imaginário social repleto de relações entre
o sagrado e o profano alimentado por uma metafísica cristã como o “ponto de partida”. Aos
poucos, tais tradições são ressignificadas em torno da ideia de Ocidente e de Europa.

Houve uma ruptura profunda entre a Antiguidade e a Idade Média naqueles


anos? Não como aprendemos na escola, onde Roma foi tomada por bárbaros e
surgiu uma nova era. O que ocorre no período de transição da Antiguidade para a
Idade Média é uma renovação, o surgimento de uma nova cultura a partir da fusão
de valores clássicos com valores cristãos.

15
UNIDADE 1 | PROBLEMATIZANDO AS IDENTIDADES

E quem eram esses bárbaros invasores? Pode-se indicar os godos (visigodos


e ostrogodos), vândalos, os francos, os suevos, os burgúndios, os anglos, os saxões,
os alamanos, dentre outros. Dentre revoltas, golpes políticos, conflitos políticos, o
poder de Roma diminuiu.

FIGURA 6 – BÁRBAROS “INVASORES”

FONTE: Disponível em: <https://idademedia.wordpress.com/2012/03/12/povos-barbaros-


um-dos-componentes-que-a-igreja-civilizou-na-idade-media/>. Acesso em: 13 jun. 2017.

As fronteiras não se expandem mais. Pelo contrário, fragmentam-se, por


um momento. Depois, reunificam-se em movimentos diversos desses chamados
povos bárbaros. Em especial, os francos, que desde o século V foram expandindo
seus domínios. Com conversão de Clóvis ao cristianismo, poder político e poder
religioso passam a confundir-se.

[...] o golpe de mestre de Clóvis foi o de se converter, com seu povo, não
ao arianismo, como os demais reis bárbaros, mas ao catolicismo. Com
isto pôde jogar a cartada religiosa e beneficiar-se do apoio, senão do
papado ainda fraco, ao menos do poder da hierarquia católica e do não
menos poderoso monasticismo (LE GOFF, 2005, p. 32).

Nestes primeiros séculos de Idade Média, o Império Romano foi


reinventado, especialmente com a coroação de Carlos Magno no século VIII.
Segundo Hobsbawm e Ranger (1998), a importância desse imperador para a ideia
de uma identidade europeia é central. Não só por restaurar e manipular a memória
e instituições do Império Romano, mas, principalmente, pela sua imagem de
“defensor” da identidade europeia-cristã contra os “infiéis” do Islã. Foi com Carlos
Magno, coroado imperador do Império Carolíngio na noite de Natal de 800 d.C.,
que se começou o rechaço aos seguidores do Islã que ocupavam e expandiam sua
fé para a Europa. Durante o reinado de Carlos Magno, a expansão territorial e a
cristianização dos povos compunham dois grandes objetivos seus.
16
TÓPICO 1 | A IDENTIDADE PARA OS ANTIGOS: ESSENCIALISMO IDENTITÁRIO

DICAS

Sugestões de filmes sobre a Idade Média:


“O Incrível Exército de Brancaleone”, direção de Mario Monicelli (1965).
O filme acompanha a história do cavaleiro Brancaleone, que lidera um pequeno grupo de
pobres em busca da “Terra Santa”. O filme é uma comédia que retrata a Baixa Idade Média e
seus temas, como as cruzadas e a peste negra.

“Cruzada”, com direção de Ridley Scott (2005).


O filme acompanha um jovem ferreiro francês que se desloca para a Terra Santa e experimenta
o conflito entre cristãos e muçulmanos em torno da conquista de Jerusalém, que termina
com a retomada da cidade pelos seguidores do Islã.

Por que nos interessa ligar o aparecimento da identidade nacional ao


Império Romano e à Idade Média? De acordo com José Glaydson Silva:

Justificador dos impérios modernos, o Império Romano ajuda a construir


os pertencimentos, as identidades, as nacionalidades, em universo
de empréstimos simbólicos, sentidos, construídos em interpretações
falseadas, em muitas tentativas das nações europeias de estabelecer
passados apropriados (SILVA, 2005, p. 43).

É com o declínio dos impérios que se abrigavam na memória da grandeza


romana que foram surgindo pequenos reinos, que logo mais se tornaram Estados.
Das instituições feudais surgem identificações baseadas numa definição de
território. O que é a identidade nacional?

Para Anthony Smith (1997), a identidade nacional é a manifestação da


consciência de pertencimento a uma comunidade política que estrutura a vida
nacional e individual através de instituições que medeiam os direitos e deveres
de seus membros. Essa consciência seria uma forma de memória elementar para
crescimento de uma identidade. E espaço geográfico também no sentido de
territorialização. A identidade nacional demanda uma base territorial em que os
seus membros possam identificar-se, relacionar-se, isto é, pertencer. Dela foram
derivadas noções de cidadania, nação e pátria.

Segundo Smith (1997), possuir uma identidade e uma memória nacional


é resultado de um processo que se opera em múltiplos espaços, do Estado ao
universo familiar, sendo reafirmados, aprendidos e reproduzidos em eventos,
rituais, instituições presentes no cotidiano dessas comunidades. Neste conjunto
de relações sociais de linguagem e de poder, os membros da comunidade são
estimulados à autoidentificação – pacífica ou não – voltada a delimitar a diferença
e a fronteira do grupo.

Para Stuart Hall (2006), as identidades nacionais são compostas por


símbolos e representações, indicando modos de construir sentidos que influenciam
e organizam tanto as nossas ações quanto a concepção que nós temos de nós. Elas
17
UNIDADE 1 | PROBLEMATIZANDO AS IDENTIDADES

contribuíram para forjar sistemas nacionais e universais de serviços e políticas,


conformando uma “cultura homogênea”, mas permeada pela ambivalência.

[...] a noção de cultura nacional não é algo com um impulso moderno,


ao contrário, amparado ambiguamente entre o passado, o presente e o
futuro, retornando, sempre que for necessário, a passados inventados.
Não importa quão diferentes sejam seus integrantes, uma cultura
nacional sempre buscará unificá-los, integrá-los numa identidade
cultural. Porém, esse movimento tem como efeito anulação e
subordinação da diferença cultural interna? (HALL, 2006, p. 59).

E como articular as identidades nacionais e suas memórias, símbolos,


bandeiras, hinos, heróis a esse momento medieval? São bastante diversificados os
enfoques e entradas possíveis no tema. Aqui se discutem duas categorias que podem
contribuir na busca de uma reflexão possível. A primeira de Eric Hobsbawm e sua
noção de “invenção das tradições”. A outra é de Benedict Anderson e seu conceito
de “comunidade política imaginada”.

O conceito de “tradição inventada” é utilizado num sentido amplo, incluindo


“tradições” realmente inventadas, construídas e formalmente institucionalizadas,
quanto as que surgiram de maneira mais difícil de localizar num período limitado
e determinado de tempo. Essa tradição inventada tem como “combustível” de
seu movimento um conjunto de práticas reguladas por regras escritas ou não de
natureza ritual ou simbólica. O objetivo desse conjunto de sentidos é inculcar
certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica,
automaticamente, uma continuidade em relação ao passado. São tradições que
buscam apresentar continuidade artificial em relação ao passado através da
repetição (HOBSBAWM; RANGER, 1998).

[...] por “tradição inventada” entende-se um conjunto de práticas,


normalmente reguladas por regras tácitas ou abertamente aceitas;
tais práticas, de natureza natural ou simbólica, visam inculcar certos
valores e normas de comportamento através da repetição, o que
implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao passado.
Aliás, sempre que possível, tenta-se estabelecer continuidade com um
passado histórico apropriado (HOBSBAWM; RANGER, 1997, p. 9).

Elas são, em essência, conservadoras, contrárias a inovações. Por isso


Hobsbawm e Ranger distinguem-nas dos costumes e convenções que, por sua vez,
estão ligados a tradições. O passado está sempre presente na forma de símbolos,
linguagens, rituais, entre outros.

Consideramos que a invenção de tradições é essencialmente um


processo de formalização e ritualização, caracterizado por referir-se ao
passado, mesmo que apenas pela imposição da repetição (p. 14). [...]
toda tradição inventada, na medida do possível, utiliza a história como
legitimadora das ações e como cimento da coesão grupal (HOBSBAWM;
RANGER, 1997, p. 21).

O que queremos apontar com esta reflexão? De acordo com Hobsbawm e


Ranger, toda tradição surgiu em algum lugar do passado, sendo possível de ser
alterada em algum futuro.
18
TÓPICO 1 | A IDENTIDADE PARA OS ANTIGOS: ESSENCIALISMO IDENTITÁRIO

As nações são entidades historicamente novas fingindo terem existido


durante muito tempo. É inevitável que a versão nacionalista de sua
História consista de anacronismo, omissão, descontextualização e, em
casos extremos, mentiras. Em um grau menor, isso é verdade para todas
as formas de História de identidade, antigas ou recentes (HOBSBAWM;
RANGER, 1998, p. 285).

Se a Idade Média é um desses passados, hoje imagens dela são manipuladas


discursiva e politicamente. Das dinâmicas do mundo medieval foram “inventadas”
e “imaginadas” as bases de uma identidade essencialista muito relevante nos dias
atuais, apesar de sua crise. A identidade nacional difundiu-se junto com os domínios
e colonialismo europeu. Nós brasileiros estamos marcados por uma identidade
nacional que se diz fixa, cuja origem está na ocupação portuguesa em 1500.

A identidade nacional reivindica uma unidade de língua e cultura. Essas


características demandam, para sua realização, um esforço coletivo de imaginação
razoavelmente coordenada e reproduzida em torno de um território e seus membros.
Benedict Anderson (1989) propôs a definição de nação como uma comunidade
política imaginada como implicitamente limitada e soberana. É imaginada porque
nem todos os membros desse grupo podem se conhecer e reconhecer, apesar
de que estejam mentalmente configurados. É limitada porque implica limites e
fronteiras. É soberana porque fundamentada no direito iluminista. E é imaginada
porque sempre definida em termos de comunidade.

“O que proponho é que o nacionalismo deve ser compreendido pondo-o


lado a lado, não com ideologias políticas abraçadas conscientemente, mas com os
sistemas culturais amplos que o precederam, a partir dos quais – bem como contra
os quais – passaram a existir” (ANDERSON, 1989, p. 20).

Neste sentido, a própria noção de Ocidente e de Europa é problemática.


Segundo Peter Johann Mainka (2011, p. 60), é difícil delimitar as fronteiras
europeias. Isto porque existem situações que tornam complexa essa definição.
Ela surge, porém, definindo-se em relação a um outro, os povos “bárbaros” da
Ásia. Podemos indicar a Europa como um continente cujas fronteiras são móveis,
deslocadas em inúmeros momentos. Já no passado, a palavra “Europa” tinha um
significado ambíguo. Ora era percebido como os povos da Grécia antiga, ora era
vista como uma referência num sentido moderno. Assim, segundo Mainka, essa
demarcação é “imprecisa” (2011, p. 58). Inclusive continua até os dias de hoje,
confundida com a União Europeia.

Para Hobsbawm e Ranger, a história europeia é uma “história curiosa”,


definida mais pelas “situações políticas do que pelas diferenças culturais, onde
a história pode ser lida como um processo”, uma construção intelectual (1998, p.
233-234). A explicação sobre o que é a Europa teria bases políticas. Até mesmo
fronteiras convencionais dos livros didáticos – como os Montes Urais – resultam
de decisões políticas e demarcações intelectuais. Segundo o autor, a definição
conceitual e geográfica da Europa é mutável e flexível, assim como os contornos de
sua identidade, ora grega, ora romana, ora europeia. Assim, ele utiliza a metáfora
do “Clube Europa”, onde o acesso é controlado.

19
UNIDADE 1 | PROBLEMATIZANDO AS IDENTIDADES

Sob esse ponto de vista, categorias como asiático, leste, Oriente falam
mais sobre a Europa do que os povos que supostamente classificam e enquadram
(HOBSBAWM; RANGER, 1998). Na leitura de Hobsbawm e Ranger, o autor aponta
para obras antigas e modernas escritas por viajantes e conquistadores visando
descrever os outros povos em termos de categorias europeias, num “denominador
comum” ao intelecto europeu. Estas estariam em oposição à identidade europeia.
Em geral, esse antagonismo estava dirigido para o Oriente e o Islã.

Vejamos o que escreve Edward Said no seu livro “Orientalismo”.


Novamente, entramos no terreno das construções sociais, científicas e intelectuais
hegemonicamente europeias que “inventam” o Oriente. O esforço dos envolvidos
nessas construções era o de “traduzir” para as mentes e costumes europeus aquilo
que foi inventado, configurado e reproduzido como sendo o Oriente. Neste sentido,
pouco se trata de questões geográficas, mas, antes de idealização, tornando o
Oriente uma criação do Ocidente. Tal concepção de Oriente – que Said encontra
em obras da literatura, trabalhos científicos, relatos de viajantes e aventureiros –
estimula uma visão exótica, misteriosa, erótica e perigosa do Oriente. Mas, para
o autor, ao debruçar-se sobre tal construção social amparada pela linguagem, é
possível encontrar mais sobre a identidade Ocidental do que a Oriental (SAID,
2007).

Toda a complexidade das centenas de sociedades distintas entre si se


torna um “Outro” exótico inventado, um estereótipo que estava relacionado aos
interesses do colonizador europeu (SAID, 2007). Sobre essa invenção de povos não
europeus:

As invenções da tradição mais abrangentes da África colonial ocorreram


quando os europeus acreditaram estar respeitando tradições africanas
antiquíssimas. O chamado direito consuetudinário, direitos territoriais
consuetudinários, estrutura política consuetudinária, e daí por diante,
havia sido, na verdade, inteiramente inventado pela codificação colonial
(RANGER, 1984, p. 257).

Sobre esse jogo de oposições relacionais com a Ásia, Boaventura de Sousa


Santos (2006) diz que o outro lado do Orientalismo foi a ideia da superioridade
intrínseca do Ocidente.

Assim, a história da Idade Média é, em geral, a história dos povos europeus


(ou de alguns deles) sob o seu ponto de vista. Porém, como dissemos, a implicação
dessa hegemonia europeia no mundo tornou nós, brasileiros, produtos diretos
desse momento. E quando falamos em identidade europeia, em Europa, precisamos
tomar algumas precauções intelectuais.

O Ocidente, que ganha imaginação na Idade Média, materializa-se durante


a Idade Moderna em instituições como o Estado unitário, a visão de cultura/
civilização filosófica, científica e cristã e no fenômeno do capitalismo. Segundo o
sociólogo português Boaventura de Souza Santos, os desdobramentos de Idade
Média e Moderna tornaram a Europa o centro do mundo. Porém, até o século XV,

20
TÓPICO 1 | A IDENTIDADE PARA OS ANTIGOS: ESSENCIALISMO IDENTITÁRIO

a Europa é a periferia de um sistema-mundo cujo centro está localizado na Ásia


Central e na Índia. Só a partir de meados do milênio, com as navegações ibéricas,
é que esse sistema-mundo é substituído por outro, capitalista e planetário, cujo
centro é a Europa (2016). A marca desse domínio pode ser percebida na imposição
de modelos de ação e interpretação do ser em sociedade. Numa crítica bastante
retumbante:

Colonialismo, evangelização, neocolonialismo, imperialismo,


desenvolvimento, globalização, ajuda externa, direitos humanos,
assistência humanitária são exemplos de algumas das diretivas das
soluções eurocêntricas para os problemas do mundo. Imersa neste
pensamento que arroga superioridade e cria fechamento (SANTOS,
2016, p. 27).

Esses desdobramentos, eventos e revoluções materiais, científicas e


simbólicas em torno da sociedade e do sujeito serão objeto de discussão do próximo
tópico.

21
RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico, você aprendeu que:

• Aquilo que o sujeito é acompanha os acontecimentos e contextos socialmente


objetivados na forma de relações sociais e de fronteiras que se deslocam
constantemente. Os discursos que inauguram aquilo que se define hoje como
identidades fundamentais para a história dos povos ocidentais podem ser
localizados nas visões greco-romanas de pertencimento e reconhecimento de
uma unidade comum de características essenciais e que são compartilhadas
pelos membros do grupo.

• Que a base dessa visão identitária fundamenta-se numa filosofia e num trabalho
social de produção de sentidos com bases metafísicas. Nela, a identidade é uma
essência, uma unidade, aquilo que um povo é.

• Como somos resultados de processos europeus de ocupação e dominação dos


quatro cantos do planeta, nossa base filosófica, mental, cultural, científica,
religiosa etc. tem como origem discursos e práticas identitárias localizadas na
Europa antiga e medieval.

• A história medieval pode ser observada como o momento da “invenção de


tradições”, de mitos fundadores da identidade europeia, fundamentando o
surgimento de comunidades imaginadas na forma de nações. Que, portanto,
aquilo que seria essencialmente europeu é, na realidade, um esforço grande de
sistematização, de manipulação, de reinterpretação de identidades antigas. Na
passagem da Idade Média para a Moderna esses sentidos são ressignificados
através da imagem de uma Europa cristã, racional, secularizada e científica.

• Um grupo étnico, segundo Fredrik Barth (1998), é um modelo de organização


identitária responsável por estruturar os sentidos do “nós” e os “outros”, os de
“dentro” e de “fora”. É permeado pelo contraditório, de confronto, diferenciação
e contraste. Pela dominação e subordinação. A etnicidade depende de relações e
de contrastes para delimitar limites e fronteiras. Para Barth, a continuidade de
um grupo étnico não está ligada à manutenção de uma cultura, tradição antiga.
Os traços culturais podem mudar. Depende, sim, do estabelecimento de limites
entre os grupos e de reforçar laços de solidariedade.

• Para Anthony Smith (1997), a identidade nacional é a manifestação da consciência


de pertencimento a uma comunidade política que estrutura a vida nacional e
individual através de instituições que medeiam os direitos e deveres de seus
membros. A identidade nacional reivindica uma unidade de língua e cultura.
Segundo Stuart Hall (2006), elas contribuíram para forjar sistemas nacionais e
universais de serviços e políticas, conformando uma “cultura homogênea”, mas
permeada pela ambivalência. Vale dizer que a identidade nacional se difundiu
junto com os domínios e colonialismo europeu.
22
AUTOATIVIDADE

1 Sintetize e diferencie as formas identitárias conformadas


pelos gregos e romanos antigos, conforme discutido neste
tópico.

2 Diferencie grupo étnico e identidade nacional.

3 Quais são os desafios e problemas relacionados às identidades


essencialistas? Como enxergar a identidade brasileira de um
ponto de vista de uma identidade essencial?

4 O que significa o conceito de “invenção das tradições”?

23
24
UNIDADE 1
TÓPICO 2

IDENTIDADE E MODERNIDADE

1 INTRODUÇÃO
No Tópico 1, procuramos observar o debate sobre o essencialismo
identitário. Localizamos sua origem em povos da história antiga, especialmente,
gregos e romanos. Foram importantes na medida em que serviram de base e de
legitimação para versões sobre a identidade tanto na Idade Média quanto nos
séculos seguintes.

Neste Tópico 2, investigamos os discursos e teorias sobre a identidade


resultantes da Idade Moderna e do fenômeno da Modernidade. É quando o
essencialismo começa a ser abalado ou tornado mais complexo.

Para tanto, começamos com a noção de sujeito moderno, implicado nas


discussões filosóficas de René Descartes, Immanuel Kant e Friedrich Nietzsche.
São filósofos fundamentais para entender a passagem de um olhar metafísico
sobre o Ser para um outro olhar, epistemológico. Tratou-se de um distanciamento
ou novo olhar sobre a filosofia grega antiga ou da escolástica medieval.

FIGURA 7 – INTELECTUAIS E A ILUSTRAÇÃO

FONTE: Disponível em: <http://2.bp.blogspot.com/_qL9x59CgJrw/SeOv8Tq3CgI/


AAAAAAAAAAU/mkzpcLd7Trw/S1600-R/La+lecture+des+philosophes.jpg>. Acesso em:
13 jun. 2017.

25
UNIDADE 1 | PROBLEMATIZANDO AS IDENTIDADES

Depois, como resultado desse deslocamento do sujeito, discutimos a


construção do indivíduo a partir da sociedade, com os trabalhos da Escola de
Chicago e do Interacionismo Simbólico. Por fim, apresentamos as características
específicas da Modernidade segundo autores clássicos e contemporâneos,
observando os impactos desse fenômeno na produção social das identidades.
Fazemos essa passagem pela modernidade a partir das Ciências Sociais.

2 O SUJEITO MODERNO: O SUJEITO RACIONAL


Boaventura de Sousa Santos (2006) escreveu que o primeiro nome dado ao
fenômeno da identidade foi o de subjetividade na passagem da Idade Média para
a Moderna. O que é Subjetividade e qual sua relação com a noção de sujeito? É
uma noção antiga ou relativamente moderna? Responder a tais questões demanda
esforço de síntese. Vale dizer que as noções e categorias teóricas levam a marca de
seus campos e territórios científicos. Daí que a noção de subjetividade e de sujeito
possui variações para a Sociologia, para a Antropologia, para a Psicologia etc. São,
todavia, noções muito importantes nas Ciências Humanas.

Segundo o Dicionário de Filosofia de Nicolla Abbagnano (2007, p. 922),


subjetividade refere-se ao “caráter de todos os fenômenos psíquicos, enquanto
fenômenos de consciência (v.), que o sujeito relaciona consigo mesmo e chama de
‘meu’”. Além disso, indica o caráter do que “é subjetivo no sentido de ser aparente,
ilusório ou falível”. Da mesma forma, Abbagnano (2007, p. 929) explica que o
termo sujeito teve dois significados fundamentais, sendo que atualmente apenas o
segundo sentido abaixo é utilizado:

1° Aquilo de que se fala ou a que se atribuem qualidades ou


determinações ou a que são inerentes qualidades ou determinações;
2° o eu, o espírito ou a consciência, como princípio determinante do
mundo do conhecimento ou da ação, ou ao menos como capacidade de
iniciativa em tal mundo.

Segundo Japiassú e Marcondes (2001), o período medieval foi marcado


pelas sucessivas tentativas de conciliação entre razão e fé, entre a filosofia e os
dogmas da religião revelada, passando a filosofia a ser considerada serva da
teologia, na medida em que fornecia as bases racionais e argumentativas para a
construção de um sistema teológico, sem, contudo, poder questionar a própria fé.

A Idade Moderna, por sua vez, radicaliza as mentalidades, promovendo


uma reconfiguração e produção de novas interpretações e análises filosóficas sobre
o Ser que se transformou no sujeito. Movimentos como o Renascimento e a Ilustração,
eventos ocorridos entre aquilo que se diz o fim da Idade Média para o início da
Moderna, trouxeram novos desafios intelectuais, artísticos e filosóficos nessa parte
do mundo chamada Europa. As populações desse continente, primeiramente,

26
TÓPICO 2 | IDENTIDADE E MODERNIDADE

promoveram, assistiram e reproduziram novas formas de experimentar a ciência,


a arte, a política e a vida pessoal e singular.

Podemos citar como eventos fundamentais a Reforma Protestante, ocorrida


em 1517 e que resultou numa cisão no interior da Igreja Católica; a invenção e difusão
da escrita com a prensa de Johannes Gutemberg e outras inovações técnicas; a
centralização dos Estados nacionais; uma revolução científica e filosófica, que aqui
nos interessa pela sua relação com a subjetividade–identidade; e o desenvolvimento
do capitalismo como modo de produção dominante. O período que vai dos séculos
XIV-XVIII foi repleto de grandes transformações no quadro dos povos europeus –
e, por tabela, as suas regiões de domínio colonial e econômico.

Do ponto de vista filosófico, promoveu-se uma série de transformações. Para


ilustrá-las, seguimos caracterizando o pensamento de René Descartes, Immanuel
Kant e Friedrich Nietzsche. São nomes clássicos para entender a mudança do Ser
para o Sujeito.

2.1 RENÉ DESCARTES (1596-1650) E IMMANUEL KANT


(1724-1804)
Claro que os filósofos que contribuíram para essa transformação
epistemológica são vários. Hegel, por exemplo. Descartes e Kant, por sua vez, são
pontos de referência elementares. René Descartes nasceu em Haia e é apontado
como “pai da filosofia moderna”, além de ter seu nome marcado, também, na
Matemática e na Física.

O filósofo escreveu obras influentes e referenciais, como: “O Mundo


ou Tratado da Luz” (1633), “Discurso sobre o Método” (1637) ou “Meditações
Metafísicas” (1641). De suas análises filosóficas desdobra-se a expressão “sujeito
cartesiano”, um modelo de sujeito tipicamente moderno e influenciado pelo olhar
científico.

Em “Discurso sobre o Método”, Descartes apontou seu método filosófico


e científico, rompendo com a filosofia aristotélica. Sua preocupação era apontar
as bases do conhecimento verdadeiro. O filósofo deve rejeitar aquilo que é falso.
É fundamental averiguar. Essa ideia manteve-se presente na Ciência através do
método dedutivo e da corrente “Racionalista” ou na etapa da metodologia de
pesquisa. Quer dizer, o filósofo inaugurou uma versão de ceticismo metodológico.

27
UNIDADE 1 | PROBLEMATIZANDO AS IDENTIDADES

FIGURA 8 – RENÉ DESCARTES

FONTE: Disponível em: <http://www.filosofia.com.br/figuras/biblioteca/


Descartes.jpg>. Acesso em: 13 jun. 2017.

O ato de colocar em dúvida algo que se nomeia conhecimento fundamentou


sua noção de sujeito pensante. Este sujeito não é – em essência – o sujeito da filosofia
grega ou medieval-cristã.

É clássica sua expressão latina “Cogito, ergo sum” (Penso, logo existo). Este é
o único conhecimento confiável. Aqui surge um sujeito conectado com as mudanças
sociais desse período: singular, mas capaz da dúvida e da reflexão racional. Os
sentidos, as experiências imediatas deviam ser colocadas sob suspeição.

[...] não há, pois, dúvida alguma de que sou, se ele [o gênio maligno]
me engana; e, por mais que me engane, não pode fazer com que eu
nada seja, enquanto eu pensar ser alguma coisa. De sorte que, após
ter pensado bastante nisto e de ter examinado todas as coisas, cumpre
enfim concluir e ter por constante que esta proposição, eu sou, eu existo,
é necessariamente verdadeira todas as vezes que a enuncio ou que a
concebo em meu espírito (DESCARTES, 1973, p. 92).

Com Descartes, ocorre um primeiro e fundamental deslocamento à posição


do sujeito moderno. O sujeito do cogito ou o sujeito cartesiano. Este ser não se
ocupa mais da imortalidade de sua alma, mas de suas capacidades cognitivas e de
percepção: o pensamento. O sujeito moderno está atado a um universo científico
de verdades baseadas em modelos físicos ou matemáticos. É um sujeito lógico.

Essa polêmica foi continuada e criticada pelo filósofo prussiano Immanuel


Kant, autor de obras clássicas como “Crítica da Razão Pura”, “Crítica da Razão
Prática” e “Crítica do Julgamento”, essenciais para a compreensão de sua visão
filosófica. Para Kant, existem limites para a razão.

28
TÓPICO 2 | IDENTIDADE E MODERNIDADE

Kant (2001) é também conhecido por promover um deslocamento na


filosofia: a sua “revolução copernicana”. Em sua obra “Crítica da Razão Pura”, o
filósofo alemão desloca a questão primordial da filosofia-metafísica. A questão não
é mais sobre o que é o SER e sua essência, mas, quais as bases e possibilidades de
alcançar o conhecimento seguro a respeito das coisas.

FIGURA 9 – IMMANUEL KANT

FONTE: Disponível em: <http://citacoes.in/media/authors/immanuel-kant.jpg>.


Acesso em: 13 jun. 2017.

O resultado dessa obra estabeleceu uma potente crítica aos filósofos


empiristas (Aristóteles, Thomas Hobbes, John Locke, David Hume) e racionalistas
(Platão, René Descartes, Baruch Espinosa).

Kant se ocupou de pensar os limites e contornos do conhecimento, rompendo


com a dicotomia filosófica racionalismo x empirismo sobre o papel da razão na
conformação do ser humano. É neste sentido que promoveu uma “revolução
copernicana” na Filosofia. Quer dizer, abalou aquilo que era “tradição” filosófica.

Quando estudamos a Filosofia, nos períodos que compreendem a Idade


Antiga até a Idade Moderna (não confundir com modernidade), o Ser está no
centro das reflexões. Em torno dele orbitam os outros assuntos. Kant passou a
se preocupar com as bases e possibilidades de conhecimento, de entendimento
do mundo e das coisas. O Ser ainda está presente, mas, já numa situação mais
relacional. Trata-se de uma inversão na relação entre o sujeito e objeto que conhece.
Uma “revolução copernicana” na Filosofia. Segundo Otfried Höffe (2005, p. 45):

29
UNIDADE 1 | PROBLEMATIZANDO AS IDENTIDADES

A revolução copernicana de Kant significa que os objetos do


conhecimento não aparecem por si mesmos, eles devem ser trazidos
à luz pelo sujeito (transcendental). Por isso eles não podem mais ser
considerados como coisas que existem em si, mas como fenômenos.
Com a mudança do fundamento da objetividade, a teoria do sujeito,
de modo que não pode mais haver uma ontologia autônoma. O mesmo
vale para a teoria do conhecimento.

E quão potente foi esse deslocamento conceitual e a descoberta da


ambiguidade do Sujeito Moderno? A filosofia kantiana colocou no centro da
reflexão o sujeito em sua relação com o mundo e não em sua “essência” primordial.

Quer dizer, na medida em que a própria sociedade, relações políticas e


científicas do século XVIII modificaram-se, a filosofia de Immanuel Kant encara o
sujeito inserido nessas transformações.

Simultaneamente, deslocou a Filosofia de uma posição metafísica para uma


posição mundana. Ao invés da Filosofia se ocupar de questões que não podem ser
fundamentadas em termos de conhecimento seguro, perdendo-se em explicações
abstratas, Kant vai buscar o posicionamento da Filosofia como uma ciência capaz
de gerar conhecimento sistemático.

2.2 FRIEDRICH NIETZSCHE E A CRÍTICA AO SUJEITO


MODERNO

FIGURA 10 – FRIEDRICH NIETZSCHE

FONTE: Disponível em: <https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/


thumb/1/1b/Nietzsche187a.jpg/200px-Nietzsche187a.jpg>. Acesso em: 13 jun. 2017.

30
TÓPICO 2 | IDENTIDADE E MODERNIDADE

Em suas obras, este filósofo analisa e também critica as características


da modernidade. Ele viveu num momento de transformações sucessivas nos
cenários político, econômico, social e cultural. A sua crítica é imprescindível de
sua experiência pessoal e intelectual, possível apenas no quadro da Modernidade.
Suas questões são modernas, portanto. Ainda neste espírito de crítica, a Religião,
a Filosofia, a Ciência, o Estado ou a Democracia são duramente questionados.
Nietzsche realizou, no conjunto de suas reflexões, um diagnóstico acerca da
modernidade e de seus valores centrais, assim como realizou uma poderosa crítica.
Esse período da história é chamado de Modernität pelo alemão.

O que é a Modernidade em Nietzsche? Devemos observar o sentido de


modernidade neste autor como “civilização” ligada a heranças da moral platônico-
cristã. Isto é, da filosofia metafísica de Platão e seus discípulos e da reinterpretação
desta pelos pensadores medievais cristãos.

O filósofo foi um grande admirador da Grécia Antiga no seu período pré-


socrático, anterior ao século V a.C. Ele vê a cultura dionisíaca desse momento
grego como um exemplo superior para embasar suas críticas. Esta cultura e suas
intoxicações por vinho, as paixões corporais, o prazer nas experiências culturais
e festivas são exemplos de uma cultura vigorosa, secular, eram percebidas como
um modelo de futuro diante do cenário filosófico moderno traçado por Nietzsche.
Tomando a história, essa decadência tem início a partir de Sócrates, continuando
no Cristianismo e nos valores da Modernidade. Em sua visão crítica, os valores
modernos levam o indivíduo ao desassossego. Tais valores vinculavam-se ao
status quo dominante do período em que viveu. Para Nietzsche (1986), todo o nosso
mundo moderno se encontra preso na rede da cultura alexandrina e possui como
ideal o homem teórico, equipado com as mais altas capacidades de conhecimento,
trabalhando ao serviço da ciência. Esse homem do passado, no fundo é bibliotecário
e revisor, tornando-se miseravelmente cego com a poeira dos livros e os erros de
impressão.

Quer dizer, ele percebia as bases filosóficas propostas por Sócrates ou


Platão como castradoras, limitadoras das capacidades dos indivíduos, ao passo
que apontou modelos de domínio das paixões e desejos humanos. Essas filosofias
refreavam o indivíduo, sendo que esta ideia foi apropriada e radicalizada pelo
cristianismo.

E em que sentido essas reflexões e críticas de Friedrich Nietzsche nos


auxiliam a compreender o quadro geral das mudanças identitárias? Em suas
críticas a respeito dos valores da modernidade, o filósofo apontava que o “sujeito”
era uma ilusão projetiva sua no exterior voltada à sua autopreservação. Esta ilusão
era formulada em termos de essência, de unidade, de permanência e estabilidade.
Trata-se da visão metafísica do “Ser” grego, conforme discutimos anteriormente
no Tópico 1. A metafísica tratou de dividir o mundo em dois: o real e o sensível.

E daí, claro, esta visão está articulada com suas críticas à Ciência, ao Estado, a
essa necessidade de controle e previsão dos fenômenos e dos sujeitos. A modernidade
de Nietzsche era aquela que confundia conquistas culturais com progresso geral.
31
UNIDADE 1 | PROBLEMATIZANDO AS IDENTIDADES

Estimulada pela Razão, essa modernidade fez as pessoas assimilarem esses valores
como questões de liberdade ou felicidade. A Ciência era vista como pretensiosa
e arrogante, cuja especialização levou à pobreza das epistemologias; na política,
ideologias como a socialista anulavam as bases de uma hierarquia meritocrática.
Esse contexto moderno indicado por Friedrich Nietzsche colocava o indivíduo de
joelhos, enfraquecia suas capacidades. Esse cenário levava o indivíduo à confusão, ao
equívoco intelectual. Em suma, ao invés de afirmar as potências humanas criativas, a
Modernidade “secou” o sujeito, tornando-o “rebanho”.

3 O SUJEITO É SOCIAL: O SUJEITO SOCIOLÓGICO


Stuart Hall (2015) indicou três concepções principais que podem nos dizer algo
sobre a identidade. Para Hall, a primeira concepção importante de identidade é aquela
surgida no seio do Renascimento e Iluminismo europeu, cuja estrutura era marcada
pela ideia de um sujeito centrado e dotado das capacidades da razão e da consciência,
de tipo cartesiano. É aquilo que vimos no item anterior ao abordarmos a subjetividade.

Outra concepção foi chamada de “sujeito sociológico”, onde a identidade é


formada na interação entre o eu e a sociedade, esta última cada vez mais complexa.
Essa perspectiva reafirmou o “diálogo contínuo” entre mundos culturais exteriores
e as identidades que esses mundos oferecem (2015, p. 11). E, por fim, o “sujeito pós-
moderno”, cuja identidade não é fixa, essencial ou permanente, sendo formada e
transformada continuamente. Este é o sujeito descentrado e fragmentado, onde a
identidade é algo contraditório.

FIGURA 11 – SOMOS SUJEITOS SOCIAIS

FONTE: Disponível em: <http://4.bp.blogspot.com/-sJ8fkyduXCw/VSwp14LyNeI/


AAAAAAAACRg/dVDU8QJ7StQ/s1600/images.jpg>. Acesso em: 13 jun. 2017.

32
TÓPICO 2 | IDENTIDADE E MODERNIDADE

Vamos aprofundar a compreensão sobre o Sujeito Sociológico apontado


por Stuart Hall? No ambiente de revoluções constantes iniciadas na ciência,
filosofia e outras formas modernas de vida, ganhou peso o interesse nas interações
sociais. Este debate pode ser localizado em autores da Escola de Chicago e do
Interacionismo Simbólico.

Segundo Alain Coulon (1995), a Escola de Chicago foi fundamental na


reorientação do sujeito, centrando-se na ação social do indivíduo. Procuravam
compreender os problemas sociais decorrentes da industrialização e da urbanização
do início do século XX nos EUA.

Na “Escola de Chicago” foram formadas as bases do Interacionismo


Simbólico. Tal corrente começou a se delinear entre os anos 1930 e 1940, e desenvolveu-
se no transcurso das duas décadas seguintes entre as Escolas de Chicago e de Iowa,
ambas nos EUA. O nome dessa linha de pesquisa sociopsicológica e sociológica
foi cunhado em 1937 por Herbert Blumer, que estabeleceu os pressupostos da
abordagem interacionista (CARVALHO; BORGES; RÊGO, 2010).

Como definir o que é o Interacionismo Simbólico? Como se pode perceber


pela sua designação, está orientado a refletir sobre a interação humana. Em torno da
interação, ainda, discute os seus significados, isto é, a dimensão simbólica e social
dessas interações entre indivíduos, entre grupos, entre diferentes identidades.
Para dois autores elementares dessa corrente – George Mead e Herbert Blumer
–, o significado é produto de relações e das atividades sociais desenvolvidas na
interação entre os indivíduos.

Na perspectiva interacionista, o significado da ação humana não deve vir


do pesquisador, que deve esforçar-se para ver o significado da ação segundo aquele
que age. O Interacionismo visa a compreensão de como os indivíduos interpretam
os objetos, os gestos, as pessoas nas situações em que interagem.

Após a Escola de Chicago e o Interacionismo Simbólico, argumentar,


refletir e analisar questões ligadas às identidades passam a sair do campo da
Filosofia e Metafísica, voltando-se para fenômenos materiais e subjetivos das
dinâmicas sociais. Depois dessa contribuição decisiva, conceitos como “papéis
sociais”, “trajetória”, “narrativa biográfica”, interação social se tornam recursos
teóricos disponíveis para pensar de maneira complexa a identidade. Reforçou-se a
ideia de que a identidade envolve processos e contextos sociais localizados, quer
dizer, ancorados na experiência da vida de quem se pergunta sobre a identidade.
O indivíduo moderno está “descentrado”, porém, inserido em um contexto social
dentro de um tempo e espaço. Então, neste caminho, essa visão de identidade
processual e não essencial contribui para uma visão menos “instintiva”, quer dizer,
que a identidade nasce já com a gente para ser observador como fonte de conflito,
tensão, negociação e exclusão.

Bem, mas não é só isso. Os indivíduos estão localizados em tempos e


espaços que precisam ser observados para entender os comportamentos sociais.
Não existe uma forma “única” ou padrão de respostas sociais. Existem tendências
33
UNIDADE 1 | PROBLEMATIZANDO AS IDENTIDADES

sociais de respostas a determinadas formas de interação e que mudam ao longo


da história e da própria geografia dos povos. As interações dependem da maneira
como as sociedades se estruturam.

4 A MODERNIDADE
Como definir a Modernidade? Quais suas características e mudanças que
estimulou? E de que maneira os efeitos da Modernidade têm impactado a produção
social das identidades nas sociedades contemporâneas?

Segundo Feres Júnior (2010), o primeiro uso do termo latino “modernus”


que se conhece foi utilizado na Epistolae pontificum de Gelasius, do ano 494 da era
cristã. Mas foi apenas em 1830, com Charles Baudelaire, que o termo modernidade
passa a ser usado no sentido de tempo presente transitório, que está destinado a
ser superado por um futuro (FERES JÚNIOR, 2010). De maneira geral, a partir
da leitura do verbete “Moderno”, de Hans Ulrich Gumbrecht (1978 apud FERES
JÚNIOR, 2010, p. 31), podem ser identificados três significados básicos:

O primeiro significado é simplesmente “presente”, em oposição


a “anterior” ou “prévio”, e foi usado dentro de tradições
institucionalizadas onde tendências se sucedem temporalmente. O
segundo significado é de “novo” em oposição a “velho”: nesse caso já
se tem o embrião de uma consciência epocal onde moderno define um
espaço de experiência presente que se quer distinto do passado. Esse uso
geralmente está ligado a um esquema temporal mais ou menos explícito
de hierarquização das eras, ou seja, é fortemente valorativo. Por fim,
temos o significado de “período transitório”, em oposição ao eterno.
Nessa versão, moderno designa um presente que é experimentado
como fluxo temporal contínuo e veloz que, como tal, só pode ser oposto
ao eterno, qual inamovível.

Assim, a percepção da mudança histórica não é nova. Mas a Modernidade


aos poucos foi radicalizando essa percepção. Essa consciência foi apontada por
Charles Baudelaire (1996, p. 25), para quem a modernidade “é o transitório,
o efêmero, o contingente, é a metade da arte, sendo a outra metade o eterno e
o imutável”. Baudelaire, neste sentido, escreveu que o mundo de sua época se
distinguia do antigo pelo fato de se abrir ao futuro, cujo “novo repete-se e
perpetua-se a cada momento do presente, o qual a partir de si gera o que é novo”
(BAUDELAIRE, 1996, p. 18).

Além disso, como apontou Octávio Paz, “a modernidade é um conceito


exclusivamente ocidental e não aparece em nenhuma outra civilização” (1984, p.
43). Complementando com a reflexão de Anthony Giddens (1991), essa ideia de
um contraste com a tradição antiga é intimamente ligada à ideia de modernidade.

De uma forma geral, a Modernidade produziu efeitos dramáticos ao redor


do globo, a partir de alguns aspectos centrais, apontados por Piotr Sztompka (1998):
a emancipação do indivíduo; a diferenciação social, especialmente através do
34
TÓPICO 2 | IDENTIDADE E MODERNIDADE

trabalho e da posse dos meios de produção; a racionalidade enquanto ampliação


da burocracia e dos métodos racionais de acumulação de capital; o economicismo,
em que a vida social passa a orientar o conjunto da sociedade, ao invés da religião,
por exemplo; e, por último, a expansão, materializada na globalização. Com isso,
acontecem modificações coletivas e individuais de base política, material e psicológica,
correlatas com a ascensão do modo de vida urbano, a degradação ambiental e a
massificação das experiências sociais. As bases culturais das sociedades sofreram
impactos desestruturantes e reestruturantes: ainda em Sztompka (1998), pode-se
indicar “a secularização das pessoas e sociedades; a democratização da educação e
ciência e o surgimento da cultura de massas” (p. 142).

FIGURA 12 – OS TEMPOS MODERNOS E A TÉCNICA

FONTE: Disponível em: <https://estudos.gospelmais.com.br/files/2015/10/tm.jpg>. Acesso


em: 13 jun. 2017.

Marshal Berman, na obra “Tudo o que é sólido desmancha no ar” (1986),


divide a Modernidade em três momentos. A primeira teve início no século XVI,
durando até o século XVIII. É quando ocorrem as descobertas da América, os
caminhos para as Índias e a Revolução Industrial. Ainda, é o momento em que
são conformados os estados modernos centralizados. O segundo período é o
desdobramento da Revolução Francesa, numa ênfase política e social. Por fim, o
terceiro momento é o da modernização, isto é, da circulação mundial da ideia e
percepção de se viver na Modernidade.

35
UNIDADE 1 | PROBLEMATIZANDO AS IDENTIDADES

FIGURA 13 – MAX WEBER

FONTE: Disponível em: <http://www.mundociencia.com.br/wp-content/


uploads/2016/07/maxweber.jpg>. Acesso em: 13 jun. 2017.

A Modernidade acompanha as primeiras reflexões sociológicas. Max Weber


observou sua época e os efeitos da Modernidade, realizando uma grande análise
de seus impactos nas instituições. O que foi a Modernidade, segundo Weber? Para
Weber, a racionalização foi a marca original do Ocidente nesse período moderno.
Weber argumenta em torno da ideia de desencantamento e “desmagificação” do
mundo pela ciência e as engrenagens da racionalidade como características da
Modernidade Ocidental, quer dizer: “os valores do mundo foram racionalizados e
sublimados em termos de suas próprias leis” (WEBER, 1982, p. 274).

Significa principalmente, portanto, que não há forças misteriosas


incalculáveis, mas que podemos, em princípio, dominar todas as
coisas pelo cálculo. Isto significa que o mundo foi desencantado. Já não
precisamos recorrer aos meios mágicos para dominar ou implorar aos
espíritos, como fazia o selvagem, para quem esses poderes misteriosos
existiam. Os meios técnicos e os cálculos realizam o serviço (WEBER,
1982, p. 165).

A Ciência ocidental moderna teve grande papel nessa desmagnificação


do mundo. Ela tornou as explicações racionais, lógicas, possíveis de verificação
e demonstração, dando pouco lugar para as explicações místicas, sobrenaturais,
religiosas. Da mesma forma, para Weber, outra característica de Modernidade é o
Estado Moderno, isto é, burocrático, racional. Weber percebeu o Estado como um

36
TÓPICO 2 | IDENTIDADE E MODERNIDADE

agrupamento de dominação que apresenta caráter institucional e que procurou


monopolizar, nos limites de domínio e que, tendo esse objetivo, reuniu nas mãos
dos dirigentes os meios materiais de gestão (WEBER, 1982).

Karl Marx, apesar de não ser um sociólogo de formação, é tomado como


um de seus fundadores. Quais as características da Modernidade e como as críticas
marxistas levaram a novos olhares sobre o tema da identidade? Marx foi um
indivíduo típico de sua época e seu pensamento englobou a Política, a Economia,
Filosofia e História. Ele faz, portanto, a despeito de sua crítica, uma análise em
termos filosóficos e políticos com base na modernidade. Qual a essência da análise
feita por Karl Marx sobre a Modernidade?

FIGURA 14 – KARL MARX

FONTE: Disponível em: <http://www.infoescola.com/wp-content/


uploads/2010/07/karl_marx.jpg>. Acesso em: 13 jun. 2017.

Marx observa diversos fenômenos para sua investigação sobre a


Modernidade. Mas, num grande exercício de síntese, esta época está interligada
à ascensão da classe burguesa e do modo de produção capitalista a partir da
implosão do passado. Marx é moderno no sentido de empregar o materialismo
histórico na análise dos fenômenos sociais, inserindo as pessoas nas dinâmicas
dos processos sociais. Com o materialismo dialético, realizou uma crítica sobre as
mudanças macroestruturais através das contradições.

A explicação de Marx a partir do materialismo considera o capitalismo um


modo de produção moldado na época moderna, dando origem a uma divisão de
classes. Essa divisão, para Marx, está fundamentada na posse ou não dos meios de
37
UNIDADE 1 | PROBLEMATIZANDO AS IDENTIDADES

produção capitalistas, quer dizer, patrão e operário. Para Marx, essas contradições
eram características da modernidade.

Sua originalidade encontra-se nas bases materiais de sua filosofia. Como


dissemos antes, a filosofia de base grega e medieval percebia o sujeito a partir
de uma cisão entre ser real e ser mental. No caso dessas perspectivas, o homem
ideal deve ser buscado nessa dimensão mental. Com Marx, as bases tornam-se
localizadas na História, através de sua definição e análise do modo de produção.
Essa sua visão deve-se, em termos, à importância de sua valorização da História.
Essa noção contemporânea de fluidez, de liquidez inerentemente moderna já
estava no pensamento de Marx. Veja o que ele escreveu – junto com Engels – no
Manifesto do Partido Comunista: “[...] tudo o que é sólido e estável se volatiliza,
tudo o que é sagrado é profanado, e os homens são finalmente obrigados a encarar
com sobriedade e sem ilusões sua posição na vida, suas relações recíprocas”
(MARX; ENGELS, 2005, p. 69).

4.1 VISÕES CONTEMPORÂNEAS SOBRE A MODERNIDADE


NAS CIÊNCIAS SOCIAIS
Como alguns autores atuais das Ciências Sociais pensam a modernidade?
Vamos comparar algumas análises de Anthony Giddens, Alain Touraine,
Boaventura de Sousa Santos e Jürgen Habermas.

4.1.1 Anthony Giddens

FIGURA 15 – ANTHONY GIDDENS

FONTE: Disponível em: <https://i.ytimg.com/vi/uT3GD0nVS3Y/hqdefault.


jpg>. Acesso em: 13 jun. 2017.

38
TÓPICO 2 | IDENTIDADE E MODERNIDADE

Anthony Giddens é um sociólogo britânico nascido em Londres em 1938.


Conhecido mundialmente pela sua Teoria da Estruturação, ocupa-se da ação
social, do agente, da capacidade de agência. É renomado pelas suas análises das
mudanças institucionais da modernidade e seus impactos no agente. Autor de
obras importantes, como A Constituição da Sociedade (1984), As Consequências
da Modernidade (1990), Modernidade e Identidade (1991). Sobre a modernidade,
afirma Giddens (2002, p. 21):

[...] o termo "modernidade" num sentido muito geral para referir-me


às instituições e modos de comportamento estabelecidos pela primeira
vez na Europa depois do feudalismo, mas que no século XX se tornaram
mundiais em seu impacto. A "modernidade" pode ser entendida como
aproximadamente equivalente ao "mundo industrializado", desde que se
reconheça que o industrialismo não é sua única dimensão institucional.

Giddens discorre sobre as consequências da Modernidade, que estariam


se tornando mais radicalizadas e universais como nunca antes. Os modos de vida
estimulados pelas forças da Modernidade desvencilharam os indivíduos e grupos
sociais de todos os tipos tradicionais de ordem social, de uma maneira inédita, sem
precedentes. Além disso, a modernidade produz certas formas sociais distintas,
das quais “a mais importante é o estado-nação” (2002, p. 21).

A modernidade altera radicalmente a natureza da vida social cotidiana


e afeta os aspectos mais pessoais de nossa existência. É aquela situação: a crise
econômica europeia de nossa época não afeta apenas a vida de um europeu.
Em razão da conexão entre as diversas partes do globo, lugares centrais ou
periféricos são atingidos, mesmo que em diferentes proporções. As transformações
introduzidas pelas instituições modernas se entrelaçam de maneira direta com a
vida individual e, portanto, com o eu.

[...] surgimento de novos mecanismos de autoidentidade que são


constituídos pelas instituições da modernidade, mas que também
as constituem. O eu não é uma entidade passiva, determinada por
influências externas; ao forjar suas autoidentidades, independente
de quão locais sejam os contextos específicos da ação, os indivíduos
contribuem para (e promovem diretamente) as influências sociais
que são globais em suas consequências e implicações. [...] o eu, como
os contextos institucionais mais amplos em que existe, tem que ser
construído reflexivamente (GIDDENS, 2002, p. 9-11).

Segundo Anthony Giddens (2002), a Modernidade tem produzido


descontinuidades sociais, culturais, temporais, econômicas etc. Tais
descontinuidades seriam a própria base da Modernidade. Nesses processos, ideias
como “lugar” e “espaço” são gradualmente destruídas por um cada vez maior
conceito de tempo universal. O resultado é o desencaixe do “espaço-tempo”,
representando mecanismos que deslocam as relações sociais de seus lugares
específicos, recombinando-as através de grandes distâncias no tempo e no espaço.
As interações sociais são separadas das particularidades do lugar. Quer dizer, o
local está cada vez mais subordinado às dinâmicas do global.

39
UNIDADE 1 | PROBLEMATIZANDO AS IDENTIDADES

No caminho da reflexão de Giddens, quais os impactos da Modernidade


sobre as identidades? Nas suas obras, Giddens aponta a reflexividade da vida
social específica da modernidade, estando essa na própria base da reprodução do
sistema. Esta indicaria que “as práticas sociais são constantemente examinadas e
reformadas à luz da informação renovada sobre estas próprias práticas, alterando
assim constitutivamente seu caráter”. Num sentido mais direto, a reflexividade
institucionaliza “o princípio da dúvida radical e insiste em que todo conhecimento
tome a forma de hipótese” (GIDDENS, 1991, p. 10), isto é, seja verificado,
examinado, testado.

4.1.2 Alain Touraine

FIGURA 16 – ALAIN TOURAINE

FONTE: Disponível em: <http://www.larousse.fr/encyclopedie/data/images/1005598-


Alain_Touraine.jpg>. Acesso em: 13 jun. 2017.

Alain Touraine é um sociólogo francês conhecido pela sua reflexão sobre o


sujeito e os movimentos sociais na atualidade. Pensador influente no cenário das
Ciências Sociais latino-americanas, é autor de obras importantes, como “Crítica da
Modernidade”, publicada em 1992; “Iguais e Diferentes: podemos viver juntos”,
de 1997, e “Pensar Outramente o discurso dominante”, lançado em 2007.

Para o sociólogo francês Alain Touraine (1994), a modernidade é a difusão


dos produtos da atividade racional, científica, tecnológica, administrativa. Por isso,

40
TÓPICO 2 | IDENTIDADE E MODERNIDADE

ela implica a crescente diferenciação dos diversos setores da vida social: política,
economia, vida familiar, religião, arte em particular, porque a racionalidade
instrumental se exerce no interior de um tipo de atividade e exclui que qualquer
um deles seja organizado do exterior. A modernidade era uma ideia, ela se torna
por acréscimo uma vontade, mas sem que seja rompido o vínculo entre a ação dos
homens e as leis da natureza e da história.

A passagem para a modernidade não é a da subjetividade para a


objetividade, da ação centrada sobre si para a ação impessoal, técnica ou
burocrática. Ela conduz, da adaptação ao mundo para a construção de
mundos novos, da razão que descobre as ideias eternas para a ação que,
racionalizando o mundo, liberta o sujeito e o recompõe (TOURAINE,
1994, p. 243)

Touraine (2006) deixa claros dois princípios da Modernidade: a crença


na razão e ação racional e o reconhecimento dos direitos individuais. Estes
princípios dão fundamentos não sociais aos fatos sociais. O que isso quer dizer?
Ao contrário de retirar o homem da escuridão, da crença, da ignorância, levou
este a novos paradoxos, ofuscando e jogando-o à multidão fragmentada, de busca
pelo lucro e consumo. Ao invés de Deus, a Ciência tornou-se novo dogma, uma
“nova metafísica”. O Taylorismo foi um exemplo. Sobre a crise da modernidade,
Touraine (2008, p. 106-107) diz:

[...] O mais visível é a dissociação entre a ordem da mudança e a


ordem do ser, associados anteriormente na ideia de modernidade
que significava ao mesmo tempo nacionalidade e individualismo.
A distância cresce entre as mudanças incessantes da produção e do
consumo e o reconhecimento de uma personalidade individual que é ao
mesmo tempo sexualidade e identidade cultural coletiva.

Desta forma, Touraine é um autor bastante crítico em relação à Modernidade


e suas promessas. Na época atual, de radicalização das mudanças no espaço e
tempo, o próprio indivíduo é afetado, perdido no consumo e numa identidade
frágil e esvaziada, enquanto o sujeito toma a forma coletiva, de movimentos.

4.1.3 Boaventura de Sousa Santos


Boaventura de Sousa Santos é um sociólogo português nascido em Coimbra
em 1940. Autor de escrita portuguesa com grande penetração nas Ciências Sociais
e no Direito na África, América Latina e Europa. Sua vasta reflexão aborda temas
variados, como a modernidade, a globalização, os Direitos Humanos, o Direito e
a Democracia.

41
UNIDADE 1 | PROBLEMATIZANDO AS IDENTIDADES

FIGURA 17 – BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS

FONTE: Disponível em: <http://nesp.pucminas.br/wp-content/uploads/2016/11/


boaventura-c04e-300x189.jpg>. Acesso em: 13 jun. 2017.

Este sociólogo desenvolveu uma crítica da Modernidade e de seus efeitos.


Aqui, novamente, temos o predomínio de uma Ciência e de uma racionalidade
instrumental que diminui a complexidade dos fenômenos sociais. A razão sempre
agiu como se fosse “neutra”, porém, ela tinha um caráter eurocêntrico. É neste
sentido que Boaventura de Sousa Santos fala em pós-modernidade, como um
novo e emergente paradigma em substituição ao paradigma técnico e científico da
Modernidade.

Essa hegemonia da técnica e da ciência trouxe impactos para as pessoas


e, consequentemente, para a produção social das identidades e da diferença.
Conforme o sociólogo, “como é que a ciência moderna, em vez de erradicar os
riscos, as opacidades, as violências e as ignorâncias, que dantes eram associadas
à pré-modernidade, está de facto [sic] a recriá-los numa forma hipermoderna?”
(SANTOS, 2005 p. 58).

Nosso modelo de Modernidade ocidental teve início, segundo Santos, entre


os séculos XVI e XVII, herdado das Ciências Naturais. As explicações sociais, assim,
tinham métodos que eram baseados na Física, na Química, na Matemática etc. Ao
longo do século XIX, esse modelo estende-se para os demais cantos do planeta,
promovendo “ambicioso e revolucionário paradigma sociocultural assente numa
tensão dinâmica entre regulação social e emancipação social” (SANTOS, 2000, p. 15).

O que é essa “tensão dinâmica” entre regulação social e emancipação


social? É que para Santos a nossa sociedade contemporânea, formada pelos
princípios da Modernidade, foi fundada em torno desses dois pilares, como o
sociólogo português os chama. Santos (2005) explica assim esta divisão. O pilar
da regulação é aquele ligado ao Estado, ao mercado e à comunidade. O pilar da
emancipação está dividido na racionalidade estético-expressiva presente na arte;

42
TÓPICO 2 | IDENTIDADE E MODERNIDADE

na racionalidade prática-moral da ética e do direito; e na racionalidade cognitivo-


instrumental, vinculada à ciência e à técnica. É quando ascende a visão do ser
humano como um sujeito ativo.

Para Boaventura de Sousa Santos (2005), essas duas dimensões da sociedade


moderna demandam o equilíbrio, já que elas se relacionam entre si. Porém, a nossa
época assiste ao “colapso da emancipação”, devido a “hipercientificização do pilar
da emancipação” em detrimento da regulação. Isso tem um impacto direto na
produção das nossas identidades. Um dos maiores impactos foi a consolidação do
individualismo e de um mal-estar social, com a diminuição da cidadania.

4.1.4 Jürgen Habermas


Jürgen Habermas nasceu em 1929. É um filósofo alemão pertencente à
teoria crítica e à Escola de Frankfurt. Dentre sua produção teórica destaca-se a
existência de uma esfera pública voltada ao agir comunicativo entre cidadãos, na
sua Teoria da Ação Comunicativa. É autor de obras fundamentais, como “Técnica
e ciência como ‘ideologia”, de 1968, e seu clássico “Teoria da Ação Comunicativa”,
publicado em 1981; e “O Discurso Filosófico da Modernidade”, lançado em 1985.

FIGURA 18 – JÜRGEN HABERMAS

FONTE: Disponível em: <http://gfx.dagbladet.no/pub/artikkel/4/45/450/4505


81/habermas.jpg>. Acesso em: 13 jun. 2017.

43
UNIDADE 1 | PROBLEMATIZANDO AS IDENTIDADES

Em sua obra, Habermas fala da Modernidade como um projeto. E mais,


um projeto inacabado. Para o autor, a Modernidade incorpora eventos como a
Reforma Protestante, o Iluminismo e a Revolução Francesa. Esses eventos dão
início à modernidade europeia.

Abrange, assim, as transformações ocorridas no “Ocidente” nas várias


dimensões da vida em sociedade entre os séculos XVIII-XX. Com base nesses
processos, os filósofos, intelectuais e cientistas promoveram nesse período um salto
nas ciências, ao mesmo tempo em que estimularam uma noção de ética universal
e não particular de uma única sociedade (mesmo que, no fim, estas reforçavam
a visão do mundo a partir de um olhar europeu). Essa perspectiva de Aufklärung
(Iluminismo) propunha a ciência em benefício da organização racional da vida e
da liberdade (HABERMAS, 2002).

A Modernidade de Habermas refere-se às mudanças e novas formações


sociais específicas desses tempos modernos. É quando fica mais observável
a existência de uma “consciência” acerca das diferenças com o passado e sua
história, instituições e mentalidades. Mais importante, ainda, a Modernidade está
fortemente apegada à centralidade que a Razão ocupou nesses séculos passados e
a sua promessa de futuro glorioso para as civilizações.

É a Razão – racionalidade ocidental que representa a Modernidade.


Além disso, os princípios da ciência moderna estavam sendo estruturados para
servir de instrumentos conceituais voltados ao controle e domínio da natureza.
Isso resultou na ampliação do poder das forças produtivas pela via do progresso
técnico (HABERMAS, 1968).

Para compreender com mais propriedades a racionalização constante no


projeto da Modernidade, Habermas utiliza-se de dois conceitos que auxiliam na
definição e diferenciação da sociedade: “sistema” e “mundo da vida”. O sistema
indica uma complementaridade com o mundo vivido, ligando-se às maneiras e
formas de reprodução da vida material, isto é, ao trabalho, dinheiro, o poder etc.
Nele, predomina a razão instrumental, técnica. Já o mundo vivido é a maneira como
nós percebemos a realidade, a existência individual e comum. Aqui, predomina a
razão comunicativa.

Esses dois conceitos indicariam as dinâmicas de integração nos diferentes


contextos de ação social: pela via sistêmica e pela via social. A grande questão
é que a Modernidade criou uma disjunção entre sistema e mundo da vida, e é
em torno disso que Habermas constrói sua Teoria da Ação Comunicativa. Com a
predominância da economia e do Estado, ocorreu que a “razão instrumental” se
tornou hegemônica, balizando as relações sociais. Ele fala em desengate do sistema
e do mundo da vida. A eficácia torna-se um fim em si próprio, desvinculado de
qualquer contexto. Desta maneira, as forças econômicas e do Estado parecem ser
naturais. A Razão deixa de ser instrumento de crítica para se tornar um poder e
uma maneira de acumulação de capitais.

44
TÓPICO 2 | IDENTIDADE E MODERNIDADE

LEITURA COMPLEMENTAR

RESPOSTA À PERGUNTA: “QUE É O ILUMINISMO?” (1784)

Immanuel Kant (trecho)

lluminismo é a saída do homem da sua menoridade de que ele próprio


é culpado. A menoridade é a incapacidade de se servir do entendimento sem a
orientação de outrem. Tal menoridade é por culpa própria, se a sua causa não
residir na carência de entendimento, mas na falta de decisão e de coragem em
se servir de si mesmo, sem a guia de outrem. Sapere aude! Tem a coragem de te
servires do teu próprio entendimento! Eis a palavra de ordem do Iluminismo.

A preguiça e a cobardia são as causas de os homens em tão grande parte,


após a natureza os ter há muito libertado do controlo alheio (naturaliter maiorennes)
continuarem, todavia, de bom grado menores durante toda a vida; e também de a
outros se tornar tão fácil assumir-se como seus tutores. É tão cómodo ser menor.
Se eu tiver um livro que tem entendimento por mim, um director espiritual que
em vez de mim tem consciência moral, um médico que por mim decide da dieta
etc., então não preciso de eu próprio me esforçar. Não me é forçoso pensar, quando
posso simplesmente pagar; outros empreenderão por mim essa tarefa aborrecida.
Porque a imensa maioria dos homens (inclusive todo o belo sexo) considera
a passagem à maioridade difícil e também muito perigosa é que os tutores de
bom grado tomaram a seu cargo a superintendência deles. Depois de terem,
primeiro, embrutecido os seus animais domésticos e evitado cuidadosamente que
estas criaturas pacíficas ousassem dar um passo para fora da carroça em que as
encerraram, mostram-lhes em seguida o perigo que as ameaça, se tentarem andar
sozinhas. Ora, este perigo não é assim tão grande, pois acabariam por aprender
muito bem a andar. Só que um tal exemplo intimida e, em geral, gera pavor perante
todas as tentativas ulteriores.

É, pois, difícil a cada homem desprender-se da menoridade que para ele


se tomou quase uma natureza. Até lhe ganhou amor e é por agora realmente
incapaz de se servir do seu próprio entendimento, porque nunca se lhe permitiu
fazer semelhante tentativa. Preceitos e fórmulas, instrumentos mecânicos do uso
racional, ou antes, do mau uso dos seus dons naturais são os grilhões de uma
menoridade perpétua. Mesmo quem deles se soltasse só daria um salto inseguro
sobre o mais pequeno fosso, porque não está habituado ao movimento livre. São,
pois, muito poucos apenas os que conseguiram mediante a transformação do seu
espírito arrancar-se à menoridade e encetar então um andamento seguro.

Mas é perfeitamente possível que um público a si mesmo se esclareça. Mais


ainda, é quase inevitável, se para tal lhe for concedida a liberdade. Sempre haverá,
de facto, alguns que pensam por si, mesmo entre os tutores estabelecidos da grande
massa que, após terem arrojado de si o jugo da menoridade, espalharão à sua volta
o espírito de uma estimativa racional do próprio valor e da vocação de cada homem
para pensar por si mesmo. Importante aqui é que o público, antes por eles sujeito

45
UNIDADE 1 | PROBLEMATIZANDO AS IDENTIDADES

a este jugo, os obriga doravante a permanecer sob ele quando por alguns dos seus
tutores, pessoalmente incapazes de qualquer ilustração, é a isso incitado. Semear
preconceitos é muito danoso, porque acabam por se vingar dos que pessoalmente,
ou os seus predecessores, foram os seus autores. Por conseguinte, um público só
muito lentamente consegue chegar à ilustração. Por meio de uma revolução talvez
se possa levar a cabo a queda do despotismo pessoal e da opressão gananciosa
ou dominadora, mas nunca uma verdadeira reforma do modo de pensar. Novos
preconceitos, justamente como os antigos, servirão de rédeas à grande massa
destituída de pensamento.

[...]

FONTE: KANT, Immanuel. Resposta à pergunta: o que é o iluminismo? In: A paz perpétua e outros
opúsculos, Lisboa, Edições 70, 1990. Disponível em: <http://www.uel.br/cch/his/arqdoc/kantPDEHIS.
pdf>. Acesso em: 20 jun. 2017.

46
RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico, você aprendeu que:

• Que a ideia de sujeito moderno está articulada e imbricada com a ideia de


um sujeito da linguagem, de discurso, que questiona. São categorias ligadas à
Modernidade e sua reflexão sobre o mundo de maneira distinta que os povos
antigos. Vimos que gregos, romanos, europeus da Idade Média constroem
suas visões de identidade a partir de fundamentações filosóficas, religiosas e
comunitárias. Não se fala em sujeito nesses períodos, e sim, em “Ser”. O sujeito
é uma invenção moderna.

• Descartes e Kant mudaram essa percepção. Ao passo que para Descartes o sujeito
é aquele que pensa (Cogito ergo sum) e que suspeita das fraudes e conhecimentos
falsos, Kant se preocupa com as bases e possibilidades de conhecimento, de
entendimento do mundo e das coisas.

• Por sua vez, Nietzsche analisa e também critica as características da modernidade.


Ele viveu num momento de transformações sucessivas nos cenários político,
econômico, social e cultural. Ainda que tenha realizado fortes críticas ao
sentido e aos valores modernos, Nietzsche não é necessariamente um filósofo
antimoderno.

• Que a percepção da mudança histórica não é nova. Mas a Modernidade aos


poucos foi radicalizando essa percepção.

• Que o sujeito passou a ser questionado pela filosofia e pelas nascentes Ciências
Sociais, promovendo análises e críticas tendo a Modernidade como um elemento
importante nas transformações. Disso, pode-se indicar a Escola de Chicago e o
Interacionismo Simbólico.

• A Sociologia e a Modernidade se confundem, pois a primeira é um resultado


direto do derretimento da ordem pós-tradicional pelo “calor” da luz da
Modernidade.

• A Modernidade tornou-se um objeto de interesse e investigação muito presente


nas Ciências Sociais. Tratamos da modernidade segundo Alain Touraine,
Anthony Giddens, Boaventura de Sousa Santos e Jürgen Habermas.

47
AUTOATIVIDADE

1 O que é etnocentrismo e eurocentrismo?

2 Qual a contribuição do Interacionismo simbólico para os


estudos das relações sociais e das identidades sociais?

3 Quais as distinções entre as análises filosóficas de Immanuel


Kant e Friedrich Nietzsche sobre a Modernidade?

48
UNIDADE 1
TÓPICO 3

IDENTIDADES NA
CONTEMPORANEIDADE

1 INTRODUÇÃO
No tópico anterior, discutimos alguns eventos de caráter social que
preenchem nosso passado e que foram relevantes num contexto de investigação
sobre a produção de identidades sociais.

Contribuíram para a precipitação da modernidade algumas revoluções


nos padrões pessoais (processo civilizador), na centralização dos poderes militar,
político e administrativo em torno do Estado e nas revoluções religiosas, científicas
e filosóficas. Tais momentos estão ali, registrados como história do século XIV até
o século XVIII. Foram intensos e puseram em destaque uma percepção de que
algo novo, moderno, como distinto de um passado, estava se desenrolando. Numa
figura de linguagem, era possível “sentir” e “enxergar” a Modernidade ocorrendo.

FIGURA 19 – IDENTIDADE E DIFERENÇA

FONTE: Disponível em: <https://sjmachado.files.wordpress.com/2013/05/21.jpg>.


Acesso em: 13 jun. 2017.

49
UNIDADE 1 | PROBLEMATIZANDO AS IDENTIDADES

O mundo de hoje, no qual somos tanto atores quanto espectadores,


definitivamente é único. Neste sentido, uma marca de nossa época é a crítica de
conceitos herdados do século XIX ou XX. Neste cenário, a identidade se torna
uma produção social plural, conflituosa e amparada na diferença. Em seguida,
veremos o impacto da pós-modernidade ou da radicalidade da Modernidade
nos paradigmas clássicos das Ciências Sociais. Depois, discute-se os efeitos da
globalização na produção das identidades. Por fim, apresentamos a Teoria do
Reconhecimento.

Vamos lá?

2 A PRODUÇÃO SOCIAL DAS IDENTIDADES E DAS


DIFERENÇAS NA PÓS-MODERNIDADE
Quando falamos em identidade, logo vem à mente nosso documento,
também conhecido como RG. Este documento é aquele que você precisa ter
nas mãos sempre que for solicitado para abrir contas bancárias, acessar direitos
sociais, relacionar-se com seus empregadores ou fazer uma compra. De certo
ponto de vista, aquele documento, ao ser mostrado, diz que nós somos cidadãos.
E brasileiros. É dessa identidade que estamos tratando?

FIGURA 20 – AS DIFERENÇAS SÃO SOCIALMENTE CONSTRUÍDAS

FONTE: Disponível em: <https://antropomecanica.files.wordpress.com/2013/05/diferenca_


cultural.jpg>. Acesso em: 13 jun. 2017.

Ou será que identidade é aquilo que está “dentro” de nós, nossa essência
individual que faz sermos o que somos? Quer dizer, a nossa individualidade

50
TÓPICO 3 | IDENTIDADES NA CONTEMPORANEIDADE

e subjetividade? Aquela que a gente leva a um consultório de um psicólogo


ou psiquiatra para ser “tratada” e curada? Ainda, a identidade é aquilo que
externamente indicamos? Minha cor de pele, olhos? As roupas, objetos e marcas
que levamos?

Como, então, perceber as identidades num contexto pós-moderno? Por


nossos dias, as identidades são percebidas como diversas, mutáveis e relacionadas
ao contexto social em que são vividas em relação aos sistemas simbólicos e
classificatórios onde são encontrados sentidos para as posições sociais dos sujeitos
(HALL, 2010). Neste sentido, a identidade pós-moderna, aquela vinculada à
sua ideia de “sujeito pós-moderno”, não tem uma identidade fixa, essencial
ou permanente, sendo formada e transformada continuamente. A identidade
resultante dessa época, de um sujeito filosoficamente abalado e questionado, é a
de um sujeito descentrado e fragmentado, onde a identidade é algo contraditório.
Ao invés de uma identidade centrada, o atual contexto estimula as “posições-de-
identidade”, fontes para produção de identidades locais ou novas identidades, ao
longo de uma larga gama de outras diferenças. As polarizações entre elas também se
amplificam. Essas identidades possuem um “caráter político”, “caráter relacional”
e “caráter posicional”. A globalização tem o efeito de tornar essas “posições-de-
identidades” mais políticas, mais plurais e diversas, menos fixas, unificadas ou
trans-históricas (HALL, 2010).

Em toda parte estão emergindo identidades culturais que não são


fixas, mas que estão suspensas, em transição, entre diferentes posições;
que retiram seus recursos, ao mesmo tempo, de diferentes tradições
culturais; e que são o produto desses complicados cruzamentos
e misturas culturais que são cada vez mais comuns num mundo
globalizado (HALL, 2006, p. 88).

As identidades pós-modernas não são unificadas, marcadas pelas


contradições no seu interior diariamente negociadas nas relações e interações
sociais. Em nossa época, “as pessoas assumem suas posições de identidade e se
identificam com elas” (WOODWARD, 2015, p. 14-15). Nossas identidades sociais
são construídas, assim como são artificiais as formas pelas quais nós as negociamos.
Desta forma, um conceito possível para entender as complexidades da identidade
é apresentado por Stuart Hall (2014) no artigo “Quem precisa de identidade?”:

Utilizo o termo identidade para significar o ponto de encontro, o ponto


de sutura, entre, por um lado, os discursos e as práticas que tentam
nos ‘interpelar’, nos falar ou nos convocar para que assumamos nossos
lugares como sujeitos sociais de discursos particulares e, por outro lado,
os processos que produzem subjetividades, que nos constroem como
sujeitos aos quais se pode ‘falar’. As identidades são, pois, pontos de
apego temporário às posições-de-sujeito que as práticas discursivas
constroem para nós (HALL, 2014, p. 111).

O que queremos dizer quando argumentamos que as identidades têm


origem em processos sociais de produção e diferenciação de sentidos? A produção
social e a percepção de identidades estão vinculadas às condições sociais, simbólicas
e materiais em que se inserem os indivíduos e grupos (WOODWARD, 2015).

51
UNIDADE 1 | PROBLEMATIZANDO AS IDENTIDADES

Segundo Hall (2014), a identidade envolve um trabalho discursivo em torno


do fechamento e da marcação de fronteiras simbólicas. Ela está ligada à produção
de ‘efeitos de fronteiras’. Para consolidar o processo, “ela requer aquilo que é
deixado de fora – o exterior que a constitui” (p. 106). Como assim? Para apontar o
que é ser brasileiro leva-se em conta tudo o que diz respeito ao não brasileiro, isto
é, o outro. Ser brasileiro é não ser argentino.

As identidades adquirem sentido “por meio de linguagem e dos sistemas


simbólicos pelos quais elas são representadas” (WOORWARD, 2015, p. 8). A
construção da identidade é tanto simbólica quanto social. Neste sentido, os
processos de construção identitários são relacionais, dependem de algo fora dela,
de outra identidade para poder existir e definir-se. Nessa relação a percepção da
diferença fornece as condições para que uma identidade possa existir.

[...] o processo de produção da identidade oscila entre dois movimentos:


de um lado, estão aqueles processos que tendem a fixar e a estabilizar
a identidade; de outro, os processos que tendem a subvertê-la e a
desestabilizá-la. [...] tal como a linguagem, a tendência da identidade é
para a fixação. [...] A fixação é uma tendência e, ao mesmo tempo, uma
impossibilidade (SILVA, 2007, p. 85).

Um elemento importante nesse processo social de identidades é a diferença.


A produção social da identidade é marcada pela diferença, “sustentada pela
exclusão dos diferentes, sendo sustentada e reproduzida pela linguagem e por
meio de símbolos” (WOODWARD, 2015, p. 9). Isso é muito importante que você
entenda, porque, neste sentido, quando uma identidade, um grupo é marcado
como diferente, inimigo ou tabu, o efeito dessa percepção simbólica materializa-se
em efeitos reais no cotidiano.

O que é a diferença dentro desse jogo de produção e identificação que é a


identidade da gente?

Em geral, consideramos a diferença como um produto derivado da


identidade. Nesta perspectiva, a identidade é a referência, é o ponto
original relativamente ao qual se define a diferença. Isso reflete a
tendência a tomar aquilo que somos como sendo norma pela qual
descrevemos ou avaliamos aquilo que não somos. [...]. Numa visão mais
radical [...] considerar a diferença não simplesmente como resultado de
um processo, mas como o processo mesmo pelo qual tanto a identidade
quanto a diferença são produzidas. [...] como ato ou processo de
diferenciação (SILVA, 2007, p. 76).

A diferença é reproduzida por meio de sistemas simbólicos. Mas a diferença


não é só cultural ou étnica. A complexidade da vida moderna exige que assumamos
diferentes identidades, que podem estar ou entrar em conflito. Assim, temos
uma identidade profissional, familiar, política, de bairro etc. Nem todas elas são
compatíveis entre si. Muitas vezes, as responsabilidades incorporadas na imagem
da identidade familiar podem se opor aos sacrifícios exigidos pelos mercados
profissionais. Quer dizer, nesse processo de identidade e diferença, algumas
diferenças são mais toleráveis que outras. Então, como perceber a diferença no
processo de produção social das identidades? Vejamos o que nos indica Kathryn
52
TÓPICO 3 | IDENTIDADES NA CONTEMPORANEIDADE

Woodward (2015, p. 40): “As identidades são fabricadas por meio da marcação da
diferença. Essa marcação da diferença ocorre tanto por meio de sistemas simbólicos
de representação quanto por meio de formas de exclusão social. A identidade, pois,
não é o oposto da diferença: a identidade depende da diferença”.

Os sistemas classificatórios operam como mediadores e aplicadores dessas


distinções na vida social, ressaltados pela linguagem e cultura. Tais sistemas
encontram-se tanto nas dimensões simbólicas como sociais dos grupos humanos.
No caso da identidade, esses sistemas classificatórios têm uma missão: estabelecer,
distinguir, separar dois grupos opostos: nós-eles (WOODWARD, 2015). É nesta
perspectiva que alguns conceitos de cultura foram duramente criticados, como
veremos adiante. É na/pela cultura que esses sistemas de classificação se consolidam
e reproduzem socialmente.

Identidade e diferença podem ser vistos como atos de criação linguística:


“significa dizer que elas são criadas por meio de atos de linguagem” (SILVA, 2007,
p. 76). Para Tadeu Tomaz Silva (2007), existe uma contradição permanente na
linguagem. Para apontar essa sua hipótese, utiliza a obra de autores como Jacques
Derrida e discussões de Saussure. Especialmente, a de que o signo carrega sempre
não apenas o traço daquilo que ele substitui, mas também, o traço daquilo que ele
não é, ou seja, precisamente da diferença. Quando imaginamos o conceito casa
e escrevemos a palavra casa, você percebe as presenças e ausências vistas nesse
exemplo? Elas representam sentidos que são intercambiáveis dessas presenças que
não se concretizam plenamente. Quer dizer, entre o conceito e a palavra escrita
“casa” ocorre um processo de significação que é fundamentalmente indeterminado,
incerto e vacilante.

Este processo envolve, também, a representação. Segundo Kathryn


Woodward (2015), a representação inclui as práticas de significação e os sistemas
simbólicos por meio dos quais os significados são produzidos, posicionando-nos
como sujeitos. É por meio dos significados produzidos pelas representações que
damos sentido à nossa experiência e àquilo que somos.

A representação, compreendida como um processo cultural, estabelece


identidades individuais e coletivas e os sistemas simbólicos nos quais
ela se baseia fornecem possíveis respostas às questões: quem sou eu?
O que eu poderia ser? Quem eu quero ser? Os discursos e os sistemas
de representação constroem os lugares a partir dos quais os indivíduos
podem se posicionar e a partir dos quais podem falar (WOODWARD,
2015, p. 18).

Em suma, a produção social da identidade é um processo e uma relação


central na vida contemporânea e fundamentada na diferenciação. Muitas das
atuais classificações relevantes do mundo social estão localizadas em questões
identitárias.

Para entender esse processo contraditório entre a construção de uma


identidade e de suas diferenças, devemos considerar que o poder é um conceito
muito elementar nessa construção.

53
UNIDADE 1 | PROBLEMATIZANDO AS IDENTIDADES

A afirmação da identidade e a enunciação da diferença traduzem


o desejo dos diferentes grupos sociais, assimetricamente situados,
de garantir o acesso privilegiado aos bens sociais. A identidade e a
diferença estão, pois, em estreita conexão com relações de poder. O
poder de definir a identidade e de marcar a diferença não pode ser
separado das relações mais amplas de poder. A identidade e a diferença
não são, nunca, inocentes (SILVA, 2007, p. 81).

Se dissemos que a produção social da identidade e da diferença é, também,


um tipo de relação de poder, é porque tal poder implica o acesso ao privilégio de
nomear, dividir e classificar o mundo segundo seu ponto de vista. Quem tem o
poder de classificar possui, também, o poder de hierarquizar em níveis superiores
e inferiores.

Normalizar significa eleger - arbitrariamente - uma identidade


específica como o parâmetro em relação ao qual as outras identidades
são avaliadas e hierarquizadas. [...] A identidade normal é ‘natural’,
desejável, única. A força da identidade normal é tal que ela nem sequer
é vista como uma identidade, mas simplesmente como a identidade
(SILVA, 2007, p. 84).

Além disso, segundo Kathryn Woodward (2015), algumas respostas podem


ser encontradas na arena global, por exemplo, onde existem preocupações com as
identidades nacionais e com as identidades étnicas; em um contexto mais ‘local’,
existem preocupações com a identidade pessoal, por exemplo, com as relações
pessoais e com a política sexual. Segundo a autora:

[...] a identidade importa porque existe uma crise da identidade,


globalmente, localmente, pessoalmente e politicamente. Os processos
históricos que, aparentemente, sustentavam a fixação de certas
identidades estão entrando em colapso e novas identidades estão
sendo forjadas, muitas vezes por meio da luta e da contestação política
(WOODWARD, 2015, p. 39).

Quer dizer, mais que uma crise subjetiva, só do eu, tipo uma depressão,
a autora afirma que se trata de um fenômeno social e histórico, radicalizado em
nosso período em que vivemos. E que, na maioria dos casos, essa crise possui uma
dimensão conflitiva em torno do reconhecimento.

UNI

O PODER

Bobbio, Matteucci e Pasquino (1997, p. 933), numa definição clássica de visão social e política
do poder, assim o definem:

Em seu significado mais geral, a palavra Poder designa a


capacidade ou a possibilidade de agir, de produzir efeitos.
Tanto pode ser referida a indivíduos e a grupos humanos como

54
TÓPICO 3 | IDENTIDADES NA CONTEMPORANEIDADE

a objetos ou a fenômenos naturais [...]. Se o entendermos em


sentido especificamente social, ou seja, na sua relação com a
vida do homem em sociedade, o Poder torna-se mais preciso, e
seu espaço conceptual pode ir desde a capacidade geral de agir,
até a capacidade do homem em determinar o comportamento
do homem: Poder do homem sobre o homem. O homem é
não só o sujeito, mas também o objeto do Poder social. E Poder
social a capacidade que um pai tem para dar ordens a seus filhos
ou a capacidade de um Governo de dar ordens aos cidadãos.
Por outro lado, não é Poder social a capacidade de controle que
o homem tem sobre a natureza nem a utilização que faz dos
recursos naturais. Naturalmente existem relações significativas
entre o Poder sobre o homem e o Poder sobre a natureza ou
sobre as coisas inanimadas. Muitas vezes, o primeiro é condição
do segundo e vice-versa.

Podemos e devemos enxergar o poder como relacional, processual, dependente de contextos


localizados. Ele também tem a capacidade de ser poder simbólico, um tipo muito especial de
poder, segundo Pierre Bourdieu.

O poder simbólico é um poder de construção da realidade


que tende a estabelecer uma ordem gnoseológica: o sentido
imediato do mundo (e, em particular, do mundo social) supõe
aquilo a que Durkheim chama o conformismo lógico, quer dizer,
uma concepção homogênea do tempo, do espaço, do número,
da causa, que torna possível a concordância entre as inteligências
(BOURDIEU, 2003, p. 9).

Foucault, em suas obras, sempre procurou constituir uma genealogia do poder. Dentre suas
reflexões, podemos apontar outro tipo especial do poder, característico da pós-modernidade,
o biopoder.

[...] essa série de fenômenos que me parece bastante importante,


a saber, o conjunto dos mecanismos pelos quais aquilo que,
na espécie humana, constitui suas características biológicas
fundamentais, vai poder entrar numa política, numa estratégia
política, numa estratégia geral de poder. Em outras palavras,
como a sociedade, as sociedades ocidentais modernas, a partir
do século XVIII, voltaram a levar em conta o fato biológico
fundamental de que o ser humano constitui uma espécie humana.
É em linhas gerais o que chamo, o que chamei, para lhe dar um
nome, de biopoder (FOUCAULT, 2008, p. 3).

A questão do poder é fundamental para a compreensão da maneira como as identidades são


socialmente construídas e a presença da diferença nessa relação social que se estabelece.

2.1 O QUE É A PÓS-MODERNIDADE?


Anthony Giddens (1991; 2002), nas suas análises sobre as dimensões
institucionais da modernidade, aponta para isso. Os modos de vida, as instituições
modernas, tudo isso se desvencilhou dos tipos tradicionais de ordem social. É
algo inédito, não encontrado em outros períodos. Quais as suas características,
segundo o autor? Para ele, tanto faz situar nosso período como alta modernidade,
modernidade tardia. Trata-se de uma radicalização dos princípios da modernidade.
E é por isso mesmo que não estaríamos numa pós-modernidade.

55
UNIDADE 1 | PROBLEMATIZANDO AS IDENTIDADES

Este período é indicado como global, permeado por interconexões que


impactam as dimensões da vida mais íntima da pessoa. Da mesma forma, essas
relações foram radicalizadas em termos de escopo das mudanças. Velozes e
permeadas pela insegurança. O espaço local, quer dizer, onde vivemos, chamamos
de nossa cidade, e não se pode viver mais, como outrora, em torno de si e de seus
vizinhos. É preciso submeter-se a poderes estatais, mas, cada vez mais, a poderes
econômicos, culturais ou políticos de origem externa, distante. Nossas relações
sociais dependem cada vez mais de “mecanismos de reencaixe” que independem
de nossa vontade. O dinheiro, as dinâmicas dos mercados de trabalho, por exemplo.

FIGURA 21 – A COMPLEXIDADE DAS DINÂMICAS E INTERAÇÕES SOCIAIS

FONTE: Disponível em: <https://arautodecristo777.files.wordpress.com/2010/10/deusnodiv2oj6.


jpg>. Acesso em: 14 jun. 2017.

Em outras palavras, nossas relações sociais são deslocadas em termos


de tempo e espaço. Nossa vida cotidiana está mais dependente de “fichas
simbólicas”, que seriam meios de intercâmbio que podem ser “circulados sem ter
em vista as características específicas dos indivíduos e dos grupos que lidam com
eles em qualquer conjuntura particular” (GIDDENS, 1991, p. 30). Mas, também,
de “sistemas peritos”, isto é, sistemas de excelência técnica ou competência
profissional que organizam grandes áreas dos ambientes material e social em que
vivemos hoje, conhecimento perito.

Zygmunt Bauman (2001) tem sua famosa definição de modernidade líquida


para tratar do momento atual. A diferença está na intensificação do ritmo trazido
com a modernidade e pelo fato de que na época líquida não surgem novos “sólidos”
para que os indivíduos possam ancorar-se. Pelo contrário, a marca da época é
a fluidez, a desconfiança das tradições, rotinas, normas e grandes narrativas, a
individualização. Sem sólidos, o edifício corre o risco iminente de cair.

56
TÓPICO 3 | IDENTIDADES NA CONTEMPORANEIDADE

O mundo construído de objetos duráveis foi substituído pelo de produtos


disponíveis projetados para imediata obsolescência. Num mundo como
esse, as identidades podem ser adotadas e descartadas como uma troca
de roupa. O horror da nova situação é que todo diligente trabalho de
construção pode mostrar-se inútil; e o fascínio da nova situação, por
outro lado, se acha no fato de não estar comprometida por experiências
passadas, de nunca ser irrevogavelmente anulada, sempre “mantendo
as opções abertas” (BAUMAN, 1998, p. 112-113).

Neste sentido, a modernidade líquida impacta de crise todas as maneiras


que anteriormente o indivíduo utilizava para viver em condição de social. Apaga
seus mapas e referências, ou os põe em dúvidas. A economia e o capital se tornaram
transnacionais, ampliando seu poder e influência. Como contrapartida, o poder
dos Estados em questões como economia fica cada vez mais reduzido. Marcas e
produtos passam a ser fatores de distinção e marcação identitária. Ao invés das
tradições, formas como o consumo de roupas passam a ser orientadas pelos setores
criativos das empresas.

Da mesma forma, o trabalho e as relações de trabalho sofrem o impacto


da destruição dos sólidos. Terceirização, leis trabalhistas frouxas são os exemplos
encarnados dessas dinâmicas. O resultado é o enfraquecimento do poder e papel
dos sindicatos e dos trabalhadores frente ao poder sem rosto do capitalismo global
e líquido. Ao invés de trabalhador, você é um colaborador, um empreendedor,
discursos que escondem a exploração radicalizada do momento líquido.

2.1.1 A identidade na alta modernidade de Anthony


Giddens
Nossas vidas na alta modernidade de Giddens, também, dependem cada
vez mais de discursos transitórios e distantes de nossas vidas cotidianas e que
sugerem um “eu” reflexivo, ativo e empenhado em um estilo e projeto de vida
diante de um ambiente de risco e incerteza ampliado (GIDDENS, 1991; 2002).
Para o inglês, a produção de conhecimento sistemático sobre a vida social torna‑se
integrante da reprodução do sistema, deslocando a vida social da fixidez da
tradição.

Na ordem pós-tradicional da modernidade, e contra o pano de fundo


de novas formas de experiência mediada, a autoidentidade se torna um
empreendimento reflexivamente organizado. O projeto reflexivo do
eu, que consiste em manter narrativas biográficas coerentes, embora
continuamente revisadas, tem lugar no contexto de múltipla escolha
filtrada por sistemas abstratos. Na vida social moderna, a noção de
estilo de vida assume um significado particular. Quanto mais a tradição
perde seu domínio, e quanto mais a vida diária é reconstituída em
termos do jogo dialético entre o local e o global, tanto mais os indivíduos
são forçados a escolher um estilo de vida a partir de uma diversidade de
opções (GIDDENS, 2002, p. 12-13, grifo nosso).

57
UNIDADE 1 | PROBLEMATIZANDO AS IDENTIDADES

Outra característica para pensar a identidade em tempos de alta


modernidade refere-se ao conceito de “política-vida” de Giddens (1991). Trata-
se de uma política das decisões da vida (p. 198) em meio a um mundo de alta
reflexividade e impessoalidade de relações sociais. Reflexividade, como vimos,
refere-se à produção incessante de conhecimento sobre a vida e mundo trazido
para o cotidiano. Segundo o sociólogo, o conceito refere-se à “política de realização
do eu, no contexto da dialética do local e do global e do surgimento dos sistemas
internamente referidos da modernidade” (GIDDENS, 2002, p. 222).

E é nessa imbricação entre global, nacional e local que as identidades


são produzidas. Mas Giddens faz uma distinção. Ao passo que os discursos
sobre identidade assumem continuidade ao longo do tempo e do espaço: mas,
a autoidentidade é “essa identidade interpretada reflexivamente pelo agente”
(GIDDENS, 1991, p. 53). Você percebe? Se sou brasileiro, posso me imaginar e me
modelar como um brasileiro distinto, de valores e interesses diferentes. Continuo
brasileiro, mesmo pensando e agindo reflexivamente. Neste processo, posso
superar valores, ideias ou comportamentos que estão ligados ao Brasil.

Quando Giddens diz que as identidades ficam deslocalizadas ou


desterritorializadas é porque nossos repertórios identitários já não estão vinculados
ao território ou à memória social. Esses fenômenos estimulam identidades a
se desligar de sua origem para abrir-se a produtos, imagens, comportamentos,
símbolos ou práticas distribuídas em movimentos globais. A partir desses elementos
tradicionais (pertencimento a uma memória e um território, um lugar de origem),
podemos pensar em nossa biografia em termos de projeto e de autorrealização
pessoal. Em Giddens, a modernidade é uma ordem pós-tradicional em que a
pergunta sobre como devo viver precisa ser respondida em decisões (2002). Em
muitos casos, é uma questão que o indivíduo deve escolher:

No nível do eu, um componente fundamental da atividade do dia a


dia é simplesmente o da escolha. Obviamente nenhuma cultura elimina
inteiramente a escolha dos assuntos cotidianos, e todas as tradições
são efetivamente escolhas entre uma gama indeterminada de padrões
possíveis de comportamento. Mas, por definição, a tradição, ou os
hábitos estabelecidos, ordena a vida dentro de canais relativamente
fixos. A modernidade confronta o indivíduo com uma complexa
variedade de escolhas e ao mesmo tempo oferece pouca ajuda sobre as
opções que devem ser selecionadas (GIDDENS, 2002, p. 79).

A reflexividade aqui indica um monitoramento constante à luz de novas


informações sobre a nossa biografia ou estilo de vida. O que é saudável ou não para
comer, por exemplo, torna-se resultado de informações científicas transformadas
em conhecimento leigo, cotidiano. Na alta modernidade do sociólogo inglês, essa
reflexividade se estende de forma inédita ao “eu” que se torna dinâmico como
a própria época em que vive. Temos, neste sentido, cada vez mais a consciência
desse nosso “eu reflexivo”, rotineiramente reproduzido.

Ser uma "pessoa" não é apenas ser um ator reflexivo, mas ter o conceito
de uma pessoa (enquanto aplicável ao eu e aos outros). O que se
entende por "pessoa" certamente varia nas diferentes culturas, embora

58
TÓPICO 3 | IDENTIDADES NA CONTEMPORANEIDADE

haja elementos dessa noção que são comuns a todas elas. A capacidade
de usar "eu" em contextos diferentes, característica de toda cultura
conhecida, é o traço mais fundamental das concepções reflexivas da
pessoidade (GIDDENS, 2002, p. 54).

Toda essa reflexividade do eu é encarnada. Temos um corpo. Esse corpo


também se torna de uma vigilância reflexiva. O corpo não é mais um problema de
um Ser que se realizava apenas enquanto entidade racional. O corpo não é mais
tão somente o lugar da nossa alma, como pensavam os gregos antigos. Hoje a
permanente reflexividade e controle do corpo “é um emblema de uma existência
segura” num ambiente social (GIDDENS, 2002, p. 103).

2.1.2 A identidade na modernidade líquida


de Zygmunt Bauman
E como pensar a modernidade líquida e seus impactos identitários? Para
perceber o grau da crítica proposta por Bauman, relembramos seu “Homo eligens”,
isto é, o homem que escolhe, como metáfora da identidade pós-moderna. Escolhe,
pois permanentemente incompleto e indefinido.

A crítica do sociólogo polonês Zygmunt Bauman sobre a Modernidade é


bastante negativa, seguindo a tradição da Teoria Crítica iniciada com a Escola de
Frankfurt. O polonês dividiu a Modernidade em dois períodos: a modernidade
sólida e a famosa modernidade líquida.

FIGURA 22 – ZYGMUNT BAUMAN

FONTE: Disponível em: <http://ep01.epimg.net/cultura/imagenes/2015/12/


30/babelia/1451504427_675885_1451510007_sumario_normal.jpg>.
Acesso em: 14 jun. 2017.

59
UNIDADE 1 | PROBLEMATIZANDO AS IDENTIDADES

A Modernidade Sólida é o período que tem início no século XV até a


metade do século passado. É o momento de instituições centralizadas, de um
sentimento de progresso e crença na ciência, da narrativa do sujeito racional. Foi
um período de expansão da instrumentalidade racional pela Ciência e pelo Estado
na redução das ambiguidades da vida social e nacional. Nesta modernidade, os
Estados surgem como os grandes estimuladores e direcionadores das identidades.
De acordo com o polonês, foi

[...] um período histórico que começou na Europa Ocidental no século


XVII com uma série de transformações socioestruturais e intelectuais
profundas e atingiu sua maturidade primeiramente como projeto
cultural, com o avanço do Iluminismo e depois como forma de vida
socialmente consumada, com o desenvolvimento da sociedade
industrial (capitalista e, mais tarde, também a comunista) (BAUMAN,
1999, p. 299-300).

Em “Modernidade Líquida” (2001) e “Modernidade e Ambivalência”


(1999), podemos encontrar as características essenciais desse período que já era
marcado pela necessidade de derreter seus “sólidos”. O projeto moderno era
centrado na ideia de controle e de domínio da natureza e das imprevisibilidades
da vida social. Neste empreendimento, Ciência e Estado foram dois motores muito
potentes. Para Bauman, a ciência moderna:

[...] nasceu da esmagadora ambição de conquistar a Natureza e


subordiná-la às necessidades humanas. A louvada curiosidade científica
que teria levado os cientistas ‘aonde nenhum homem ousou ir ainda’
nunca foi isenta da estimulante visão de controle e administração, de
fazer as coisas melhores do que são (isto é, mais flexíveis, obedientes,
desejosas de servir) (BAUMAN, 1999, p. 48).

E qual a identidade vinculada à Modernidade Sólida? Para Bauman,


aquela vinculada à Nação. Da coordenação entre Estado e Ciência, delineia-se uma
característica moderna, sua obsessão por classificar, conhecer, controlar os fatos,
objetos, fenômenos e pessoas. A grande utopia da modernidade sólida era:

[...] a crença de que há um fim do caminho em que andamos, um


télos alcançável da mudança histórica, um Estado de perfeição a ser
atingido amanhã, no próximo ano ou no próximo milênio, algum tipo
de sociedade boa, de sociedade justa e sem conflitos em todos ou alguns
de seus aspectos postulados: do firme equilíbrio entre oferta e procura
e a satisfação de todas as necessidades; da ordem perfeita, em que tudo
é colocado no lugar certo, nada que esteja deslocado persiste e nenhum
lugar é posto em dúvida; das coisas humanas que se tornam totalmente
transparentes porque se sabe tudo o que deve ser sabido; do completo
domínio sobre o futuro – tão completo que põe fim a toda contingência,
disputa, ambivalência e consequências imprevistas das iniciativas
humanas (BAUMAN, 2001, p. 37).

O Estado-nação e sua identidade nacional percebia as diferenças com


desconfiança. A centralidade essencial dessa identidade está na unidade de
conduta, modos de vida e mentalidades sob a lógica da dominação da nação
(BAUMAN, 1999; 2001).

60
TÓPICO 3 | IDENTIDADES NA CONTEMPORANEIDADE

A incapacidade de constituir uma identidade fixa é produto do sentimento


de insegurança presente na esfera pós-moderna. A identidade líquida é
passageira. Disso resultam laços frouxos nas relações sociais, a substituição dos
relacionamentos humanos pelo consumo, que transforma o “eu” e os “outros” em
mercadorias; o desapego ao espaço e tempo; e o crescimento da individualização
(BAUMAN, 2005).

A “individualização” consiste em transformar a “identidade” humana de


um “dado” em uma “tarefa” e encarregar os atores da responsabilização de
realizar essa tarefa e das consequências (assim como dos efeitos colaterais)
de sua realização. Em outras palavras, consiste no estabelecimento de
uma autonomia de jure (independentemente de a autonomia de facto
também ter sido estabelecida) (BAUMAN, 2005, p. 40).

Segundo o autor, atualmente

[...] a identidade navega entre as extremidades da individualidade


descompromissada e da pertença total. A primeira é inatingível, e a
segunda, como um buraco negro, suga e engole qualquer coisa que
flutue nas suas proximidades. Quando é escolhida como destino,
inevitavelmente incita movimentos vacilantes entre as duas direções
(BAUMAN, 2007, p. 44).

Para Bauman (2001; 2005), a ausência de sólidos e os impactos da


modernidade líquida na economia, no Estado, na comunidade, no consumo e
nas tradições trouxeram profundos impactos para as identidades. Estimulada
pela ausência e desconfiança das grandes narrativas, a identidade líquida é uma
invenção, nunca uma descoberta. Identidade não é uma questão de pertencer ou
se identificar com alguém ou algum grupo, mas uma tarefa do cotidiano. Lembra
o “eu reflexivo” de Anthony Giddens.

Para a grande maioria dos habitantes do líquido mundo moderno,


atitudes como cuidar da coesão, apegar-se às regras, agir de acordo
com precedentes e manter-se fiel à lógica da continuidade, em vez de
flutuar na onda das oportunidades mutáveis e de curta duração, não
constituem opções promissoras (BAUMAN, 2005, p. 60).

Nas relações com o outro importa a supervalorização da minha identidade.


Relacionar-se é uma questão fluida, muitas vezes mediada pelo consumo e pelas
relações virtuais, pelas “redes sociais”.

Hoje em dia, nada nos faz falar de modo mais solene ou prazeroso do
que as “redes” de “conexão” ou “relacionamentos”, só porque a “coisa
concreta” — as redes firmemente entretecidas, as conexões firmes e
seguras, os relacionamentos plenamente maduros — praticamente caiu
por terra (BAUMAN, 2005, p. 100).

Essa experimentação da identidade líquida como hipervalorização do “eu”


compromete, segundo Bauman (2005), a própria realização da cidadania. Segundo
o autor, o público é colonizado pelo privado; o interesse público é reduzido
à curiosidade sobre as vidas privadas de figuras públicas e a arte da exposição
pública é reduzida à exposição pública (BAUMAN, 2001, p. 43).
61
UNIDADE 1 | PROBLEMATIZANDO AS IDENTIDADES

3 CRISES DE IDENTIDADES, CRISES DE PARADIGMAS


Um dos problemas envolvendo a chamada crise de identidade é que as
lealdades políticas tradicionais têm sofrido mudanças. Antes, por exemplo, os
trabalhadores poderiam se identificar numa classe política cujo destino era a
revolução e a superação do capitalismo. Da mesma forma, os nazistas trouxeram
à tona pesadelos em nome de uma suposta raça que era o porto seguro de sua
ideologia. O discurso da heterossexualidade era dominante e inquestionável. Ou,
ainda, a luta ecológica que não tem bases fixas porque essencialmente global. São
os sólidos que se derretem apontados por Bauman (1999).

A identidade é uma produção, não se nasce com ela (HALL, 2014). Essa
é a grande mudança no paradigma dominante que pensava a identidade fixa,
imutável. Existe, nesse sentido, uma crise de identidades? De todas ou algumas
identidades? Em geral, existem formas diversas de iniciar uma resposta. Existem
novas identidades? De certa forma. Algumas emergem de processos sociais de
invisibilidades, como as etnias indígenas, a mulher, o negro – outras surgem em
razão de fenômenos contemporâneos.

Stuart Hall (2014) aponta para uma crise das “velhas identidades”. Segundo
o autor, estas identidades estabilizadoras estão em declínio, acompanhando o
deslocamento da estrutura e dos processos das sociedades modernas. As identidades
modernas estariam sendo descentradas, isto é, deslocadas ou fragmentadas, num
movimento de “duplo deslocamento”, cuja força é a descentração dos indivíduos
tanto do seu lugar no mundo social e cultural quanto de si mesmos.

[...] para aqueles teóricos que acreditam que as identidades modernas


estão entrando em colapso, [...] tipo diferente de mudança estrutural
está transformando as sociedades modernas no final do século XX. Isso
está fragmentando as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade,
etnia, raça e nacionalidade, que, no passado, nos tinham fornecido
sólidas localizações como indivíduos sociais. Estas transformações
estão também mudando nossas identidades pessoais, abalando a ideia
que temos de nós próprios como sujeitos integrados. Essa perda de um
“sentido de si” estável é chamada, algumas vezes, de deslocamento ou
descentração do sujeito. Esse duplo deslocamento [...] constitui uma
“crise de identidade” para o indivíduo (HALL, 2005, p. 9).

Tomaz Tadeu Silva também percebe uma crise de identidades. Tais crises
se originam nas mudanças intensas promovidas pela globalização, pela migração,
pela crise de países e ideologias nos anos 1970 e 1980, que desestabilizaram,
deixaram um vazio na forma de pertencimento. Como resultado, o aparecimento
de identidades plurais, de novas afirmações étnicas, religiosas e nacionais (2014).

[...] reconhecer que a luta e a contestação concentradas na construção


cultural de identidades [...]. Enquanto nos anos 1970 e 1980, a luta
política era descrita e teorizada em termos de ideologia em conflito, ela se
caracteriza agora, mais provavelmente, pela competição e pelo conflito
entre diferentes identidades, o que tende a reforçar o argumento de que
existe uma crise de identidade no mundo contemporâneo (SILVA, 2007,
p. 26).

62
TÓPICO 3 | IDENTIDADES NA CONTEMPORANEIDADE

Além disso, um movimento de renovação das Ciências Humanas e a forma


de encarar o conhecimento de tipo europeu como de validade universal beneficiou-
se dos Estudos Culturais e Pós-colonialistas surgidos após a independência das
colônias europeias localizadas na África e na Ásia. Quer dizer, essa renovação de
teorias e metodologias não está restrita somente à História. Vejamos:

[...] o intento de descolonizar a História para projetar uma “verdadeira”


História da África segue sendo, aparentemente, um objetivo desta
geração de historiadores africanos. Este também era um desejo confesso
de muitos intelectuais estrangeiros que se dedicaram ao tema a partir
da década de 1960. Os movimentos de Independência, neste sentido,
foram, sem dúvida, os motivadores para a ampliação e difusão dos
estudos africanos em todo o mundo (BARBOSA, 2008, p. 54).

Em Boaventura de Sousa Santos o paradigma dominante da modernidade


foi o modelo de racionalidade que preside a ciência moderna e constituiu-se a
partir da revolução científica do século XVI, e foi desenvolvido nos séculos
seguintes basicamente no domínio das ciências naturais. É um processo
permeado pela racionalidade, pelo determinismo e instrumentalismo da Ciência
e dos conhecimentos para diminuir ambivalências sociais, econômicas, ecológicas,
existenciais etc. Qual seria o “paradigma emergente”?

Eu falarei do paradigma de um conhecimento prudente para uma


vida decente. Com esta designação, quero significar que a natureza da
revolução científica que atravessamos é estruturalmente diferente da
que ocorreu no século XVI. Sendo uma revolução científica que ocorre
numa sociedade ela própria revolucionada pela ciência, o paradigma a
emergir dela não pode ser apenas um paradigma científico (o paradigma
de um conhecimento prudente), tem de ser também um paradigma
social (o paradigma de uma vida decente) (SANTOS, 2005, p. 74).

A questão é que existem bases teóricas e metodológicas capazes de investigar


as questões relacionadas à identidade, cultura, etnia, nação a partir de um ponto
de vista que assegure a complexidade necessária ao tema. Pensar a identidade de
gênero, os deslocamentos culturais, os efeitos da globalização devem ser revistos à
luz das críticas e análises realizadas, conforme vimos anteriormente. Agora, tratamos
das visões sobre a globalização e seus impactos na produção de conhecimento
no interior das Ciências Sociais. Neste sentido, num quadro de individualização
excessiva, nossa liberdade individual é cada vez menor e mais controlada.

3.1 A GLOBALIZAÇÃO E A IDENTIDADE GLOBAL


As ideias de um mundo global não são novas, antes do termo globalização
ganhar popularidade, a partir dos anos 1980 em diante, foram utilizadas de
maneira pioneira nos anos 1960 por Marshall McLuhan (Guerra e Paz na Aldeia
Global) e pelo polonês Zbigniew Brzezinski (A Revolução Tecnotrônica).

É fácil cair no equívoco de acreditar que modernidade e globalização são


categorias e fenômenos similares. Aqui parte-se da ideia de que a globalização
63
UNIDADE 1 | PROBLEMATIZANDO AS IDENTIDADES

é uma dimensão, um efeito potencializado e radicalizado pela Modernidade. Os


efeitos sob as identidades tradicionais são consideráveis. O que é a globalização e
quais seus efeitos sobre as identidades e as culturas modernas?

FIGURA 23 – INTERDEPENDÊNCIA GLOBAL

FONTE: Disponível em: <http://www.cartamaior.com.br/arquivosCartaMaior/FOTO/179/29C


A5A975A685 C8377DEB584659C921FC85AC005CFF02D8A4B9070060D288BC9.jpg>.
Acesso em: 14 jun. 2017.

Enquanto fenômeno social com impacto nas identidades, a globalização


tem sido vista como propulsora de revisões metodológicas e teóricas sobre a
identidade. Como aponta o sociólogo brasileiro Octávio Ianni, as Ciências Sociais
são chamadas a discutir profundamente o que é a globalização e quais seus efeitos.
Isso porque “o paradigma clássico das ciências sociais foi constituído e continua
a desenvolver-se com base na reflexão sobre as formas e os movimentos da
sociedade nacional” (IANNI, 1994, p. 147). Quer dizer, a globalização representa
o rompimento epistemológico com seus objetos clássicos, especialmente aqueles
vinculados à unidade do Estado-nação, diante do surgimento da sociedade
global. A sociedade nacional continua vigente, mas, contraditoriamente envolvida
nos efeitos e dinâmicas da globalização. Veja o que o autor aponta sobre essa
emergência:

[...] a sociedade global é o novo objeto das ciências sociais. Ao lado da


sociedade nacional, vista como um todo e também em suas partes, as
ciências sociais começam a debruçar-se sobre a sociedade global, vista
como um todo e também em suas partes. São dois objetos presentes: um
dos quais bastante conhecido, codificado, interpretado, ao passo que o
outro ainda por se conhecer, se explicar. A sociedade nacional pode ser
vista como o emblema do paradigma clássico das ciências sociais, com o
qual elas nascem, amadurecem e continuam a se desenvolver. Enquanto
que a sociedade global pode ser vista como o emblema de um paradigma
emergente. Envolve um novo paradigma, tanto porque a sociedade global
encontra-se em constituição, em seus primórdios, como porque carece de
conceitos, categorias, interpretações (IANNI, 1994, p. 149).

64
TÓPICO 3 | IDENTIDADES NA CONTEMPORANEIDADE

Nenhum período histórico anterior teve a noção da existência de uma


sociedade global. Trata-se de uma realidade original, ainda desconhecida, carente
de interpretações teóricas mais gerais, o conhecimento acumulado sobre a sociedade
nacional não é suficiente para esclarecer as configurações e os movimentos globais.
Ianni (1994) indica algumas originalidades implicadas nas relações entre globalização
e ciências sociais. A sociedade global se constitui desde o início como uma totalidade
problemática, complexa e contraditória, aberta em movimento, dinamizando cenários
de desenvolvimento desigual, combinado e contraditório em cantos do planeta. Da
mesma forma, a constituição de uma sociedade global implicaria na possibilidade de
se criar uma história mundial. Para o autor, o que era fantasia, metáfora ou utopia,
cosmopolitismo, adquire novos significados e possibilidades (IANNI, 1994).

Para exemplificar a complexa relação entre a globalização e seus efeitos


identitários, trazemos a contribuição de Boaventura de Sousa Santos (2005). Não
podemos pensar a globalização. Devemos pensar nas muitas globalizações!

Para Santos (2005, p. 21), a globalização é o processo pelo qual “determinada


condição ou entidade local estende a sua influência a todo o globo e, ao fazê-lo,
desenvolve a capacidade de designar como local outra condição social ou entidade
rival”. O português fala em globalizações, no plural, indicando que existem
diferentes conjuntos de relações sociais que dão origem a relações globais. Estas
relações surgem dos conflitos presentes em cada campo social.

Para Santos (2005), o global e o local são socialmente produzidos no interior


dos processos de globalização. Nos processos acionados pelas globalizações,
tanto as entidades ou fenômenos dominantes (globalizados), como os dominados
(localizados) sofrem transformações internas. Porém, para Santos, os efeitos não
são igualmente distribuídos. Nem todos eles ligam-se à fluidez e rapidez próprias
dos discursos sobre a globalização. Porém, algumas tomam caminhos mais lentos,
mais difusos, mais ambíguos, e as suas causas mais indefinidas.

Atualmente, existem grandes desigualdades na distribuição e na


concentração dos poderes. Desta forma, Santos (2005, p. 26) percebe a globalização
como “um fenômeno multifacetado com dimensões econômicas, sociais, políticas,
culturais, religiosas e jurídicas interligadas de modo complexo”. Assim, o português
fala em globalizações, no plural, indicando que existem diferentes conjuntos de
relações sociais que dão origem a relações globais. Estas relações surgem dos
conflitos presentes em cada campo social.

Santos (2005) destaca algumas globalizações, dentre as inúmeras possíveis.


A globalização social em nossa época vem promovendo desigualdades em diversos
níveis das relações sociais de nosso cotidiano. Aqui, podemos verificar que através
das dinâmicas globais do capitalismo, ocorre uma concentração brutal de renda em
poucos indivíduos, produzida pelo predomínio do neoliberalismo sobre a política
e a economia. Ao mesmo tempo, globalizam-se relações precárias e terceirizadas
de trabalho, o controle e a estagnação dos salários, além da visão de que pessoas
pobres são insolventes, devendo então os investimentos concentrarem-se no topo
das camadas sociais.
65
UNIDADE 1 | PROBLEMATIZANDO AS IDENTIDADES

Santos (2002) também fala de uma globalização política, onde os países


mais ricos e suas instituições sociais, como o Fundo Monetário Internacional (FMI)
ou o Banco Mundial, exercem forte pressão sobre os países em desenvolvimento e
periféricos de uma maneira sem precedentes na história. Ao mesmo tempo, assiste-
se ao surgimento de blocos e acordos comerciais. A intensificação das interações
entre os países, ainda que desigual, é recorde, bem como o fluxo de pessoas, bens,
serviços por essas áreas. Desta maneira, o Estado-nação tem perdido sua centralidade
enquanto uma unidade de iniciativa. E num ambiente de assimetrias internacionais,
alguns países perdem totalmente sua autonomia, dependendo de decisões políticas
originadas nos centros de poder. Santos chama a atenção, nesse contexto, para o
esquecimento do Hemisfério Sul, onde localizam-se os países pobres.

Uma das mais comentadas no contexto das atuais dinâmicas mundiais


é a globalização cultural. Cada vez mais fala-se de uma cultura global. Mas, a
globalização cultural teria promovido essa inédita cultura? Inédita porque somente
em nosso momento é que temos a condição de percebermos como partes de uma
cultura global. Há uma preocupação com a homogeneização cultural que pode
surgir desses fenômenos, já que o que culturalmente se globaliza são os valores,
os artefatos culturais e os universos simbólicos que se globalizam são ocidentais.
Através desses produtos, valores presentes nos países desenvolvidos tornam-se
parte da vida de países e pessoas que vivem no Sul do mundo.

De uma maneira menos crítica que os demais, Anthony Giddens percebe


as complexas relações entre identidade e globalização, contudo não vê isso
apenas como “carga pesada”, mas como fontes libertadoras. Para o sociólogo,
em razão dos processos acionados e deixados pelo caminho em seu fluxo global,
novas identidades culturais estão emergindo, a democracia difundiu-se pelos
quatro cantos e modelos de instituições, como as famílias, são mais abertas e
plurais (GIDDENS, 2007). O grande problema são as desigualdades inerentes ao
fenômeno, ao passo que somos as primeiras gerações a viver sob a globalização. O
autor não entende que haja hegemonia de algum país ou empresas, porque cada
vez mais a globalização está descentrada, isto é, atuando em todos os cantos do
planeta. Segundo essa visão do autor, a “globalização está mudando o modo como
o mundo se parece e a maneira como vemos o mundo. Ao adotar uma perspectiva
global, tornamo-nos mais conscientes de nossas ligações com os povos de outras
sociedades” (GIDDENS, 2005, p. 61).

Para Giddens, a globalização pode ser definida “como a intensificação das


relações sociais em escala mundial, que ligam localidades distantes de tal maneira
que acontecimentos locais são modelados por eventos ocorrendo a muitas milhas
de distância e vice-versa” (1991, p. 69). O impacto disso se verifica no seu conceito
de “globalização do risco”:

[…] a) no sentido de intensidade; b) expansão da quantidade de eventos


contingentes que afetam todos ou ao menos grande quantidade de
pessoas no planeta; c) derivado do meio ambiente criado/natureza
socializada; d) riscos ambientais institucionalizados (ex.: mercado de
investimentos); e) consciência do risco como risco (lacunas não podem
ser convertidas em certezas); f) a consciência bem distribuída do risco

66
TÓPICO 3 | IDENTIDADES NA CONTEMPORANEIDADE

(conhecimento da ampla maioria); g) consciência das limitações da


perícia (nenhum sistema perito é inteiramente perito) (GIDDENS, 1991,
p. 126-127).

O britânico vê a globalização não como um fenômeno simples. Para ele, a


globalização é política, tecnológica e cultural, além de econômica. Acima de tudo,
tem sido influenciada pelo progresso nos sistemas de comunicação, registrado
a partir do final da década de 1960 (GIDDENS, 2007). E as transformações na
autoidentidade e a globalização são os dois polos da dialética do local e do global
nas condições da alta modernidade. Isso implica perceber que mudanças em
aspectos íntimos da vida pessoal estão diretamente ligadas ao estabelecimento de
conexões sociais de grande amplitude. Para Giddens (2007) diante da globalização
e seus efeitos, o "eu" e "sociedade" estão inter-relacionados num meio global.

Desta maneira, a discussão sobre a globalização e seus efeitos nos paradigmas


clássicos das Ciências Sociais é bastante elementar para o tema da produção
identitária. Para Joanildo Burity (2001), essas novas perspectivas sobre categorias
básicas das Ciências Sociais com o Estado e a Sociedade apontam, também, para
nosso momento de revisão crítica das categorias herdadas dos séculos XIX e XX.
Vivemos o “descentramento do Ocidente”. A globalização introduz a lógica de
“um terceiro” nessas relações clássicas e binárias sobre o Ocidente e as Ciências
produzidas por este.

O que é esse terceiro? Trata-se da inclusão e reconhecimento na esfera da


reflexão e das práticas sociais e culturais de outras possibilidades de expressão que
foram preteridas ou derrotadas ao longo da história eurocêntrica (BURITY, 2001,
p. 11). O terceiro é o Ocidente fragmentado, onde em meio ao nacional e ao global
surgem o local, o regional.

E o impacto disso para as identidades? O impacto do surgimento do


“terceiro” nessa relação entre global e local é a “resistência da identidade”. A
identidade torna-se o “pomo da discórdia” e expressa esse terceiro da globalização.
Elas respondem e resistem às desterritorializações promovidas pela globalização,
afirmando-se e reagindo aos efeitos desestruturantes desta (BURITY, 2001).

Outra forma possível de perceber a identidade em termos de globalização


liga-se à ideia de identidade híbrida.

Nestor Gargia Canclini percebe a globalização como um fenômeno de


fracionamento articulado do mundo e de sua recomposição em partes, sendo
movimento de homogeneização e também de diferenças e desigualdades. “A
globalização supõe uma interação funcional de atividades econômicas e culturais
dispersas, bens e serviços gerados por um sistema com muitos centros, no qual é
mais importante a velocidade com que se percorre o mundo do que as posições
geográficas a partir das quais está agindo” (CANCLINI, 2005, p. 32).

Ela conforma “espaços de possibilidades para mudanças socioculturais”


nas várias dimensões da vida social e individual. Tais mudanças foram sintetizadas
em cinco: a diminuição da força e autonomia política dos Estados face às empresas

67
UNIDADE 1 | PROBLEMATIZANDO AS IDENTIDADES

transnacionais; a reorganização dos assentamentos e das maneiras de convivência


urbanas; a forte apropriação privada do espaço urbano; as mudanças nos padrões
de pertencimento identitário, cada vez menos locais ou nacionais e cada vez mais
estimulados por dinâmicas transnacionais; e a passagem do cidadão para o de
consumidor.

Para Canclini (2005), a globalização modifica o sentido das identidades


modernas, que eram territoriais, cujo centro era o Estado-nação que tende a ocultar
as diferenças culturais internas. A globalização, ainda, seria responsável pela
intensificação dos aspectos da modernidade, levando a uma pós-modernidade.
Nesses contextos, as próprias identidades são pós-modernas que passam a ser
influenciadas por trânsitos transterritoriais e multilinguísticos. As fronteiras do
Estado-nação já não seriam suficientes para a produção social das identidades. Tais
identidades pós-modernas sofrem grande influência dos mercados, da publicidade,
muitas vezes sendo afirmadas através da distinção assegurada pelo consumo.

FIGURA 24 – IDENTIDADES HÍBRIDAS

FONTE: Disponível em: <http://beta.mericaballero.com/wp-content/uploads/hybrid1.jpg>. Acesso


em: 14 jun. 2017.

Desta maneira, a identidade na Pós-modernidade de Canclini passa a ser


concebida como repertórios fragmentados de minipapéis sociais e menos uma
“hipotética interioridade contida e definida pela família, pelo bairro, pela cidade,
pela nação ou por qualquer um desses enquadramentos em declínio” (CANCLINI,
2005, p. 48). Essa influência em potência menor das identidades essencialistas foi
entendida pelo autor como o processo de “dissolução das monoidentidades” (2005).

68
TÓPICO 3 | IDENTIDADES NA CONTEMPORANEIDADE

O que é uma cultura híbrida? Num olhar mais latino-americano, segundo


Canclini (2005, p. 19), as hibridações “são processos socioculturais nos quais
estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma separada, se combinam para
gerar novas estruturas, objetos e práticas”. Elas são produzidas especialmente em
três momentos: a queda do centro cultural e sua hegemonia, formando pluralidades;
disseminação de gêneros culturais e artísticos impuros; e na desterritorialização
do local em contato com o global (CANCLINI, 1997).

Estas transformações contemporâneas relativizam os fundamentos das


identidades nacionais. Em consequência, surgem nacionalismos, regionalismos,
etnicismos e fundamentalismos, que acabam por anular os espaços de interação,
fazendo com que as identidades não sejam mais negociadas, mas “simplesmente
afirmadas ou defendidas”. (CANCLINI, 2005, p. 197).

Stuart Hall (2006) percebe que a hibridização acontece em situações de


diáspora, onde se fazem necessários múltiplos processos de tradução cultural
experimentados na adaptação das matrizes culturais diferentes da sua origem.

O hibridismo não se refere a indivíduos híbridos, que podem ser


contrastados com os “tradicionais” e “modernos” como sujeitos
plenamente formados. Trata-se de um processo de tradução cultural,
agonístico, uma vez que nunca se completa, mas que permanece em sua
indecidibilidade (HALL, 2005, p. 74).

Essa tradução cultural é indicada como um processo de negociação entre


novas e antigas matrizes culturais, vivenciado por pessoas que migraram de sua
terra natal. Entre a identidade que ficou para trás e a que precisa ser negociada na
experiência dos deslocamentos, das migrações ou de refugiados.

3.2 IDENTIDADES E RECONHECIMENTO


O que é reconhecer e o que isso tem de ligação com o tema das identidades
em nossa época? Tem tudo a ver. Até agora, apontamos que as identidades em
nossos tempos procuram afirmar-se perante outras. Da mesma forma, as noções
identitárias essencialistas invisibilizam a diferença e, portanto, as identidades
plurais. Como dissemos antes, nenhuma identidade se constrói sozinha,
autossuficiente. É no delimitar fronteiras entre eu e outros que elas são fabricadas.

Segundo o antropólogo brasileiro Roberto Cardoso de Oliveira (2005),


atualmente muito se discute a respeito da identidade, mas não do aspecto do
seu reconhecimento. Ele se pergunta: o que significa a uma pessoa ou grupo ter
sua identidade reconhecida? A resposta deve ser procurada na linguagem, nas
bases filosóficas e antropológicas das sociedades. Ao explorar essas dimensões da
vida e as ideias fechadas de identidade que são formuladas cotidianamente, ao
problematizar essas dimensões e as suas naturalizações, trazemos o conhecimento
para o patamar do reconhecimento, para a dimensão pública.

69
UNIDADE 1 | PROBLEMATIZANDO AS IDENTIDADES

Desta maneira, reconhecer não tem somente a intenção de tornar o outro


“igual”, numa perspectiva de igualdade. Vai além, é um tema étnico envolvido na
produção do cotidiano e de nossas relações sociais e de poder. Por este caminho, o
tema do reconhecimento pode ser percebido do ponto de vista teórico. O cerne da
discussão pode ser localizado entre “uma visão redistributiva em oposição à ideia
de reconhecimento em nome da justiça social” (OLIVEIRA, 2005, p. 23).

Apresentamos, então, a discussão em torno da corrente teórica e


metodológica chamada “Teoria do Reconhecimento”, com boa inserção nos
espaços acadêmicos, intelectuais, sociais e políticos no nosso país. Trata-se de uma
corrente que transborda um campo transdisciplinar, que inclui a Antropologia,
a Sociologia, a Filosofia, a Política, por exemplo. Esta corrente está ligada a
alguns nomes e obras específicas. As três figuras mais importantes desse debate
são o canadense Charles Taylor, o sociólogo e filósofo alemão Axe Honneth e a
estadunidense Nancy Fraser.

A Teoria do Reconhecimento e seus autores lançam olhares para movimentos


sociais de gênero, étnicos, raciais, etários etc., repensando a posição subordinada
desses sujeitos e de suas identidades no contexto das relações econômicas e sociais.
Claro que pensam a dimensão cultural. Porém, a crítica está justamente nisso. No
reducionismo ao nível cultural.

Isso porque no cenário de nossa modernidade tardia, com os quadros sociais,


econômicos, políticos e culturais anteriormente descritos, movimentos sociais se
aproximam de questões de justiça no seio das sociedades contemporâneas. Elas
movimentam, performatizam o cultural. Estas identidades plurais se pautam mais
por reivindicações de reconhecimento cultural do que por reivindicações salariais
ou redistributivas. Vemos isso no exemplo da luta dos movimentos das mulheres
e de negros, por exemplo, em torno da igualdade salarial.

No interior da Teoria do Reconhecimento existem algumas divergências em


relação ao processo de reconhecimento. De um lado, por exemplo, podemos incluir
Taylor e Honneth. Do outro, Nancy Fraser, que está interessada no feminismo.
Além disso, existem debates intensos na forma como Honneth e Fraser percebem
os conflitos gerados pelas relações entre economia e cultura. Aqui, trataremos, por
questão de espaço, apenas destes dois. Fica o convite a pesquisar sobre a obra de
Charles Taylor.

Outra contribuição elementar na Teoria do Reconhecimento é do alemão


Axel Honneth. Para este autor:
[...] a diferença entre ‘conhecer’ (erkennen) e ‘reconhecer’ (anerkennen)
torna-se mais clara. Se por ‘conhecimento’ de uma pessoa entendemos
exprimir sua identificação enquanto indivíduo [...], por ‘reconhecimento’
entendemos um ato expressivo com o qual este conhecimento está
confirmado pelo sentido positivo de uma afirmação. Contrariamente ao
conhecimento, que é um ato cognitivo não público, o reconhecimento
depende de meios de comunicação que exprimem o fato de que outra
pessoa é considerada como detentora de um ‘valor’ social (HONNETH,
2004, p. 140 apud OLIVEIRA, 2005, p. 13).

70
TÓPICO 3 | IDENTIDADES NA CONTEMPORANEIDADE

Na discussão proposta pelo filósofo é dada condição especial à ideia de


‘injustiça’ para dar início à possibilidade de construir um movimento, uma luta
e uma moral de reconhecimento. Toda reação emocional negativa que vai de par
com a experiência de um desrespeito de pretensões de reconhecimento contém
novamente em si a possibilidade de que a injustiça infligida ao sujeito se lhe revele
em termos cognitivos e se torne o motivo da resistência política (HONNETH, 2003).

A partir da percepção da injustiça, pode-se iniciar uma luta de um grupo


politicamente organizado pelo reconhecimento de sua especificidade identitária.
Desta forma, a Teoria do Reconhecimento é uma teoria das lutas moralmente
motivadas de grupos sociais, sua tentativa de estabelecer institucional e
culturalmente formas ampliadas de reconhecimento recíproco, “aquilo por meio
do qual vem a se realizar a transformação normativamente gerida das sociedades”.
(HONNETH, 2003, p. 156).

Para Honneth (2003), interessa entender a dimensão da interação e o conflito


nas lutas por reconhecimento. Na luta contra a injustiça, os indivíduos percebem-
se como moralmente injustiçados. Para sintetizar (com riscos de simplificações),
a ideia central de Axel Honneth sobre as lutas por reconhecimento, vistas como
“gramática dos conflitos sociais” pode ser percebida como: desrespeito, luta por
reconhecimento e mudança social (HONNETH, 2003, p. 268).

DICAS

Sugerimos as leituras de:

• Luta por Reconhecimento – a gramática moral dos conflitos sociais, de Axel Honneth (2003).
• Reconhecimento sem ética? Artigo de Nancy Fraser (2007) publicado na Revista Lua Nova.

Honneth, como vimos, se interessa pelas lutas de reconhecimento.


Fraser, pela questão da justiça redistributiva.

Nancy Fraser (2002) percebe o modelo da identidade atualmente


muito discutido como profundamente problemático, produtor de reificações e
deslocamentos. Em razão do cenário global e econômico, ocorre um fenômeno
de “politização generalizada da política”, tendo como “centro de gravidade”
o reconhecimento da identidade e da diferença. Ao mesmo tempo, ocorre a
diminuição das reivindicações e lutas de classe. Assim, muitas políticas culturais
de reconhecimento de nossos dias encorajam o separatismo, o comunitarismo, a
intolerância, o patriarcalismo e autoritarismo.

Segundo Fraser, estas situações geram duas consequências: a) o


alargamento da contestação da política e um novo entendimento de justiça social
e; b) podem deslocar o foco das questões de redistribuição igualitária por políticas
71
UNIDADE 1 | PROBLEMATIZANDO AS IDENTIDADES

de identidade. Para romper com este dilema, Fraser propõe uma concepção
bidimensional de justiça, levando em consideração as preocupações tradicionais
da justiça distributiva e igualmente abarcar as preocupações recentes salientadas
pelas filosofias do reconhecimento (FRASER, 2002).

O que Nancy Fraser (2002) quer dizer com reificação de identidades?


Seria aquela visão que se aproxima da identidade essencialista, como já vimos
anteriormente. Essa visão procura fechar-se numa unidade, limitando o diálogo
com outras culturas a partir de seus critérios. Mas, e as questões de justiça e de
status? Quer dizer, de cidadania? Porque, em geral, as desvalorizações identitárias
estariam subordinadas a relações sociais transmitidas através de padrões
institucionalizados de valor cultural: na forma de leis, de instituições sociais, de
hierarquia de valores.

Pensando na contribuição de Fraser, as lutas por reconhecimento nos


dias de hoje, com as graves desigualdades sociais e econômicas, o desemprego
e fenômenos sociais como a violência, atingem de maneiras distintas os grupos
sociais e culturais. Ao bater constantemente na ideia da identidade e das diferenças,
essas desigualdades acabam por ser menosprezadas, levando ao problema do
falso reconhecimento. Neste sentido, a falta de reconhecimento estaria reduzida
na depreciação de tal identidade pelo grupo dominante e no consequente dano
infligido ao sentido do eu dos membros do grupo.

FIGURA 25 – RECONHECER-SE A SI E AO OUTRO: QUESTÃO DE JUSTIÇA E REDISTRIBUIÇÃO

FONTE: Disponível em: <https://missaoposmoderna.files.wordpress.com/2013/04/mascaras-


1024x664.jpg>. Acesso em: 14 jun. 2017.

72
TÓPICO 3 | IDENTIDADES NA CONTEMPORANEIDADE

Assim, como finalizar esta discussão, articulando a Teoria do


Reconhecimento e as lutas identitárias dentro do olhar das Ciências Sociais?

O não reconhecimento é uma herança transgeracional, particularmente,


das classes populares e dos segmentos marginalizados moralmente.
A invisibilidade subjetiva e social é o verdadeiro estigma humano que
deflagra as lutas sociais. Intervir nesse vácuo pode significar uma revolução
silenciosa com desfecho expressivo (FUHRMANN, 2013, p. 92).

E a investigação sobre as origens do não reconhecimento pode ser um


empreendimento de pesquisadores da Antropologia, da Sociologia, da Filosofia,
da História, da Psicologia.

3.3 A CENTRALIDADE DA CULTURA


Dissemos anteriormente que entre os séculos XVIII e XIX, a Cultura foi
instrumento ideológico na expansão de fronteiras políticas e econômicas. Naquelas
épocas, junto com a cultura chegava o “Progresso” na perspectiva europeia,
em que a civilização e um tipo específico de modo de produção, o capitalismo
ainda nascente, em que o Estado e o mercado foram os agentes considerados
organizadores da sociedade, passaram a ocupar espaços além da Europa.

No século XX e XXI a discussão cultural tomou outro rumo. Desde


as contribuições dos estudos culturais e das reflexões sobre identidade, pós-
colonialismo, imigração, hibridização cultural, o papel da cultura nas sociedades
foi alçado a central. Por isso, aqui discutimos essa centralidade da cultura em
nossos dias.

Para as Ciências Sociais, a cultura sempre foi um objeto presente na


sua discussão. Vivemos hoje a expansão do cultural e sua centralidade na vida
contemporânea em todos os aspectos da vida social. Toda ação social é “cultural”,
que todas as práticas sociais expressam ou comunicam um significado e, neste
sentido, são práticas de significação. Estes sistemas ou códigos de significado
dão sentido às nossas ações humanas, que, como lembra Weber, são sempre
significativas. Eles nos permitem interpretar significativamente as ações alheias
(HALL, 1997).

Todavia, o autor percebe mudanças em duas dimensões da relação entre


cultura e Ciências Sociais, uma de caráter substantivo, outro epistemológico. O
primeiro refere-se à centralidade da cultura nos discursos políticos e sociais, nas
buscas por desenvolvimento etc. O outro, resultado dessas utilizações culturais, é
a revisão de antigas noções culturais de viés evolucionista, funcionalista, marxista
ou estruturalista.

O que significa que a cultura está sendo percebida teórica e


metodologicamente de outras maneiras? Epistemologicamente sob crítica? Bem,
por muito tempo, cultura e civilização se confundiam. E civilização carrega o peso
73
UNIDADE 1 | PROBLEMATIZANDO AS IDENTIDADES

da sua época evolucionista e determinista. Se existem civilizados, também existem


os incivilizados, selvagens, como eram conhecidos todos os grupos e organizações
sociais e políticas não europeias entre os séculos XIX e início do XX.

FIGURA 26 – IMAGEM TÍPICA PARA INDICAR ASPECTOS DA SOCIEDADE BRASILEIRA

FONTE: Disponível em: <http://escolakids.uol.com.br/public/images/legenda/fd16743578a981b742


c132c4938a82e1.jpg>. Acesso em: 14 jun. 2017.

Ao invés de a Sociologia e Antropologia se perderem em modelos


normativos e descritivos de cultura, tidos como científicos, existe uma abertura
maior a descrições e interpretações. Tais novas estratégias problematizam com
maior ênfase a identidade e a cultura dos pesquisadores e os grupos, pessoas,
sociedades pesquisadas. A relação fica mais complexa.

Vejamos o exemplo do pós-colonialismo. Nossas bases mentais resultam


de nosso encontro e confronto com os europeus e suas conquistas territoriais que
iniciam em 1492 com a “Descoberta” da América, indo até o presente. Várias foram
as colônias europeias. E no século XX iniciou um movimento em vários continentes
em torno da independência dessas colônias. Do resultado cultural, intelectual e
político dessa “descolonização”, surgem os Estudos Pós-coloniais.

[...] o intento de descolonizar a História para projetar uma “verdadeira”


História da África segue sendo, aparentemente, um objetivo desta
geração de historiadores africanos. Este também era um desejo confesso
de muitos intelectuais estrangeiros que se dedicaram ao tema a partir
da década de 1960. Os movimentos de independência, neste sentido,
foram, sem dúvida, os motivadores para a ampliação e difusão dos
estudos africanos em todo o mundo (BARBOSA, 2008, p. 54).

74
TÓPICO 3 | IDENTIDADES NA CONTEMPORANEIDADE

O que queremos dizer é que nossas bases mentais têm preconceitos


tipicamente europeus. Podemos citar aqui o próprio Kant, filósofo que “inaugurou”
a filosofia moderna:

Os negros da África não possuem, por natureza, nenhum sentimento


que se eleve acima do ridículo. O senhor Hume desafia qualquer um
a citar um único exemplo em que um negro tenha mostrado talentos,
e afirma: dentre os milhões de pretos que foram deportados de seus
países, não obstante muitos deles terem sido postos em liberdade, não
se encontrou um único sequer que apresentasse algo grandioso na
arte ou na ciência, ou em qualquer outra aptidão; já entre os brancos,
constantemente arrojam-se aqueles que, saídos da plebe mais baixa,
adquirem no mundo certo prestígio, por força de dons excelentes. Tão
essencial é a diferença entre essas duas raças humanas, que parece ser
tão grande em relação às capacidades mentais quanto à diferença de
cores (KANT, 1993, p. 75-76).

Para Muryatan Santana Barbosa, no eurocentrismo pode ser observado


um etnocentrismo singular, entendido como uma ideologia, paradigma e/ou
discurso ou, ainda, como um paradigma qualitativamente diferente de outras
formas históricas (2008). Desta forma, os povos não europeus eram percebidos
crianças a serem educadas pelas luzes da Razão, apontando para “a crença na
excepcionalidade europeia” (p. 48). A grande problemática reside:

Apesar do que foi até aqui dito, seria um erro supor que, por serem
eivadas de eurocentrismo, a filosofia e a teoria social europeia dos
séculos XVIII e XIX em nada teriam contribuído para o desvelamento
de realidades históricas não europeias. Em verdade, pouco se escreveu
e analisou, até o início do século XX, acerca da história de outros povos
e civilizações. Há, entretanto, uma questão importante. O fato é que, ao
se expressarem como universalistas sendo, em verdade, provincialistas,
os europeus ajudaram a criar o instrumental teórico pelo qual os demais
povos poderiam, tendencialmente, ressignificar a imagem que aqueles
faziam de si (BARBOSA, 2008, p. 49)

Todavia, Barbosa (2008) indica que é muito difícil diminuir o eurocentrismo


a zero. Devido às próprias dinâmicas de um mundo que foi construído pelos
europeus. Para essa mudança, o autor indica a necessidade de se aliar disposição
científica e política.

Também podemos apontar para um efeito atual que pode ser percebido e
que exerce força para a elasticidade do termo “cultura”. O assunto é tratado por
George Yudice na obra “A Conveniência da Cultura” (2006). A tese é que diante dos
atuais problemas sociais, ambientais, culturais, políticos e econômicos, a cultura se
tornou um recurso conveniente. Veja:

[...] o conteúdo da cultura foi perdendo importância com a crescente


conveniência da diferença como garantia de legitimidade. Pode-se dizer
que as compreensões anteriores – os cânones de excelência artística; os
padrões simbólicos que dão coerência e conferem valor humano a um
grupo de pessoas ou sociedade, ou a cultura como disciplina – cedem
lugar à conveniência da cultura (YÚDICE, 2004, p. 454).

75
UNIDADE 1 | PROBLEMATIZANDO AS IDENTIDADES

A questão é que no cenário internacional, a cultura se tornou um recurso


econômico muito importante desde pequenos grupos a grandes conglomerados de
multinacionais. É objeto de acordos de livre comércio, de legislação de propriedade
intelectual. Basta pensar na imensa riqueza econômica – para não falar de outras
questões - em torno dos filmes produzidos anualmente nos EUA. São centenas de
bilhões de dólares.

Da mesma forma, movimentos sociais, organizações da sociedade e outras


formas associativas têm utilizado a cultura para estimular novos padrões de
desenvolvimento locais, para vender produtos artesanais, para embalar lutas por
reconhecimento, e assim por diante.

Neste sentido, a Cultura aparece como elemento constitutivo dos


muitos processos sociais contemporâneos. Não foi à toa que na década de 1960
cultura relacionou-se com outros fenômenos típicos da época, como a ascensão
de reivindicações de corte identitário no impulso dos movimentos sociais de
gênero, ecológicos, pacifistas, muitas delas referindo-se a si próprias como
minorias culturais. Vale lembrar que os Estudos Culturais não representam um
esforço solitário de compreender as lógicas culturais. Se antes a Cultura era uma
dimensão habitada por autoridades políticas, intelectuais, militares e eclesiásticas
ou, então, por artistas e seus satélites, atualmente, a situação transformou-
se significativamente, potencializada pela contemporaneidade marcada pela
“reflexividade” e pelo “risco” (GIDDENS, 1991).

Já as explicações culturais que se baseiam tão somente em determinismos


biológicos ou geográficos mostram-se parciais ou superados. A cultura passou a ser,
de maneira geral, como construção histórica apreendida socialmente, carregando
hierarquias, significados, relações de poder, convenções, mentefatos e artefatos
que tornam inteligível a vida em grupo, sendo mutável, plural e carregada de
relações de poder. É construída e reconstruída socialmente, através das relações
sociais, sendo que sua transformação corresponde a um movimento complexo
entre interior e exterior de um grupo, território ou sociedade.

Essas visões rompem com a postura intelectual dos primórdios da


Modernidade, embebedada de crença no positivismo e no evolucionismo, em que
o padrão europeu e o nascente capitalismo e urbanização representariam o topo
da evolução civilizacional. Neste sentido, o trajeto político trilhado pela categoria
“cultura” vai da imposição de um modelo etnocêntrico de sociedade, de caráter
descritivo, até o presente, em que Cultura é Política, porque, acima de tudo, é
“Práxis”.  

76
TÓPICO 3 | IDENTIDADES NA CONTEMPORANEIDADE

LEITURA COMPLEMENTAR

O AVANÇO DA EXTREMA DIREITA NA EUROPA

Marcello Musto
Jornal da UNICAMP

O sexto maior país da União Europeia em número de habitantes fez uma


guinada à direita.  Depois de ter se afirmado nas presidenciais de maio, o partido
populista Lei e Justiça venceu as eleições polonesas, obtendo não apenas 39% dos
votos, mas a maioria absoluta no Parlamento.

Diferentemente dos recorrentes apelos ao nacionalismo e à palavra de


ordem “primeiro aos poloneses”, as reivindicações do  Lei e Justiça  no campo da
economia se concentraram na promessa de aumentar os gastos sociais, melhorar
os salários e reduzir a idade para a aposentadoria. Um programa de esquerda, em
um país onde a esquerda defendeu o neoliberalismo e ocupa, atualmente, uma
posição absolutamente marginal – situação que se repete em outros lugares do
continente.

Nos últimos vinte anos, o poder de decisão na Europa transitou em grande


parte da esfera política àquela econômica. A economia se tornou um âmbito
separado e intocável, que faz escolhas decisivas, porém fora do alcance do controle
democrático.

A uniformidade na essência das decisões tomadas pelos governos de


muitas nações e, em geral, a crescente hostilidade de grande parte da opinião
pública em relação à tecnocracia de Bruxelas, contribuíram para provocar uma
grande mudança no cenário europeu.

O VENTO POPULISTA

Os bipartidarismos instituídos, como aqueles espanhol e grego, implodiram.


O mesmo rumo parece tomar a bipolaridade dos casos italiano e francês, da qual
havia derivado uma nítida divisão de votos entre posicionamentos de centro-
direita e de centro-esquerda.

O panorama político europeu foi modificado – sem considerar a alternativa


ao neoliberalismo proposta por Syriza e Podemos, que merece uma reflexão à parte
– pelo acentuado crescimento dos índices de abstenção, o surgimento de partidos
populistas e o notável avanço das forças de extrema direita.

O primeiro fenômeno se manifestou no momento das eleições legislativas


de quase todos os Estados europeus.

O segundo, por sua vez, nasceu com a onda antieuropeísta. Nos últimos
anos, surgiram novos movimentos políticos declarados “pós-ideológicos”, que se

77
UNIDADE 1 | PROBLEMATIZANDO AS IDENTIDADES

guiaram pela denúncia genérica contra a corrupção do sistema ou o euroceticismo.


Em 2006, com base nesses princípios, o Partido Pirata foi fundado na Suécia e na
Alemanha; em 2009, o  Movimento 5 Estrelas  se tornou a primeira força política
na Itália, com 25,5% dos votos. Em 2013, nasceu em Berlim o  Alternativa para a
Alemanha. Em 2014 foi a vez do O Rio (TP) na Grécia e do crescimento em escala
nacional do Ciudadanos (C’s), movimento fundado na Catalunha em 2006.

No mesmo período, organizações partidárias já há tempos existentes se


afirmaram com propostas políticas parecidas. O caso mais ilustrativo é o do Partido
pela Independência do Reino Unido (UKIP), que com 26,6% dos votos se tornou a
primeira força nas últimas eleições europeias, acima do Manica.

A “NOVA” FACE DA DIREITA

O terceiro fenômeno aparece quando os efeitos da crise econômica


começaram a ser sentidos de forma mais intensa, momento em que os partidos
xenófobos, nacionalistas e neofascistas viram crescer enormemente seus votos. 

Em alguns casos, mudaram seu discurso político, substituindo a clássica


divisão entre a direita e a esquerda pelo conflito “entre os de cima e os de baixo”.
Nessa nova polarização, esses partidos se candidataram como representantes da
última parcela, o povo, contra o establishment, ou seja, as forças que se alternaram
no governo favorecendo o superpoder do mercado.

O aparato ideológico desses movimentos políticos mudou. O componente


racista foi, em muitos casos, colocado em segundo plano em relação às temáticas
econômicas. A oposição às políticas imigratórias – já cegas e restritivas – aplicadas
na União Europeia se reforçou, recorrendo antes à guerra entre os pobres que
à discriminação baseada na cor da pele ou na fé religiosa. Em um contexto de
desemprego de massa e de grave conflito social, a xenofobia inflou por meio da
propaganda que apresentava os imigrantes como os principais responsáveis pelos
problemas relativos ao emprego e aos serviços sociais.

Essa mudança de rota certamente influenciou no resultado da  Frente


Nacional na França, que alcançou 25,2% dos votos nas eleições municipais de 2015.
Na Europa, o partido de Marine Le Pen fez alianças com outras forças políticas
consolidadas que pedem, há tempos, a saída do euro, a revisão dos tratados sobre
imigração e a retomada da soberania nacional. Entre elas, as mais representativas
são a Liga Norte na Itália, cujos resultados eleitorais melhoraram, a ponto de ela se
tornar a primeira força de centro-direita nas eleições municipais de 2015; o Partido
da Liberdade  austríaco, que conseguiu 20,5% dos votos nas eleições nacionais de
2013 e mais de 30% nas eleições municipais de Viena em 2015; e o  Partido para
Liberdade holandês, que obteve 13,3% nas eleições europeias.

Pela primeira vez depois da Segunda Guerra Mundial, as forças de extrema


direita alcançaram resultados expressivos em outras regiões da Europa.

Na Suíça, as eleições recentes, de outubro de 2015, foram decididas com


29,4% dos votos para o Partido do Povo Suíço, organização da ultradireita xenófoba
78
TÓPICO 3 | IDENTIDADES NA CONTEMPORANEIDADE

e promotora do referendo, aprovado em 2009, para proibir a construção de novas


torres de mesquitas.

Também na Escandinávia, a extrema direita representa uma realidade bem


consolidada. Na pátria por excelência do “modelo nórdico”, o Democratas Suecos,
fundado em 1988 pela fusão de diversos grupos neonazistas, foi o terceiro partido
mais votado nas eleições legislativas de 2014, com 12,8% dos votos.

Na Dinamarca e na Finlândia, dois partidos criados em 1995 alcançaram


resultados ainda mais surpreendentes, transformando-se na segunda força política
desses países. O Partido Popular Dinamarquês foi o movimento político mais votado
nas últimas eleições europeias, com 26,6%. Esse sucesso foi confirmado nas eleições
legislativas de 2015, que na sequência lhe proporcionaram a maioria no governo.
Depois das eleições de 2015, às cadeiras do governo de Helsinki ascenderam
também os Verdadeiros Finlandeses, com 17,6% dos votos.

Por fim, na Noruega, com 16,3% dos votos, o Partido do Progresso chegou pela
primeira vez ao governo com posicionamentos políticos igualmente reacionários.

A destacada e quase uniforme afirmação desses partidos numa região onde


as organizações do movimento operário exercitaram uma indiscutível hegemonia
por longos anos foi possível também porque os partidos de extrema direita se
apropriaram de batalhas e temáticas que no passado eram caras à esquerda, tanto
a socialdemocrata, quanto a comunista.

A ascensão da direita adveio não somente fazendo apelo às clássicas


campanhas reacionárias, mas também àquelas contra a globalização, a chegada
de novos refugiados ou solicitantes de refúgio e o espectro da “islamização” da
sociedade. Na base de seu sucesso esteve, sobretudo, a reivindicação de políticas
tradicionalmente de esquerda, a favor do Estado Social. Trata-se, entretanto, de
um novo tipo de welfare. Não mais universal, inclusivo e solidário, como aquele
do passado, mas fundado em um princípio diferente: o acesso a direitos e serviços
exclusivamente aos membros da preexistente comunidade nacional.

Ao amplo apoio das zonas rurais e de província, despovoadas e com taxa de


desemprego recorde, a extrema direita escandinava reuniu, assim, aquele da classe
operária que, em grande parte, cedeu à chantagem da “imigração ou Estado Social”.

PERIGO NO LESTE

Até mesmo em diversos países do Leste europeu, a extrema direita


conseguiu se reorganizar depois do fim dos regimes pró-soviéticos. A  União
Nacional Ataque na Bulgária, o Partido Eslovaco Nacional e o Partido Grande Romênia são
algumas das forças políticas que conseguiram bons resultados eleitorais e presença
no Parlamento.

Nessa área da Europa, o caso mais alarmante é o da Hungria. Em


seguida à introdução de severas medidas de austeridade aplicadas pelo  Partido
79
UNIDADE 1 | PROBLEMATIZANDO AS IDENTIDADES

Socialista  húngaro, em acordo com as intimações da Troika, e à grave crise


inflacionária derivada, subiu ao poder o  Partido Fidesz. Além das medidas para
purificar a magistratura e estabelecer o controle da grande mídia, em 2012, o governo
húngaro introduziu uma nova Constituição com viés fortemente autoritário.

Para compor essa realidade já ameaçadora, desde 2010, o  Movimento por


uma Hungria Melhor (Jobbik) se tornou o terceiro partido do país (com 20,5% dos
votos nas eleições de 2014). Mas, diferentemente das forças presentes na Europa
ocidental e escandinava, Jobbik representa o clássico exemplo – hoje dominante no
Leste – de formações de extrema direita que continuam a se valer do ódio contra as
minorias (em particular aquela cigana), o antissemitismo e o anticomunismo como
principais instrumentos de propaganda e de ação.

Enfim, completam esse panorama as várias organizações neonazistas


espalhadas em diversas áreas da Europa. Um exemplo é o  Aurora Dourada, que
com 9,4% nas eleições europeias de 2014 e 7% nas eleições de setembro de 2015
afirmou-se, em ambos os casos, como a terceira força política da Grécia.

Nesses anos, portanto, os partidos de extrema direita nitidamente ampliaram


seu apoio em quase todas as partes da Europa. Muitas vezes, conseguiram
hegemonizar o debate político e, em alguns casos, a entrar no governo.

A crescente expansão da União Europeia deslocou à direita o centro de


gravidade político do continente, como testemunharam as rígidas posições
extremistas assumidas pelos governos da Europa oriental durante a recente crise
na Grécia e diante da chegada de povos em fuga dos palcos de guerra.

Trata-se de uma epidemia muito preocupante, para a qual é impossível


pensar em uma resposta sem combater o vírus que a gerou: o mantra neoliberal
hoje ainda tão em voga em Bruxelas.
FONTE: Disponível em: <http://www.unicamp.br/unicamp/sites/default/files/jornal/paginas/ju_646_
paginacor_11_web.pdf>. Acesso em: 7 jul. 2017.

80
RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico, você aprendeu que:

• Que em nossa época pós-moderna ou de alta modernidade as concepções sobre


identidade são percebidas de modo mais plural.

• Identidade e diferença passam a ser percebidas como relacionais. Elas são


concebidas como atos de criação linguística reproduzidos por meio de sistemas
simbólicos. As identidades adquirem sentido por meio de linguagem e dos
sistemas simbólicos pelos quais elas são representadas.

• Que em razão dessa complexidade existe uma forte crítica de cunho


epistemológico sobre as bases que assentam identidades essenciais. Daí a
importância dos Estudos Culturais, do impacto da globalização na análise clássica
das Ciências Sociais, a centralidade da Cultura e a Teoria do Reconhecimento.

• A Teoria do Reconhecimento preocupa-se com as questões culturais. Porém,


articula esse debate a questões de injustiça e de justiça redistributiva. Quer dizer,
os fenômenos como cultura, identidade, racismo etc. têm impactos materiais.

• A globalização (ou as globalizações) tem trazido novas formas de encarar o


indivíduo dentre o global e nacional. Novas identidades locais, regionais,
híbridas têm sido trazidas ao debate.

81
AUTOATIVIDADE

1 Qual a importância da Teoria do Reconhecimento para as


lutas de gênero e étnicas?

2 Sintetize a ideia de Boaventura de Sousa Santos sobre


“globalizações”.

3 Segundo Anthony Giddens e Zygmunt Bauman, quais as


características das identidades na nossa época?

4 Na questão da produção social da identidade, explique o


papel da diferença.

5 O que é uma identidade híbrida para Nestor Garcia Canclini


e para Stuart Hall?

82
UNIDADE 2

TEORIAS DA ETNICIDADE,
RELAÇÕES DE GÊNERO E O DEBATE
MULTICULTURAL

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
Esta unidade tem por objetivos:

• possibilitar a compreensão do desenvolvimento do conceito de etnicidade


e sua relação com as ciências sociais;

• demonstrar as diferenças e similaridade entre os conceitos de raça, nação,


etnia, assim como os empréstimos e contribuições entre eles;

• possibilitar a compreensão do conceito de etnia por meio dos pensamento


de Fredrich Barth, quando discute identidade, grupos e fronteiras étnicas;

• demonstrar a importância da etnia como conceito analítico para compre-


ender as realidades sociais na modernidade;

• refletir sobre as diásporas e deslocamentos na atualidade e os impactos


advindos da mobilidade na modernidade.

PLANO DE ESTUDOS
Esta unidade está dividida em três tópicos. Você encontrará atividades que
visam à compreensão dos conteúdos apresentados no final de cada tópico.

TÓPICO 1 – CONTEXTO HISTÓRICO DO CONCEITO DE ETNICIDADE E


SUA RELAÇÃO COM AS CIÊNCIAS SOCIAIS

TÓPICO 2 – RAÇA, NAÇÃO, ETNIA, IDENTIDADE ÉTNICA, GRUPOS


ÉTNICOS E SUAS FRONTEIRAS

TÓPICO 3 – GÊNERO E MULTICULTURALISMO - CONCEITOS IMPOR-


TANTES PARA O COMBATE ÀS DESIGUALDES SOCIAIS
ONTEM E HOJE

83
84
UNIDADE 2
TÓPICO 1

CONTEXTO HISTÓRICO DO CONCEITO DE ETNICIDADE E


SUA RELAÇÃO COM AS CIÊNCIAS SOCIAIS

1 INTRODUÇÃO
Caros acadêmicos, nesta unidade de estudos vamos tratar de temas acerca
de questões pouco comuns na sua trajetória acadêmica, mas que estão muito
presentes nas Ciências Humanas, especialmente nas Ciências Sociais. São as
chamadas Teorias Sociais sobre as relações étnico-raciais.

Essas teorias sociais servem para mostrar como os problemas que ocorrem
em nossas sociedades são decorrentes destas relações e como é importante e
necessário construir uma educação multicultural e uma pedagogia antirracista e
plural com base nessas teorias sociais.

FIGURA 27 - DIVERSIDADE NA ESCOLA

FONTE: Disponível em: <https://sites.google.com/site/geografiadiversidadecultural/conclusao>.


Acesso em: 20 mar. 2017.

Todos nós já ouvimos falar do antissemitismo, que na Segunda Guerra


Mundial justificou o genocídio de milhares de judeus e ciganos. Também já ouvimos
falar sobre o regime de segregação racial (Apartheid) por tanto tempo combatido
por Nelson Mandela na África do Sul. Já ouvimos falar sobre o racismo nos Estados
85
UNIDADE 2 | TEORIAS DA ETNICIDADE, RELAÇÕES DE GÊNERO E O DEBATE MULTICULTURAL

Unidos, especialmente no sul do país e seus tão importantes movimentos sociais


de resistência. Também a maioria de nós já ouviu falar sobre a xenofobia ou sobre
o racismo emergente nos países europeus, em relação aos imigrantes africanos,
árabes e outros. Já ouvimos falar sobre os Skinheads, um movimento de jovens de
origem operária, muito ligado ao neonazismo, além de outras tantas situações de
preconceito e discriminação. Tudo isso é bastante conhecido, e, apesar de serem
atitudes condenáveis, do ponto de vista dos direitos humanos, foram e ainda são,
em muitos países, consideradas aceitáveis. Essas atitudes são reproduzidas pela
educação, na maioria das vezes repassadas pela escola e pelas próprias famílias,
de geração em geração.

Vocês devem estar se perguntando: afinal de contas, onde estão as


explicações para estes absurdos? Onde começam e por que ainda hoje continuam a
ocorrer, mesmo contrariando os princípios de solidariedade humana?

Evidentemente que não há soluções fáceis, nem receitas de combate que


deem conta das desigualdades e dos preconceitos, pois tratam-se de fenômenos
dinâmicos e complexos no tempo e no espaço.

O que se pode afirmar é que o ponto de partida para os preconceitos e


discriminações sociais parece estar quase sempre ligado à noção de DIFERENÇA.
E que diferenças seriam estas?

As diferenças entre nós e os outros, entre os membros do nosso grupo e


os membros dos outros grupos, entre homens e mulheres, entre heterossexuais
e homossexuais, entre brancos e negros, entre pobres e ricos, entre esta e aquela
etnia, entre esta e aquela religião.

Tomando como exemplo as comunidades religiosas, vamos verificar que


os membros de cada uma delas pensam que sua religião é a melhor e a única
verdadeira. Há inúmeros exemplos, na sociedade, de conflitos que nasceram por
conta de diferenças religiosas. A história da humanidade está repleta de guerras
religiosas, como as cruzadas cristãs, as inquisições, as guerras santas muçulmanas,
os conflitos entre protestantes e católicos na Irlanda do Norte, conflitos entre
muçulmanos e católicos na Nigéria, conflito entre o ortodoxo católico e muçulmano
em alguns países do Leste Europeu, como Kosovo. A partir também de uma questão
religiosa se pode perceber que um país como a Índia organiza sua sociedade
de forma hierarquizada, em castas superiores e inferiores e que também geram
problemas de discriminação e de desigualdade.

Mesmo em sociedades indígenas ou tribos africanas se pode observar


diferenças e discriminações étnicas permeadas por relações de hierarquia. Ao
olharmos para todas as nações do mundo, poderemos perceber que existem nações
que se acham superiores às outras, nascendo daí o preconceito de nacionalidade
que pode gerar ideologias como o nacionalismo e o fascismo.

Caros acadêmicos, vejam vocês que cada forma de preconceito que citamos
aqui pode levar a um tipo de discriminação. Pode ser religiosa, racial, de sexo, de
idade, de etnia, de cultura, de nacionalidade, entre outras. Por isso dizemos que o
preconceito e a discriminação ocorrem sempre com base na diferença.
86
TÓPICO 1 | CONTEXTO HISTÓRICO DO CONCEITO DE ETNICIDADE E SUA RELAÇÃO COM AS CIÊNCIAS SOCIAIS

Por este motivo, nesta unidade de estudos vamos tratar de alguns


temas considerados essenciais para compreender a questão das diferenças, das
desigualdades sociais com foco nas relações interétnicas.

2 DISCUTINDO A HISTORICIDADE DO TERMO ETNIA E SUA


RELAÇÃO COM AS CIÊNCIAS SOCIAIS
Tradicionalmente, as ciências sociais têm evitado discutir amplamente
a constituição dos grupos étnicos e a natureza de suas fronteiras, isso porque,
especialmente no pensamento antropológico, consolidou-se uma perspectiva que
considera que os grupos humanos compartilham uma cultura comum e que a
variação cultural só seria possível na troca entre culturas distintas e não no interior
de uma mesma cultura. Pensava-se que cada cultura se desenvolvia isoladamente
e que, portanto, tratava-se de simplesmente observá-la e compará-la a outras,
sem observar as diferenças em sua própria constituição. O termo etnia, como um
conceito analítico para a compreensão dos agrupamentos humanos e para a noção
de pertencimento, só começa a ser utilizado na década de 1960. Essa expressão
aparece como uma forma cada vez mais comum de pensar a diferença, a partir
de estudos sobre imigração, racismo, violência urbana e outros, decorrentes dos
movimentos sociais do período.

FIGURA 28 - MOVIMENTOS SOCIAIS DA DÉCADA DE 1960

FONTE: Disponível em: <http://desinteracao.tumblr.com/post/25132636707/contracultura-novos-


ideais-nova-sociedade>. Acesso em: 20 jun. 2017.

87
UNIDADE 2 | TEORIAS DA ETNICIDADE, RELAÇÕES DE GÊNERO E O DEBATE MULTICULTURAL

Antes disso, na década de 1940, na Inglaterra, França e EUA, por exemplo,


nas primeiras acepções, o termo etnicidade designava simplesmente a pertença
a um outro grupo que não os anglo-americanos (grupo branco predominante), e
era utilizado como uma variável independente entre outros, como raça e religião.
Era compreendido como um dos elementos a contribuir para o entendimento do
comportamento dos indivíduos em sociedade.

Pode-se dizer que essa maneira de perceber a etnia foi uma postura
etnocêntrica, na medida em que determinava o grupo étnico como o diferente em
relação àqueles que de fato, conforme destacam Poutignat e Streiff-Fenart (2011),
tinham o “poder de nomear”.

Lévi-Strauss, um dos mais importantes antropólogos conhecidos, na década


de 1970 acabou admitindo que a antropologia, em suas primeiras tentativas de
interpretar as sociedades humanas, confundiu a noção essencialmente biológica
da raça com as características étnicas e culturais dos povos, o que ele chamou
de “pecado original da antropologia”. Para ele, esta confusão conceitual seria
responsável pela “legitimação involuntária de todas as tentativas de discriminação
e exploração” (SANSONE; FURTADO, 2014).

NOTA

“Etnocentrismo é uma visão do mundo onde o nosso próprio grupo é tomado


como centro de tudo e todos os outros são pensados e sentidos através de nossos valores,
nossos modelos, nossas definições do que é a existência. No plano intelectual, pode ser
visto como a dificuldade de pensarmos a diferença; no plano afetivo, como sentimentos de
estranheza, medo, hostilidade etc.” (ROCHA, 1994, p. 7).

De acordo com Poutignat e Streiff-Fenart (2011), o autor a introduzir o


conceito de etnia foi o francês Vacher de Lapouge, ainda em meados do século
XIX. Ele tentava diferenciar o sentido de raça – que ele identifica como a reunião
de características morfológicas de um determinado grupo humano, como cor de
pele, altura etc. – das características psicológicas presentes nos grupos, como a
cultura, a língua, a intelectualidade e as relações sociais. Para ele, a composição
das características psicológicas ocorre por fatores, inclusive opostos aos que levam
um grupo a se organizar com base na raça. O agrupamento com base psicológica
não leva em conta fatores raciais, mas sim acontecimentos históricos, políticos, ou
costumes comuns.

88
TÓPICO 1 | CONTEXTO HISTÓRICO DO CONCEITO DE ETNICIDADE E SUA RELAÇÃO COM AS CIÊNCIAS SOCIAIS

FIGURA 29 - GEORGES VACHER DE LAPOUGE (1854-1936)

FONTE: Disponível em: <https://www.contreculture.org/AT_Vacherd


eLapouge.html>. Acesso em: 16 abr. 2017.

Lapouge afirma ainda que não se pode confundir etnia com a ideia
de nação, visto que a solidariedade desses grupos, muitas vezes, se mantém
independentemente das fronteiras nacionais. Mesmo distantes, os grupos étnicos
mantêm sua afinidade. Para dar conta da solidariedade de um grupo particular,
diferentemente daquela produzida na ideia de nação e de raça, é que incialmente
o termo foi inserido nas ciências sociais por Lapouge (POUTIGNAT; STREIFF-
FENART, 2011).

A partir de 1950, alguns estudiosos norte-americanos vão romper com o


conceito antigo de etnicidade, quando começam a observar os diferentes grupos
sociais. Eles passam a falar de determinados grupos como ethnics, ao passo que
outros não o seriam. Definem etnia com base no seguinte entendimento:

Se numa dada comunidade, “n” representa o número de grupos,


segundo a antiga definição, ao passo que “n-1” representa o número
de grupos segundo a nova definição, um dentre eles não é étnico, ou
seja, o grupo étnico originário da comunidade. E existem pessoas que
são étnicas, a saber, aqueles que diferem dele e que, por isso, não são
considerados como membros integrais da sociedade local (HUGHES,
1952, p. 137 apud POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 2011, p. 23).

Dito de outra forma, em uma sociedade em que há mistura de diferentes


culturas, seriam étnicos todos aqueles que não pertencessem originalmente ao
território. Por outro lado, os pertencentes ao território (os nativos) seriam não
étnicos.

Por exemplo, se pudéssemos nos transportar para o momento das primeiras


expedições portuguesas e espanholas nas Américas, poderíamos classificar os
espanhóis e os portugueses como étnicos e os indígenas nativos americanos como
não étnicos (HUGHES, 1952 apud POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 2011).
89
UNIDADE 2 | TEORIAS DA ETNICIDADE, RELAÇÕES DE GÊNERO E O DEBATE MULTICULTURAL

FIGURA 30 - ETNIA NOS ANOS 1950

FONTE: Disponível em: <https://blogdocastorp.blogspot.com.br/2015/06/oswald-


de-andrade-erro-de-portugues.html>. Acesso em: 16 abr. 2017.

Na década de 1950 essas pesquisas eram realizadas quase sempre com


base na resposta dos entrevistados sobre qual o país de origem de seus ancestrais.
Assim, pensava-se identificar por antecedência a etnia de um dado grupo social
com base apenas em suas origens estrangeiras. Não se consideravam as relações,
as transformações e os processos de aculturações estabelecidos no novo território.
Muito menos as miscigenações étnicas e culturais ocorridas em seu próprio
território de origem.

Somente mais tarde, por volta da década de 1960, surgem os primeiros


estudos que vão quebrar com a visão comum sobre as relações étnicas. De acordo
com Poutignat e Streiff-Fenart (2011), os pensamentos de Walerstein (1960) e
Gordon (1964) acabam produzindo estudos nos quais o termo etnicidade começa
a ser percebido não apenas como a designação de um pertencimento étnico, mas
também como os sentimentos associados a este pertencimento. O sentimento de
formar um povo, o sentimento de pertencer a um grupo com uma história comum.

Um exemplo que pode ilustrar esse pensamento é o caso dos afro-


americanos e suas associações urbanas, na década de 1960, nos EUA. Sua maneira
de expressar a religião, seus cantos e ritmos, o movimento pelos direitos humanos,
suas expressões culturais, seus valores e comportamentos. Essa composição cultural
estava estruturada sobre uma ideia de pertencimento a um grupo, mas também
aos sentimentos de dor, medos e alegrias, forjados sobre uma mesma história, a
história da escravidão, da opressão e do distanciamento de sua identidade africana.

Somente após a década de 1970 é que o termo etnicidade de fato vai impor-
se nas ciências sociais, com vários trabalhos, conferências, programas de pesquisa
e também a criação de revistas especializadas na área.

90
TÓPICO 1 | CONTEXTO HISTÓRICO DO CONCEITO DE ETNICIDADE E SUA RELAÇÃO COM AS CIÊNCIAS SOCIAIS

O fato de um campo de estudos, há pouco tempo tão insignificante para


as ciências sociais, ter adquirido status e relevância acadêmica estava diretamente
relacionado ao contexto histórico e social de lutas e conflitos, considerados então
“étnicos”, ou com “componentes étnicos” que emergiram em vários países, em
nações de terceiro mundo e em países considerados pluriculturais, logo após a II
Guerra Mundial.

Poutignat e Streiff-Fenart (2011) acreditam que a desestruturação do


colonialismo e as mudanças nas estruturas de autoridade nas sociedades ocidentais
provocaram um acirramento das disputas entre os grupos étnicos em vários países,
permitindo a luta por espaços de poder, produzindo situações de conflito, de
competição, de regionalismos, de luta por territórios, tribalismos na África e outros.

FIGURA 31 - GUERRA DE KOSOVO (1999)

FONTE: Disponível em: <http://32war.blogspot.com.br/>. Acesso em: 17 jul. 2017.

A Guerra do Kosovo começou no dia 24 de março de 1999, na


Iugoslávia, e acabou no dia 9 de junho do mesmo ano. Foram 79 dias de
intensos bombardeios. De um lado, a província, Kosovo, lutando pela
independência, e de outro, as forças sérvias, sob a liderança do presidente
iugoslavo, Slobodan Milosevic, que não aceitava perder a província. Kosovo
era uma província que tinha uma composição étnica e religiosa diferente da
maioria da Iugoslávia, que era sérvia. Os kosovares são de origem albanesa
e muçulmana, enquanto os sérvios são cristãos ortodoxos. Como 90% da
população de Kosovo é albanesa, iniciou-se um movimento gerado pelos
kosovares que buscava a separação de sérvios e albaneses, para que estes
últimos tivessem autonomia. Slobodan Milosevic enviou tropas para a região
com a ordem de aniquilar por completo a rebelião dos kosovares. Os ataques

91
UNIDADE 2 | TEORIAS DA ETNICIDADE, RELAÇÕES DE GÊNERO E O DEBATE MULTICULTURAL

aéreos mataram um grande número de civis inocentes. Diante dos ferozes


ataques comandados pelo presidente da Iugoslávia, a ONU enviou suas
tropas para os Balcãs a fim de colocar um ponto final nas ações militares.

FONTE: Disponível em: <http://www.ebc.com.br/noticias/internacional/2015/06/ha-16-anos-termina


va-guerra-do-kosovo>. Acesso em: 17 abr. 2017.

Por estes motivos é que a questão da etnicidade passa a fazer parte da


agenda de estudos dentro das universidades. Por que era necessário compreender
aquela realidade social tão específica dos grupos étnicos, que só foi possível
conhecer devido à emergência das lutas sociais e da mobilização desses grupos.
Foi precisamente por esses movimentos que o elemento étnico se torna objeto
de estudos relevante para as ciências sociais. Juntamente com o debate étnico,
o multiculturalismo enquanto movimento e campo de estudos também se
desenvolveu e se expandiu nesse momento, devido a demandas sociais emergentes.
Sobre o multiculturalismo, veremos mais adiante nesta unidade.

Procurando traçar um paralelo sobre a importância dos estudos étnicos e


multiculturais, vamos abrir um parêntese e lembrar um conceito muito importante
para as Ciências Sociais, que também emergiu devido a uma problemática
específica da sociedade industrial no século XVIII na Europa, que foi o de Classe
Social. Este conceito, desenvolvido por Karl Marx, foi fundamental para interpretar
a sociedade naquele momento.

Marx criou o conceito de classes para explicar as desigualdades sociais e


de que forma essas desigualdades poderiam ser enfrentadas. Para ele, havia duas
classes sociais distintas e antagônicas, tanto do ponto de vista econômico quanto
ideológico: os burgueses e os proletários. Os burgueses eram os donos do capital,
das indústrias, das terras e das máquinas, enquanto os proletários eram apenas
trabalhadores braçais das fábricas, assalariados e sem propriedades.

Na relação que se estabelecia entre esses dois grupos sociais, os proletários


eram considerados o elo mais fraco e com menor poder de barganha para negociar,
sendo constantemente explorados. Por isso, Marx entendia que só seria possível
quebrar a hegemonia dos burgueses em relação aos proletários por meio da luta
de classes.

Influenciados pelo pensamento marxista ou não, o fato é que os países


industrializados e em processo de industrialização na Europa do século XVIII
viveram diversas lutas sociais, especialmente por direitos trabalhistas, econômicos,
sociais e políticos.

Nesse sentido, o conceito de classe social foi e é ainda muito importante


para compreender a produção das diferenças, das desigualdades e das hierarquias
sociais. Para Marx, a realidade social é produzida com base nos interesses de classe
e não como um processo natural de disputa entre iguais.

92
TÓPICO 1 | CONTEXTO HISTÓRICO DO CONCEITO DE ETNICIDADE E SUA RELAÇÃO COM AS CIÊNCIAS SOCIAIS

FIGURA 32 - REPRESENTAÇÃO DE CLASSES SOCIAIS

FONTE: Disponível em: <https://pt.slideshare.net/Joao_Marcelo/classes-sociais


-47627316>. Acesso em: 12 abr. 2017.

Da mesma forma, o conceito de etnia no século XX entra em cena como


um elemento fundamental para compreender as transformações sociais agora em
curso no mundo contemporâneo. Percebe-se que apenas o conceito de classe social
não dá conta de explicar a produção das desigualdades sociais, surgindo assim o
conceito de etnia como instrumento de análise sobre a produção das diferenças.

Nesse sentido, a consciência de pertencer a um grupo, juntamente com


a concepção de direitos humanos que começava a se fundamentar, logo após as
lutas libertárias da década de 1960, impulsiona esses grupos a buscarem direitos
coletivos, a lutar por espaços, a demarcar territórios. Portanto, a categoria etnia
torna-se uma ferramenta sociológica e antropológica para compreender as ações
sociais em curso, especialmente nas décadas de 1960 e 1970.

Por este motivo, o conceito de etnia aparece como uma nova categoria social
igualmente importante para a análise do século XX, tanto quanto foi a categoria de
classe social para o século XIX.

Atualmente, o termo etnicidade tem estado presente em várias disciplinas


das Ciências Sociais, e tem sido discutido em vários países do mundo, incluindo os
países em desenvolvimento, os países em fase de pós-colonização, as sociedades
pós-industriais e outras.

De maneira geral, o termo tem sido definido de forma ampla, sendo


considerado como uma dimensão universal das relações humanas, e não como
características que o senso comum define como étnicas.

93
UNIDADE 2 | TEORIAS DA ETNICIDADE, RELAÇÕES DE GÊNERO E O DEBATE MULTICULTURAL

Essas diferenças não necessariamente estariam relacionadas a características


físicas, como a cor de pele, o formato dos olhos ou a cor do cabelo. Também
poderiam não estar relacionadas unicamente a traços culturais semelhantes, mas
possivelmente à reunião desses elementos, assim como a noção de pertencimento
a um grupo, ou subgrupos de uma mesma cultura. Vejamos a seguir um pouco
mais sobre o conceito de etnia.

2.1 CONCEITUANDO ETNIA E ETNICIDADE


Caros acadêmicos, já que estamos falando em etnia, consideramos
importante resgatar a história da palavra. O que vem a ser etnia e de onde surgiu
este termo?

Etnia tem origem na palavra grega ethos e seu significado está relacionado
aos hábitos e costumes de um determinado povo. Também está relacionada a
outra palavra grega, chamada etnhos, que significa raça, povo e cultura. De acordo
com Sansone e Alves (2014), o termo servia para definir aquelas populações que
não tinham acesso à pólis, e por isso não participavam do regime social, político e
moral da cidade-estado. O termo etnia, em sua fase inicial, carregava, portanto, um
sentido de exclusão social.

Com o passar do tempo, quando o termo etnia passa a ser considerado pelas
Ciências Sociais, especialmente pela antropologia no século XIX, ele adquire uma
dimensão inclusiva, passando a ter a função de classificar as diferentes sociedades
e grupos humanos, assim como o conceito de raça e nação. Vejamos a seguir como
este verbete é definido na perspectiva sociológica do termo.

A etnia define-se, geralmente, como uma população designada por um


nome (etnónimo), que se reclama de uma mesma origem, que possui uma
tradição cultural comum, especificado por uma consciência de pertença ao
mesmo grupo cuja unidade se apoia em geral numa língua, num território
e numa história idênticos. Contudo, cada um destes critérios deve ser
ponderado. O etnónimo pode ter sido um reagrupamento operado pelas
necessidades da administração colonial. O nome pelo qual um grupo
se designa valorizando-se pode diferir daquele pelo qual os vizinhos o
designam. Em muitas etnias, de dimensão variável, nas doze mil que se
enumeram em todo o mundo, a unidade foi reconstruída miticamente e
as tradições locais propagaram mitos errados envolvendo tanto as cisões
como os reagrupamentos após conquista, migração, federação, aliança.
Por vezes, os membros de uma etnia dominada adotaram a língua do seu
dominador (por exemplo, no Futa-Djalon guineense). O mesmo território
pode ser partilhado em várias etnias e a mesma etnia pode encontrar-
se em espaços afastados (Arménios, Peules). Tendo a história oral sido
sujeita a manipulações é a identificação dos membros com uma etnia e o
seu sentimento de pertença bilateral que especifica a etnia enquanto tal
(UFSC, 2017, p. 186).

Portanto, o conceito de etnia por obrigação deve ser flexível, porque não
se pode atribuir a etnia a um espaço geográfico restrito, nem a uma nação ou

94
TÓPICO 1 | CONTEXTO HISTÓRICO DO CONCEITO DE ETNICIDADE E SUA RELAÇÃO COM AS CIÊNCIAS SOCIAIS

cultura particular. Os componentes étnicos podem mesmo sofrer variações ou


interferências, dependendo dos contingentes históricos.

Como você pode perceber, o conceito de etnia é complexo e multifacetado.


Por este motivo, devemos recorrer a um dos mais importantes pesquisadores,
considerado referência de base para discussão das questões étnicas na atualidade,
o antropólogo Fredrick Barth.

Esse antropólogo nasceu na Alemanha, na cidade de Leipzig no ano de


1928. Em sua trajetória acadêmica atuou como professor e pesquisador em várias
universidades na área de antropologia social. Em Boston e Atlanta, nos Estados
Unidos, na Universidade de Oslo, na cidade de Bergen, na Noruega, onde fundou
o Departamento de Antropologia Social, e na Universidade de Harvard.

FIGURA 33 – FREDRICK BARTH

FONTE: Disponível em: <https://alchetron.com/Fredrik-Barth-160509-W>.


Acesso em: 20 fev. 2017.

Sua mais importante obra foi “Os grupos étnicos e suas fronteiras”,
editada em 1969. Nesta obra o autor discorre sobre o estudo da etnia, focando
no desenvolvimento das negociações sobre as fronteiras geográficas entre grupos
humanos. Barth conseguiu inserir na pauta das Ciências Sociais esse conceito
analítico para dar conta das especificidades étnicas presentes em uma mesma
cultura, demonstrando que a etnicidade é um elemento gerador de laços muito
mais profundo do que a simples convivência em uma sociedade com mesmos
padrões culturais.

95
UNIDADE 2 | TEORIAS DA ETNICIDADE, RELAÇÕES DE GÊNERO E O DEBATE MULTICULTURAL

Barth foi casado com Unni Wikan, uma norueguesa, professora de


Antropologia Social, também da Universidade de Oslo. Até pouco tempo era
professor de Antropologia também na Universidade de Boston, mas faleceu de
causas naturais em 24 de janeiro de 2016, aos 87 anos de idade. Vejamos agora o
que diz Fredrick Barth sobre a questão da etnia na atualidade.

Fredrick Barth defende que não existem diferenças objetivas que fazem
com que os grupos se organizem com noção de pertencimento coletivo.
Ou seja, as pessoas se reúnem e se agrupam não necessariamente em
função da sua cor de pele ou de caraterísticas culturais comuns, mas
por questões subjetivas na construção de suas identidades (AGUIAR,
2007, p. 88).

Para Barth (1976), ainda não está superada a ideia de que as culturas podem
ser preservadas se estiverem suficientemente distantes de culturas vizinhas, se
estiverem isoladas socialmente ou geograficamente. Para o autor, traços culturais
ou identidade étnica podem permanecer, independentemente dos processos de
interação cultural ou aculturações. Nas palavras de Barth (1976, p. 9, tradução
nossa):

As distinções étnicas categóricas não dependem de uma ausência


de mobilidade, contato ou informação; em vez disso, elas envolvem
processos sociais de exclusão e de incorporação pelo qual categorias
discretas são mantidas apesar de mudar a participação no curso de
histórias individuais. Em segundo lugar, é mostrado que certas relações
sociais estáveis, persistentes, e muitas vezes importantes permanecem
acima desses limites [...] Em outras palavras, as distinções étnicas
não dependem de uma ausência de interação e aceitação social; por
outro lado, geralmente elas são a base sobre a qual são construídos
sistemas sociais que as contenham. Em um sistema social, a interação
não leva a sua liquidação, como resultado da mudança e aculturação;
diferenças culturais podem persistir, apesar do contato interétnico e
interdependente.

Sabendo que o conceito de etnia é muito amplo e bastante complexo do


ponto de vista das abordagens científicas, e para dar conta de uma necessidade
acadêmica de definição do termo podemos inferir que etnicidade é o conjunto de
características comuns a um grupo de pessoas que as diferenciam de outro grupo.
Normalmente essas características incluem a língua, a cultura e também a noção
de uma origem comum. Etnicidade é a autoconsciência da especificidade cultural
e social de um grupo particular.

Luvizotto (2009) define etnicidade ainda como um conceito relacional.


Para ele, uma entidade relacional está sempre em construção, de um modo
predominantemente contrastivo. Significa dizer que a etnicidade é construída no
contexto das relações e conflitos intergrupais, ou seja, do mesmo modo que os
conceitos de classe e de gênero se constroem na relação com o outro, também o
conceito de etnicidade somente é possível devido ao contraste com o diferente,
com o outro, com aquele que não se assemelha a mim. Por isso, pode-se dizer que
é na comparação com os outros que posso conhecer minha identidade e reconhecer
os meus.

96
TÓPICO 1 | CONTEXTO HISTÓRICO DO CONCEITO DE ETNICIDADE E SUA RELAÇÃO COM AS CIÊNCIAS SOCIAIS

LEITURA COMPLEMENTAR

Kalina Vanderlei Silva e Maciel Henrique Silva

O conceito de etnia vem ganhando espaço cada vez maior nas Ciências
Sociais, a partir das crescentes críticas ao conceito de raça e, em alguns casos,
ao conceito de tribo. Apesar disso, é ainda considerado por muitos uma noção
pouco definida. O termo etnia surgiu no início do século XIX para designar as
características culturais próprias de um grupo, como a língua e os costumes. Foi
criado por Vancher de Lapouge, antropólogo que acreditava que a raça era o fator
determinante na história. Para ele, a raça era entendida como as características
hereditárias comuns a um grupo de indivíduos. Elaborou então o conceito de etnia
para se referir às características não abarcadas pela raça, definindo etnia como
um agrupamento humano baseado em laços culturais compartilhados, de modo a
diferenciar esse conceito do de raça (que estava associado a características físicas).

Já Max Weber, por sua vez, fez uma distinção não apenas entre raça e
etnia, mas também entre etnia e nação. Para ele, pertencer a uma raça era ter a
mesma origem (biológica ou cultural), ao passo que pertencer a uma etnia era
acreditar em uma origem cultural comum. A nação também possuía tal crença,
mas acrescentava uma reivindicação de poder político. A etnia é um objeto de
estudo da Antropologia, e se caracterizou desde cedo como tema principal da
Etnologia, ciência que se propõe a estudar diferentes grupos étnicos, constituindo-
se em torno da própria noção de etnia.

Durante o século XX, essas duas disciplinas multiplicaram as conceituações


sobre o termo. Autores como Nadel e Meyers Fontes afirmam que uma etnia é
um grupo cuja coesão vem de seus membros acreditarem possuir um antepassado
comum, além de compartilharem uma mesma linguagem. Para essa definição,
baseada em Weber, uma etnia seria um conjunto de indivíduos que afirma ter
traços culturais comuns, distinguindo-se, assim, de outros grupos culturais. Nesse
sentido, não importa se o grupo realmente descende de uma mesma comunidade
original: o que importa é que os indivíduos compartilhem essa crença em uma
origem comum. Uma crença confirmada, a seu ver, pelos costumes semelhantes.

Assim, uma etnia se sente parte de uma mesma comunidade que possui
religião, língua, costumes - logo, uma cultura - em comum. Notemos que nesse
conceito não importa somente o fato de as pessoas que compõem uma etnia
compartilharem os mesmos costumes, mas sobretudo o fato de elas acreditarem
fazer parte de um mesmo grupo. Nesse sentido, a etnia é uma construção artificial
do grupo, e sua existência depende de seus integrantes quererem e acreditarem
fazer parte dela.

Toda etnia se identifica como um grupo distinto, considerando-se diferente


de outros grupos, e baseia sua identidade em uma religião e rituais específicos.
Assim, os judeus e muçulmanos dentro das atuais nações europeias são, cada um
por seu lado, etnias, por se identificarem como grupos distintos e reivindicarem

97
UNIDADE 2 | TEORIAS DA ETNICIDADE, RELAÇÕES DE GÊNERO E O DEBATE MULTICULTURAL

identidades próprias baseadas em religiões e costumes diferentes das sociedades


em que estão inseridos. No caso dos muçulmanos, a construção artificial desse
conceito é mais nítida, pois quase sempre oriundos de migrações recentes para a
Europa, seus integrantes são originários de diferentes países e culturas distintas,
mas ao se instalarem em lugares como a França e a Inglaterra em geral se identificam
como uma mesma etnia, independentemente do país de origem. Tal situação pode
ser percebida, sobretudo, com relação aos descendentes dos primeiros imigrantes,
e a construção de uma identidade comum "árabe" ou "muçulmana" vem tanto do
fato de possuírem uma mesma religião quanto do fato de a sociedade os tratar em
geral como um grupo homogêneo.

Alguns sociólogos diferenciam etnia e grupo étnico, pois para eles um


grupo precisa de uma interação entre todos os seus membros, enquanto a etnia
abrange um número grande demais de pessoas para que haja relação direta entre
todas elas. O grupo étnico seria, então, um conjunto de indivíduos que apresenta
uma interação entre todos os seus membros, além das características gerais da
etnia. Por essa distinção, os membros de uma vizinhança judaica em uma cidade do
Ocidente, por exemplo, onde todos os indivíduos frequentam a mesma sinagoga,
constituem um grupo étnico, ao passo que os judeus como um todo compõem uma
etnia.

Atualmente, os debates em torno da ideia de etnia continuam acirrados.


Primeiro porque a Antropologia não considera mais raça um conceito determinado
biologicamente. Hoje, raça significa a percepção das diferenças físicas pelos grupos
sociais, e como essa percepção afeta as relações sociais, aproxima-se bastante da
própria definição de etnia. Por outro lado, alguns antropólogos franceses, no fim
da década de 1980, afirmaram que o conceito de etnia estava sendo pregado para
as sociedades ditas primitivas com a intenção de apagar a historicidade delas.

Para Amselle, por exemplo, o conceito de etnia, bem como o de tribo, era
usado em substituição ao de nação, para as "sociedades primitivas”, passando a
ideia de nação a pertencer exclusivamente aos "Estados civilizados”. Dessa forma,
o conceito de etnia teria um sentido etnocêntrico bastante acentuado, mas, apesar
dessas controvérsias, a Antropologia trabalha também com a noção de etnicidade,
que é um sentimento de pertencer exclusivamente a um determinado grupo étnico.
Um conceito próximo ao de identidade.

Podemos perceber, dessa forma, os intensos debates em torno do conceito


de etnia, e o quanto esse conceito ainda precisa ser mais bem caracterizado. Não
obstante, os estudos etnológicos têm crescido, principalmente porque, desde a
década de 1960, muitas reivindicações políticas no mundo se apresentam como
étnicas, baseadas em crenças em uma identidade comum, contexto esse que motiva
os cientistas sociais a continuarem refletindo sobre o conceito. É preciso ressaltar
que, se, por um lado, muitas comunidades se autoafirmam positivamente a partir
de seus costumes, por outro, a identidade étnica (a etnicidade) é um elemento que
contribui para a construção do etnocentrismo. Ao se identificarem como membros
de uma cultura em comum, diferente dos que o cercam, um determinado grupo
reage às culturas diferentes muitas vezes com repulsa.
98
TÓPICO 1 | CONTEXTO HISTÓRICO DO CONCEITO DE ETNICIDADE E SUA RELAÇÃO COM AS CIÊNCIAS SOCIAIS

O sentimento de superioridade diante de diferentes culturas é, assim,


criado na identidade étnica. Dessa forma, os franceses se sentem superiores aos
"árabes" (como classificam todos os que professam a fé muçulmana, sejam árabes
ou não) por acreditarem possuir uma origem diferente e uma cultura que os outros
não compartilham. Isso acontece com os norte-americanos diante dos hispânicos,
e já aconteceu em outras épocas da história, como entre os alemães e os judeus
durante a Segunda Guerra Mundial. Em suma, a discussão sobre etnia nos leva a
repensar o próprio conceito de etnocentrismo.

Para o professor de História, conhecer o conceito de etnia é uma exigência


fundamental, pois os programas curriculares discutem cada vez mais as minorias
no Brasil. Essas minorias são estudadas pela Antropologia como etnias, mas
algumas delas ainda se identificam muitas vezes como raças. É o caso dos negros
brasileiros. Enquanto os antropólogos discutem a validade de termos como raça e
etnia, o que precisamos apreender de todo esse debate e discutir com os alunos é
que, seja na raça ou na etnia, o fato de um indivíduo pertencer a um desses grupos
é mais uma questão de sentimento, de identidade, do que de determinação física
ou mesmo cultural. Vale lembrar ainda que tanto a concepção atual de raça quanto
a de etnia são conceitos que buscam dar conta da multiplicidade de culturas, de
hábitos e crenças que a humanidade apresenta, e das implicações políticas dessas
diferenças.
FONTE: Disponível em: <http://www.igtf.rs.gov.br/wp-content/uploads/2012/03/conceito_ETNIA.
pdf>. Acesso em: 27 abr. 2017.

99
RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico, você aprendeu que:

• O surgimento do termo etnia acontece em meados do século XIX, pelo francês Vacher
de Lapouge, para diferenciar o sentido de raça que ele identificava como a reunião de
características físicas dos grupos humanos, das características psicológicas presentes
nos grupos, como a cultura, linguagem e comportamento social.

• O desenvolvimento do conceito de etnia e etnicidade cresce a partir dos anos 1960.


Com base nos pensamentos de Walerstein (1960) e Gordon (1964), os estudos
sobre etnicidade começam a ser percebidos não apenas como a designação de
um pertencimento étnico, mas também como os sentimentos associados a este
pertencimento. O sentimento de formar um povo, o sentimento de pertencer a
um grupo com uma história comum.

• A entrada deste campo de estudos nas Ciências Sociais ganha espaço após a
década de 1970, é que o termo etnicidade de fato vai impor-se nas Ciências
Sociais, com vários trabalhos, conferências, programas de pesquisa e também a
criação de revistas especializadas na área.

• Os motivos pelos quais este campo de estudos se torna relevante nas


universidades, e particularmente nas Ciências Sociais. A desestruturação
do colonialismo e as mudanças nas estruturas de autoridade nas sociedades
ocidentais provocaram um acirramento das disputas entre os grupos étnicos,
em vários países, permitindo a luta por espaços de poder, produzindo situações
de conflito, de competição, de regionalismos, de luta por territórios, tribalismos
na África e outros. Por estes motivos é que a questão da etnicidade passa a fazer
parte da agenda de estudos dentro das universidades.

• Por este motivo também o conceito de classe social não dá conta de explicar a
produção das desigualdades sociais, surgindo assim o conceito de etnia como
instrumento de análise sobre a produção das diferenças.

• A importância do pensamento de Fredrick Barth, a partir da década de 1970,


acerca do termo etnicidade. O autor traz traços culturais, ou identidades étnicas
que podem permanecer, independentemente dos processos de interação
cultural, ou aculturações.

• Conceito de etnicidade a partir da visão de Barth: É o conjunto de características


comuns a um grupo de pessoas, que as diferenciam de outro grupo. Normalmente
essas características incluem a língua, a cultura e também a noção de uma
origem comum. Etnicidade é a autoconsciência da especificidade cultural e
social de um grupo particular.

• A etnicidade também é um conceito relacional, assim como os conceitos de classe


e de gênero. Eles se constroem na relação com o outro, devido ao contraste com
o diferente.

100
AUTOATIVIDADE

1 A partir dos estudos do francês Vacher de Lapouge, o


termo etnicidade surge no século XIX para diferenciar
as características físicas das características culturais dos
grupos humanos. Na década de 1970, o autor Fredrick Barth
dá um novo entendimento ao sentido do termo. O que Fredrick Barth
compreende por etnicidade?

2 Apenas o conceito de classe social não dá conta de explicar a


produção das desigualdades sociais nos tempos atuais, por
este motivo é que surge o conceito de etnicidade e outros
conceitos analíticos, como o de gênero, por exemplo. Com
suas palavras, explique os motivos que possibilitam essa afirmação.

101
102
UNIDADE 2 TÓPICO 2

RAÇA, NAÇÃO, ETNIA, IDENTIDADE ÉTNICA,


GRUPOS ÉTNICOS E SUAS FRONTEIRAS

1 INTRODUÇÃO
Quando fazemos o resgate do conceito de etnia, encontramos muitas
relações com outros conceitos, como o de raça e nação. Por este motivo, a seguir
vamos procurar demonstrar a relação entre eles, além de realizar uma discussão
sobre identidade étnica, grupos étnicos e suas fronteiras.

Quando os autores se debruçam sobre estes conceitos, todos procuram, de


alguma forma, compreender os princípios que definem a atração ou o afastamento
de populações. Todos, de alguma forma, compreendem que é pelo princípio da
diferença que estes grupos se atraem ou se repelem.

Como se constituem as diferenças? Elas são naturais? São biológicas? Ou


são construídas socialmente? Vejamos a seguir como os conceitos de raça, etnia e
nação contribuíram para demarcar as fronteiras entre “nós” e os “outros”.

2 A IMPORTÂNCIA DO CONCEITO DE RAÇA PARA A


CONSTRUÇÃO DA DESIGUALDADE
A noção de raças humanas foi bastante difundida até o início do século
XX, sendo que o termo “raça” era utilizado para designar características físicas
das diferentes populações mundiais, como os asiáticos, os negros, os indígenas e
os brancos. Havia uma crença quase generalizada de que esses diferentes grupos
humanos apresentavam particularidades genéticas, físicas, biológicas e intelectuais
muito diferentes umas das outras. Além da diferença, era comum a ideia de que
algumas raças seriam biologicamente superiores a outras. Este tipo de pensamento foi
responsável pelo desenvolvimento de uma corrente de pensamento chamada Eugenia.

UNI

Eugenia – Movimento originado por Francis Galton (1822-1911), autor de Hereditary


Genius. “O termo é correntemente definido como uma ciência voltada para o melhoramento
das potencialidades genéticas da espécie humana. Sua história, particularmente no que diz
respeito às relações raciais, tem sido marcada pela controvérsia” (CASHMORE, 2000, p. 203).

103
UNIDADE 2 | TEORIAS DA ETNICIDADE, RELAÇÕES DE GÊNERO E O DEBATE MULTICULTURAL

FIGURA 34 - CORRENTE EUGENISTA

FONTE: Disponível em: <http://09eugenesia.blogspot.com.br/2009_04_01_archive.


html>. Acesso em: 20 jun. 2017.

Além das diferenças, também se acreditava na existência de uma hierarquia,


na qual alguns grupos seriam mais desenvolvidos que outros. Essa perspectiva
se construiu ao longo do tempo pelo senso comum, mas também foi por muito
tempo avalizada pelo meio acadêmico, provavelmente devido a resquícios ainda
das teorias evolucionistas dos séculos anteriores.

Como resultado deste modelo de pensamento, vários países, especialmente


aqueles que ainda possuíam colônias ou problemas sociais decorrentes da
escravidão, acabaram por assumir o discurso racista para justificar suas ações.
Dois exemplos claros são: A segregação racial nos Estados Unidos e o Apartheid na
África do Sul.

NOTA

Segregação racial e apartheid

Há dois tipos de segregação: de jure e de facto. A segregação de jure representa uma situação
em que grupos definidos com base em diferenças raciais ou étnicas putativas são formalmente
separados por lei. Na segunda situação (de facto), tal separação existe sem uma restrição formal
legal.
Embora tenha havido numerosos casos de segregação legal ao longo da história, as mais
conhecidas são as leis “Jim Crow”, da era pós-guerra de secessão nos Estados Unidos, e o
Apartheid na África do Sul. No primeiro caso, os níveis de segregação racial entre as comunidades
negra e branca aumentaram depois da abolição do regime escravocrata. A maioria dos analistas
apontou tal situação como resultado do medo de uma relação igualitária entre os escravos
libertos e os seus antigos senhores: manter a diferença era, certamente, um modo de prolongar
o sistema de subordinação, enraizado na noção de uma hierarquia “racial” étnica. O apartheid
sul-africano estendeu e formalizou o processo de segregação estritamente residencial de 1948

104
TÓPICO 2 | RAÇA, NAÇÃO, ETNIA, IDENTIDADE ÉTNICA, GRUPOS ÉTNICOS E SUAS FRONTEIRAS

até a década de 1990, o que foi consagrado pelo Ato de Áreas Grupais e pela política “Bantustan”.
A segregação legalmente reforçada foi, nos dois países, muito além da questão do assentamento
residencial. Os não brancos eram impedidos de compartilhar de toda uma extensão de serviços
com os brancos: educação, emprego e saúde; eram proibidos até mesmo de frequentar locais
públicos, como restaurantes, cafés, cinemas, clubes, transporte público e piscinas/praias. O
apartheid chegou ao extremo de separar as entradas de prédios públicos, estabelecer bancos e
fontes de parques, e assim por diante (CASHMORE, 2000, p. 505).

Como você sabe, caro acadêmico, um dos momentos mais terríveis da


história da humanidade foi a Segunda Guerra Mundial, especialmente por sua
ideologia racista. A Alemanha nazista produziu um dos piores massacres étnicos
de que se tem notícia. Com o objetivo de garantir uma “raça pura” na Alemanha,
Hitler exterminou mais de seis milhões de judeus nos campos de concentração.

DICAS

Para compreender melhor o nazismo e o holocausto, recomendamos que você


assista aos filmes a seguir: “A lista de Schindler”, “Olga”, “O menino do pijama listrado”, “O pianista”
e “A vida é bela”.

FONTE: Disponíveis em: <http://www.clickgratis.com.br/fotos-imagens/search/?q=filmes/>.


Acesso em: 20 fev. 2017.

Devido às pesquisas genéticas, se sabe hoje que não existem raças humanas
diferentes. Não há nenhuma evidência que afirme que características físicas, como
a cor da pele, o formato do olho, a textura do cabelo, possam implicar em diferenças
comportamentais, de valores, ou morais, como se pensava.

Por este motivo, logo depois da Segunda Guerra Mundial, vários países se
organizaram na luta pela retirada do termo raça da pauta das ciências em geral. O
105
UNIDADE 2 | TEORIAS DA ETNICIDADE, RELAÇÕES DE GÊNERO E O DEBATE MULTICULTURAL

objetivo da luta antirracista foi demonstrar a fragilidade do conceito de raça, seu


caráter ilegítimo e não científico, sendo que os conceitos de cultura ou de grupos
étnicos poderiam ser muito mais úteis para compreender as diferenças humanas
do que o conceito de raça.

Um dos resultados destes movimentos foi o desmantelamento do


segregacionismo racial nos Estados Unidos, devido às lutas pelos direitos civis na
década de 1960. A partir daí se começou a perceber quais mecanismos sociais de
fato contribuíam para a manutenção das desigualdades raciais. As desigualdades
não eram produzidas por questões inerentes à raça (incapacidade física ou
intelectual), mas sim por todo um sistema social, político e econômico que oferecia
aos negros oportunidades desiguais, como a falta de acesso a escolas e a empregos
de qualidade, como a exposição à pobreza (GUIMARÃES, 1995). Por este motivo,
a ideia de discriminação racial passa a ser percebida a partir de outros conceitos
interpretativos da realidade, como os de classe, de gênero e de status social.

O nacionalismo negro e o movimento feminista nos anos 70 imprimiram


uma outra dinâmica às percepções antirracistas; o primeiro, pela luta
contra a destruição e a inferiorização do legado cultural africano,
denunciando o estatuto subordinado do negro e da África implícito no
antirracismo assimilacionista e universalista; o segundo, pela ênfase com
que denunciou o caráter racializado das diferenças sexuais como parte
de um processo de naturalização e de justificação social de hierarquias
culturais (GUIMARÃES, 1995, p. 29).

Essa mudança de percepção começa a fazer diferença principalmente para


os grupos étnicos excluídos, para as minorias étnicas em geral e para as populações
dos países menos desenvolvidos.

A autoestima elevada e a exaltação das diferenças étnicas e culturais dos


grupos étnicos começam a ser percebidas, especialmente na Europa, quando se
amplia o processo de imigração destas populações para seus países. A Europa, que
antes se percebia antirracista, agora tinha que lidar com povos estrangeiros que
não assimilavam sua cultura. Ao contrário, os imigrantes agora demonstravam
orgulhosamente seus valores, sua religião e suas diferenças. Por conta disso, os
países europeus, aos poucos, foram desenvolvendo um novo tipo de racismo, o
racismo sem raça (GUIMARÃES, 1995).

Vocês devem estar se perguntando: o que é racismo sem raça?

O racismo sem raça acontece quando as características étnicas ou culturais


(religiosidade, crenças, regras sociais) de um grupo são tomadas no lugar das
características biológicas/raça (cor de cabelo, pele, traços fisionômicos) para
justificar relações de hierarquia e desigualdades sociais. “O racismo (sem raça)
é a redução do cultural ao biológico, a tentativa de fazer o primeiro depender do
segundo. O racismo existe sempre que se pretende explicar um dado status social
por uma característica natural” (GUIMARÃES, 1995, p. 31).

Por isso, queridos acadêmicos, temos que ter muito cuidado com as
naturalizações que costumamos fazer no nosso dia a dia. Naturalizar significa
essencializar uma situação, quase sempre no sentido de manter o status quo.
106
TÓPICO 2 | RAÇA, NAÇÃO, ETNIA, IDENTIDADE ÉTNICA, GRUPOS ÉTNICOS E SUAS FRONTEIRAS

As religiões, de maneira geral, costumam construir seus discursos com base


em argumentos essencialistas ou “naturais”. Assim também a ciência, quando evita
transpor paradigmas científicos. A ideia de “natural” aparece sempre descolada de
um contexto histórico, político ou cultural, que lhe dê suporte. A ideia de que algo
é “essencialmente natural” aparece sempre destituída de interesses, quase como
se tivesse uma origem irracional, ligada a características essenciais ou biológicas
do humano, ou a determinações divinas. A ideia de que “foi sempre assim e,
portanto, continuará sendo” serve quase sempre para justificar a manutenção de
uma hierarquia.

Toda e qualquer hierarquia social faz apelo a uma ordem natural que
a justifique, ainda que tal justificativa, e racionalização, possa se fazer
de diferentes maneiras. A ordem econômica, por exemplo, pode ser
justificada como sendo um produto de virtudes individuais (os pobres são
pobres porque lhes faltam sentimentos nobres, virtudes e valores do ethos
capitalista); do mesmo modo, se justifica usualmente a posição subordinada
das mulheres pelas características do sexo feminino; a escravidão dos
africanos, assim como a posição social inferior de seus descendentes,
pelas limitações da "raça" negra etc. Em cada um desses casos, quando a
ideia de uma ordem natural limita formações sociais, emergem sistemas
hierárquicos rígidos e inescapáveis (GUIMARÃES, 1995, p. 31).

Percebe-se, portanto, que há muito tempo as diferentes posições sociais


são demarcadas e justificadas com base em consensos sociais. Esses consensos
são historicamente reproduzidos com base em naturalizações, sobre falsas ideias
relativas aos papéis sociais que os indivíduos devem ou não reproduzir, como ser
negro, mulher, pobre, homossexual, entre outros.

O problema da naturalização é que ela imputa aos indivíduos um lugar


predeterminado na hierarquia social, que quase sempre é marginal, menor e
excluído. Mais adiante vamos verificar como na história se produziram as diferenças
entre homens e mulheres, com base na naturalização e essencialização de um
modelo de feminino, relacionando-o a um lugar de inferioridade e subordinação
em relação ao masculino. Ou seja, o componente ideológico da ideia de natureza
parece que está sempre presente nas hierarquias sociais e não se pode querer
entender as realidades sociais sem levar essa perspectiva em consideração, ainda
que seja sempre mascarada, uma vez que se funda sobre uma pretensa “verdade
incontestável”. É precisamente a ideia de naturalização que constitui o cerne dos
meios técnicos de que dispõem as relações de dominação e de força para se impor
aos dominados e mantê-los dominados.

“Se podemos falar de tais práticas discriminatórias designando-as por


termos específicos, como “sexismo” ou “etnicismo”, é porque a referência à raça
encontra-se subsumida em outras diferenças, funcionando apenas como uma
imagem de diferença irredutível” (GUIMARÃES, 1995, p. 32). Ou seja, quando a
questão racial está presente como elemento de diferenciação, ainda que não seja
objetivamente nomeada, a observação de suas especificidades só pode ser realizada
a partir da utilização de outros conceitos de análise, como classe, gênero, etnia,
geração, nacionalidade e outros. Essa perspectiva se funda na ideia de que todo
tipo de racismo é necessariamente a naturalização de alguma desigualdade social.

107
UNIDADE 2 | TEORIAS DA ETNICIDADE, RELAÇÕES DE GÊNERO E O DEBATE MULTICULTURAL

3 ETNIA, RAÇA E NAÇÃO: APROXIMAÇÕES E


DIFERENCIAÇÕES NECESSÁRIAS
Como já sabemos, inicialmente o termo etnia foi concebido para distinguir
e classificar os povos que não podiam ser classificados com base no conceito de
nação e de raça. Isso porque tinha-se a ideia de que o conceito de nação servia para
definir o grupo com base em sua identidade política e sócio-histórica, e o de raça
para definir o grupo com base em suas características biológicas. Como não havia
um conceito capaz de explicar os agrupamentos humanos, ou identidades comuns
que se estabeleciam com base em elementos culturais e linguísticos, muitas vezes
sem compartilharem o mesmo espaço geográfico ou político, é que surgiu o termo
etnia.

Muitos autores, que defendem a utilização do termo Nação no lugar de


Etnia, argumentam que a força que inspira os indivíduos a se manterem unidos
em uma determinada nação é justamente o distanciamento, o esquecimento
dos elementos étnicos (culturais, linguísticos, históricos) dos diferentes grupos
presentes na nação, em detrimento de um sentimento de pertença maior, que é a
identidade nacional.

A essência de uma nação reside no fato de todos os indivíduos terem


muitas coisas em comum, e igualmente que todos tenham esquecido
bem as coisas. A memória fundadora da unidade nacional é, ao mesmo
tempo e necessariamente, esquecimento das condições de produção
desta unidade: a violência e o arbitrário originais e a multiplicidade
das origens étnicas [...] A nação, enquanto entidade política, constrói-
se, então, não a partir do grupo racial ou étnico, mas frequentemente
contra ele: é porque não podem mais dizer que são burgondes, alains,
taifales ou visigodos que os habitantes da França podem ser cidadãos
franceses (POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 2011, p. 36).

O que Poutignat e Streiff-Fenart (2011) argumentam é que o sentido de


nação se constrói sobre o afastamento, e, portanto, sobre o esquecimento dos
elementos culturais e étnicos que os imigrantes trouxeram de sua terra natal
para o território em que residem hoje. Segundo esses autores, quanto antes eles
esquecerem suas referências étnico-culturais, mais rápido será desenvolvido o
senso de pertencimento à nação que os hospeda hoje.

Outros autores defendem que para que uma nação se forme, é necessário
haver um ou mais povos, um território e uma consciência comum. Quando outros
elementos aparecem, como identidade de língua, religião e etnia, eles reforçam a
unidade nacional.

Para produzirmos um conceito coerente de nação podemos inferir,


portanto, que NAÇÃO refere-se a um agrupamento humano autônomo, fixado
em um determinado território, com limites bem definidos, que possui em sua
base uma identidade política e sócio-histórica na qual seus membros respeitam as
instituições.

108
TÓPICO 2 | RAÇA, NAÇÃO, ETNIA, IDENTIDADE ÉTNICA, GRUPOS ÉTNICOS E SUAS FRONTEIRAS

Weber, em seus estudos sociológicos, também contribui com a discussão


acerca dos temas em questão. Ele procura distinguir as ideias de raça, etnia e nação
(POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 2011).

O que distingue a pertença racial da pertença étnica é que a primeira


é realmente fundada na comunidade de origem, ao passo que o que
funda o grupo étnico é a crença subjetiva na comunidade de origem.
Quanto à nação, ela é, como o grupo étnico, baseada na crença da vida
em comum, mas se distingue deste último pela paixão (pathos) ligada à
reivindicação de um poderio político (POUTIGNAT; STREIFF-FENART
2011, p. 37).

Portanto, pode-se dizer que, para os autores supracitados, as comunidades


de origem (leia-se grupos étnicos) seriam aquelas que estão reunidas devido à
crença subjetiva de pertencimento a uma comunidade, pouco importando se
existem laços de sangue ou não, pois essa crença torna esses grupos unidos e lhes
confere identidade. Mais tarde, Friedrich Barth, aprofundando o pensamento de
Weber, vai desenvolver o que chamou de “Teoria dos Grupos Étnicos”.

NOTA

O conceito de Subjetividade surge na psicologia e de maneira geral é entendido


como o mundo interno de todo e qualquer ser humano. Este mundo interno é composto
por emoções, sentimentos e pensamentos, ou seja, representa o espaço íntimo do indivíduo,
no qual ele elabora suas opiniões sobre o mundo (mundo interno) e por meio do qual ele
se relaciona com o mundo social (mundo externo), resultando tanto em marcas singulares
na formação do indivíduo quanto na construção de crenças e valores compartilhados na
dimensão cultural que vão constituir a experiência histórica e coletiva dos grupos e populações.

Nesse sentido, a ideia de raça, enquanto determinação biológica, não


é importante para as Ciências Sociais. Ela só adquire importância quando é um
dos elementos que define o comportamento dos grupos, quando é percebida
subjetivamente como uma característica importante para a definição do grupo,
quando funda situações de diferenciação social, como o racismo, o preconceito e
as relações de dominação.

4 IDENTIDADE ÉTNICA, ETNICIDADE, GRUPOS ÉTNICOS E


SUAS FRONTEIRAS
Pelo que estudamos até aqui, podemos afirmar que a identidade étnica
se constrói na relação com os outros grupos. A reunião entre os que se sentem
iguais, ou seja, da mesma “espécie”, está associada à repulsa por aqueles que são
percebidos como estrangeiros. O senso de pertencimento é tanto maior quanto for

109
UNIDADE 2 | TEORIAS DA ETNICIDADE, RELAÇÕES DE GÊNERO E O DEBATE MULTICULTURAL

a oposição, o contraste com o diferente. Por isso se diz que a identidade étnica se
constrói de maneira relacional.

Compreender que a identidade étnica se constrói pelo contraste com


o outro significa dizer que não é o isolamento que permite a manutenção dos
grupos étnicos e sua sensação de pertença, mas a verificação e a comunicação das
diferenças das quais os indivíduos se apropriam para estabelecer fronteiras étnicas
(POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 2011).

O conteúdo da comunidade étnica é a crença em uma honra específica:


a honra étnica pela qual os estilos de vida particulares se encarregam de
valores sobre os quais se fundam as pretensões à dignidade daqueles
que os praticam, e o desprezo por aqueles que praticam costumes
estrangeiros (POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 2011, p. 40).

Em última análise a etnia estaria ancorada nas crenças, no sentimento,


nas representações coletivas, e a raça estaria ligada aos elementos biológicos e de
parentesco.

Uma importante descoberta das teorias da etnicidade é que a identidade


étnica de um grupo normalmente não é definida somente por seus componentes,
mas também, em grande medida, por grupos externos. Como já foi dito antes, a
construção da etnia se dá por meio do jogo das relações sociais entre membros
e não membros de um grupo étnico. É precisamente esse processo, essa relação
dialética que empresta à etnicidade características dinâmicas, sempre sujeitas a
redefinição e recomposição.

É muito comum encontrarmos situações em que o próprio Estado, por meio


de suas políticas públicas, acaba incorrendo em racismo institucionalizado, pois
muitas vezes os grupos excluídos não possuem liberdade, autonomia ou mesmo
outra condição de existência a não ser aquela que lhes é imposta pelos mecanismos
institucionais de proteção do Estado.

Nesse sentido, é importante destacar a diferença entre grupos étnicos e


minorias. Os grupos étnicos se autorreconhecem e são reconhecidos pelos outros,
enquanto as minorias são definidas pelo processo de discriminação e preconceito
exercido pelos grupos dominantes.

O que queremos deixar claro é que a nomeação de um grupo étnico não


é apenas uma influência endógena sofrida pelos grupos étnicos, mas também
produtora de etnicidade. A imposição de um rótulo pelo grupo dominante
possui o poder de definir, de fazer existir uma coletividade de indivíduos,
independentemente do que eles mesmos possam pensar de sua pertença a um
grupo. Vejamos o que dizem Poutignat e Streiff-Fenart (2011, p. 144) sobre a condição
étnica dos grupos africanos aos serem trazidos e escravizados nas Américas: “Os
negros americanos, como grupo social significativo requerendo um nome, foram
criados como tais pelos homens brancos que para lá os levaram e colocaram nas
mesmas condições de vida. Eles criaram o grupo e não simplesmente o nome”. Ou
seja, no caso da escravidão, um episódio de dominação extrema, as possibilidades

110
TÓPICO 2 | RAÇA, NAÇÃO, ETNIA, IDENTIDADE ÉTNICA, GRUPOS ÉTNICOS E SUAS FRONTEIRAS

de retomar os componentes étnicos dos diferentes grupos africanos ficaram muito


prejudicadas, mesmo assim os negros norte-americanos resgataram muito de sua
etnicidade, compondo uma variação étnica, cultural e religiosa bastante diversa.
Assim, outras inúmeras situações semelhantes aconteceram e ainda acontecem em
diversas sociedades.

FIGURA 35 - IGREJA EVANGÉLICA NOS EUA, EXPRESSANDO SUA MÚSICA GOSPEL

FONTE: Disponível em: <http://www.materialgospel.com.br/melhores-musicas-gospel-internacional/> e


<http://itallobatera.blogspot.com.br/2010/11/historia-da-musica-gospel.html>. Acesso em: 20 jun. 2017.

Outros exemplos são as políticas de assistência social desenvolvidas pelos


Estados Unidos para as populações indígenas (os nativos americanos). Devido
a décadas de políticas padronizadas e uniformemente implementadas, sem
considerar ou reconhecer as especificidades étnicas e culturais de cada grupo
indígena, os nativos acabaram por assumir uma identidade geral.

Nos dois casos em que foram coletivamente nomeados e obrigados a


viverem situações semelhantes, foi possível verificar que houve um processo de
solidariedade entre eles, tanto os negros entre si, quanto os grupos indígenas.
Talvez porque, como destacam Poutignat e Streiff-Fenart (2011), foram, todos
eles, objeto de um tratamento específico e uniforme por parte do Estado, que não
considerou suas especificidades.

Com relação aos conhecimentos produzidos acerca da etnicidade, como


já dissemos, Fredrik Barth é atualmente um dos autores mais influentes. Foi ele o
responsável pela criação da teoria associada aos termos “GRUPOS ÉTNICOS”
e “FRONTEIRAS ÉTNICAS”. Ele desenvolve essas ideias, em primeiro lugar,
compreendendo que a etnicidade é um conceito relacional, isto é, ocorre a partir
da relação Nós/Eles. Para ele, o pertencimento étnico só pode ser determinado
levando em conta a demarcação entre os membros e os não membros do grupo, o
que ele vai chamar de Fronteiras Étnicas.

Segundo Poutignat e Streiff-Fenart (2011), um grupo étnico só é possível


se os atores tiverem a consciência das fronteiras que marcam o sistema social ao
qual acreditam pertencerem e também identificarem os outros atores de outros
sistemas sociais como diferentes.

111
UNIDADE 2 | TEORIAS DA ETNICIDADE, RELAÇÕES DE GÊNERO E O DEBATE MULTICULTURAL

Significa dizer que as identidades étnicas só podem se constituir com base na


alteridade, ou seja, no reconhecimento do outro. Só que, além de reconhecer o outro,
a etnicidade implica também a dicotomia Nós/Eles. Dito de outra forma, ela não pode
ser concebida senão na fronteira do “Nós”, em contato, confrontação ou contraste com
“Eles”. Vejamos o exemplo fornecido por Poutignat e Streiff-Fenart (2011, p. 153):
O conceito de Soul só emergiu como expressão da cultura dos negros
americanos quando estes se viram expostos à influência cada vez maior
da cultura dominante e sentiram a necessidade de definir e manter seus
próprios limites e negar aos outros grupos, especialmente aos brancos,
o acesso aos valores e aos comportamentos marcados pelo estilo Soul.

Por este motivo, pode-se inferir que são as fronteiras étnicas e não
propriamente o conteúdo cultural interno do grupo que o define enquanto grupo
e que o mantém enquanto instituição social. Essa distinção é que permite manter
uma fronteira entre ele e os outros.

NOTA

Soul (do inglês "alma") é um gênero musical dos Estados Unidos da América que
nasceu do rhythm and blues e do gospel durante o final da década de 1950 e início da de 1960
entre os negros. Durante a mesma época, o termo soul já era utilizado nos EUA como um
adjetivo usado em referência ao afro-americano, como em "soul food" ("comida de negro").
Esse uso apareceu justamente numa época de vários movimentos de liberalismo social,
tanto com a revolução dos jovens com o uso das drogas, como os movimentos antiguerra e
antirracial. Por consequência, a "música soul" nada mais era que uma referência à música dos
negros, independentemente de gênero.

FONTE: Disponível em: <https://www.last.fm/pt/tag/soul/wiki>. Acesso em: 25 mar. 2017.

FIGURA 36 - MÚSICA SOUL

FONTE: Disponível em: <http://www.koop.org/programs/the-dark-end-of-the-


street>. Acesso em: 24 mar. 2017.

112
TÓPICO 2 | RAÇA, NAÇÃO, ETNIA, IDENTIDADE ÉTNICA, GRUPOS ÉTNICOS E SUAS FRONTEIRAS

Compreender a existência das fronteiras étnicas não significa dizer que são
referências fixas, imutáveis. Elas podem se manter, reforçar, ou mesmo desaparecer,
elas podem se tornar flexíveis ou mais rígidas, dependendo das relações que forem
se estabelecendo e das dinâmicas internas e externas ao grupo.

FIGURA 37 - GRUPO INDÍGENA INSERIDO NO CONTEXTO EDUCACIONAL DA


CULTURA BRANCA

FONTE: Disponível em: <http://vestibular.mundoeducacao.bol.uol.com.br/cotas/


cotas-para-indios.htm>. Acesso em: 25 mar. 2017.

Apesar do nome, as fronteiras étnicas também não representam barreiras


intransponíveis, ao contrário, são fluidas e permeáveis. Um indivíduo de um grupo
étnico pode muito bem adquirir elementos que o caracterizem como pertencente
a uma etnia diferente da sua. Vejamos mais um exemplo de Poutignat e Streiff-
Fenart (2011, p. 154):

Na América Latina, a fronteira que separa os indígenas dos mestiços


é suficientemente leve para que seja suficiente a um indígena que
aprenda a falar corretamente o espanhol e adquirir os atributos culturais
considerados como definidores da cultura crioula para deixar de ser
considerado como um indígena.

Esse exemplo demonstra a fluidez das fronteiras étnicas, mas o ponto


fundamental a ser compreendido é que a transposição dessas fronteiras não
implica na alteração da sua identidade e nem da sua pertença étnica. Muitas vezes,
o cruzamento dessas fronteiras serve exatamente para reforçar os limites entre um
grupo étnico e outro.

Poutignat e Streiff-Fenart (2011) destacam ainda que a condição étnica


associada a uma condição de classe (especialmente as mais baixas) pode ocasionar
uma sobreposição de fronteiras em que uma reforça a outra. Para os autores,
este tipo de situação dificulta a transposição das fronteiras étnicas e de classe,
porque para transpor uma delas terá que transpor a outra também. Além disso,
nesse processo, seu senso de identidade pode sofrer alterações. Corre-se o risco
de não sentir pertencer nem ao seu grupo de origem nem aos demais. “Na Grã-
Bretanha, onde o sucesso escolar é fortemente associado à cor, os membros dos
113
UNIDADE 2 | TEORIAS DA ETNICIDADE, RELAÇÕES DE GÊNERO E O DEBATE MULTICULTURAL

grupos minoritários que são bem-sucedidos são percebidos como indivíduos fora
de categoria” (POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 2011, p. 156).

Da mesma maneira que as fronteiras étnicas são maleáveis do ponto de


vista da transposição de seus limites, também não dependem da permanência de
suas culturas, pois um grupo étnico pode mudar ou substituir elementos de sua
cultura, sem perder a identidade étnica. Um grupo pode adotar traços culturais
de outro grupo, como a língua e a religião, e mesmo assim não se perceber e nem
ser percebido como um igual. Para isso, podemos nos lembrar do processo de
aculturação sofrido pelos negros e pelos índios aqui no Brasil. Ambas as etnias
foram obrigadas a falar a língua portuguesa e afiliar-se à religião cristã, no entanto,
assim mesmo não se sentiam iguais aos colonizadores. Primeiro, porque o lugar
social que ocupavam na hierarquia da colônia não lhes permitia transpor a
fronteira de classe; e segundo, porque o fato de falarem outra língua ou adorarem
outro deus não garantiu que esquecessem sua língua e seus próprios deuses. Ao
contrário, o contraste reforçou sua identidade, mesmo que tenha sido modificada.

O sincretismo religioso é um exemplo claro dessa estratégia de preservação


da identidade étnica. Os negros, ainda no período da escravidão, começaram a
associar entidades (orixás) de suas religiões com os santos católicos, para poderem
adorá-los sem levantar suspeitas de seus senhores. No sincretismo, o orixá Ogum
é identificado como São Jorge, um santo católico.

FIGURA 38 – OGUM E SÃO JORGE

FONTE: Disponível em: <http://www.60segundosparadeus.com.br/2015/09/qual-


ligacao-entre-os-santos-catolicos.html>. Acesso em: 20 jun. 2017.

Nesta perspectiva se observa que é precisamente a fronteira étnica e não a


matéria cultural que ela abrange que define o grupo étnico.

114
TÓPICO 2 | RAÇA, NAÇÃO, ETNIA, IDENTIDADE ÉTNICA, GRUPOS ÉTNICOS E SUAS FRONTEIRAS

Um dos traços mais importantes que se pode observar para compreender


como se mantém as fronteiras étnicas são as regras que estabelecem e organizam
os contatos interétnicos, ou seja, toda relação interétnica estável pressupõe uma
estruturação da interação. Vejamos como Poutignat e Streiff-Fenart (2011, p. 196)
descrevem esta estrutura.

Como o conjunto de prescrições dirigindo as situações de contato


que permitem a articulação em determinados setores ou campos de
atividade, e um conjunto de proscrições sobre as situações sociais que
impeçam a interação interétnica em outros setores, isolando assim partes
das culturas, protegendo-as de qualquer confronto ou modificação.

Procurando trazer um exemplo para contextualizar essa afirmação,


podemos nos referir à relação que as comunidades judias estabelecem com a
sociedade. Pode-se inferir que do ponto de vista das relações comerciais, os
condicionamentos étnicos são mais flexíveis, especialmente porque ocorrem em
uma sociedade capitalista e globalizada. No entanto, do ponto de vista da sua
religião, das relações familiares, das tradições e das questões ditas domésticas, a
comunidade judia preserva sua identidade étnica.

FIGURA 39 - COMUNIDADE ISRAELITA NO PORTO. SINAGOGA KADOORIE MEKOR HAIM

FONTE: Disponível em: <http://www.hoteldamusica.com/Files/Images/HotelDaMusica/


LocaisDeInteresse/Patrimonio/Sinagoga1.jpg>. Acesso em: 27 abr. 2017.

Muitas vezes, mesmo nas relações econômicas, é possível observar em


certas comunidades a permanência de modelos étnicos que isolam o contato com
outras etnias. Poutignat e Streiff-Fenart (2011) afirmam que na Melanésia e na Ásia
é possível verificar sistemas policêntricos integrados simultaneamente na esfera
comercial de prestígio e em estruturas políticas quase feudais.

115
UNIDADE 2 | TEORIAS DA ETNICIDADE, RELAÇÕES DE GÊNERO E O DEBATE MULTICULTURAL

Esses sistemas nos quais é possível observar uma variedade de setores de


articulação e de separação entre sistemas sociais, ou aspectos culturais, em uma
determinada sociedade, podem ser chamados de Sistemas Poliétnicos.

Na Índia também é possível perceber a influência do capitalismo nas


relações econômicas no país, sendo que talvez apenas o sistema de parentesco e a
vida doméstica permaneçam como um setor à parte e sejam fontes de diversidade
cultural.

5 A CRÍTICA AO PENSAMENTO DE FREDRICK BARTH E A


AMPLIAÇÃO DO CONCEITO DE ETNICIDADE
Com base na discussão realizada até agora é possível verificar que a
categoria etnicidade está fortemente assentada sobre a teoria dos grupos étnicos
de Barth, mas outros autores conseguem compreender este fenômeno, explorando
outros elementos da etnicidade e compreendendo-os à luz de outras referências
teóricas. Vejamos a seguir uma discussão que trata das diferentes interpretações
sobre o tema.

Etnicidade

A noção de “comunidade imaginada” nos oferece um bom ponto de


partida para isso. Ainda que reconheça que todo grupo social é, em alguma
medida, imaginado, Anderson chama atenção para como o processo de
constituição das nações opera uma espécie de generalização dos símbolos
e sentimentos típicos das relações comunitárias, para muito além dos
limites de qualquer comunidade real. Ao descrever as nações ou culturas
nacionais como construções sociais operadas nos mesmos termos em que
os grupos étnicos — grupos políticos que se autoatribuem características
e laços primordiais, Anderson e, na sua esteira, Stuart Hall, introduzem
a ideia de que o sistema de simbolização dos grupos étnicos — que eles
preferem chamar “comunidades” — pode ganhar autonomia com relação
aos processos de interação que para Barth delimitam a “fronteira étnica”.

Assim, o adjetivo “imaginado” que acrescentam à comunidade


(ou grupo étnico) justifica-se porque a atitude simbólica que marca a
autopercepção e o sentimento nacionais não dependeriam de regras de
interação entre grupos reais, mas, antes, da relação entre comunidades
imateriais, formadas por dispositivos de compartilhamento de experiências
como a literatura, a imprensa periódica, os ritos, datas e heróis nacionais.

Outro referencial para a ampliação do uso de etnicidade com relação a


grupo étnico é encontrado em M. Banton (1977), em A Ideia de Raça, quando
este define a categoria como produto de uma inversão de valores sociais com

116
TÓPICO 2 | RAÇA, NAÇÃO, ETNIA, IDENTIDADE ÉTNICA, GRUPOS ÉTNICOS E SUAS FRONTEIRAS

relação à raça. A etnicidade seria um sentimento, um discurso e uma tomada


de posição política produzida pela positivação do estigma da raça. Dessa
forma, um grupo até então distinto por características ditas raciais, tornar-
se-ia um grupo étnico a partir do momento em que, aceitando a distinção
que lhe é imposta pela maioria, passa a utilizar-se politicamente dela na
formação de agrupamentos autônomos ou com interesses e reivindicações
comuns.

A etnicidade seria, segundo Banton, justamente esta atitude política


positiva, que teria um sentido de solidariedade e identificação. Este uso da
noção de etnicidade é, portanto, inseparável da de etnogênese, no sentido
em que também institui um grupo étnico, mas que é, em primeiro lugar,
“imaginado”, no sentido de que ele tem por base não uma estrutura de relações,
mas uma experiência genérica de desrespeito. Isso nos leva, finalmente, ao
terceiro suporte para pensar de que modo a categoria de etnicidade ganha
autonomia com relação ao grupo étnico. Tendo em conta que boa parte do
uso contemporâneo de etnicidade está relacionada à emergência de uma
“política de reconhecimento” de alcance global, vale recuperar o modelo
igualmente generativo de A. Honneth (2003), em Luta por reconhecimento.

O autor sugere que na base dos conflitos que instauram lutas


por reconhecimento está uma “experiência moral” de desrespeito que,
sendo inicialmente experimentada de forma individual, é convertida em
experiência coletiva por meio da transformação das experiências privadas
em “controvérsias” públicas.

Compreendida desse modo, a noção de “conflito moral” é de grande


importância para a recaptura da teoria da etnicidade, que passa a ter por
base uma unidade social definida mais em termos morais que em termos
estruturais. Temos, assim, a definição de comunidades políticas a partir de
uma relação de alteridade, mas sem que seja preciso nem atribuir substância
a tais comunidades, nem confinar tal noção de alteridade aos mecanismos
estritamente locais de definição de “fronteiras étnicas”. É o conflito em
torno dos limites entre o respeito e o desrespeito e a capacidade de agenciar
positivamente na forma de uma comunidade imaginada os estigmas do
passado, que se torna possível reimaginar a etnicidade: ela emerge em um
contexto poliétnico que tem por sustentação uma sociedade de comunicação
ampliada, assim como um contexto de regulação englobante. Neste caso há a
positivação não apenas das marcas que carregam o estigma, isto é, da relação
entre os indivíduos e as marcas étnicas, conforme chama atenção Banton
(1977), mas também do próprio vínculo que liga os sujeitos entre si, por meio
de tais marcas.

Se o racismo permite falar da existência de um grupo por meio de


atributos imputados e raramente afirmados, a etnicidade tem como maior
atributo constituir o próprio grupo com base na resposta a tal imputação.

117
UNIDADE 2 | TEORIAS DA ETNICIDADE, RELAÇÕES DE GÊNERO E O DEBATE MULTICULTURAL

Uma radicalização do caráter relacional que está na base da definição teórica


dos grupos étnicos.

Assim, a etnicidade passa a descrever performances identitárias


que incluem também os amplos contextos derivados da diáspora africana,
assim como da reorganização em contexto urbano dos grupos étnicos e
nacionais em processo de migração rural-urbana, assim como de imigração
entre fronteiras nacionais. Em todos estes casos, a etnicidade continua
servindo para classificar e, com base na classificação, organizar e regular a
interação entre indivíduos, mas agora tendo por base um arco de formas
sociológicas que vão do grupo étnico às comunidades imaginadas de
diversos tipos. Finalmente, há a questão de se definir se a etnicidade é um
conceito teórico geral, destinado a descrever um fenômeno fundamental ou
ao menos recorrente, ou se ela descreveria fenômenos novos, decorrentes
da intensificação dos movimentos identitários, que se seguiram a dois
momentos tão cruciais quanto a Segunda Grande Guerra e a queda do Muro
de Berlim.

Uma discussão certamente extensa demais para os limites deste


verbete. Em lugar disso, seria útil reconhecer que, de uma forma ou de
outra, o uso do conceito está submetido a variações históricas e geográficas
importantes, determinadas pelo modo segundo o qual as diferentes tradições
intelectuais — em especial nos contextos acadêmicos que temos por referência
neste dicionário — se relacionam com os fenômenos que o conceito pretende
descrever. Assim, se no Brasil encontramos a tendência de se dar à teoria da
etnicidade o estatuto de uma teoria geral, isso não parece ocorrer da mesma
forma nos contextos português e no de países africanos.

No Brasil, houve uma ampla incorporação da teoria dos grupos étnicos


e do uso da categoria de etnicidade pelas diversas antropologias: desde a
indígena até a urbana, passando pelas relações étnico-raciais e mesmo das
relações de gênero, entre outras. Tendo origem na abordagem de Roberto
Cardoso de Oliveira (1978) sobre a problemática do contato entre índios e
brancos, ela está na base da categoria de “fricção interétnica” que, realizando
uma crítica fundamental às abordagens centradas no tema da “aculturação”,
serviu de paradigma para boa parte dos trabalhos de etnologia indígena
no país. Sua centralidade se manifestaria mesmo na legislação e na política
nacional para estas populações, na medida em que foi uma interpretação
em termos de grupos étnicos que permitiu aos antropólogos responderem
aos questionamentos governamentais das décadas de 1970 e 80 contrários ao
reconhecimento de grupos indígenas e da legitimidade de seu movimento
político com base em critérios culturais objetivos (CUNHA, 1986).

Recentemente, ela ocupa lugar também na literatura sobre relações


étnico-raciais, isto é, naquela que aborda a relação entre brancos e negros.
Depois das críticas ao chamado “mito da democracia racial” e de uma farta

118
TÓPICO 2 | RAÇA, NAÇÃO, ETNIA, IDENTIDADE ÉTNICA, GRUPOS ÉTNICOS E SUAS FRONTEIRAS

literatura sobre as manifestações de um racismo cordial” (GUIMARÃES,


2002), a literatura, acompanhando o próprio movimento da sociedade, tem
abordado as diversas formas de positivação e afirmação da “negritude”,
que passam a ser interpretadas em termos de etnicidade. O lugar ocupado
pelo tema da etnicidade na antropologia feita hoje no Brasil é tão importante
que, pode-se dizer, polariza o debate teórico travado no campo da etnologia
(OLIVEIRA, 1999; VIVEIROS DE CASTRO, 1999), expandindo-se também
sobre outros campos de estudos, que vão das relações raciais — designadas,
a partir da década de 1980, de “étnicorraciais” —, aos fenômenos da
urbanização, passando pelos movimentos sociais, entre outros.

Em Portugal, por sua vez, o uso da categoria étnico e seus derivados


parece se restringir a abordagens voltadas para os grupos de imigrantes,
aplicando-se à descrição e reflexão sobre apenas um “outro” grupo social
interno à sociedade portuguesa, os ciganos. Neste sentido, a etnicidade
parece descrever um fenômeno recente, não alcançando o estatuto de uma
teoria dos modos de organizar a sociedade (MACHADO; AZEVEDO, 2009).

Além disso, o fato de se aplicar quase exclusivamente aos imigrantes,


isto é, a grupos que são, em sua maioria, originários das ex-colônias,
acaba por reificar uma percepção geral substancialista da categoria etnia,
mesmo que o seu emprego em estudos pontuais esteja sustentado em uma
perspectiva teórica próxima a de Barth. No caso dos estudos sobre grupos
de imigrantes europeus, a etnicidade claramente desloca sua substância do
étnico para o nacional estrangeiro, mas mantendo o foco em grupos mais
facilmente pensáveis a partir de características primordiais. O contexto
africano, por outro lado, parece marcado por uma forte resistência ao uso
da categoria etnicidade, provavelmente pelas mesmas razões — mas com
efeitos invertidos — que no contexto português.

Neste caso, é o risco iminente da reificação do étnico como


fundamento de fraturas de caráter primordialista, cujas consequências
políticas estão ainda vivas nas suas sociedades, que leva a que os cientistas
sociais africanos evitem teorizar sobre suas sociedades tomando por base a
etnicidade. Em lugar de focarem as “fronteiras étnicas”, a gênese dos grupos
de identidade ou o tema da performance das diferenças e das identidades,
as ciências sociais em África tendem a definir suas unidades de análise com
base em critérios substantivos, mas não totalizantes, como a língua, a região
ou o tipo de atividade social predominante. Aqui a semântica e a teoria do
étnico parecem indissociáveis, ora de uma postura científica comprometida
com uma tradição colonial, ora de uma posição analítica que correria o risco
de oferecer suporte a movimentos políticos sectários.

FONTE: SANSONE, Livio; FURTADO, Alves, Cláudio (org). Dicionário crítico das ciências sociais dos
países de fala oficial portuguesa. Salvador: EDUFBA, 2014.

119
UNIDADE 2 | TEORIAS DA ETNICIDADE, RELAÇÕES DE GÊNERO E O DEBATE MULTICULTURAL

6 ETNICIDADE E MODERNIDADE
Como podemos perceber, a etnicidade é interpretada de diferentes maneiras,
como a ideia de que é produto da desigualdade de desenvolvimento dos diferentes
países e territórios, como uma estratégia de reivindicações frente aos recursos
do welfare state, como resistência ao processo de modernização e globalização da
cultura, como o resultado histórico da economia capitalista globalizada, ou ainda
como a mistura de todos esses elementos.

NOTA

Welfare state, Estado-providência, ou Estado de Bem-Estar Social: Estes termos


são aplicados, grosso modo, aos Estados que implantaram sistemas alargados de proteção
social e aos que praticam políticas de redução das desigualdades econômicas e sociais. O
Estado-providência é um Estado social que em nome da segurança ou da igualdade se substitui
parcialmente ao mercado e/ou corrige os seus resultados. A expressão "Estado-providência"
é relativamente recente; nasceu de uma tradução aproximativa do inglês Welfare state. Esta
noção não está isenta de ambiguidades e evoluiu à medida que se foi desenvolvendo o Estado
social. Esquematicamente, podem distinguir-se duas principais formas de Estado-providência,
que se sucederam na maioria dos países ocidentais: o Estado protetor e o Estado redistributivo.
O Estado protetor, que se desenvolveu nos anos 30, visava primeiro limitar os custos sociais
do mercado e garantir uma certa segurança face aos mais importantes riscos econômicos
(desemprego, doença, velhice etc.). O Estado redistributivo (desenvolvido nos anos 60 e 70)
procura estabelecer uma certa igualdade: a redução das desigualdades econômicas (e sociais)
torna-se então uma das missões essenciais da ação pública, à qual tendem a ser ligadas ou
subordinadas as políticas sociais no seu conjunto. Esta evolução foi travada ou estorvada em
fins dos anos 70 (um pouco mais tarde na França) em razão da crise econômica e também da
tomada de consciência dos "efeitos perversos" das políticas igualitárias dos anos precedentes
(UFSC, 2017, p. 173).

O fato é que etnicidade é um conceito essencialmente contemporâneo e


muitos autores defendem que a fluidez e a globalização das informações na
sociedade moderna contribuem para a difusão dos sentimentos nacionalistas e
étnicos, ou seja, diferentemente do que alguns autores acreditavam, as tecnologias
da modernidade não trouxeram individualismo e uniformização à dinâmica
social, mas ao desenvolvimento de nacionalismos étnicos, racismo e identidades
particulares. Vejamos a seguir um exemplo.

O sentido da identidade bretã, realça Berger (1972), reforçou-se a partir


da Primeira Guerra Mundial, quando os jovens bretãos começaram a
descobrir a França e numerosos bretões, cuja consciência de pertença
regional não ultrapassava os limites da sociedade local ou do departamento
administrativo, descobriram, pelo rádio e depois pela televisão, que
pertenciam a uma entidade designada como Bretanha. Segundo Connor
(1972), o aumento considerável dos contatos intergrupais foi percebido
por um significativo número de indivíduos como uma ameaça contra
a sobrevivência de suas tradições culturais específicas, favorecendo
uma ideologia de resistência à uniformização ou à dominação cultural

120
TÓPICO 2 | RAÇA, NAÇÃO, ETNIA, IDENTIDADE ÉTNICA, GRUPOS ÉTNICOS E SUAS FRONTEIRAS

e linguística. Além disso, a facilidade e a rapidez das comunicações do


mundo moderno possibilitaram não apenas a difusão das formas de
organização, dos slogans e das reivindicações de grupo – podendo, como
foi o caso em relação aos negros americanos e aos palestinos, fazer o
papel de modelos -, mas igualmente permitiram a constituição de redes
internacionais de militantes nacionalistas e a difusão das técnicas de
guerrilha (POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 2011, p. 28).

Esses movimentos também aconteceram em países de Terceiro Mundo e com


as minorias do Ocidente. No caso dos países de Terceiro Mundo, os movimentos
surgiram devido às reivindicações baseadas nas teorias da dependência econômica.
Tomando como exemplo os levantes dos países menos desenvolvidos, também
alguns países da Europa tiveram movimento de independência.

7 DIÁSPORAS E DESLOCAMENTOS
O termo diáspora é extraído dos antigos termos gregos dia (através, por
meio de) e speirõ (dispersão, disseminação), sendo que a palavra atualmente é
utilizada de várias maneiras.

Inicialmente, é necessário destacar que o termo diáspora foi associado à


experiência traumática do povo judeu que foi exilado de sua pátria e disperso para
vários países.

Essa experiência acabou emprestando ao termo diáspora um sentido


negativo, associando às dispersões territoriais a ideia de alienação, perda e
exílio forçado. Por este motivo, outros movimentos migratórios passaram a ser
comparados à experiência judaica e, portanto, ao termo diáspora.

Dito de outra forma, por diáspora se pode compreender toda e qualquer


dispersão de um povo por meio de perseguições e discriminações políticas,
religiosas ou étnicas. Atualmente, o termo é utilizado para designar praticamente
qualquer comunidade transnacional, ou seja, todo movimento migratório de
grandes populações que ultrapasse as fronteiras nacionais.

O problema que se coloca quando o termo é utilizado de forma ampla, é


que é normalmente confundido com categorias como imigrantes, trabalhadores
temporários, minorias étnicas, viajantes ou refugiados.

A ideia de diáspora foi construída com base em uma dimensão de dupla


consciência. Pressupõe-se que os sujeitos da diáspora possuem uma consciência
individual forjada sobre conexões descentralizadas e multilocalizadas, de estar
simultaneamente “em casa” e “longe de casa” ou de estarem ao mesmo tempo
“aqui e lá” (CASHMORE, 2000). Do ponto de vista da produção cultural é possível
verificar a fluidez dos estilos construídos e das identidades dos povos na diáspora.
Percebe-se o desenvolvimento e a reprodução de culturas híbridas ou alternativas.

121
UNIDADE 2 | TEORIAS DA ETNICIDADE, RELAÇÕES DE GÊNERO E O DEBATE MULTICULTURAL

Por outro lado, a diáspora também é percebida como um novo tipo de


problema, especialmente por grupos nacionalistas e de direita. Estes percebem
as comunidades transnacionais como uma ameaça à segurança dos Estados,
como fontes potenciais de terrorismo internacional. Além disso, existe uma forte
preocupação dos Estados receptores das comunidades transnacionais com os laços
que estas comunidades mantêm com seus países e etnias de origem. Para eles,
talvez a lealdade para com os seus países de origem pode ser muito mais profunda
do que com o país que os hospedam, conforme destaca Cashmore (2000).

Estas perspectivas se acentuam ainda mais quando ocorrem situações de


conflito, como o ataque à sede de revista satírica Charlie Hebdo, em Paris, no início
do ano de 2015, e o ataque ocorrido no final do ano de 2016 em Paris, que matou
mais de 180 pessoas. Nos dois casos o Estado Islâmico se responsabilizou pelos
atentados, sendo que, no caso do ataque a Paris, dos sete terroristas envolvidos
quatro eram franceses.

FIGURA 40 - ATENTADO EM PARIS

FONTE: Disponível em: <http://ultimosegundo.ig.com.br/mundo/2015-01-07/homens-armados-


provocam-mortes-ao-atacar-sede-de-revista-satirica-em-paris.html>. Acesso em: 20 jun. 2017.

Formas culturais híbridas e múltiplas identidades expressas pela juventude


que se autoproclama “na diáspora” também são vistas pelos conservadores da
“sociedade hospedeira” como ataques às normas tradicionais (hegemônicas e
assimiladoras).

É claro que esta última imagem da diáspora não é compartilhada por vários
grupos sociais, nem pela maior parte do meio acadêmico. Muitos, ao contrário,
percebem as fortes redes transnacionais como características da globalização,
especialmente o fortalecimento das telecomunicações e das facilidades de viajar.
Assim como existem aqueles a quem agrada a ideia de construir novas identidades
e formar culturas híbridas.

Com relação aos processos de migração contemporâneos, pode-se dizer


que cerca de 200 milhões de pessoas, ou seja, 2,8% da população mundial é

122
TÓPICO 2 | RAÇA, NAÇÃO, ETNIA, IDENTIDADE ÉTNICA, GRUPOS ÉTNICOS E SUAS FRONTEIRAS

constituída atualmente por migrantes, conforme destaca Cogo (2007), sendo que
todos os continentes apresentam movimentos de migração, assim como acolhem
populações em deslocamento, especialmente em nível internacional.

O aumento do número de deslocamentos, assim como o seu caráter


internacional, são características dos processos atuais de migração, que até
pouco tempo atrás estavam restritos apenas a algumas nações e regiões. Em
grande medida, a ampliação da migração e da variedade de países e territórios
que recebem essas comunidades ocorreu devido às possibilidades de mobilidade
disponíveis atualmente e também da emergência de novos migrantes originários de
zonas geográficas que não faziam parte dos fluxos migratórios tradicionais, como
a Ásia Central e Oriental e o Leste Europeu. Os estados receptores tradicionais
costumavam ser até então o norte da América e a Austrália. Estas ainda permanecem
sendo importantes áreas receptoras de migração internacional.

No entanto, com o crescimento acelerado dos processos migratórios, hoje


verificam-se outras áreas receptoras desse contingente. Sobre o crescimento do
número de imigrantes nos últimos 30 anos, Cogo (2007) relata que os 77 milhões
registrados em 1965 sobem para 111 milhões em 1990; 140 milhões em 1997; e
175 milhões no ano 2000. “Os indicadores apontam para a distribuição desigual
das migrações, com a concentração de 90% dos migrantes em somente 55 países.
Espanha, Estados Unidos e Alemanha são os países que registraram o maior
aumento do número de imigrantes” (COGO, 2007, p. 65).

A imigração internacional clandestina é um tipo de movimento migratório


bastante recorrente nos últimos tempos. Isso ocorre devido à dinâmica capitalista
que aproximou países em blocos econômicos, como a União Europeia e o Mercosul,
por exemplo. Esse contato aumenta e intensifica os deslocamentos internacionais
em busca de melhores condições de trabalho e renda.

Esse tipo de migração normalmente não é contabilizado pelos censos e


pesquisas oficiais realizados, uma vez que não deixa registro. De acordo com Cogo
(2007, p. 66), “nos Estados Unidos foram recenseados 8,5 milhões de imigrantes
sem documentos em 2000, o que permite fazer uma estimativa de 12 milhões de
clandestinos. Na Europa, por sua vez, haveria oito milhões de imigrantes sem
documentos”.

Ainda podem ser verificados outros tipos de movimentos migratórios,


como os refugiados, os asilados, as pessoas e grupos que migram voluntariamente,
como profissionais qualificados que são contratados em outros países, como
empregados civis internacionais, empresários independentes, cientistas, médicos
e outros. Existem ainda os imigrantes da Terceira Idade, conforme destaca
Cogo (2007). Esses normalmente são impulsionados por condições climáticas e
econômicas favoráveis ao estilo de vida deste grupo social.

Um importante impacto econômico relacionado à questão da migração diz


respeito às remessas de recursos realizadas pelos imigrantes aos seus países de
origem, que somente no ano de 2002, como descreve Cogo (2007), somaram cerca
de 25 bilhões de dólares enviados aos países da América Latina.

123
RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico, você aprendeu:

• Acerca de etnicidade, identidade étnica, nação, raça, grupos étnicos e suas


fronteiras.

• A noção de raça no início do século XX, utilização do termo para designar


características físicas das diferentes populações mundiais, como os asiáticos, os
negros, os indígenas e os brancos.

• A eugenia e a ideia de superioridade biológica formam uma corrente de


pensamento a partir da qual vários países acabaram por assumir o discurso
racista para justificar suas ações.

• O conceito de raça foi retirado do debate acadêmico após a Segunda Guerra


Mundial, compreendendo-o como um conceito frágil, ilegítimo e não científico.
Devido às pesquisas genéticas, se sabe hoje que não existem raças humanas
diferentes.

• O racismo sem raça acontece quando as características étnicas ou culturais


(religiosidade, crenças, regras sociais) de um grupo são tomadas no lugar das
características biológicas/raça (cor de cabelo, pele, traços fisionômicos) para
justificar relações de hierarquia e desigualdades sociais.

• A ideia de que há muito tempo as diferentes posições sociais são demarcadas e


justificadas com base em consensos sociais, com base em naturalizações.

• As diferenças entres os termos raça, nação e etnia.

• A identidade étnica se constrói pelo contraste com o outro, entre membros e


não membros de um grupo étnico.

• Um grupo étnico só é possível se os atores tiverem a consciência das fronteiras


que marcam o sistema social ao qual acreditam pertencerem e também
identificarem os outros atores de outros sistemas sociais como diferentes.

• O debate sobre etnicidade e modernidade: Para muitos autores, a fluidez e a


globalização das informações na sociedade moderna contribuem para a difusão
dos sentimentos étnicos.

• O conceito de diáspora traz o sentido de dispersão de um povo por meio de


perseguições e discriminações políticas, religiosas ou étnicas. Atualmente, no
entanto, o termo é utilizado para designar praticamente qualquer comunidade
transnacional.

124
AUTOATIVIDADE

1 Apesar de ter sido por muito tempo confundido no meio


acadêmico, há diferenças entre os termos etnia, nação e raça.
Isso porque cada um deles procurou explicar os motivos
pelos quais os seres humanos se reúnem em grupos. A partir
de sua interpretação, conceitue cada um deles.

2 Por muito tempo o conceito de raça, além de designar


características físicas, também foi usado para justificar
a manutenção da desigualdade social. Nesse sentido, o
termo racismo sem raça surge para explicar até mesmo as
desigualdades sociais promovidas por outros fatores sociais, como o
gênero e a classe social. Explique o conceito de racismo sem raça com suas
palavras.

125
126
UNIDADE 2
TÓPICO 3

GÊNERO E MULTICULTURALISMO - CONCEITOS


IMPORTANTES PARA O COMBATE ÀS
DESIGUALDADES SOCIAIS ONTEM E HOJE

1 INTRODUÇÃO
Com o surgimento do conceito de etnia, surgem os conceitos de Gênero e
Multiculturalismo, ambos atrelados a movimentos sociais de luta por direitos. No
caso do multiculturalismo, surge a partir dos movimentos negros da década de
1960, e o conceito de gênero surge inicialmente atrelado ao movimento feminista e
aos estudos feministas, no espaço universitário, na década de 1980.

Os dois movimentos possuem duas dimensões distintas, uma relativa


aos movimentos sociais e outra relativa aos estudos e pesquisas realizados
nas universidades. Também os dois campos de estudos são provenientes
majoritariamente das Ciências Sociais.

Um dos resultados destes movimentos foi o desmantelamento do


segregacionismo racial nos Estados Unidos, devido às lutas pelos direitos civis
na década de 1960. A partir daí se começou a perceber quais mecanismos sociais
de fato contribuíam para a manutenção das desigualdades raciais e sexuais. As
desigualdades não eram produzidas por questões inerentes à raça ou ao sexo
(incapacidade física ou intelectual), mas sim por todo um sistema social, político
e econômico que oferecia aos negros e mulheres oportunidades desiguais, como a
falta de acesso a escolas e a empregos de qualidade, como a exposição à pobreza
(GUIMARÃES, 1995). Assim surgem outros conceitos interpretativos da realidade,
como a etnia, o gênero, o status social, entre outros.

2 DO MOVIMENTO FEMINISTA AOS ESTUDOS DE GÊNERO


Os estudos de gênero surgiram pela necessidade de compreender certos
aspectos das desigualdades sociais, especialmente aqueles relacionados às
hierarquias sociais provenientes das diferenças sexuais. No entanto, para chegarmos
a discutir especificamente a categoria de gênero, é importante compreender suas
raízes históricas.

O surgimento dos estudos atuais sobre a condição feminina e sobre as


assimetrias sociais, os “Estudos de Gênero”, só foram possíveis porque, ao longo
do tempo, muitos foram os movimentos de mulheres denunciando as situações de

127
UNIDADE 2 | TEORIAS DA ETNICIDADE, RELAÇÕES DE GÊNERO E O DEBATE MULTICULTURAL

opressão, preconceito e dominação que sofreram e ainda sofrem. O movimento


feminista não pode e não deve ser reconhecido como um movimento único,
mas sim como o conjunto de movimentos ocorridos desde o século XVIII (e
provavelmente até mesmo antes disso) voltados a conquistas de direitos para as
mulheres. Se hoje o gênero representa uma categoria de análise tão importante
para as Ciências Sociais, como o conceito de classe e etnia, é porque se fez legítimo
pelas tantas batalhas dos movimentos feministas, tornando-se fundamental para a
compreensão das relações humanas.

Para falarmos sobre os estudos de gênero, é necessário primeiro


contextualizar o surgimento deste conceito, não é mesmo?

O termo gênero surge nos Estados Unidos na década de 1970, quando os


problemas das mulheres começam a entrar em cena nos espaços universitários,
mas antes disso é preciso compreender que o conceito de gênero decorre do
movimento feminista e de suas lutas. Por este motivo, vamos conhecer um pouco
sobre o feminismo.

O feminismo é um conceito múltiplo, porque possui uma dimensão política


que se refere aos movimentos de luta por direitos, e uma dimensão acadêmica,
que se refere aos estudos da condição feminina. A dimensão acadêmica, ou seja,
o campo de pesquisa e de conhecimento sobre as mulheres, pode ser considerada
multidisciplinar, porque ocorre em diferentes campos disciplinares, como:
Antropologia, História, Educação, Sociologia, Direito e vários outros.

O principal objetivo do movimento feminista não foi alcançar a igualdade


entre homens e mulheres, mas sim a equidade entre eles. Para assegurar a
equidade de gênero não deve ser necessário que as mulheres assumam posturas
“masculinas”. Elas devem preservar suas identidades. Por isso a ideia de
“equidade” e não igualdade.

No debate de gênero e etnia, quando se fala em equidade referimo-nos


ao entendimento de que é necessário reconhecer as diferenças para adequar as
políticas e demais ações sociais para a realidade de cada um, permitindo que todos
alcancem seus direitos e a justiça social ocorra.

FIGURA 41 – CONCEPÇÃO DE IGUALDADE E EQUIDADE

FONTE: Disponível em: <https://br.linkedin.com/topic/equidade>. Acesso em: 6 fev. 2017.

128
TÓPICO 3 | GÊNERO E MULTICULTURALISMO - CONCEITOS IMPORTANTES
PARA O COMBATE ÀS DESIGUALDADES SOCIAIS ONTEM E HOJE

O Movimento Feminista surgiu no século XVIII, na Europa, especialmente


na Inglaterra e França, mas logo repercutiu em outros países e se desenvolveu de
diferentes formas e expressões até os dias atuais. Para dar uma ideia da dimensão
do Feminismo, ele foi dividido em três grandes momentos, que explicam as
diferentes concepções e lutas do movimento: As chamadas primeira, segunda
e terceira onda feminista. De acordo com Zirbel (2016, p. 98), a “Primeira Onda
Feminista” refere-se:

[...] às extensas lutas a favor do direito de voto para mulheres (também


conhecido como movimento sufragista), que se estenderam no ocidente
desde o final do século XIX até meados do século XX, configuram a
primeira onda feminista, cujo objetivo central foi o de reformar as
instituições sócio-políticas no sentido de propiciar maior igualdade
entre homens e mulheres, utilizando-se do voto como estratégia. No
final da década de 1960 e em grande parte da década de 1970, após a
percepção e avaliação de que o voto não fora suficiente para operar as
mudanças desejadas, uma segunda onda de protestos e reivindicações
buscou ampliar direitos.

A Segunda Onda Feminista culmina com os movimentos sociais em


andamento nos Estados Unidos, e o país será desta vez a referência do movimento
para o restante do mundo. A segunda onda feminista se refere a um período da
atividade feminista que começa no início da década de 60 e dura até o fim da
década de 80. Este momento do feminismo é considerado um dos mais importantes,
porque é quando de fato os movimentos começam a se tornar mais organizados.
Nesse período os Estados Unidos são um dos mais importantes polos de lutas por
direitos das mulheres no Ocidente. Houve várias mudanças sociais objetivas, como
a conquista do direito ao voto, o acesso ampliado à educação, ao trabalho e uma
maior participação política das mulheres. Além disso, outras questões, como as
conquistas sociais em torno do aborto e dos direitos reprodutivos (contracepção),
pela proteção das mulheres vítimas de violência, entre outros.

É na Terceira Onda Feminista que surge o conceito de gênero, nos Estados


Unidos, especialmente por meio do movimento feminista e do movimento homossexual
que, na década de 1970, começam a questionar as relações de dominação e opressão
no espaço privado, local em que mulheres e homossexuais eram constantemente
obrigados a representar os papéis sociais “naturais” ao seu sexo.

129
UNIDADE 2 | TEORIAS DA ETNICIDADE, RELAÇÕES DE GÊNERO E O DEBATE MULTICULTURAL

FIGURA 42 - PAPEL SOCIAL DA MULHER NA DÉCADA DE 1940, NOS


ESTADOS UNIDOS

FONTE: Disponível em: <https://br.pinterest.com/pin/783908497360


79944/>. Acesso em: 10 mar. 2017.

A partir desses movimentos, os temas mulher e sexualidade começam


a adentrar o espaço universitário, e pesquisas passam a ser desenvolvidas no
interior de várias disciplinas. Logo se percebe que não é mais possível falar sobre
a mulher de maneira generalizante, ou seja, de uma única condição feminina, mas
levar em conta outros elementos no entendimento das desigualdades e assimetrias
que sofriam as mulheres.

Era necessário levar em conta a posição de classe, a identidade étnica, as


referências regionais nas quais as mulheres estariam inseridas, assim como todos
os condicionantes que implicam esses lugares sociais que ocupavam. Porque não
eram os mesmos problemas que viviam, por exemplo, mulheres brancas de classe
média e mulheres negras, pobres de periferia. Por mais que as duas sofressem
discriminações de gênero, como a imposição dos papéis sociais que pressupunham
uma posição de submissão e obediência aos homens, por exemplo, ainda outras
discriminações e dificuldades se sobrepõem no caso da mulher pobre e negra.
130
TÓPICO 3 | GÊNERO E MULTICULTURALISMO - CONCEITOS IMPORTANTES
PARA O COMBATE ÀS DESIGUALDADES SOCIAIS ONTEM E HOJE

FIGURA 43 - AS CONDIÇÕES FEMININAS

FONTE: Disponível em: <https://maniacosporfilme.files.wordpress.com/2013/04/the-help-3.


jpg>. Acesso em: 20 jun. 2017.

Nesse período, várias teses são desenvolvidas, no entanto, a referência


utilizada para o reconhecimento das mulheres enquanto grupo ainda permanece
bastante associada a uma unidade biológica, como vagina, útero, seios (GROSSI, s.d.).

Em seguida, surge o conceito de gênero para acabar de vez com a


essencialização da condição feminina, através de pesquisadoras norte-americanas.
Elas vão tratar as relações entre homens e mulheres de forma a negar as diferenças
biológicas como constituidoras das identidades dos seres humanos e introduzir
a perspectiva de que somos construídos a partir de determinados mecanismos
sociais, que nos condicionam a cumprirmos papéis sociais, preestabelecidos. Uma
das principais responsáveis por essa nova perspectiva é a autora Joan Scott. No
artigo intitulado “Gênero: uma categoria útil de análise histórica”, ela diz que:

O gênero torna-se uma maneira de indicar ‘construções sociais’ – a criação


inteiramente social de ideias sobre os papéis adequados aos homens
e às mulheres. É uma maneira de se referir às origens exclusivamente
sociais das identidades subjetivas dos homens e das mulheres. O gênero
é, segundo esta definição, uma categoria social imposta sobre um corpo
sexuado (SCOTT, 1995, p. 7).

Para a estudiosa Françoise Heritier (1996), o conceito de gênero é relacional,


ou seja, se constrói na relação entre homens e mulheres, haja vista que ninguém
vive só, pois todas as pessoas se relacionam desde que nascem, independentemente
das regras sociais e culturais.

Segundo Grossi (s.d.), papéis de gênero são as representações (tomadas


como representações de uma personagem no teatro) de cada sexo, ou seja, papéis

131
UNIDADE 2 | TEORIAS DA ETNICIDADE, RELAÇÕES DE GÊNERO E O DEBATE MULTICULTURAL

sexuais são as características atribuídas a cada sexo, de acordo com sua cultura.
São modelos do que é próprio e concernente a cada sexo.

Sabe-se, através de relatos de historiadores, que os papéis de gênero


podem ser alterados dentro de uma mesma sociedade, dependendo das situações.
Com relação à identidade de gênero, ela se forma, segundo Grossi (s.d.), a partir
da socialização de valores e comportamentos que são internalizados logo nas
primeiras fases da infância. Esses valores e comportamentos que são repassados
são diferentes para cada sexo e também variam de uma cultura para outra.

Nos últimos tempos os estudos de gênero passaram a se preocupar com


várias questões relativas ao universo das relações sociais. Observar a realidade a
partir da análise de gênero possibilitou novas interpretações sobre o comportamento
humano e a reprodução das desigualdades de gênero.

3 MULTICULTURALISMO
Caro acadêmico, neste item vamos trabalhar o conceito de multiculturalismo,
procurando apresentar o seu contexto de surgimento. Vamos focar nas políticas
multiculturais nos Estados Unidos, compreendendo que os movimentos sociais
naquele país foram fundamentais para a ampliação do debate sobre direitos civis
e, portanto, fundamentais para o multiculturalismo. Por este motivo, destacamos a
trajetória histórica dos índios norte-americanos e o processo de escravidão ocorrido
no país. Para complementar, destacamos a importância dos movimentos negros e
suas principais lideranças para as políticas de ação afirmativas nos Estados Unidos.

Apresentamos também, como resultado das lutas sociais da década de 1960


nos Estados Unidos, a conquista da Lei dos Direitos Civis e as primeiras políticas
de ações afirmativas no país.

Por fim, realizamos uma discussão acerca do que são Políticas Públicas de
Ação Afirmativa, objetivando nivelar os conhecimentos acerca destes temas de
estudos, que servirão de base para a compreensão do debate multicultural.

3.1 MULTICULTURALISMO E SEU CONTEXTO HISTÓRICO


A seguir vamos trabalhar o conceito de multiculturalismo, enfatizando
as origens do surgimento do movimento, situando-o do ponto de vista político
(movimentos sociais multiculturais e políticas públicas) e teóricos (ciências
multiculturalistas), visando oferecer conteúdo de base para a interpretação deste
campo de estudos e sua importância para o debate das relações interétnicas.

Conhecer o conceito de multiculturalismo e suas origens é importante, pois,


ao longo de sua trajetória profissional e pessoal, você certamente os utilizará para
132
TÓPICO 3 | GÊNERO E MULTICULTURALISMO - CONCEITOS IMPORTANTES
PARA O COMBATE ÀS DESIGUALDADES SOCIAIS ONTEM E HOJE

interpretar as diferentes realidades sociais nas quais estiver inserido. Portanto,


bons estudos!

Como a própria etimologia da palavra nos sugere, o termo “multi” significa


vários; o termo “culturalismo” refere-se à cultura; e o sufixo “ismo” está associado
às posições assumidas ou ideias aceitas sobre as possibilidades de conhecimento,
ou seja, no caso de multiculturalismo significa uma posição assumida sobre as
diferentes relações entre as várias culturas.

O “multiculturalismo” é um termo polissêmico e existem, pelo menos, dois


sentidos diferentes em que este pode ser utilizado. Um primeiro sentido é
descritivo e reporta a um fato da vida humana e social, que é a diversidade
cultural étnica, religiosa que se pode observar no tecido social, ou seja, um
certo cosmopolitismo que atualmente é fácil de ver em qualquer grande
cidade da Europa e da América do Norte. Um segundo sentido é prescritivo
e está associado às chamadas políticas de reconhecimento da identidade
e/ou da diferença que os poderes públicos prosseguem, ou deveriam
prosseguir, segundo os seus defensores, em nome dos grupos minoritários
e/ou “subalternos” (FERNANDES, 2006, p. 2).

Dito de outra forma, MULTICULTURALISMO significa a existência de


grupos de diversas culturas, assim como o embate político, econômico e social
travado pelos diferentes grupos sociais na luta pelo respeito à diversidade. Por
isso, além de estudos teóricos e empíricos, o termo implica na conquista de
reivindicações das chamadas minorias ou grupos marginalizados, como os negros,
índios, mulheres, homossexuais e outros tantos, que buscam assegurar seus
direitos sociais através de políticas públicas de ação afirmativa.

O multiculturalismo é pluralista, porque as diferenças coexistem em um


mesmo país ou região. Ali convivem diferentes culturas, valores e tradições.
Há o diálogo e convivência pacífica entre as culturas diversas. No entanto, esta
coexistência pacífica não significa negar as diferenças entre as culturas, nem as
homogeneizar, mas compreendê-las a partir de uma visão dialética sobre os
termos igualdade e diferença, na medida em que não se pode falar em igualdade
sem levar em conta as diferenças culturais, e não se pode relacionar a diferença
como medida de valor.

Por este motivo, entendemos que igualdade e diferença não são termos
opostos. De fato, a IGUALDADE opõe-se à desigualdade, enquanto DIFERENÇA
opõe-se à padronização, à homogeneização, à produção em série.

Neste sentido, o objetivo do multiculturalismo, assim como todo o debate das


relações interétnicas, é lutar pela igualdade e pelo reconhecimento das diferenças.
Assim, um dos temas centrais para o multiculturalismo tem sido o DIREITO À
DIFERENÇA e a DIMINUIÇÃO DAS DESIGUALDADES, bandeira de luta de
vários movimentos sociais contemporâneos espalhados pelo mundo inteiro.

O termo “multiculturalismo” é relativamente recente e sua utilização


ocorreu pela primeira vez na Inglaterra, entre as décadas de 1960 e 1970. Na
linguagem oficial, de acordo com Fernandes (2006), o “multiculturalismo” surgiu
133
UNIDADE 2 | TEORIAS DA ETNICIDADE, RELAÇÕES DE GÊNERO E O DEBATE MULTICULTURAL

no Canadá e na Austrália, para designar as políticas públicas com o objetivo de


valorizar e/ou promover a diversidade cultural. O autor destaca que ainda nesse
período outros países anglo-saxônicos, como o Reino Unido, a Nova Zelândia e os
EUA, também iniciam políticas públicas qualificadas como “multiculturais”.

NOTA

PAÍSES ANGLO-SAXÔNICOS: são países cujos descendentes são provenientes de


povos germânicos (anglos, saxões e jutos). Esta denominação é resultado da fusão desses
povos que se fixaram ao sul e leste da Grã-Bretanha, no século V.

O multiculturalismo possui, na sua essência, a ideia, ou ideal, de uma coexistência harmônica


entre grupos étnica ou culturalmente diferentes em uma sociedade pluralista. Os principais
usos do termo, contudo, alcançaram uma extensão de sentidos que o incluíram como uma
ideologia, um discurso e um apanhado de políticas e práticas.

Ideologicamente, o multiculturalismo abrangeu temas relacionados, incorporando a aceitação


de diferentes grupos étnicos, religiosos, práticas culturais e diversidades linguísticas numa
sociedade pluralista. Quando aplicado à política, abrangeu uma extensão de antigas políticas
estatais com dois propósitos principais: manter a harmonia entre grupos étnicos diversos e
estruturar as relações entre o Estado e as minorias étnicas.

Em termos de política estatal, o Canadá é identificado como o país que mais tem promovido
políticas de multiculturalismo: por exemplo, manifestações de um ideal político em manter
as relações entre os grupos étnicos de modo a implicar coexistência, tolerância mútua e
igualdade. A imagem do “mosaico” canadense, no qual os grupos que o compõem possuem
formas distintas, mas formam juntos um todo unificado, costuma ser comparada à imagem
do “cadinho de raças”, usada para tipificar os objetivos de assimilação das minorias étnicas nos
Estados Unidos.

Alguns críticos do multiculturalismo argumentaram o seu efeito de dividir a sociedade e a


sua tendência a ameaçar a unidade do Estado. Outros alegaram que ele gera guetos sociais
e culturais, que limitam as oportunidades das minorias étnicas. Outras críticas apontaram os
conflitos ou tensões entre a promoção do multiculturalismo e a conquista da igualdade de
gênero.

Os debates acerca do multiculturalismo em determinadas instituições sociais e agências


estatais (como escolas, serviços sociais e policiais) evidenciaram a posição dele em relação
a outros enfoques. Na educação, por exemplo, o multiculturalismo direciona as escolas
para um currículo que incorpora matérias de diferentes culturas e provê a celebração de
festividades, religiosas ou não, como forma de alimentar a consciência das diferenças culturais
e de promover relações positivas entre os estudantes.

Nos contextos educacionais, o multiculturalismo desenvolveu-se por meio de críticas aos


modelos educacionais de assimilação que tentam impor uma educação monocultural a
sociedades culturalmente diversificadas. Os críticos do multiculturalismo na educação, por sua
vez, argumentaram a seu respeito a partir de perspectivas assimiladoras e antirracistas. Alguns
acusaram o relativismo subliminar ao tratamento de diferentes culturas como igualmente
merecedoras de respeito.

Outros criticaram a forma celebratória do multiculturalismo que enfatizou as artes, a cultura


e as festividades religiosas. Uma crítica antirracista ao multiculturalismo argumenta que tal
ênfase lida com aspectos periféricos da educação, uma vez que não reconhece o significado
do racismo operante por meio de práticas discriminatórias dentro das escolas e na sociedade
mais ampla. Enquanto alguns discutiram se o multiculturalismo e o antirracismo constituem

134
TÓPICO 3 | GÊNERO E MULTICULTURALISMO - CONCEITOS IMPORTANTES
PARA O COMBATE ÀS DESIGUALDADES SOCIAIS ONTEM E HOJE

discursos irreconciliáveis ou levam a políticas incompatíveis, outros procuraram desenvolver


uma síntese do multiculturalismo com o racismo.

Análises do crescimento dos debates a respeito do multiculturalismo revelam mudanças


subliminares nas relações de poder, resultantes de fatores como migração, mudanças
demográficas ou resistência sistemática ao racismo. Nesse contexto, torna-se possível o
surgimento de debates a respeito das práticas e princípios do multiculturalismo, assumindo
diferentes formas em vários contextos locais, nacionais ou internacionais.

FONTE: CASHMORE, Ellis. Dicionário de Relações Étnicas e Raciais. São Paulo. Summus,
2000, p. 371.

Para entender o motivo pelo qual estes movimentos surgiram, devemos


resgatar o aspecto da constituição histórica dos Estados Unidos, marcada por um
longo processo de colonização, que teve como base a eliminação e a opressão das
diversas tribos indígenas que ali estavam. Além disso, devemos levar em conta o
processo de escravidão que ocorreu no país, no qual os negros serviram como base
para o desenvolvimento da nação.

Estas posturas dos colonizadores norte-americanos foram influenciadas


pelos valores religiosos de igrejas protestantes, comuns à maioria dos colonos
de origem anglo-saxã. Esta influência permeou o pensamento e as atitudes dos
colonizadores norte-americanos em relação aos demais grupos, desencadeando,
mais tarde, uma série de movimentos pela busca de justiça social.

Para falarmos sobre as políticas multiculturais nos Estados Unidos,


realizamos um breve relato histórico da constituição do território, enfatizando a
relação dos colonos norte-americanos com os nativos, assim como com os escravos
trazidos da África. Além disso, destacaremos a importância do movimento negro
em prol da luta pelos direitos civis.

3.2 MULTICULTURALISMO NOS EUA


Como já mencionamos, para compreender o contexto de surgimento das
políticas multiculturais nos Estados Unidas da América, devemos resgatar o
processo de constituição do Estado norte-americano, especialmente os aspectos das
populações indígenas no território, a chegada dos primeiros colonos, as diferentes
religiões que foram trazidas e a herança anglo-saxã, que serviu como base para
a constituição da elite econômica e política nos EUA, assim como o período da
escravização dos negros e do apartheid.

Com relação à questão indígena, podemos dizer que antes da vinda dos
primeiros colonos para a América do Norte, a região já era habitada por diversos
povos nativos. Semprini (1999) estima que tenha havido um total de três a quatro
milhões de índios no território norte-americano na época da colonização, no século
XVII. Havia uma infinidade de povos ameríndios, entre os principais podemos
destacar as tribos: Apaches, Navajos, Cheroqui, Moicanos, Comanches, Aruaques,
Chibchas, Mapuche e outras.

135
UNIDADE 2 | TEORIAS DA ETNICIDADE, RELAÇÕES DE GÊNERO E O DEBATE MULTICULTURAL

Até o século XIX a população de ameríndios nos EUA foi praticamente


exterminada. Segundo Semprini (1999), o número de sobreviventes deste
genocídio, confinados em reservas, não chegava a 200 mil pessoas. “O massacre
físico se prolongaria ao longo do século XX, por uma política sistemática de
assimilação forçada e de enraizamento cultural: deslocamento de populações,
mistura de tribos diferentes, proibição de práticas rituais tradicionais de culto e do
ensino da língua indígena” (SEMPRINI, 1999, p. 13).

Entender o processo de extinção das tribos indígenas norte-americanas


torna-se importante para compreendermos os motivos que levam os grupos
minoritários a buscarem o mínimo de reparação para as suas inúmeras perdas,
dentre as quais a substancial perda da sua identidade. No entanto, no decorrer do
processo de colonização, conforme comenta Semprini (1999), o sangue indígena
com o sangue de seus “conquistadores” misturou-se ao longo do tempo e acabou
ficando impresso na constituição da “raça” americana. No entanto, somente há
pouco tempo os norte-americanos passaram a considerar o elemento indígena
como parte da constituição de sua identidade e, portanto, aceitar essa perspectiva.
Segundo Semprini (1999, p. 14), assumir essa característica de sua identidade:
[...] significa entender que seu país foi construído sobre um genocídio.
Esta tomada de consciência resulta, então, na procura de uma nova
continuidade. Durante dois séculos o elemento índio havia representado
a alteridade absoluta, a diferença que deveria ser eliminada para a
afirmação de sua própria identidade. Foi imposta uma descontinuidade
absoluta, por extermínio, depois por assimilação-apagamento, e em
seguida por segregação.

Somente a partir dos anos 30 a política de eliminação da identidade


indígena foi sendo aos poucos abandonada. No entanto, somente a partir dos anos
60 é que a questão indígena passa a ser levada em conta pela classe política e pela
opinião pública, no sentido de reconhecer a necessidade de uma compensação por
tanta selvageria e para que seja reconhecido às nações indígenas (Indian Nations)
um estatuto oficial e direitos próprios (SEMPRINI, 1999).

DICAS

Se você quiser saber mais sobre a história dos


índios norte-americanos, assista ao documentário
sobre um de seus principais líderes, “Touro Sentado”, acessando
o site: <https://www.youtube.com/watch?v=S8EVrf3kCbA>.
Touro Sentado foi um nativo americano que tentou evitar que
os colonizadores americanos tomassem as terras indígenas. Ele
é conhecido por seu papel na batalha de Little Big Horn. Nessa
luta, ele derrotou um grupo de soldados comandados pelo
tenente-coronel George Armstrong Custer, dos Estados Unidos.
Touro Sentado era membro dos lacotas, ou sioux tetons. Nasceu
por volta de 1831, perto do Rio Grand, onde fica atualmente o
Estado de Dakota do Sul. Seu nome sioux era Tatanka Iyotake.
Foi nomeado chefe de toda a nação sioux por volta de 1867.
FONTE: Disponível em: <http://escola.britannica.com.br/levels/
fundamental/article/Touro-Sentado/482509>. Acesso em: 15 maio 2017.

136
TÓPICO 3 | GÊNERO E MULTICULTURALISMO - CONCEITOS IMPORTANTES
PARA O COMBATE ÀS DESIGUALDADES SOCIAIS ONTEM E HOJE

A história da escravidão nos Estados Unidos começa em 1619, com a chegada


dos primeiros escravos na Ilha de Jamestown, no Estado da Virgínia. Durante o
período de escravidão os negros foram tratados como mercadoria. “Importados”
da África, eram separados de seus familiares e vendidos para os plantadores de
algodão e demais agricultores do Sul dos Estados Unidos. Foram os negros que
serviram de mão de obra para as plantações dos agricultores sulistas.

Pode-se discernir, sem maiores dificuldades, diversos elementos


fomentadores da questão negra atual na história da implantação desta
minoria. O múltiplo desenraizamento (geográfico, cultural, étnico,
familiar) imposto aos escravos pode ser tido como a origem do problema
identitário que atormenta a minoria negra. Privados de qualquer forma
de enraizamento tradicional ou de afinidades, os escravos e seus
descendentes somente puderam encontrar no isolamento e separação
da cultura branca dominante os fragmentos de uma nova identidade a
ser reconstruída ou a ser totalmente recriada (SEMPRINI, 1999, p. 16).

Oficialmente, a escravidão durou até o dia 1º de janeiro de 1863, quando


o então presidente Abraham Lincoln assinou a Proclamação de Emancipação dos
escravos (Emancipation Proclamation), que libertaria quatro milhões de escravos
até o dia 1º de janeiro do ano seguinte. No entanto, Lincoln não tomou a posição
em prol da abolição porque comungava dos mesmos ideais que os defensores da
abolição, mas sim porque precisava do apoio dos democratas do Norte, entre os
quais havia uma parcela significativa de eleitores abolicionistas e simpatizantes
da causa negra. Desta forma, Lincoln conquistou o movimento abolicionista,
mudando desta maneira o sentido da Guerra de Secessão, incorporando também
o fim da escravatura, como a preservação da unidade nacional, como interesses
principais do conflito. Os agricultores do Sul não se conformaram com a situação,
pois acreditavam que a estrutura agrária servia de argumento para se afirmar
a necessidade da escravidão na região, na medida em que entendiam que os
negros eram, intrinsecamente, inferiores aos brancos, o que justificaria assim a
discriminação racial.

Percebe-se, portanto, que a discriminação do povo norte-americano em


relação à comunidade negra foi profundamente enraizada na cultura estadunidense.
De acordo com Semprini (1999, p. 17):

O silêncio da Constituição Americana sobre a escravidão e o


enraizamento deste costume na economia e nos costumes dos Estados
sulistas permitem compreender a presença e a continuidade no tempo,
dentro da mesma sociedade, de uma corrente racista de tipo biológico
ou essencialista. Durante muito tempo, por exemplo, os tribunais do
país aplicaram a regra denominada de “gota de sangue” (one drop rule),
segundo a qual o simples fato de ter um bisavô negro [...] bastava para
classificar um indivíduo como pertencente à “raça” negra. Além de
ridícula, a one drup rule expõe os defensores do racismo biológico contra
os negros e a obsessão de pureza da qual estão imbuídos.

Esta postura racista do povo norte-americano ainda permanece na


organização social do país de forma intrínseca. É por este traço discriminatório
enraizado na cultura norte-americana que, de vez em quando, surgem “pesquisas”

137
UNIDADE 2 | TEORIAS DA ETNICIDADE, RELAÇÕES DE GÊNERO E O DEBATE MULTICULTURAL

com base em argumentos biológicos que procuram provar a inferioridade ou


superioridade “natural” de algumas “raças” sobre outras.

Havia, e ainda há, uma característica fundamental na questão da


desigualdade racial nos Estados Unidos. Ela se desenvolveu e se mantém pelo
processo contínuo de separação racial ao longo do tempo e pela crença ontológica
de que os negros são, naturalmente, inferiores aos brancos. Oliven (2007, p. 31)
destaca que:

apesar dos princípios igualitários da república, a economia norte-


americana, principalmente no Sul, apoiava-se no trabalho escravo.
Mesmo após a abolição, negros e brancos formavam mundos à parte.
Essa realidade de segregação passa a ter um fundamento legal a partir de
uma decisão da Suprema Corte, em 1896, que considerava constitucional
acomodações separadas para brancos e negros em transportes públicos,
desde que fossem equiparáveis. A filosofia do “igual, mas separado”
erigiu uma barreira, negando aos não brancos o livre acesso à moradia,
restaurantes e à maior parte dos serviços públicos.

NOTA

Um aspecto bastante específico da realidade estadunidense é a forma como são


construídas as categorias relacionadas à cor dos indivíduos. Para ser considerado negro basta
ter tido um ancestral africano. Isso gera um preconceito racial de origem, ao passo que no
Brasil, como nos esclarece Oracy Nogueira (1985), o preconceito racial é de marca. Para os
estadunidenses, mais importante na classificação racial é o genótipo, enquanto que no Brasil
o que importa é o fenótipo, a aparência física.

Ao longo do século XX, nos Estados Unidos, houve diversos episódios de


discriminação e segregação racial em relação aos negros, como: as perseguições por
parte de organizações racistas, como a Ku Klux Klan, as discriminações no direito
eleitoral, no mercado de trabalho, no acesso ao ensino e à habitação. Isso tudo
desencadeou uma série de movimentos e levantes em prol da igualdade racial.
Esses movimentos foram marcados por várias personalidades que influenciaram
de forma decisiva na luta pela conquista dos direitos civis.

O pastor Martin Luther King Jr. foi um personagem que influenciou de forma
decisiva o movimento de luta por direitos. King foi um líder que, influenciado pelo
pensamento de Mahatma Gandhi, lutou pela integração dos negros na sociedade
americana. O movimento pelos direitos civis, liderado por ele, pregava a não violência
e contou com a adesão de muitos brancos que eram, também, a favor da causa.

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TÓPICO 3 | GÊNERO E MULTICULTURALISMO - CONCEITOS IMPORTANTES
PARA O COMBATE ÀS DESIGUALDADES SOCIAIS ONTEM E HOJE

DICAS

Para saber mais sobre a vida e a luta de Martin Luther King, assista ao filme: “Selma:
Uma Luta pela Igualdade”, que narra sua história como pastor protestante e ativista social, que
acompanha as históricas marchas realizadas por ele e manifestantes pacifistas em 1965, entre
a cidade de Selma, no interior do Alabama, até a capital do Estado, Montgomery, em busca de
direitos eleitorais iguais para a comunidade afro-americana.

Contrariamente ao movimento pacífico liderado por Martin Luther King,


que tinha como objetivo a integração racial, as lideranças que continuaram a
defender os direitos dos negros, após seu assassinato, lutavam pela separação
racial, exigindo do governo uma parcela de terras para viverem suas vidas, ou
mesmo o retorno a suas terras de origem.

De acordo com Oliven (2007), a atitude radical desse movimento se


constituiu na antítese da filosofia de integração, que orientou o movimento pelos
direitos civis.

Ainda em meados da década de 1960, na Califórnia, surge o movimento Black


Panther (Pantera Negra). Um movimento armado que exigia uma compensação
financeira da “América Branca” pelos séculos de exploração. Além disso, exigia
também a isenção de impostos, a permissão para o uso de armas, além de outras
exigências. Esse movimento cometeu muitos excessos, o que comprometeu o apoio
da opinião pública da época, motivo pelo qual o movimento se enfraqueceu. No
entanto, com algumas alterações nas estratégias de mobilizações, o movimento
sobreviveu até o ano de 1986.

3.2.1 A Lei dos Direitos Civis e as primeiras políticas de


ações afirmativas
De maneira geral, os enfrentamentos e as lutas por direitos sociais nos
Estados Unidos, no início do século XX, dividiram as opiniões. De um lado, havia
os grupos a favor da integração racial e, de outro, os grupos segregacionistas, que
não desejavam a mudança, pois consideravam legítimas as desigualdades. De
certa forma, o que ocorre é que, no ano de 1964, o Congresso norte-americano
aprovou o Civil Rights Act (Lei dos Direitos Civis), que, além de banir todo tipo
de discriminação, concedeu ao Governo Federal poderes para implementar a
dessegregação.

O termo ações afirmativas foi primeiramente empregado em 1961, quando


o presidente Kennedy organizou um grupo de trabalho para refletir e deliberar
sobre a questão das oportunidades iguais no mercado de trabalho. Em seguida,
139
UNIDADE 2 | TEORIAS DA ETNICIDADE, RELAÇÕES DE GÊNERO E O DEBATE MULTICULTURAL

em 1965, o presidente Lyndon Johnson instituiu que as empresas prestadoras de


serviço ao governo deveriam assegurar um processo seletivo de trabalho de forma
igualitária para todos os cidadãos. Determinou ainda que as empresas deveriam
promover ações afirmativas que tivessem como objetivo combater a discriminação
do passado. Com o passar do tempo, na década de 1970, essa iniciativa do governo
passa a ser implementada nas instituições de ensino e nas empresas privadas,
sendo punidas as instituições que desrespeitassem as exigências oficiais dos planos
e programas de ação afirmativa.

NOTA

Em termos demográficos, a presença da população negra na sociedade americana


é menor do que no Brasil, atingindo pouco mais de 10%, grande parte dela concentrada em
centros empobrecidos das grandes metrópoles.

A partir do momento em que a comunidade negra efetivamente começa a


colher os resultados da mobilização social, através de políticas afirmativas, outros
grupos começam a se organizar no sentido de acessar direitos próprios às suas
especificidades.

De acordo com Oliven (2007), a luta dos movimentos sociais do período


pode ser em parte resumida como a tentativa de enfrentar a “supremacia WASP
(White, Anglo-Saxan and Protestant)”. Ou seja, enfrentar uma maioria branca, anglo-
saxã e protestante, entendidos como colonos “oficiais” do território.

NOTA

WASP: Este termo é utilizado de forma pejorativa nos países norte-americanos.


Teoricamente, a palavra designa um grupo relativamente homogêneo de indivíduos
estadunidenses de religião protestante e ascendência britânica que supostamente detêm
enorme poder econômico, político e social. Costuma ser empregada para indicar desaprovação
ao poder excessivo de que esse grupo gozaria na sociedade norte-americana.

Do ponto de vista do desenvolvimento e ampliação das políticas afirmativas


nos Estados Unidos, no período, surgem quatro grandes grupos que passam a ser
atendidos sistematicamente. De acordo com Oliven (2007, p. 35), são eles:

1. African-Americans, negros nascidos nos Estados Unidos.


2. Native-Americans, descendentes de índios que pertencem a vários
grupos, grande parte deles vivendo nos territórios indígenas
demarcados.

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TÓPICO 3 | GÊNERO E MULTICULTURALISMO - CONCEITOS IMPORTANTES
PARA O COMBATE ÀS DESIGUALDADES SOCIAIS ONTEM E HOJE

3. Asian-Americans, descendentes de asiáticos que formam um grupo


muito heterogêneo em termos de nacionalidades, etnias, culturas e
nível de escolaridade; são, também, oriundos de períodos migratórios
diferentes.
4. Hispanics, mexicanos, porto-riquenhos, cubanos e demais migrantes
de outros países da América Central e do Sul e seus descendentes, que
podem ser brancos, indígenas ou negros.

De acordo com essa classificação, do ponto de vista da promoção do


acesso a direitos, muitos grupos estariam mal representados, ou mesmo sem
representação, dada, por exemplo, a infinidade de descendentes de imigrantes
nos Estados Unidos. Nesse sentido, as políticas de ação afirmativa tornam-se mais
vulneráveis. Vejamos agora, sob a ótica Oliven (2007), um pequeno texto sobre o
debate da ação afirmativa nos Estados Unidos.

O DEBATE SOBRE A AÇÃO AFIRMATIVA NOS ESTADOS UNIDOS

Foi principalmente através da política de ação afirmativa que se


acentuou a diversidade no ensino superior norte-americano em termos de
presença conspícua de elementos pertencentes a minorias, nos campi de
universidades mais seletas. Essa política não tem sido facilmente aceita e tem
suscitado uma discussão intensa, que transcende os limites da universidade
e, em última instância, liga-se à questão da nacionalidade.

Glazer (1975), baseando seu argumento no fato de que os EEUU são


o primeiro país a se definir, não em termos de origem étnica, mas em termos
de adesão a regras comuns de cidadania, considera inconstitucionais as
políticas governamentais que justificam o que ele chama de “discriminação
afirmativa”, ou seja, o favorecimento de minorias com o fim de alcançar
o objetivo da igualdade. O referido autor se surpreende pelo fato de que
políticas, que reverteram o consenso de dois séculos de história americana,
pudessem se estabelecer de forma tão poderosa no espaço de uma década.
Para se entender essa realidade é preciso levar em conta o fato de que a
nação norte-americana, embora tenha em seu ideário os princípios liberais
de liberdade e igualdade baseadas no mérito, paradoxalmente, conviveu,
por muitos anos, com uma realidade excludente, que aceitava o extermínio
dos índios em prol do progresso, a escravidão e discriminação dos negros e
a própria marginalização das mulheres, consideradas seres inferiores.

Para Takaki (1994), asiático-americano e professor da Universidade da


Califórnia, os críticos das políticas de ação afirmativa, muitas vezes, omitem o
fato de que através da história norte-americana houve sempre discriminação
positiva para homens brancos, que se beneficiaram, durante muito tempo,
de oportunidades educacionais e profissionais que lhes eram reservadas.
Eles desfrutavam de inúmeras vantagens sociais, sem terem de enfrentar a
concorrência de mulheres e de minorias consideradas não brancas. Na medida
em que essas vantagens eram repassadas a seus filhos brancos, por gerações

141
UNIDADE 2 | TEORIAS DA ETNICIDADE, RELAÇÕES DE GÊNERO E O DEBATE MULTICULTURAL

e gerações, elas se tornavam cumulativas. Aqueles que desejam abolir as


políticas de ação afirmativa colocam vários argumentos, tais como:

– a existência de cotas acaba sendo injusta e mesmo desrespeitosa para


os membros de minorias que sejam realmente competentes, pois eles
são invariavelmente tomados como beneficiários de uma política de
discriminação positiva a favor de seu grupo;

– raça não é um sinônimo de condição social, ou seja, nem todos os negros


são pobres e nem todos os pobres são negros;

– as políticas de ação afirmativa deram origem a uma burocracia encarregada


de promover programas para combater a discriminação racial, e esse grupo
de burocratas tende a se expandir desenvolvendo interesses próprios.

Uma das formas de tornar mais aceitáveis as políticas de ação


afirmativa é a de apresentá-las não como uma política de discriminação
positiva, mas como uma forma de respeitar as diferenças culturais numa
sociedade que se torna cada vez mais multicultural.

Young (1995) chama a atenção para a necessidade de que as diferenças


sociais, que impliquem em relações de opressão, sejam trazidas a público e
façam parte das negociações políticas. Para a referida autora, a diferença tem
de ser contextualizada, ela faz parte de um processo relacional. A comparação
de grupos sociais é algo bastante complexo e envolve não apenas os grupos
que são comparados, mas, também, os critérios e os objetivos da comparação.
É importante, também, não esquecer que o fato de haver diferenças entre
grupos não exclui a presença de atributos, experiências e objetivos em comum
(WILSON, 1994). Num enfoque que privilegia a perspectiva da justiça social,
Wilson aponta as limitações das políticas de ação afirmativa para a solução
dos graves problemas que afetam a população negra americana no presente.
Ele chama a atenção para o fato de que mudanças políticas e econômicas
contribuíram para a mobilidade individual de um segmento da população
negra, o que propiciou um processo de desracialização no setor econômico, ou
seja, diferenças raciais perdem a importância em determinar a ascensão social
nos Estados Unidos. Se, por um lado, o crescimento econômico deu origem
a uma classe média negra, por outro lado, a reorientação da economia, que
seguiu ao período de prosperidade, tem diminuído as oportunidades de
quase toda a natureza para os outros segmentos da população negra.

A mudança econômica, que se caracterizou pela desindustrialização


de certos setores e maior ênfase na prestação de serviços, tem tornado
redundantes os negros, trabalhadores industriais.

Muitas indústrias, que não necessitam de mão de obra especializada,


deixaram as grandes metrópoles americanas para se instalar em países com

142
TÓPICO 3 | GÊNERO E MULTICULTURALISMO - CONCEITOS IMPORTANTES
PARA O COMBATE ÀS DESIGUALDADES SOCIAIS ONTEM E HOJE

mão de obra mais barata. Assim, os negros, principalmente os homens,


essenciais na força de trabalho no passado, têm se tornado, em grande parte,
supérfluos como trabalhadores no presente (WILSON, 1994).

O referido autor é crítico da atmosfera de verdadeiro chauvinismo


racial que impregnou alguns representantes do que chama de “perspectiva
negra”. Assim, as atitudes de cooperação e integração entre as raças
acabaram por ser desqualificadas e a solidariedade dentro do grupo
assumiu uma proporção indevida, que pregava a hostilidade em relação aos
brancos em geral. Essa perspectiva tirou de foco a discussão de problemas
relacionados com as mudanças estruturais da economia, que estavam
afetando profundamente as populações negras mais carentes; uma vez que
o problema era definido em termos raciais, as discussões de caráter mais
econômico tornavam-se secundárias.

Pode-se dizer que a política de ação afirmativa nas universidades


tem muito a ver com os valores norte-americanos: elementos das minorias,
inclusive as mulheres, passam a ter a sua chance de vencer na vida, de cada
grupo são cooptados os melhores para participar nas esferas econômica,
acadêmica, política e, na medida em que eles são bem-sucedidos, passam a
servir de exemplo aos demais. Essa política é talhada para reforçar a ideia de
tipo ideal americano como the winner, o vencedor, e não se dirige para a solução
dos problemas que afetam um significativo segmento da população – the
losers, os perdedores –, aqueles que são deixados à margem na reestruturação
econômica da sociedade capitalista e que, ainda por cima, devem carregar o
ônus da responsabilidade de sua precária condição. É importante, no entanto,
salientar que as políticas de ação afirmativa favoreceram a mobilidade social
de certos segmentos da população negra e de outros grupos discriminados.
Elas abriram as portas da universidade para minorias até então praticamente
excluídas. Mais do que isso, o debate sobre a Ação Afirmativa traz à
discussão a questão da discriminação social, do ônus que isso representa para
determinados grupos e das possíveis orientações políticas que possam vir a
combater uma situação social inerentemente injusta.

A Universidade da Califórnia, a maior e mais importante


universidade pública nos Estados Unidos, ainda na década de 60 foi uma
das primeiras a estabelecer programas que aumentassem a presença de
minorias na sua comunidade acadêmica. Em dezembro de 1994 foram
amplamente noticiados os dados sobre o aumento do percentual de
minorias, que passaram a representar 21% dos calouros. Galligani, assistente
do vice-presidente encarregado da parte acadêmica dos estudantes, disse em
entrevista: “É gratificante que o nosso comprometimento com a diversidade
tenha alcançado bons resultados”. No ano seguinte, no entanto, os Regents,
responsáveis pela universidade, aproveitando o recesso escolar, votaram,
no mês de julho de 1995, a suspensão dos programas de ação afirmativa
baseados no critério racial.

143
UNIDADE 2 | TEORIAS DA ETNICIDADE, RELAÇÕES DE GÊNERO E O DEBATE MULTICULTURAL

Moehlecke (2004), ao analisar o caso da Universidade da Califórnia,


mostra como o abandono de cotas raciais, no final da década de 1990, fez
o percentual dos alunos negros retroceder aos níveis dos anos 60. No ano
2001 a Universidade passou, então, a admitir automaticamente os melhores
alunos das escolas públicas, elevando assim o número de alunos negros;
esses, no entanto, passaram a ser aceitos em campi e cursos menos seletivos.
A referida autora conclui:

o que vale observar das mudanças pelas quais a Universidade


da Califórnia passou ao longo desse processo é que, mesmo após
os reveses e a extinção de medidas raciais, a preocupação com
a igualdade e a diversidade de seus campi continua parte dos
objetivos básicos da instituição. [...] O que se define hoje como uma
universidade de excelência nos Estados Unidos, diferentemente do
que ocorria nos anos de 1960, envolve necessariamente valores como
a inclusão, igualdade e diversidade (MOEHLECKE, 2004, p. 772).

Para Ibarra (2001), a maioria das pessoas, atualmente, pensa que


as ações afirmativas vão desaparecer do cenário da educação superior
ou, ao menos, acreditam que elas vão evoluir. No final da década de 90,
as administrações de George Bush no Texas e de seu irmão, na Flórida,
instituíram a admissão garantida nas universidades estaduais para os
melhores alunos das escolas médias, com isso dificultando o acesso de
minorias ao ensino superior.

Essas decisões políticas representam uma mudança dramática


para a educação superior americana. Elas ocorreram
paralelamente a recorrentes protestos de discriminação e
racismo institucional nos campi universitários em todo o país;
acusações que sempre deixam um sentimento amargo e uma
sensação de perplexidade entre a maioria dos homens que
continuam a manter o predomínio entre o corpo docente e de
posições administrativas (IBARRA, 2001, p. 3).

O referido autor chama a atenção para o reduzido número de pesquisas


feitas sobre o aumento da diversidade nas universidades americanas. “A ação
afirmativa tem se tornado, simplesmente, a coisa certa a ser feita, e ninguém
tem se empenhado em justificar o seu valor de alguma forma mais objetiva.
O resultado pela complacência foi a debacle dos 1990s” (IBARRA, 2001, p. 4).

Em 2003, a Suprema Corte dos Estados Unidos reafirmou a


constitucionalidade de levar em conta raça e etnia na seleção dos alunos para
a universidade. Essa decisão judicial reacendeu o debate nacional e levou
os grupos contrários às ações afirmativas a intensificarem procedimentos
outros que não os jurídicos, mudando a sua estratégia política através da
promoção de plebiscitos estaduais (MOSES, 2005).

FONTE: Disponível em: <revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/faced/article/.../539/375>. Acesso


em: 17 maio 2017.

144
TÓPICO 3 | GÊNERO E MULTICULTURALISMO - CONCEITOS IMPORTANTES
PARA O COMBATE ÀS DESIGUALDADES SOCIAIS ONTEM E HOJE

Não falamos aqui sobre outros movimentos sociais da década de 1960 nos
Estados Unidos porque o movimento negro foi o que mais teve peso na conquista
dos direitos civis, momento de abertura política para os movimentos em geral. No
entanto, não podemos deixar de admitir que muitos outros movimentos foram
importantes para a conquista das políticas multiculturais. Dentre eles, podemos
destacar os movimentos: operário, feminista, homossexual, hippie, religioso e outros.

3.3 CONCEITUANDO POLÍTICAS PÚBLICAS E DE AÇÃO


AFIRMATIVA
Traremos o debate sobre políticas públicas e demonstraremos as políticas
afirmativas que, no geral, visam proteger as minorias étnicas que tenham
sido discriminadas no passado, dando a elas condições de acesso ao trabalho,
universidades e posições de liderança.

Para compreendermos o debate do multiculturalismo do ponto de vista das


ações políticas, precisamos refletir primeiramente sobre o conceito de “políticas
públicas”.

No decorrer das pesquisas para o desenvolvimento deste livro, nos


deparamos com vários conceitos de “política pública”, porque, assim como o
multiculturalismo, o conceito representa, ao mesmo tempo, aspectos políticos
(ações e programas de governo) e acadêmicos (áreas de conhecimento que
discutem teoricamente o tema). Podemos dizer, portanto, que o conceito é múltiplo,
porque o campo de discussão é muito vasto, e pode ser entendido como uma área
interdisciplinar de conhecimento. De acordo com pesquisas de Souza (2006, p. 24):

não existe uma única, nem melhor definição sobre o que seja política
pública. Mead (1995) a define como um campo dentro do estudo da
política que analisa o governo à luz de grandes questões públicas, e Lynn
(1980), como um conjunto de ações do governo que irá produzir efeitos
específicos. Peters (1986) segue o mesmo veio: política pública é a soma
das atividades dos governos [...] que influenciam a vida dos cidadãos. Dye
(1984) sintetiza: “política pública é o que o governo escolhe fazer ou não
fazer”. A definição mais conhecida continua a ser a de Laswell: Decisões e
análises sobre política pública implicam responder às seguintes questões:
quem ganha o quê, por que e que diferença faz.

Segundo Simões Pires (2001), as políticas públicas devem ser desenvolvidas,


na medida em que se leve em consideração as posições e interesses da sociedade,
através de um processo democrático de participação.

As políticas públicas devem ser - em sua formulação - a expressão pura e


genuína do interesse geral da sociedade, o que, num processo legítimo,
pressupõe seja a demanda social auscultada em instâncias democráticas,
enfrentada de forma realística pela instituição formuladora e
solucionada à luz do possível consenso dos atores sociais, sem prejuízo
da adoção de critérios de conhecimento tecnicamente racionais para a

145
UNIDADE 2 | TEORIAS DA ETNICIDADE, RELAÇÕES DE GÊNERO E O DEBATE MULTICULTURAL

solução de problemas sociais, a partir de eficaz fluxo de informações


(SIMÕES PIRES, 2001, p. 192).

Em última análise, entende-se que as “políticas públicas” devem


representar o conjunto de ações políticas desenvolvidas e implementadas por
todos os atores políticos, de maneira que garantam a satisfação das demandas
sociais levantadas nas mais diversas áreas.

No caso das políticas de ações afirmativas, o termo está relacionado


ao contexto dos movimentos sociais da década de 1960, na América do Norte,
especialmente a partir do movimento negro. O termo “ações afirmativas” surge
pela primeira vez no ano de 1961, durante o governo Kennedy, que se preocupava
com a possibilidade de igualdade para negros e brancos no mercado de trabalho.
Atualmente, o termo “políticas de ações afirmativas” pode ser entendido como:

[...] o conjunto de políticas públicas para proteger minorias e grupos que,


em uma determinada sociedade, tenham sido discriminados no passado.
A ação afirmativa visa remover barreiras, formais e informais, que
impeçam o acesso de certos grupos ao mercado de trabalho, universidades
e posições de liderança. Em termos práticos, as ações afirmativas
incentivam as organizações a agir positivamente, a fim de favorecer
pessoas de segmentos sociais discriminados a terem oportunidade de
ascender a postos de comando. Nessa perspectiva, a sub-representação
de minorias, em instituições e posições de maior prestígio e poder na
sociedade pode ser considerada um reflexo de discriminação. Portanto,
visa-se, por um período provisório, a criação de incentivos aos grupos
minoritários, que busquem o equilíbrio entre os percentuais de cada
minoria na população em geral e os percentuais dessas mesmas minorias
na composição dos grupos de poder nas diversas instituições que fazem
parte da sociedade (OLIVEN, 2007, p. 30).

As políticas de ação afirmativa também são comumente chamadas de


“políticas multiculturais”, referindo-se ao caráter das lutas políticas do movimento.
Por outro lado, as políticas de ação afirmativa são entendidas pelos críticos do
movimento multiculturalista como movimentos de “discriminação positiva”.

NOTA

DISCRIMINAÇÃO POSITIVA trata deliberadamente os candidatos de forma


desigual, favorecendo pessoas de grupos que tenham sido vítimas habituais de discriminação.
O objetivo de tratar as pessoas desta forma desigual é acelerar o processo de tornar a sociedade
mais igualitária, acabando não apenas com desequilíbrios existentes em certas profissões, mas
proporcionando também modelos que possam ser seguidos e respeitados pelos jovens dos
grupos tradicionalmente menos respeitados. [...]
A discriminação positiva é apenas uma medida temporária, até que a percentagem de membros
do grupo tradicionalmente excluído reflita mais ou menos a percentagem de membros deste
grupo na população em geral. Em alguns países é ilegal; noutros, é obrigatória.

FONTE: Adaptado de: <cadernosociologia.blogspot.com/2011_03_01_archive.html>. Acesso


em: 30 set. 2011.

146
RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico, você aprendeu que:

• A compreensão de que os estudos de gênero tiveram sua origem nos movimentos


feministas, especialmente aqueles da década de 1940 e 1960, nos EUA.

• O feminismo é um conceito múltiplo, porque possui uma dimensão política,


que se refere aos movimentos de luta por direitos, e uma dimensão acadêmica,
que se refere aos estudos da condição feminina.

• A divisão cronológica dos diferentes momentos históricos do Movimento


Feminista: A Primeira Onda Feminista, ocorrida durante o século XIX e fim do
século XX; a Segunda Onda, entre as décadas de 1940 e 1970; e a Terceira Onda,
que ocorre a partir da década de 1980 e introduz o termo “Gênero” nos espaços
universitários.

• O conceito de gênero: em última instancia, o gênero é uma categoria social


imposta sobre um corpo sexuado.

• O entendimento de que o multiculturalismo é, ao mesmo tempo, um movimento


social de luta por direitos e um campo de estudos, assim como o feminismo.

• A compreensão de que o objetivo do multiculturalismo, assim como todo o


debate das relações interétnicas, é lutar pela igualdade e pelo reconhecimento
das diferenças.

• Demonstrar a constituição do território norte-americano, enfocando o processo


de extermínio dos nativos e, mais tarde, a escravidão.

• Compreender a importância dos movimentos sociais da década de 1970,


especialmente o movimento negro para o surgimento do multiculturalismo.

• Identificar os principais movimentos negros do período e suas principais


lideranças.

• Compreender o que são políticas públicas de ação afirmativa e sua importância


para o desenvolvimento e cidadania dos grupos minoritários e excluídos.

147
AUTOATIVIDADE

1 Os estudos de gênero surgiram na década de 1980, como uma


continuidade das discussões feministas que já denunciavam
as situações de poder e hierarquia dos homens sobre as
mulheres. Com o objetivo de compreender esses processos,
alguns estudiosos começaram a levar essa discussão para o ambiente
acadêmico. Ali, descartaram de uma vez por todas a explicação corrente
de que as mulheres seriam biologicamente inferiores aos homens e
criaram uma ferramenta de análise social chamada Gênero para explicar
essas assimetrias. Explique como o gênero esclarece a desigualdade entre
homens e mulheres.

2 O multiculturalismo é um termo polissêmico, na medida


em que apresenta dois sentidos: o primeiro é o sentido
descritivo e o segundo é o sentido prescritivo. O primeiro
está relacionado à diversidade cultural, étnica e religiosa de
um grupo social. E o segundo, como pode ser interpretado? Assinale a
alternativa CORRETA:

a) ( ) Como políticas de reconhecimento da identidade e/ou da diferença


que os poderes públicos desenvolvem em nome dos grupos minoritários
e/ou “subalternos”.
b) ( ) Como o excesso de políticas públicas afirmativas para os movimentos
sociais.
c) ( ) Como o processo de colonização norte-americano, fortemente
influenciado pelos valores religiosos anglo-saxões.
d) ( ) Como a compreensão multi e interdisciplinar do contexto histórico,
socioeconômico e cultural desses diferentes grupos sociais.

148
UNIDADE 3

MULTICULTURALISMO, GÊNERO,
RAÇA E ETNIA NO BRASIL

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
Esta unidade tem por objetivos:

• definir e indicar o desenvolvimento do conceito de Multiculturalismo,


elencando as maneiras como o tema é tratado em alguns países latino-a-
mericanos e no Brasil;

• caracterizar algumas definições de políticas afirmativas, contextualizando


essa discussão ao cenário brasileiro através dos exemplos das políticas ela-
boradas para os grupos indígenas, negros e das mulheres;

• discutir algumas formas estruturais e persistentes de desigualdades pre-


sentes na sociedade brasileira, destacando a situação das mulheres e das
populações negras;

• contextualizar as múltiplas dimensões das desigualdades centradas nas


relações de gênero e raciais presentes no Brasil.

PLANO DE ESTUDOS
Esta unidade está dividida em três tópicos e no decorrer de cada um deles
você encontrará atividades que o ajudarão a fixar os conteúdos adquiridos.

TÓPICO 1 – AS POLÍTICAS MULTICULTURAIS NA AMÉRICA LATINA E


NO BRASIL

TÓPICO 2 – DESIGUALDADES E VIOLÊNCIA DE GÊNERO NO BRASIL

TÓPICO 3 – AS DESIGUALDADES BRASILEIRAS EM TORNO DA RAÇA

149
150
UNIDADE 3
TÓPICO 1

AS POLÍTICAS MULTICULTURAIS NA AMÉRICA


LATINA E NO BRASIL

1 INTRODUÇÃO
Para iniciar esta etapa, vamos começar discutindo a categoria raça e seu
desenvolvimento histórico. Tal conceito, como veremos adiante, tem sofrido
críticas quanto à sua utilização nas Ciências Sociais, da mesma forma como existe
a defesa de sua utilização. Lívio Sansone (1998, p. 409) indica, por exemplo,
categorias alternativas, como “racialização, relações e hierarquias raciais”, ou
mesmo, o “racismo”. Existe, claro, o peso de seu passado e a ligação com teorias e
políticas de cunho racistas.

2 A FRAGILIDADE DAS POLÍTICAS MULTICULTURAIS NA


AMÉRICA LATINA
As políticas multiculturais na América Latina têm sido insuficientes para
dar conta de diminuir as desigualdades sociais ocasionadas pela exploração de
vários povos, como os indígenas e os negros. Isso acontece porque, na América
Latina, a discriminação dirigida a negros, índios e tantas outras minorias étnicas
ocorre de forma velada, ou seja, de forma indireta e personalista, como se a questão
fosse individual e não social. Ficando no nível pessoal, muitos governos não
reconhecem esse problema, e, não o reconhecendo, não planejam e não executam
políticas públicas nesta direção.

FIGURA 44 - POVOS DA BOLÍVIA E SUA CULTURA

FONTE: Disponível em: <https://turismoescolar.files.wordpress.com/2010/07/lla_llachon.


jpg>. Acesso em: 20 jun. 2017.

151
UNIDADE 3 | MULTICULTURALISMO, GÊNERO, RAÇA E ETNIA NO BRASIL

Esse processo começa com a colonização, que em praticamente todos os


países da América Latina foi de exploração. Europeus, principalmente portugueses
e espanhóis, invadiram nossas terras em busca de riquezas e, para manter essas
riquezas, as metrópoles e os demais países da Europa contaram com a exploração
dos índios e dos negros. Inicialmente, logo que os primeiros descobridores chegaram
às américas, iniciaram um processo de aculturação dos índios. Ocasionando muitos
conflitos e choques culturais, e quem saiu perdendo foram os habitantes nativos da
América Latina “recém-descoberta” pelos europeus, pois de forma violenta e sem
condições de defesa, vários índios, dentre eles mulheres e crianças, foram mortos
para que o projeto de exploração desse território pudesse ser levado adiante sem a
interferência dos nativos.

O processo de colonização da América Latina, que perdurou até o início do


século XX, em alguns países, quase provocou a eliminação da cultura indígena e
a supremacia da cultura europeia. Portanto, a diversidade cultural aqui existente
foi praticamente esquecida, politicamente, e apenas no final do século XX, com as
constituições federais democráticas, é que alguns países começam a tentar corrigir
as injustiças praticadas contra esses povos e a iniciar um processo de resgate dessas
culturas, apesar da completa extinção de muitas tribos indígenas. Vieira e Pinto
(2008, p. 4) nos dizem que:

As novas constituições contêm algum tipo de reconhecimento da


diversidade cultural e linguística e, em alguns casos, estabelecem
regimes jurídicos específicos às comunidades indígenas. Algumas
respostas são mínimas e pouco satisfatórias, outras são amplas e de
completa aplicação prática.

É diante desse contexto – onde todos os países da América Latina foram


colônias de exploração e continuam sofrendo até hoje as consequências sociais e
econômicas, especificamente as culturas minoritárias, e ainda diante do processo
de ditadura militar que passou a maioria dos países, a partir de meados do século
XX até a década de 1980 – que temos que analisar as políticas multiculturais nesses
países.

3 POLÍTICAS MULTICULTURAIS NA COLÔMBIA


As políticas multiculturais na Colômbia passam a desenvolver-se na década
de 1990, mais especificamente com a Constituição de 1991, definindo o país como
multicultural e multiétnico. Vieira e Pinto (2008, p. 2) dizem que na Constituição
da Colômbia de 1991:

[...] estão presentes os ideais de universalismo e de individualismo


contidos nos direitos fundamentais de caráter liberal e, ao mesmo
tempo, o reconhecimento das tradições morais particulares e do direito
a autogoverno das minorias culturais. Tal reconhecimento foi uma
enorme conquista para os movimentos sociais indígenas, que puderam
se manifestar democraticamente na Assembleia Constituinte de 1991.
No entanto, a institucionalização de um ambiente jurídico plural dentro

152
TÓPICO 1 | AS POLÍTICAS MULTICULTURAIS NA AMÉRICA LATINA E NO BRASIL

de um Estado gera a questão de como compatibilizar as diferentes


ordens, principalmente quando a ordem local viola de qualquer forma
a ordem normativa nacional ou mesmo internacional. Os conflitos
entre ordenamentos na Colômbia têm sido resolvidos pela Corte
Constitucional daquele país.

A Constituição Federal Colombiana de 1991 foi um importante instrumento


jurídico para aplicação de alguns direitos fundamentais para a população da
Colômbia, respeitando a diversidade cultural do país e garantindo autonomia e
direitos específicos para as minorias culturais, ou seja, as comunidades indígenas
não são julgadas de acordo com os mesmos parâmetros jurídicos (normas e leis)
das demais comunidades, não sofrendo as mesmas penalidades que são impostas
aos brancos e negros quando cometem algum delito ou crime. De acordo com
Sansone (1998, p. 3):

Na história das relações raciais na Colômbia, três fases podem ser


identificadas: o período colonial, a independência – à qual corresponde
a criação de uma comunidade nacional – e o desenvolvimento de novas
perspectivas étnicas, nas últimas décadas. Em cada uma delas o status
do índio mostrou-se bastante diferente daquele do negro.

Em 1993, o Congresso Colombiano aprovou a Lei nº 70 incorporada


à Constituição Federal, falando das comunidades negras. Essa lei estabelece
os direitos essenciais à sobrevivência dessas comunidades e torna ilegal a
discriminação racial contra esse grupo, além de definir os elementos específicos da
cultura afro-colombiana. Sansone (1998, p. 4) diz que:

Ela concede direitos fundiários às comunidades negras, mas exclui o


controle sobre os recursos naturais, o subsolo, os parques nacionais, as
zonas de interesse militar e as áreas urbanas. A lei prescreve que os recursos
naturais sejam gerenciados pela comunidade, que está obrigada a fazê-lo de
forma ecologicamente sustentável. Em segundo lugar, a lei visa melhorar
a educação, a formação, o acesso ao crédito e, também, as condições
materiais dessas comunidades. A aplicação desse aspecto da lei deve ser
garantida mediante a participação de representantes das comunidades no
Conselho Nacional de Planejamento, assim como na Divisão de Assuntos
das Comunidades Negras que o governo deverá criar.

Vejamos que, ao mesmo tempo em que a lei estabelece algumas garantias


fundamentais às comunidades negras colombianas, também delimita a sua
ocupação e a forma de ocupação nesse território, colocando as comunidades
negras em espaços específicos, longe do convívio com a comunidade urbana e
determinando critérios específicos de não exploração dos recursos naturais, mas,
ao mesmo tempo, eles são obrigados a cuidar e zelar pelos mesmos recursos, pois
serão os frutos da sua sobrevivência. Um dos aspectos principais dessa lei é sobre
o direito à educação, levando em consideração os aspectos culturais dos afro-
colombianos.

Apesar dessa lei, ainda existem na Colômbia enormes dificuldades para


a sua implantação, principalmente os objetivos referentes à proteção da cultura
dos afro-colombianos, mas o maior benefício que ela trouxe para a sociedade

153
UNIDADE 3 | MULTICULTURALISMO, GÊNERO, RAÇA E ETNIA NO BRASIL

colombiana foi a organização das comunidades negras, que passaram a lutar por
seus direitos e a reconhecê-los enquanto um grupo étnico específico.

FIGURA 45 - MENINAS COLOMBIANAS

FONTE: Disponível em: <http://globalizacion.org/wp-content/uploads/2016/01/indigenas_


colombia.jpg>. Acesso em: 20 jun. 2017.

Mesmo com o início desse processo de organização das comunidades


negras, ainda existem inúmeros conflitos entre índios e negros pela posse das
terras no campo, ambos acusam de ocupação indevida o território delimitado para
um dos grupos, que, ao invés de lutar pelos seus direitos de posse e ocupação das
terras perante o governo, ficam brigando entre si, sem considerar a sua condição de
grupos minoritários perante uma estrutura governamental e social que há muitos
anos os excluíram.

4 POLÍTICAS MULTICULTURAIS NO PERU


País colonizado pela Espanha, o Peru ainda guarda fortes marcas do seu
período colonial e de uma cultura homogeneizadora. Por exemplo, falar a língua
espanhola, usar roupas ocidentais, morar na capital, são hábitos que fizeram com que
muitos índios se tornassem mestiços para serem reconhecidos na sociedade peruana.

A diversidade cultural, através da preservação da língua e dos costumes de


diversos povos indígenas que habitavam o Peru desde a colonização até o final do
século XX, tem sido esquecida pelo governo, existindo políticas públicas de afirmação
da identidade desses povos.

154
TÓPICO 1 | AS POLÍTICAS MULTICULTURAIS NA AMÉRICA LATINA E NO BRASIL

O Peru apresenta grandes diferenças geográficas e étnicas. Segundo dados


de 1981, a população (17 milhões) está distribuída desigualmente por três
regiões: na costa (50% em 1982), na serra (39%) e na selva (11%). Brancos
e mestiços predominam na costa, onde também se concentra a pequena
minoria de negros (entre 6% e 10% da população); índios e mestiços
predominam na serra; e índios amazônicos, junto a um crescente número
de imigrantes da serra e da costa, na selva (SANSONE, 1998, p. 5).

Para enfrentar os problemas étnicos que o país passava, pressionado


pelos movimentos indigenistas, o governo peruano promulgou a Carta de 1933,
que faz com que o Estado tenha o compromisso de proteger os povos e as terras
indígenas. Mesmo com a promulgação desta Carta, os índios continuaram sendo
discriminados pela sociedade peruana, que tem privilegiado os brancos e os
mestiços.

A denominação “índio” tem sido substituída pelo termo “campesino”


(camponês), porque este foi incluído em uma reforma agrária que aconteceu no
país em 1969, com o objetivo de proteger os pequenos agricultores e os sem-terra.
Esses pequenos agricultores e os sem-terra que habitavam a região da serra eram
índios, mas a discriminação contra esse povo foi tão forte no Peru, por isso houve
a mudança da denominação.

FIGURA 46 - MULHER PERUANA REPRESENTANTE DA PLURALIDADE DE SEU PAÍS

FONTE: Disponível em: <https://pbs.twimg.com/media/Bg4lJ98CAAAgzr8.jpg>. Acesso


em: 20 jun. 2017.

155
UNIDADE 3 | MULTICULTURALISMO, GÊNERO, RAÇA E ETNIA NO BRASIL

5 POLÍTICAS MULTICULTURAIS NA VENEZUELA


A população da Venezuela é composta pela maioria de pardos (mistura
entre branco, índio e negro), cerca de 75% da população. Os demais 25% são
brancos e negros. Este país tem sido um dos poucos países na América Latina que
tem construído políticas de respeito à diversidade étnica e cultural, principalmente
em relação aos negros.

Após a independência da Espanha em 1821, a Venezuela tem construído


um discurso em que predomina a democracia racial, e a cultura negra tem sido
respeitada.

Segundo as pesquisas de Pollak-Eltz (1977); Wright (1990) e Bermúdez


e Suarez (1995), na Venezuela contemporânea o racismo é presente
somente de forma sutil, sobretudo no mercado matrimonial e nos
concursos de beleza, e não chega a bloquear a ascensão social dos
negros, nem previne que algumas importantes festas populares negras
tradicionais estejam se tornando autênticas festas nacionais, nas quais
os brancos celebram a cultura negra como parte da sua própria tradição
cultural (SANSONE, 1998, p. 3).

Isso significa dizer que a cultura negra foi incorporada à cultura venezuelana,
mas que ainda existe discriminação entre os negros e demais etnias no país, pois
devido à forma velada de discriminação, ou seja, quando ela é considerada no nível
pessoal e não como um problema social, os governos tendem a fazer de conta que
o problema não existe, e, assim, não desenvolvem políticas públicas de combate
à discriminação. Esse tipo de pensamento é encontrado na maioria dos países da
América Latina.

6 POLÍTICAS MULTICULTURAIS NO MÉXICO


O México é o segundo país mais populoso da América Latina, ficando
atrás somente do Brasil, com uma população de 109,6 milhões de pessoas. A
população mexicana é constituída, em sua maioria, por euro-ameríndios, ou seja,
pela mistura entre espanhóis e índios. Esse grupo étnico responde por cerca de
60% dos habitantes do país. Os brancos são cerca de 9% da população e os índios
correspondem a 30% da população.

A ocupação do território mexicano ocorre de forma irregular, devido às


condições naturais do país, possuindo uma grande área de deserto. Determinadas
áreas são extremamente povoadas, enquanto outras praticamente desabitadas.
Essa concentração de pessoas em apenas uma parte do território mexicano ocasiona
graves problemas sociais, como os bolsões de pobreza encontrados na Cidade do
México, uma das mais populosas do mundo, com mais de oito milhões de pessoas.

156
TÓPICO 1 | AS POLÍTICAS MULTICULTURAIS NA AMÉRICA LATINA E NO BRASIL

FIGURA 47 - OAXACA, MÉXICO MULTICULTURAL

FONTE: Disponível em: <http://e-oaxaca.com/sites/default/files/oaxaca3.jpg>. Acesso em:


20 jun. 2017.

Um dos problemas que o México vem enfrentando é a questão do sistema


jurídico ainda influenciado pelos colonizadores espanhóis, não reconhecendo a
diversidade étnica e cultural existente no país. São aproximadamente 58 etnias
indígenas diferentes no país, encontradas desde muitos anos antes da colonização
espanhola.

A proposta é de legitimar os mecanismos e sistemas criados pelos diferentes


grupos indígenas, dando conta das suas especificidades étnicas e culturais,
valorizando a sua diversidade cultural, sem correr o risco de sufocar e influenciar
esses povos, julgando-os através dos valores da cultura ocidental.

7 O SURGIMENTO DAS POLÍTICAS MULTICULTURAIS NO


BRASIL
As políticas multiculturais no Brasil surgiram durante o Governo Lula, no
final do século XX, e ampliaram-se no início do século XXI, através da criação de
diversas secretarias. Alguns elementos fundamentais para a discussão das políticas
multiculturais no país são a política de cotas nas universidades, o Estatuto da
Igualdade Racial e a criação das comunidades quilombolas e negras com direito à
propriedade da terra e à manutenção da sua cultura.

A seguir veremos que as políticas multiculturais existentes no Brasil são


importantes instrumentos de ampliação e consolidação das políticas públicas
157
UNIDADE 3 | MULTICULTURALISMO, GÊNERO, RAÇA E ETNIA NO BRASIL

para a diminuição das desigualdades sociais, na direção de um país mais justo e


solidário, que leva em consideração a diversidade étnica e cultural existente em
seu território.

O primeiro mandato do Governo Lula teve início no dia 1º de janeiro de


2003 e se estendeu até dezembro de 2006. Luiz Inácio Lula da Silva venceu as
eleições de 2002 após três tentativas. Foi a primeira vez na história do Brasil que
um ex-operário chegou ao cargo mais importante do país.

Nos governos anteriores a Lula os investimentos realizados foram mais


voltados para a área econômica, pois o país passava por uma grande crise, com a
inflação descontrolada. Somente no governo FHC é que o país conseguiu controlar
a inflação, houve alguns investimentos em programas sociais com o objetivo de
amenizar as desigualdades sociais existentes no país, mas em relação às políticas
culturais e o multiculturalismo:

[...] não há registros de que o governo FHC tenha realizado um processo


de debate público, ou seja, não houve uma abertura à participação
popular sobre o papel da Cultura na construção de uma sociedade
democrática, não inserindo a Cultura no desenvolvimento da cidadania
[...] (PINTO, 2010, p. 14).

Isso significa dizer que apenas no final do século XX e início do século XXI
é que se iniciam efetivamente alguns investimentos em políticas multiculturais no
Brasil e a cultura passa a ser considerada um dos parâmetros para o desenvolvimento
do país, sendo prevista desde a Constituição Federal de 1988.

O governo Lula ampliou as políticas sociais iniciadas no governo FHC.


Criou o Programa Fome Zero, que consistia na transferência de renda direta para
famílias com renda per capita de R$ 69,01 a R$ 137,00, com o objetivo de diminuir a
miséria e a fome no país.

Também foram criadas diversas secretarias com o objetivo de respeitar


a diversidade étnica e cultural existente no país e diminuir as desigualdades
sociais históricas, ocasionadas por questões de gênero e raça. Foram criadas a
Secretaria de Direitos Humanos, Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade
Racial, Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, bem como o Ministério
de Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Vejamos a seguir quando foram
criadas e qual o papel de duas delas, que foram importantes para o que estamos
nos propondo debater neste livro. São elas: Secretaria de Direitos Humanos e a
Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial.

Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/


PR) é responsável pela articulação interministerial e intersetorial das políticas
de promoção e proteção aos direitos humanos no Brasil. Criada em 1977,
dentro do Ministério da Justiça, foi alçada ao status de ministério em 2003.

158
TÓPICO 1 | AS POLÍTICAS MULTICULTURAIS NA AMÉRICA LATINA E NO BRASIL

No ano de 2010 a Secretaria ganhou o atual nome. As principais atribuições


da SDH/PR foram:

• Propor políticas e diretrizes que orientem a promoção dos direitos
humanos, criando ou apoiando projetos, programas e ações com tal
finalidade.

• Articular parcerias com os poderes Legislativo e Judiciário, com os estados


e municípios, com a sociedade civil e com organizações internacionais
para trabalho de promoção e defesa dos direitos humanos.

• Coordenar a Política Nacional de Direitos Humanos segundo as diretrizes


do Programa Nacional de Direitos Humanos.

• Receber e encaminhar informações e denúncias de violações de direitos


da criança e do adolescente, da pessoa com deficiência, da população
de lésbicas, gays, bissexuais e transexuais e de todos os grupos sociais
vulneráveis.

• A SDH/PR atua como Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos.

FONTE: Direitos Humanos (2011). Disponível em: <http://www.direitoshumanos.gov.br/sobre>.


Acesso em: 20 maio 2016.

Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial: a SEPPIR


(Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial) foi criada pelo
Governo Federal no dia 21 de março de 2003. A data é emblemática: em todo
o mundo celebra-se o Dia Internacional pela Eliminação da Discriminação
Racial. A criação da Secretaria é o reconhecimento das lutas históricas do
Movimento Negro brasileiro. A missão da SEPPIR é estabelecer iniciativas
contra as desigualdades raciais no país. Seus principais objetivos são:

• Promover a igualdade e a proteção dos direitos de indivíduos e grupos


raciais e étnicos afetados pela discriminação e demais formas de
intolerância, com ênfase na população negra.

• Acompanhar e coordenar políticas de diferentes ministérios e outros


órgãos do governo brasileiro para a promoção da igualdade racial.

• Articular, promover e acompanhar a execução de diversos programas


de cooperação com organismos públicos e privados, nacionais e
internacionais.

159
UNIDADE 3 | MULTICULTURALISMO, GÊNERO, RAÇA E ETNIA NO BRASIL

• Promover e acompanhar o cumprimento de acordos e convenções


internacionais assinados pelo Brasil, que digam respeito à promoção da
igualdade e combate à discriminação racial ou étnica.

• Auxiliar o Ministério das Relações Exteriores nas políticas internacionais,


no que se refere à aproximação de nações do Continente Africano.

A SEPPIR utiliza como referência política o programa Brasil sem


Racismo, que abrange a implementação de políticas públicas nas áreas do
trabalho, emprego e renda; cultura e comunicação; educação; saúde, terras de
quilombos, mulheres negras, juventude, segurança e relações internacionais.
A criação da SEPPIR reafirma o compromisso com a construção de uma
política de governo voltada aos interesses reais da população negra e de
outros segmentos étnicos discriminados.

FONTE: Políticas de Promoção da Igualdade Racial (2011). Disponível em: <www.seppir.gov.br/


sobre>. Acesso em: 20 maio 2016.

Essas secretarias foram criadas para promover a cidadania e diminuir as


desigualdades sociais no Brasil, além de serem o alicerce na criação de políticas
multiculturais. Lembrando que essas secretarias permanecem até os dias atuais,
promovendo suas ações durante os dois mandatos da presidente Dilma Rousseff.

Isso não quer dizer que a discriminação por raça, gênero, religião, etnia
e classe social tenha acabado no país, mas são políticas públicas importantes
desenvolvidas através desses ministérios e secretarias, instrumentos eficazes
na construção de uma sociedade brasileira mais justa e que respeite de fato a
diversidade existente nesse imenso país, para que a nossa nova história seja
construída com a efetiva participação de todos.

7.1 O SISTEMA DE COTAS


O Brasil inicia sua trajetória no sistema de cotas adotando políticas
afirmativas para dois grupos: deficientes e mulheres. Em relação aos deficientes,
foram estabelecidas cotas para que possam ingressar no serviço público através de
concurso, e também programas exigindo que as empresas contratem um percentual
de pessoas com deficiências no seu quadro funcional. Esse ordenamento jurídico
encontra seu respaldo na Constituição Federal de 1988.

160
TÓPICO 1 | AS POLÍTICAS MULTICULTURAIS NA AMÉRICA LATINA E NO BRASIL

FIGURA 48 - O SISTEMA DE COTAS É PRODUTO DA LUTA DOS MOVIMENTOS NEGROS

FONTE: Disponível em: <http://www.politize.com.br/wp-content/uploads/2016/10/


movimento-negro-passeata.jpg>. Acesso em: 20 jun. 2017.

Além disso, o Brasil fixou a obrigatoriedade de os partidos políticos terem


no mínimo 20% do seu quadro eleitoral composto por mulheres.

Nas universidades, o sistema de cotas começa a entrar em vigor no ano


2000, sendo que as primeiras universidades a adotarem esse sistema no vestibular,
no ano de 2004, foram as universidades estaduais no Rio de Janeiro, garantindo
que 50% das vagas fossem destinadas a estudantes de escolas públicas.

Logo em seguida, no dia 9 de novembro de 2001, a Lei nº 3.708/01 institui


o sistema de cotas para estudantes negros ou pardos, destinando 40% das vagas
das universidades públicas estaduais do Rio de Janeiro. Em 2002, a Universidade
Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e a UENF passam a adotar essa política no seu
vestibular. A Universidade de Brasília (UNB) e a Universidade do Estado da Bahia
(UNEB) também aderem ao sistema de cotas, adotando critérios socioeconômicos
ou a cor ou raça em seus vestibulares.

Nesta mesma perspectiva, para reforçar as políticas multiculturais em


âmbito nacional, foi criado o Programa Diversidade na Universidade, através
da Lei Federal nº 10.558/02, de 13 de novembro de 2002, conhecida como “Lei de
Cotas”.

Existe muita resistência por parte de vários segmentos tradicionais da


sociedade brasileira em aceitar a Lei de Cotas nas Universidades, pois, para estes,
esta lei reforça o racismo já existente no país, fazendo com que negros e pardos
ou pessoas de condições socioeconômicas desfavoráveis acessem as universidades
não pelo mérito, mas pelo enquadramento em uma lei.

161
UNIDADE 3 | MULTICULTURALISMO, GÊNERO, RAÇA E ETNIA NO BRASIL

No entanto, como citamos anteriormente, esse sistema existe para equiparar


danos provocados a estas etnias e classes sociais que sempre foram marginalizadas
no decorrer da história do país.

Além do sistema de cotas, devem acontecer em paralelo outros programas


sociais que resolvam as deficiências estruturais da sociedade brasileira, focando
em áreas como educação, saúde, distribuição de renda, cultura, qualificação
profissional, habitação, entre outras.

O problema apresentado é que, gerando oportunidades para a camada


social menos favorecida, a elite brasileira perde privilégios históricos, pois agora
os seus filhos terão que concorrer a uma vaga no mercado de trabalho com as
“minorias étnicas ou com os pobres”. As carreiras que antes só pertenciam a eles,
como Medicina, Engenharia, Direito, dentre outros cursos elitizados, que entraram
no sistema de cotas, agora tornam-se acessíveis a um maior número de brasileiros
que, até então, não podiam sonhar em construir uma profissão promissora.

O sistema de cotas geralmente possui um período determinado, ou seja,


ele perdura até eliminar a desigualdade e a exclusão ocasionadas a determinados
grupos sociais, como falamos anteriormente. Ele só terminará quando os grupos
sociais, que foram incluídos no sistema de cotas, estiverem inseridos de maneira
digna na sociedade brasileira.

7.2 ESTATUTO DA IGUALDADE RACIAL


Outro instrumento jurídico que reforça as políticas multiculturais no Brasil
é o Estatuto da Igualdade Racial, criado em 20 de julho de 2010, através da Lei
Federal nº 12.288/2010. Este estatuto visa garantir à população negra a efetivação
da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos
e difusos e o combate à discriminação e às demais formas de intolerância étnica
(BRASIL, 2010).

O Estatuto da Igualdade Racial estabelece a inclusão da população negra


nas políticas públicas de educação, cultura, esporte, lazer, saúde, respeito às suas
crenças religiosas e liberdade de expressão, direito à terra e à moradia digna,
políticas de inclusão da população negra no mercado de trabalho, a valorização da
herança cultural negra, através dos meios de comunicação, combate à discriminação
e às demais formas de intolerância étnica, levando em consideração critérios como
gênero e classe social. Portanto, esse Estatuto significa um importante avanço
na promoção da igualdade de oportunidades para a população negra no país,
que desde o período de colonização sofreu as consequências de uma sociedade
eurocêntrica baseada na exploração de negros, índios e mestiços, como forma de
enriquecimento através de povos considerados “inferiores e subalternos”.

162
TÓPICO 1 | AS POLÍTICAS MULTICULTURAIS NA AMÉRICA LATINA E NO BRASIL

7.3 COMUNIDADES QUILOMBOLAS E TRADICIONAIS: UM


CAMINHO PARA O RESPEITO À DIVERSIDADE ÉTNICA-
CULTURAL
Após grande pressão do Movimento Negro, foram criadas, em 2003, as
comunidades quilombolas. Elas são definidas como remanescentes de Quilombo,
com uma identidade étnica comum diferente das demais existentes no país com
ancestralidade negra, criadas com o objetivo de fortalecer a cultura desses grupos e
que estabelecem o direito à terra de acordo com o Decreto nº 4.887/03. Atualmente,
existem cerca de 3.524 comunidades quilombolas no Brasil, em 24 estados da
federação, segundo dados da Fundação Palmares.

Os movimentos sociais também foram determinantes para que na


Constituição de 1988 aparecesse o termo “Comunidades Tradicionais”. A partir de
2002, um conjunto de medidas governamentais possibilitou a sua implementação.
Como definir o que são comunidades tradicionais?

O Decreto nº 6.040, de 7 de fevereiro de 2007, Art. 30, define povos e


comunidades como (BRASIL, 2007):
I […] grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem
como tais, que possuem formas próprias de organização social, que
ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua
reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando
conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição.

E os seus territórios como sendo:


II […] os espaços necessários à reprodução cultural, social e econômica
dos povos e comunidades tradicionais, sejam eles utilizados de forma
permanente ou temporária, observado, no que diz respeito aos povos
indígenas e quilombolas, respectivamente, o que dispõem o Artigo
231 da Constituição de 68 do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias e demais regulamentações.

FIGURA 49 - QUILOMBOS BRASILEIROS: ORGANIZANDO-SE POR DIREITOS

FONTE: Disponível em: <http://racismoambiental.net.br/wp-content/uploads/2013/07/


quilombo-da-lapinha.jpg>. Acesso em: 20 jun. 2017.

163
UNIDADE 3 | MULTICULTURALISMO, GÊNERO, RAÇA E ETNIA NO BRASIL

Em 2006, o Brasil começa a organizar uma política nacional dirigida


para os Povos e Comunidades Tradicionais através do Decreto de 13 de julho de
2006, criando a Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos
e Comunidades Tradicionais (CNPCT). Esta comissão integra representantes de
15 Povos e Comunidades Tradicionais e também representantes do Ministério do
Desenvolvimento Social e Combate à Fome e do Ministério do Meio Ambiente,
dois órgãos públicos federais aos quais esta comissão está interligada.

Logo em seguida, através do Decreto nº 6.040, de 7 de fevereiro de


2007, foi criada a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos
e Comunidades Tradicionais (PNPCT). O PNPCT, bem como a definição e o
reconhecimento das Comunidades Quilombolas, é mais um importante passo
na direção da manutenção da existência e preservação da cultura de grupos
marginalizados e explorados no decorrer da nossa história. Mostrando também
que só é possível construir um país desenvolvido, com dignidade, respeitando a
diversidade étnica.

164
RESUMO DO TÓPICO 1

Neste tópico, você aprendeu que:

• As políticas multiculturais na América Latina têm sido insuficientes para dar


conta de diminuir as desigualdades sociais ocasionadas pela exploração de
vários povos, como os indígenas e os negros.

• Basicamente, todos os países latino-americanos têm enfrentado a questão da


diversidade cultural. Muitos deles têm enfatizado políticas multiculturais. É o
caso do México, da Bolívia, da Colômbia, Peru e Venezuela, por exemplo.

• Em geral, as políticas multiculturais enfatizam as características culturais


específicas de cada país.

• No Brasil, as políticas multiculturais são recentes. Os primeiros passos surgem


a partir dos anos 1990, ganhando forma de leis e políticas públicas a partir de
2001.

• As políticas multiculturais brasileiras voltam-se a povos e etnias indígenas e


às comunidades tradicionais, como os quilombolas, os grupos sociais negros
e pardos. O objetivo é reduzir as desigualdades de oportunidades entre os
diversos grupos e classes sociais brasileiros.

165
AUTOATIVIDADE

1 A partir da leitura deste tópico, elabore uma definição de


multiculturalismo latino-americano.

2 Como se deu o aparecimento das políticas culturais no Brasil?

3 O que são as comunidades tradicionais?

166
UNIDADE 3
TÓPICO 2

DESIGUALDADES E VIOLÊNCIA DE
GÊNERO NO BRASIL

1 INTRODUÇÃO
Como vimos, nossa sociedade é culturalmente plural e socialmente
desigual. As diversas interpretações sobre a realidade nacional apontaram para
a existência de abismos profundos entre classes e grupos sociais. Muitos deles
são oriundos da nossa concentração de renda. Outros, são vinculados a muros
simbólicos erguidos em torno da cor da pele ou gênero, por exemplo. De fato,
existem múltiplas camadas de injustiças e distâncias sociais na história brasileira.

O Brasil é um Estado de tamanho considerável, de natureza exuberante, de


terras férteis, porém, concentradas. De uma população mista, mas segregada em
camadas de preconceitos. De uma indústria e serviços modernos, mas que convive
com práticas patrimonialistas. A complexidade brasileira vai além.

FIGURA 50 - AS MULHERES BRASILEIRAS DO CAMPO E DA CIDADE E SUAS LUTAS ATUAIS

FONTE: Disponível em: <https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/0/08/Feminist_Stencil_


Graffito_S%C3%A3o_Paulo_March_2012-14.jpg> e <http://jornalggn.com.br/sites/default/files/admin/
marcha-das-margaridas.jpg>.

Somos os únicos complexos em todo o mundo? Nada existe de verdadeiro


nessa questão. Porém, diferente de algumas nações, como algumas localizadas na
Europa Ocidental, as sociedades brasileiras do passado e atuais são resultados do

167
UNIDADE 3 | MULTICULTURALISMO, GÊNERO, RAÇA E ETNIA NO BRASIL

encontro de muitos povos. Estamos mais próximos da complexidade cultural da


Índia do que da França. Todavia, as ideias dominantes que prevaleceram e ainda
prevalecem e que buscam explicar nossa sociedade são, em sua maioria, europeias.

Este tópico busca apresentar alguns dados e resultados de pesquisas que


apontam para as enormes desigualdades múltiplas em nosso país. Elas afetam de
maneira desigual os grupos sociais, resultando no aparecimento e na consolidação
de grupos mais vulneráveis, sejam nos aspectos ligados à escolaridade, renda,
violência, expectativa de vida ou acesso a oportunidades. De certa forma, a nossa
diversidade sociocultural convive com situações extremas de vulnerabilidade
e exclusão social. Isso porque haveria uma imbricação entre desigualdades e
diversidade (GOMES, 2012).

Assim, apesar de muitos avanços, como o fato de o Brasil ter saído do


Mapa da Fome da ONU, os desafios sociais brasileiros são inúmeros. Muitos deles
passam, assim, por questões estruturais ligadas à etnia e ao gênero. No mais, estas
temáticas estão ligadas ao reconhecimento social e político desses sujeitos e grupos
sociais. Reconhecer a injustiça e a desigualdade que está estruturalmente alicerçada
à realidade brasileira. E é do ponto de vista do gênero e das relações étnico-raciais
que nossas instituições sociais, públicas e privadas se tornam sensíveis ao problema
da igualdade, da justiça e da redistribuição.

Primeiro, adentramos nas questões ligadas ao Feminismo e suas


problematizações de gênero, refletindo sobre as desigualdades encontradas em
nosso país. Em seguida, abordaremos o tema do ponto de vista étnico-racial,
envolvendo as populações negras, pardas e indígenas.

Bons estudos!

2 DENUNCIANDO AS DIFERENÇAS SOCIALMENTE


CONSTRUÍDAS ENTRE OS GÊNEROS
Já discutimos com profundidade o tema das relações de gênero, raciais e
étnicas na Unidade 2, apontando para a sua importância como conceito analítico.
Quer dizer, como um recurso para incursões teóricas sobre o assunto nas Ciências
Sociais. Porém, e isso já foi ressaltado, essas categorias teóricas acabam sendo
incorporadas como conhecimento reflexivo no dia a dia, orientando nossas relações
sociais mais básicas, incluindo a ação política. Basta lembrar, por exemplo, o debate
proposto por Anthony Giddens sobre reflexividade do eu na nossa sociedade pós-
tradicional.

As categorias teóricas têm peso na vida cotidiana. Diante de determinadas


injustiças, elas possuem a capacidade de orientar a ação e a mobilização social,
resultando na organização de movimentos sociais, por exemplo. Novamente,
devemos articular essa colocação com um assunto já abordado: a Teoria do
Reconhecimento. Para o filósofo alemão Axel Honneth (2003, p. 224): “Toda
168
TÓPICO 2 | DESIGUALDADES E VIOLÊNCIA DE GÊNERO NO BRASIL

reação emocional negativa que vai de par com a experiência de um desrespeito de


pretensões de reconhecimento contém novamente em si a possibilidade de que a
injustiça infligida ao sujeito se lhe revele em termos cognitivos e se torne o motivo
da resistência política”.

Assim, é constante observarmos a discussão calorosa nas redes sociais, a sua


presença na política, nos meios de comunicação, na indústria cultural, nas ruas em
ação. É a percepção de diferenças socialmente construídas em detrimento de alguns
grupos sociais que alimenta a necessidade de agir para reconhecer esses desníveis
e redistribuir os recursos em jogo, sejam eles legais, financeiros, simbólicos etc. Na
luta contra a injustiça, os indivíduos percebem-se como moralmente injustiçados.

Gênero e Feminismo não são as mesmas coisas. Todavia, o Feminismo


é responsável pela conformação de um campo de investigações que deu
origem às pesquisas sobre relações de gênero. Os estudos de gênero
ganharam dimensão significativa nas Ciências Sociais nos anos 1960.
Foi uma década de ascensão dos novos movimentos sociais. Essas
dinâmicas que ocorriam na realidade dos anos 1960-1970 produziram
crises que colocam sob crítica os paradigmas que orientavam a reflexão
sociológica e antropológica dominante até aquele momento. Tais
metodologias e teorias omitiam ou silenciavam a respeito das diferenças
sociais conformadas entre os sexos ou etnias e raças. O grande salto
qualitativo deste momento de questionamentos foi problematizar a
existência de relações de gênero não mais como algo dado, a priori e
universal, isto é, natural (SCAVONE, 2008, p. 174).

E qual foi a situação social dessas duas décadas, que foi significativa a ponto
de fazer emergir novos paradigmas de reflexão nas Ciências Humanas? De uma
maneira geral, ao longo dos últimos 60 anos, um rápido processo de transformação
social, econômico e ambiental acarretou no surgimento de discussões que partiram
de um entendimento mais transversal de Cultura, aproximando-a da Técnica
e da Ciência, da Economia, da Comunicação e Publicidade (RUBIM; RUBIM;
VIEIRA, 2005). Uma das mais impactantes é a sua aproximação com a política.
A territorialização da cultura, por parte da política, e vice-versa, a partir dos
profundos deslocamentos conceituais que ocorreram no último século e no início
deste, resultou na ampliação dos usos possíveis da cultura, considerada agora
importante recurso mobilizado por uma infinidade de agentes sociais, públicos,
privados e estatais, urbanos, rurais ou tradicionais para os mais diversos fins e
justificativas.

Para Marta Lamas (2000, p. 13), o feminismo, ao conformar o conceito de


gênero, contribui para a “compreensão de que não é a anatomia que posiciona
homens e mulheres em âmbito e hierarquias distintas”, mas sim, “a simbolização que
as sociedades fazem dela”. Com isso, o Feminismo e as feministas problematizam
a própria tradição intelectual ocidental e os postulados que são produzidos e que
legitimam mecanismos de exclusão e dominação. Essas posições tratavam-se de se
distanciar do determinismo biológico, que já havia sido uma teoria hegemônica.

169
UNIDADE 3 | MULTICULTURALISMO, GÊNERO, RAÇA E ETNIA NO BRASIL

DICAS

O Feminismo possui diversas fases e momentos


que marcaram seu desenvolvimento. As primeiras
manifestações estão ligadas às demandas do voto feminino,
ainda no século XIX. Para conhecer esse tipo de luta e suas
dificuldades, sugerimos o filme “As Sufragistas” (2015), que traz
um ponto de vista a respeito desse período e do engajamento
de algumas mulheres. “As Sufragistas” (Suffragette) é um filme
britânico sob a direção de Sarah Gravon.

FONTE: Disponível em: <http://www.adorocinema.com/filmes


/filme-222967/>. Acesso em: 20 jul. 2017.

A emergência e consolidação dos Estudos de Gênero permitiu a inclusão de


diversas perspectivas sobre as relações sociais entre homens e mulheres. Questões
como direitos reprodutivos, violência sexual e doméstica, desigualdades salariais,
falta de representatividade nas instituições públicas, nas empresas privadas etc.
Denuncia-se formas de dominação simbólica masculina e a desigualdade nas
relações de poder. Segundo Livia Scavone (2008), tratou-se de desconstruir o
sujeito universal iluminista por metodologias e abordagens menos totalizantes.
Diante de tantas constatações da artificialidade das divisões sexuais, constatamos
a persistência de inúmeras desigualdades, violências e desnível nas relações de
poder entre homens e mulheres. Em países como o Brasil, a situação torna-se ainda
mais dramática para as mulheres, transgêneros e comunidade gay e lésbica.

2.1 RELAÇÕES ENTRE GÊNERO NA SOCIEDADE


BRASILEIRA ATUAL
A população feminina, segundo o Censo do IBGE (2010), representou
51,5% do total dos brasileiros. Nosso país teve como característica de suas etapas
históricas anteriores a conformação de uma sociedade patriarcal e organizada em
torno da unidade familiar, cujo poder estava nas mãos dos homens. Apesar de
maioria, hoje, em nossa história, as mulheres foram constantemente invisibilizadas
e confinadas ao lar, sendo sujeitas às lógicas da família patriarcal.

170
TÓPICO 2 | DESIGUALDADES E VIOLÊNCIA DE GÊNERO NO BRASIL

E
IMPORTANT

A sociedade patriarcal brasileira

O que é uma sociedade patriarcal contemporânea? Para a pesquisadora Maria do Perpétuo


Socorro Leite Barreto (2004):

É caracterizado por uma autoridade imposta institucionalmente, do


homem sobre mulheres e filhos no ambiente familiar, permeando
toda organização da sociedade, da produção e do consumo, da
política, à legislação e à cultura. Nesse sentido, o patriarcado funda
a estrutura da sociedade e recebe reforço institucional, nesse
contexto, relacionamentos interpessoais e personalidade são
marcados pela dominação e violência (2004, p. 64).

Trata-se de uma relação de poder que se fundamenta naquilo que Max Weber chamou de
autoridade pessoal. Neste tipo de situação, o que fundamenta a autoridade é a sujeição
pessoal.

Este tipo de tradição cultural dominante em nossa sociedade tem origens estruturais sociais
herdadas da ocupação e dominação política portuguesa desde 1500, continuando presente
e com força até os dias atuais. Todavia, as lutas e movimentos sociais têm reforçado essa
característica nociva à equidade e que se encontra presente em nossa sociedade.

Para Gilberto Freyre, o patriarcalismo estruturou-se no Brasil “como uma estratégia da


colonização portuguesa”, cujas bases institucionais dessa forma dessa dominação foram “o
grupo doméstico rural e o regime da escravidão”. Ele sugeriu que dominação era exercida
pelos homens através da sexualidade “como recurso para aumentar a população escrava”,
mediada “pelo arbítrio masculino no uso do sexo” (AGUIAR, 2000, p. 308). O livro escrito por
Freyre, Casa-grande & senzala (1933), nos legou um estudo cujo foco foi a formação da família
brasileira sob o regime da economia patriarcal.

Segundo Freyre, “é característico do regime patriarcal, o homem fazer da mulher uma criatura
tão diferente dele quanto possível. Ele, o sexo forte, ela o fraco; ele o sexo nobre, ela o
belo” (FREYRE, 2002, p. 805). Através dessas construções sociais, as mulheres foram sendo
posicionadas em papéis determinados e secundários, já o papel principal cabia ao Senhor de
Engenho, o “rei da Casa-Grande”.

FONTE: Aguiar (2000); Barreto (2004); Freyre (2002)

Importante entender o marco legal representado pela Constituição Federal


de 1988, que redefiniu o conceito de igualdade entre homens e mulheres, com
reconhecimento explícito das diferenças e da condição de desigualdade da mulher
na sociedade. Porém, atualmente, a situação da mulher brasileira continua sendo
social, política, cultural e economicamente problemática. Enraizado nas heranças
culturais e nas dinâmicas das diferenças de gênero, a dominação masculina, a
misoginia, as muitas formas de violência e de desigualdade ainda persistem em
nosso quadro social.

Vamos, agora, aprofundar a reflexão sobre estes problemas de primeira


grandeza.
171
UNIDADE 3 | MULTICULTURALISMO, GÊNERO, RAÇA E ETNIA NO BRASIL

2.1.1 A violência de gênero


Não é necessariamente apenas contra mulheres. Este campo inclui,
também, as violências diversas perpetradas contra gays, lésbicas, transexuais e
outros agentes relacionados ao universo não heterossexual. No caso das mulheres,
a violência é resultado das diferenças entre o feminino e o masculino, que são
transformadas em desigualdades hierárquicas pelos discursos masculinos sobre a
mulher e que recaem sobre o corpo da mulher (SANTOS; IZUMINO, 2005).

O interesse sobre este tipo de violência é decorrente das reflexões


produzidas no âmbito do feminismo e dos estudos de gênero, com a desconstrução
dos significados atribuídos à masculinidade e feminilidade. Os tipos de violência
ligados ao gênero são motivados por desigualdades entre os sexos, do universo
familiar ao mundo da rua e das interações sociais. Segundo Lourdes Maria
Bandeira (2014, p. 451):

[...] ao escolher o uso da modalidade violência de gênero, entende-se que


as ações violentas são produzidas em contextos e espaços relacionais
e, portanto, interpessoais, que têm cenários societais e históricos não
uniformes. A centralidade das ações violentas incide sobre a mulher,
quer sejam estas violências físicas, sexuais, psicológicas, patrimoniais
ou morais, tanto no âmbito privado-familiar como nos espaços de
trabalho e públicos.

No Brasil, o campo de estudos sobre esse tipo de violência teve início nos
anos 1980. Tal situação impactou o movimento feminista brasileiro e a academia,
através da incorporação da categoria teórica aos temas de inserção intelectual e do
cotidiano. Por exemplo, surgiram grupos de combate e atendimento às mulheres
em situação de violência, sendo pioneiros os SOS Corpo de Recife (1978), São
Paulo, Campinas e Belo Horizonte (década de 1980) (BANDEIRA, 2014). Tais
estudos resultam das mudanças sociais e políticas no país, acompanhando o
desenvolvimento do movimento de mulheres e o processo de redemocratização.
Além disso, o surgimento das Delegacias das Mulheres nos anos 1980 forçou o
Estado a atuar contra as violências de gênero (SANTOS; IZUMINO, 2005).

Para a pesquisadora e pioneira nos estudos sobre violência de gênero


no Brasil, Saffioti, a violência de gênero brota de situações complexas em que
diversos fenômenos estão relacionados e impactam as relações, mas “estes nem
são da mesma natureza nem apresentam a mesma capacidade de determinação”
(SAFFIOTI, 2001, p. 133). É necessário refletir sobre as características das muitas
violências contra a mulher, contra os gêneros, as formas de violência doméstica,
sexual. Quer dizer, a violência contra o sexo feminino pode ter diversas motivações.

E qual a atual situação das mulheres brasileiras em relação aos muitos tipos
de violência possíveis? Para discutir esta problemática, tratamos de indicar alguns
estudos e pesquisas importantes, que permitem uma avaliação da situação em nosso
país. Desde já, apontamos a gravidade da situação contra as mulheres. Segundo
esclarece o Mapa da Violência de 2015 – Homicídios de Mulheres no Brasil:

172
TÓPICO 2 | DESIGUALDADES E VIOLÊNCIA DE GÊNERO NO BRASIL

A violência contra a mulher não é um fato novo. Pelo contrário, é


tão antigo quanto a humanidade. O que é novo, e muito recente,
é a preocupação com a superação dessa violência como condição
necessária para a construção de nossa humanidade. E mais novo ainda
é a judicialização do problema, entendendo a judicialização como a
criminalização da violência contra as mulheres, não só pela letra das
normas ou leis, mas também, e fundamentalmente, pela consolidação
de estruturas específicas, mediante as quais o aparelho policial e/ou
jurídico pode ser mobilizado para proteger as vítimas e/ou punir os
agressores (BRASÍLIA, 2015, p. 7).

Quais são os tipos de violência mais comuns contra as mulheres? Observe


a imagem a seguir.

FIGURA 51 – TIPOS DE VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER

FONTE: Disponível em: <http://feminicidionobrasil.com.br/>. Acesso em: 10 ago. 2017.

173
UNIDADE 3 | MULTICULTURALISMO, GÊNERO, RAÇA E ETNIA NO BRASIL

A omissão em discutir os problemas ligados às relações desiguais


sociais, econômicas, políticas ou culturais entre homens e mulheres tem levado à
constatação de uma crescente violência contra as mulheres. O Mapa da Violência
2015 indica que as taxas do Brasil são muito superiores às de vários países tidos
como civilizados: 48 vezes mais homicídios femininos que no Reino Unido;
24 vezes mais homicídios femininos que Irlanda e Dinamarca; 16 vezes mais
homicídios femininos que Japão ou Escócia. Entre 1980 e 2013 foram assassinadas
em nosso país 106.093 mulheres. Os dados de 1980 apontavam que foram mortas
1.353 mulheres; em 2013, foram mortas 4.762 mulheres, com um aumento de 252%
(BRASÍLIA, 2015). Essa mesma pesquisa indicou que:

• O perfil geral das mulheres vítimas de homicídios está na faixa etária dos 18-30
anos, incluindo em sua ampla maioria moças negras. Ao passo que o assassinato de
mulheres brancas vem decaindo, cresce a vitimização das negras. Em média, este
número aumentou 190,9% nos últimos dez anos (2003-2013). Em alguns estados
esse aumento passou de 300%! (Amapá, Paraíba Pernambuco e Distrito Federal).
• Os agressores masculinos utilizaram força física (estrangulação-sufocamento)
ou objetos cortantes, penetrantes e contundentes, como armas em seus crimes,
diferentemente de os homicídios entre homens, cuja letalidade está na arma de
fogo. Isso revela, no caso das mulheres, maior presença de crimes de ódio ou
motivos banais.
• A agressão foi cometida, em geral, por pessoas conhecidas da vítima, mais uma
diferença em relação ao universo dos homicídios masculinos, realizados, em
sua maioria, por estranhos.

Para enfrentar estas situações e propor e executar políticas públicas, o


governo federal havia criado, em 2003, a Secretaria de Políticas para Mulheres
junto à Presidência da República. Vale ressaltar que foi aprovado, em 2006, um
instrumento legal fundamental para o enfrentamento da violência de gênero,
especialmente contra as mulheres. Trata-se da Lei 11.340/2006, conhecida como
Lei Maria da Penha.

Dentre uma das violências comuns às mulheres no Brasil está o feminicídio.


O que é isso? Podemos dizer que existe feminicídio quando a agressão envolve
violência doméstica e familiar, ou quando evidencia menosprezo ou discriminação
à condição de mulher, caracterizando crime por razões de condição do sexo
feminino (BRASÍLIA, 2015). Outra caracterização possível foi construída para o
Relatório final da Comissão Parlamentar Mista sobre a violência contra a mulher
do Congresso Nacional:
O feminicídio é a instância última de controle da mulher pelo homem: o
controle da vida e da morte. Ele se expressa como afirmação irrestrita de
posse, igualando a mulher a um objeto, quando cometido por parceiro
ou ex-parceiro; como subjugação da intimidade e da sexualidade da
mulher, por meio da violência sexual associada ao assassinato; como
destruição da identidade da mulher, pela mutilação ou desfiguração de
seu corpo; como aviltamento da dignidade da mulher, submetendo-a
a tortura ou a tratamento cruel ou degradante (BRASIL, 2013, p. 1003).

174
TÓPICO 2 | DESIGUALDADES E VIOLÊNCIA DE GÊNERO NO BRASIL

Contra este tipo corriqueiro de violência, foi promulgada a Lei 13.104/2015,


chamada de Lei do Feminicídio. Porém, tanto esta lei quanto a Lei Maria da Penha
possuem diversos empecilhos para sua plena realização. Sejam estruturais, ligados
à pouca efetividade das políticas públicas, ou sociais, ligados à cultura política
nacional. É urgente e necessário o enfrentamento da violência de gênero em nosso
país, o quinto colocado no mundo em número de mortes violentas de mulheres,
em que a cada meia hora uma mulher é assassinada por ser mulher.

2.1.2 Desigualdades de gênero no mundo do trabalho


A participação da mulher no universo do trabalho industrial teve início
com a Revolução Industrial, especialmente na área têxtil, ainda no século XVIII.
Porém, o aumento da participação da mulher como provedora da renda familiar
deu um grande salto a partir dos anos 1970. Segundo Rafael Toitio (2008, p. 2):

O trabalho feminino passa a integrar crescentemente a estrutura


econômica à sociedade capitalista, sempre sob a determinação
mencionada, ou seja, submetida ao capital e a sua necessidade de
valorização, no entanto, nas primeiras décadas do século passado era
ainda muito superior a proporção do trabalho masculino em relação ao
feminino na esfera produtiva.

Aos poucos, as mulheres foram obrigadas por necessidades econômicas


e outras motivações a se integrar ao mercado de trabalho, para além da jornada
doméstica. Neste sentido, Glaucia de Lima D’Alonso (2008) diz que as mulheres
deixaram de ser apenas meras donas de casa e passaram a ser não somente mãe,
esposa e também operária, enfermeira, professora e mais tarde, arquiteta, juíza,
motorista de ônibus, bancária, entre outras das mais diversificadas profissões,
ocupando um cenário que antes era masculino.

Para além disso, devemos ressaltar que a participação feminina no mercado


de trabalho brasileiro tem crescido. Muitas empresas trabalham suas marcas a partir
da inclusão de “valores femininos”, procurando melhorar suas estratégias de relação
com a sociedade. Da mesma forma, vem crescendo a escolarização das mulheres.

TABELA 1 - DISTRIBUIÇÃO DAS PESSOAS DE 25 ANOS OU MAIS DE IDADE, POR SEXO, SEGUNDO
OS GRUPOS DE ANOS DE ESTUDO - BRASIL - 2015 (EM %)

Grupos de anos de estudo Total Homens Mulheres


Sem instrução e menos de 1 ano 11,1 11,4 10,8
1 a 3 anos 9,5 10,0 9,1
4 a 7 anos 21,7 22,5 21,0
8 a 10 anos 13,9 14,5 13,3
11 a 14 anos 30,7 30,0 31,4
15 anos ou mais 13,0 11,6 14,3
Não determinados 0,1 0,1 0,1
FONTE: IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de Trabalho e Rendimento, Pesquisa Nacional
por Amostra de Domicílios (2015)
175
UNIDADE 3 | MULTICULTURALISMO, GÊNERO, RAÇA E ETNIA NO BRASIL

Como o Brasil se apresenta em relação à presença das mulheres no mercado


de trabalho?

Utilizando dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNDA)


de 2013, o percentual da força de trabalho feminino representa 42% do total,
enquanto os homens são 58%. Segundo a pesquisa, o salário médio dos homens é
de R$ 1.886,50, e o das mulheres de R$ 1.503,17. Esses valores foram calculados com
dados de pessoas entre 16 e 65 anos de idade que trabalham no mínimo 40 horas
por semana. As mulheres costumam seguir carreiras com salários menores, como
enfermagem; e homens têm profissões mais bem remuneradas, como engenharia.
Elas só recebem pelo trabalho de 291 dias – completados no último dia 18. A partir
daí, passaram a trabalhar sem receber por isso.

No país, os homens ganham aproximadamente 30% a mais que as mulheres


de mesma idade e nível de instrução, quase o dobro da média da região (17,2%),
enquanto na Bolívia a diferença é muito pequena. O resultado é o mesmo no que
diz respeito à disparidade por raça e etnia, que chega também a 30%. Segundo essa
pesquisa, os homens ganham mais que as mulheres em todas as faixas de idade,
níveis de instrução, tipo de emprego ou de empresa. A disparidade é menor nas
áreas rurais, em que as mulheres ganham, em média, o mesmo que os homens. Da
mesma forma, persiste a desvalorização do trabalho doméstico, já que o mesmo
não produz mercadorias capitalistas.

É importante reconhecer e denunciar que o trabalho doméstico


permanece invisível e desvalorizado pelo fato de ser exercido por
mulheres, não se caracterizando como trabalho. Nesse sentido, é urgente
ampliarmos a compreensão sobre o trabalho, para além da esfera
econômica, evidenciando o campo da reprodução social, reconhecendo
o trabalho doméstico como trabalho, e, portanto, necessário para
manutenção da ordem doméstica na vida de mulheres e homens que
estão inseridos no mercado de trabalho (BARBOSA, 2011, p. 7).

Nas moradias das classes média e alta, a realização do trabalho doméstico


é quase exclusivamente feminina: 92% dos empregados domésticos são mulheres,
e essa é a ocupação de 5,9 milhões de brasileiras, o equivalente a 14% do total
das ocupadas no Brasil. Em geral, atividade doméstica na sociedade capitalista
e patriarcal é considerada uma tarefa eminentemente feminina, invisibilizada e
desvalorizada. Isso porque as atividades domésticas são desvalorizadas e não
reconhecidas como trabalho pela sociedade, porque historicamente foram exercidas
por mulheres, e por mulheres negras, evidenciando a existência das desigualdades
de gênero, raça/etnia e classe social na sociedade (BARBOSA, 2011).

Apesar do que discutimos, segundo dados trazidos pelo IBGE, a


desigualdade de rendimentos entre homens e mulheres, segundo os grupos de
anos de estudo, reduziu entre os anos de 2005 e 2015. De maneira lenta, mas,
consolidando uma tendência. Porém, tais avanços servem para recordar que a luta
política e intelectual travada em torno dos significados sociais de gênero deve ser
permanente.

176
TÓPICO 2 | DESIGUALDADES E VIOLÊNCIA DE GÊNERO NO BRASIL

Um estudo publicado pelo Fórum Econômico Mundial de Davos (Suíça),


o encontro dos grandes empresários globais, indicou que a situação em torno das
oportunidades políticas e econômicas para as mulheres nos últimos anos caiu no
mundo inteiro. Apenas a América Latina apresentou melhoras nos indicadores,
mas o cenário é de estagnação. Do ponto de vista das oportunidades educacionais
e de saúde, porém, ocorreram maiores avanços em todo o planeta.

FIGURA 52 - A PRESENÇA DA MULHER NO MUNDO DO TRABALHO VEM SE DIVERSIFICANDO

FONTE: Disponível em: <http://www.oguialegal.com/imagens20/mulher-motorista.jpg>. Acesso


em: 20 jun. 2017.

Por exemplo, a crise econômica que se instalou no ambiente global em 2008,


e continua presente (2016), tem produzido efeitos diretos nessa tendência de leves
avanços. Em ambiente recessivo, cresce o desemprego e os salários são trazidos para
baixo, reduzindo ganhos reais. Este mesmo relatório do Fórum Econômico Mundial
indica que no atual ritmo a igualdade de oportunidades econômicas e salariais entre
homens e mulheres no mundo só será alcançada dentro de 170 anos. O Brasil, neste
sentido, deve levar 95 anos! Entre os 144 países incluídos na pesquisa, nosso país
ficou com a 79ª posição. Dentre nós, o pior indicador, todavia, está relacionado
à participação política das mulheres, com taxa de 13%, indicando hegemonia e
dominação masculina neste universo (DEUTSCHE WELLE, 2016; BBC, 2016).

177
UNIDADE 3 | MULTICULTURALISMO, GÊNERO, RAÇA E ETNIA NO BRASIL

2.1.3 A falta de representação das mulheres na política


brasileira
Quais serão as razões para a baixíssima representação das mulheres nas
instâncias políticas de poder, principalmente nos legislativos? Deve-se ter em
mente o processo social de construção de distinções entre o espaço público e o
privado. Podemos perceber que o universo público, vinculado à própria cidadania,
foi consolidando-se como um espaço masculinizado, ao passo que as mulheres
foram socialmente definidas em relação ao espaço privado.

Discutir a participação política da mulher nos espaços legislativos e


executivos é algo que se tornou relevante para a agenda atual de empresas,
movimentos sociais, instituições e governos municipais. Especialmente, quando
num país em que elas compõem a maioria da população e a maioria das eleitoras,
o número de mulheres parlamentares e executivas eleitas encontra-se abaixo da
média nacional. Assim, o debate sobre a presença das mulheres na política liga-se
a uma linha de “justiça de gênero” (FRASER, 2009).

Trata-se de um desafio gigante e que incluía tantas mulheres urbanas quanto


rurais. É necessário considerar a representação coletiva das mulheres, enquanto
grupo social e, ainda, estimular a participação e a candidatura de indivíduos
mulheres em cargos eletivos. Além desses espaços formais, existem os conselhos
de políticas sociais nas três esferas do governo. São espaços de interesses políticos
cuja agenda deve incluir a presença e as políticas específicas para as mulheres.

Essa realidade está enraizada às origens e tradições normativas, culturais,


políticas e sociais de nosso país. Aqui, somente aos poucos é que as mulheres
foram “levemente” reconhecidas como agentes políticas apenas na década de
1930. De certa forma, a plenitude de seus atuais direitos tem como marco jurídico
a Constituição Federal de 1988. No geral, essas desigualdades dificultam o acesso
das mulheres ao campo político. No Brasil, as mulheres conquistaram o direito ao
voto em 1939, durante o Estado Novo. O movimento em torno desta reivindicação
surgiu em 1919. Foram 20 anos de lutas, mas o voto havia se tornado uma
realidade, desde que fossem mulheres casadas, com autorização de seus maridos,
ou mulheres viúvas e solteiras com renda própria (SOARES, 2013).

Essa situação, de participação restrita e limitada, perdurou até 1965, quando


o voto se tornou facultativo às mulheres. Foi somente a partir da Constituição
Federal de 1988 que as mulheres, pelos desdobramentos de suas lutas, conquistaram
direitos legais e obtivessem legitimidade para suas demandas, inclusive na esfera
da política institucional (SOARES, 2013).

Tal dicotomia tornou-se um importante organizador de práticas e


comportamentos sociais ordenando a vida no dia a dia (ABRÃO, 2009). Vejamos este
dado trazido pela Justiça brasileira: nas eleições de 2014, as mulheres, que formaram
52,13% do eleitorado nacional, participaram com apenas 29,38% das candidaturas
à Câmara dos Deputados e contaram com apenas 51 deputadas eleitas para a

178
TÓPICO 2 | DESIGUALDADES E VIOLÊNCIA DE GÊNERO NO BRASIL

Legislatura 2015-2019, ou seja, 9,94% do total de parlamentares. Isso deixa claro


ainda que a política é um espaço social dominado pelos homens. A atual relação
representativa de gênero na Câmara Federal é de 90,1% das vagas parlamentares no
Congresso Nacional (TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL, 2014, 2015).

Vamos contextualizar esses números? Como foram em outras eleições?


Em 2002, foram eleitas 42 mulheres (8,19%). Em 2006, subiu levemente para
45 deputadas eleitas (8,77%). Na eleição de 2010 apenas 44 deputadas foram
eleitas (8,60%), sendo o melhor número registrado em 2014, com a eleição de
51 deputadas (9,94%) (TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL, 2015). Para fins de
comparação, indicamos pesquisa do Inter-Parliamentary Union (2015), que aponta
que a participação feminina na política brasileira está abaixo da média mundial,
que entre 1995 e 2015 deu um salto de 11,3% para 22,1%. Nosso país ocupa a 118ª
posição, com uma taxa de 10,8%.

GRÁFICO 1 – PERCENTUAL DE MULHERES NA CÂMARA DE DEPUADOS

FONTE: INTER-PARLIAMENTARY UNION (2015)

Situações como esta, em que um grupo é consistentemente sub-


representado, podem indicar que algum outro grupo está obtendo mais do que
o que lhe corresponde. No caso da hiper-representação política masculina, são
formas de manter e consolidar os privilégios masculinos de gênero no âmbito da
representação político-parlamentar (BRASIL, 2015).

179
UNIDADE 3 | MULTICULTURALISMO, GÊNERO, RAÇA E ETNIA NO BRASIL

GRÁFICO 2 – 2014: PROPORÇÃO DE ELEITOS PARA O CONGRESSO NACIONAL

FONTE: TSE (2014)

Uma forma encontrada para minimizar esse problema, aderida pelo


poder público, está na criação de quotas de participação de candidaturas
femininas. A Lei nº 9.504, de 30 de setembro de 1997 (Lei das Eleições), reservou,
no mínimo, 30% e, no máximo, 70% das vagas para candidaturas de cada sexo
nas eleições municipais, estaduais e federais pelo sistema proporcional. Além
disso, em 2009, pela Lei n° 12.034, de 29 de setembro de 2009, passou-se a
exigir dos partidos e coligações que efetivamente preenchessem as cotas para
candidaturas de cada sexo.

Além disso, esta legislação prevê o estabelecimento da concessão


mínima de 10% do tempo de propaganda partidária para as mulheres. Incluiu,
também, a destinação de 5% dos recursos do fundo partidário para a criação e
manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das
mulheres. Outra Lei, nº 13.165, de 29 de setembro de 2015, incluiu o artigo 93-A
na Lei das Eleições, prevendo que, no período de 1º de abril a 30 de julho, dos
anos eleitorais, o TSE promoverá, em até cinco minutos diários, propaganda
institucional, em rádio e televisão, destinada a incentivar a participação
feminina na política. Todavia, legislações são importantes, mas não podem ser
as únicas estratégias desenvolvidas, especialmente quando seus resultados se
confrontam com a realidade cotidiana política, hegemonicamente masculina.

180
TÓPICO 2 | DESIGUALDADES E VIOLÊNCIA DE GÊNERO NO BRASIL

DICAS

Sugestão de Filme: Terra Fria (EUA, 2005)

O filme se passa em 1989, quando Josey Aimes, ao retornar à


sua cidade natal, no Minnesota, sai em busca de um emprego
para sustentar os dois filhos. Contratada por uma mineradora -
principal fonte de empregos da região -, ela faz amizade com
as outras mulheres que trabalham na mina e passa a ser alvo
de provocações lideradas por Bobby Sharp, seu namorado do
colegial. Josey denuncia-o aos seus superiores, mas a situação
piora e logo as mulheres passam a ser violentadas verbal
e fisicamente pelos homens da mina. Ela leva o caso para a
justiça e a empresa perde a ação, sendo condenada a pagar
indenizações às trabalhadoras e a implementar uma política de
combate ao assédio no local de trabalho.
FONTE: Disponível em: <http://www.fnq.org.br/informese/noticias/oito-filmes-para-entender-
as-relacoes-de-trabalho>. Acesso em: 20 jun. 2017.

FONTE IMAGEM: Disponível em: <http://br.web.img3.acsta.net/medias/nmedia/18/92/48/35/202


02562.jpg>. Acesso em: 20 jun. 2017.

No mundo, a maioria dos países apresenta o sistema de cotas para eleições.


Essa institucionalização de cotas garante: “[...] vagas para as mulheres no sistema
político, é uma modalidade de ação afirmativa cujo objetivo é acelerar o processo de
inserção das mulheres no mundo político-partidário e, com isso, tornar o próprio
sistema representativo mais próximo da composição efetiva da sociedade que se
elege e mantém” (BRASIL, 2015, p. 27).

É fundamental entender que “a democracia pressupõe a representação


de uma pluralidade de perspectivas e de interesses nas esferas representativas,
e a inclusão política das mulheres é, por conseguinte, uma de suas condições”
(SACCHET, 2012, p. 419).

2.1.4 Assédio moral e sexual e Violência de Gênero


Vamos, agora, observar essa relação a partir da violência do assédio moral e
sexual. Como distingui-los? E qual a situação do Brasil em torno desses problemas?
Como ele adentra a agenda dos movimentos sociais, dos mercados e dos Estados?

O assédio moral representa um tipo específico de violência muito corriqueiro


no mundo do trabalho (SOARES, 2012). Marie-France Hirigoyen, no livro “Assédio
moral: a violência perversa no cotidiano” (2009, p. 285), define assédio moral
no trabalho como “qualquer conduta abusiva (gesto, palavra, comportamento,
atitude...) que atente, por sua repetição ou sistematização, contra a dignidade ou
integridade psíquica ou física de uma pessoa”. Isso resulta em ameaças ao emprego
181
UNIDADE 3 | MULTICULTURALISMO, GÊNERO, RAÇA E ETNIA NO BRASIL

ou ao clima geral da organização. Para Renato de Almeida Oliveira Muçouçah


(2004, p. 134), este tipo de assédio configura-se como um “abuso emocional no
local de trabalho, de forma maliciosa”. O assédio acarreta atitudes hostis, situações
de vergonha e humilhação, causando consequências à saúde do trabalho, como o
estresse e a psicose.

E como tem início o assédio moral? Para Hirigoyen (2009), o ponto de partida
é a recusa de alguma diferença, manifestando-se em situações constrangedoras e
comprometedoras, senão preconceituosas, às suas vítimas. São possíveis, ainda,
manifestações de assédio moral por motivos raciais ou religiosos; deficiência física
ou doença também é passível de assédio. A vítima, muitas vezes, “é estigmatizada,
de forma a comprometer a sua qualidade no trabalho”, tomando como objeto do
assédio seus “pontos fracos”, preferências ou deficiências. Quer dizer, o assédio visa
forçar o outro a sair do emprego, do setor e sujeitar-se, calar-se ou ser dominado.

FIGURA 53 - MULHERES E ASSÉDIO

182
TÓPICO 2 | DESIGUALDADES E VIOLÊNCIA DE GÊNERO NO BRASIL

FONTE: Disponível em: <http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/06/150610_assedio_


trabalho_pesquisa_rb>. Acesso em: 10 ago. 2017.

Não são apenas as mulheres que são vítimas do assédio moral no trabalho.
Os homens estão presentes, como pode ser analisado na pesquisa realizada pelo site
Vagas.com. Todavia, as mulheres representam a ampla maioria dos casos registrados.

QUADRO 1 - TIPOS COMUNS DE ASSÉDIO MORAL NO TRABALHO

A forma mais frequente. É praticada de cima para baixo, por


Assédio Moral
um superior hierárquico no exercício do poder diretivo da
Vertical
empresa.
Assédio Moral A empresa organiza estrategicamente formas que induzam o
Estratégico empregado visando a sair do quadro de funcionários.
É desencadeado pelos próprios colegas de trabalho da vítima,
Assédio Moral ocorrendo de forma individual ou coletiva em torno de temas
Horizontal como inveja, preconceito, intolerância, racial, étnica, sexual,
razões políticas ou religiosas.
Assédio Moral Uma forma rara de assédio, vindo de baixo, ou seja, de uma
Ascendente pessoa hierarquicamente inferior.
Dá-se através de um conjunto de atos de perseguição de um
Assédio Moral
grupo de trabalhadores masculinos na competição por vagas
de Gênero
de trabalho em uma organização.
FONTE: O autor

Elas, além do assédio moral, são vítimas do assédio sexual, caracterizado


como uma conduta de natureza sexual, a qual deve ser repetitiva, sempre
repelida pela vítima e que tenha por fim constranger a pessoa em sua intimidade
e privacidade. E, de acordo com dados da Central de Atendimento à Mulher,
da Secretaria de Políticas para Mulheres da Presidência da República, dos 3.478
relatos de violência sexual registrados em 2015, 6,24% aconteceram no ambiente
de trabalho. Em muitos casos, ainda, as mulheres sofrem do assédio moral e sexual
no ambiente de trabalho.

Diferentemente, o assédio moral ainda não faz parte da lista de crimes. O


assédio sexual tornou-se crime através da Lei nº 10.224/2001. No Capítulo dos Crimes

183
UNIDADE 3 | MULTICULTURALISMO, GÊNERO, RAÇA E ETNIA NO BRASIL

contra a liberdade sexual, o seu artigo 216 diz que o assédio sexual no trabalho visa
“constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual,
prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência
inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função” (BRASIL, 2001).

O relatório produzido pela Anistia Internacional Informe (2016) – O


Estado dos Direitos Humanos no Mundo – traz dados sobre a violência de gênero,
“amplamente difundida, continuou sendo um dos fracassos mais retumbantes dos
governos nas Américas”. Grande parte dessa violência foi contra mulheres, pessoas
lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros e intersexuais (LGBTI). Segundo o relatório,
apesar dos esforços e algumas políticas, “o fracasso em levar os perpetradores
de violações de direitos humanos à justiça permitiu que o crime organizado e as
práticas abusivas de aplicação da lei criassem raízes e prosperassem” (ANISTIA
INTERNACIONAL, 2017, p. 28).

De acordo com os números apontados, no Brasil, a violência contra


mulheres e crianças continua sendo uma prática comum. Nosso país também
continuou sendo o país onde mais morrem pessoas transgênero no mundo. Em
termos de gênero:

[...] a violência letal contra mulheres aumentou 24% durante a


década anterior e confirmou que o Brasil é um dos piores países da
América Latina para se nascer menina, em especial devido aos níveis
extremamente altos de violência de gênero e gravidez na adolescência,
além das baixas taxas de conclusão da educação secundária (ANISTIA
INTERNACIONAL, 2017, p. 86).

O ano de publicação desta pesquisa marcou uma década desde que a Lei
Maria da Penha, contra violência doméstica, entrou em vigor. Para os autores do
relatório acima mencionado, “o governo falhou em implementar a lei com rigor, e
a violência doméstica e a impunidade continuam amplamente difundidas” (p. 86).
E ainda, denuncia o retrocesso instalado a partir de 2016, quando o novo governo
federal extinguiu o Ministério das Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos
e o reduziu a uma Secretaria, parte do Ministério da Justiça, o que causou uma
redução significativa dos recursos e programas voltados a esses públicos.

E
IMPORTANT

CONHEÇA A LEI
Desde 2013, o Brasil conta com a Lei nº 12.845/2013, que garante o atendimento obrigatório
e imediato no Sistema Único de Saúde (SUS) a vítimas de violência sexual. De acordo com
essa lei, todos os hospitais da rede pública são obrigados a oferecer, de forma imediata, a
chamada pílula do dia seguinte, medicação que evita a fecundação do óvulo em até 72 horas
após a relação sexual. A lei também garante para as vítimas de estupro o direito a diagnóstico
e tratamento de lesões no aparelho genital; amparo médico, psicológico e social; profilaxia
de doenças sexualmente transmissíveis, realização de exame de HIV e acesso a informações
sobre seus direitos legais e sobre os serviços sanitários disponíveis na rede pública.

184
TÓPICO 2 | DESIGUALDADES E VIOLÊNCIA DE GÊNERO NO BRASIL

A violência sexual é uma das formas mais recorrentes de violência contra a


mulher. De acordo com dados divulgados pelo Instituto de Pesquisas Econômicas
Aplicadas através da pesquisa “Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os
dados da Saúde” (2014), que analisou os registros de violência sexual, 89% das
vítimas são do sexo feminino e em geral têm baixa escolaridade. Do total, 70% são
crianças e adolescentes. Em metade das ocorrências envolvendo crianças, há um
histórico de estupros anteriores. 70% dos estupros são cometidos por parentes,
namorados ou amigos/conhecidos da vítima. A leitura desse documento estima
que, a cada ano, no mínimo 527 mil pessoas são estupradas no Brasil. Desses casos,
apenas 10% chegam ao conhecimento da polícia. Por exemplo, em 2012 foram
notificados 50.617 casos de estupro no Brasil, o que aproxima dessa estimativa. Em
2014, foram registrados 47.646 estupros no país, indicando uma redução de 6,7%
em relação a 2013 (FBSP, 2015).

No Brasil, estupro é constranger alguém, mediante violência ou grave


ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique
outro ato libidinoso. Esta delimitação consta no capítulo sobre os crimes contra a
liberdade sexual do Código Penal, após as alterações promovidas em 2009 com
a Lei nº 12.015. É fundamental entender que no âmbito dos tratados e acordos
internacionais assinados pelo Brasil, os governos devem combater e definir que a
agressão sexual, escravidão sexual, prostituição, gravidez e esterilização forçadas
ou qualquer outra forma de violência sexual de gravidade comparável constituem
crimes contra a humanidade.

FIGURA 54 - DADOS DA ANISTIA INTERNACIONAL SOBRE A SITUAÇÃO DO BRASIL (2016)

FONTE: Disponível em: <https://www.cartacapital.com.br/revista/942/no-dia-da-mulher-nada-a-comemo


rar/dados/@@images/57439692-b351-4cda-8989-8783867e4d68.jpeg>. Acesso em: 10 jul. 2017.

185
UNIDADE 3 | MULTICULTURALISMO, GÊNERO, RAÇA E ETNIA NO BRASIL

Falar em desigualdade é insuficiente. Precisamos pensar esta categoria no


plural. A desigualdade é multidimensional. O gênero é apenas um deles. No caso
brasileiro, mais relevante que em outras nações. Como esses dados apontam, é
um problema real e urgente. Todavia, existem outras manifestações perversas de
desigualdades que se acumulam na vida social de uma pessoa ou grupo social. É
possível, por exemplo, afirmar que existem tendências socialmente estruturadas
na sociedade brasileira para que uma mulher branca paulista, pertencente à classe
média e lésbica, tenha mais oportunidades que uma mulher negra pobre nordestina
e lésbica. Além do gênero, podemos indicar a classe (conforme discussão presente
no Tópico 1 da Unidade 2), e até mesmo regiões que ampliam, restringem ou
eliminam as oportunidades e direitos.

Porém, e no caso brasileiro com uma perversidade típica de uma sociedade


com passado colonial escravocrata, a cor-raça ou etnia são manifestações que
produzem verdadeiros abismos e distâncias sociais. É o que veremos no próximo
tópico.

Como percebemos, o desafio é enorme, assim como são profundos os


abismos sociais construídos em torno de discursos, práticas e representações de
gênero. Trata-se de um desafio que inclui governos, empresas, movimentos sociais
e indivíduos. É um trabalho coletivo, de todos os gêneros.

Mãos à obra!

ATENCAO

O serviço nacional de Disque Denúncia de situações de Violência contra a mulher


é através do número telefônico 180.

186
RESUMO DO TÓPICO 2

Neste tópico, você aprendeu que:

• Nosso país é afetado por uma série de desigualdades e formas de exclusão


social incorporadas à estrutura da sociedade em seu cotidiano, “naturalizando”
diferenças sociais e culturais ligadas ao gênero.

• Alguns dados e resultados de pesquisas apontam para um profundo quadro


de desigualdades a partir de um viés das relações de gênero estabelecidas na
sociedade brasileira.

• A mulher brasileira é a maior vítima de assédio moral e sexual. Recebendo


remunerações menores, as desigualdades no mundo do trabalho restringem os
ganhos salariais e os relacionados à satisfação e realização de oportunidades
pessoais para as mulheres. Restringe a própria cidadania. O Brasil levará quase
cem anos para a igualdade salarial entre gêneros!

• O trabalho feminino passa a integrar crescentemente a estrutura econômica


à sociedade capitalista, sempre sob a determinação mencionada, ou seja,
submetida ao capital e a sua necessidade de valorização. Isso leva à invisibilidade
do trabalho doméstico.

• A violência sexual é uma das formas mais recorrentes de violência contra a


mulher. Os registros de violência sexual indicam que 89% das vítimas são do
sexo feminino e em geral têm baixa escolaridade. Do total, 70% são crianças
e adolescentes. Estima-se que, a cada ano, no mínimo 527 mil pessoas são
estupradas no Brasil. Desses casos, apenas 10% chegam ao conhecimento da
polícia.

• O Brasil é um dos piores países da América Latina para se nascer menina, em


especial devido aos níveis extremamente altos de violência de gênero e gravidez
na adolescência, além das baixas taxas de conclusão da educação secundária.

187
AUTOATIVIDADE

1 As mulheres tem sido sub-representadas na política


brasileira, apesar de representarem a maioria da população
e do eleitorado. A Constituição Federal de 1988 trouxe
alguns avanços. Quais as implicações dessa baixa
representatividade?

2 Observe a charge abaixo. A partir da leitura deste tópico,


como sintetizar a problemática das relações de gênero no
Brasil?

FONTE: Disponível em: <http://foconoenem.com/wp-content/uploads/2015/09/charge-


igualdade-de-g%C3%AAnero.png>. Acesso em: 10 jul. 2017.

188
UNIDADE 3
TÓPICO 3

AS DESIGUALDADES BRASILEIRAS EM
TORNO DA RAÇA

1 INTRODUÇÃO
Geralmente, ouvimos que o Brasil é resultado do encontro de três grupos
distintos: portugueses, negros africanos e os povos originários, isto é, aqueles
que já se encontravam aqui no momento da conquista territorial. Disso resultou a
formação de sociedade fundamentada numa “democracia racial”.

FIGURA 55 - A DIFÍCIL CONDIÇÃO DO NEGRO EM NOSSO PAÍS

FONTE: Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/igualdaderacial/index.php?option=com_


content&view=article&id=711>. Acesso em: 10 jul. 2017.

Os portugueses ocuparam as terras brasileiras no início do século XVI.


Dentre as muitas invasões de outras nações, como a França, a Holanda e mesmo
a Espanha, o pequeno Reino de Portugal foi preenchendo os espaços territoriais e
criando instituições locais. De uma maneira geral, nosso país é multicultural “em
virtude” das formas de ocupação e dominação política, cultural, social e territorial
estabelecidas pelos portugueses. E foram surgindo inúmeras formas culturais
regionais, ocupando a cultura popular brasileira. Somos um país sem preconceito,
racismo e conflitos sociais, uma “democracia racial”. A figura do “homem cordial”
definida por Sérgio Buarque de Holanda em “Raízes do Brasil” e “O Homem
Cordial” ajuda a consolidar essa suposta harmoniosa democracia.

189
UNIDADE 3 | MULTICULTURALISMO, GÊNERO, RAÇA E ETNIA NO BRASIL

Esse homem cordial não tem uma visão positiva das "relações impessoais
que decorrem da posição e da função do indivíduo”. Ele destaca e prioriza aquilo
que é de “sua marca pessoal e familiar, das afinidades nascidas na intimidade dos
grupos primários" (CÂNDIDO, 1995, p. 17).

O “homem cordial” de Buarque é herdeiro de peculiaridades da cultura


ibérica, como a valorização da autonomia da personalidade, personagem de uma
sociedade hierarquizada e que recusa qualquer valor igualitário. Buarque definiu
o período da ocupação portuguesa como formador de uma “exaltação extrema da
personalidade". O personagem dessa época foi aquele em busca da riqueza fácil,
notoriedade e de prosperidade com baixo custo e esforço, mais aventureiro do
que trabalhador. O latifundiário e sua grande extensão de terra, subordinados e
escravos estendiam seus domínios à dimensão pública da vida. O poder do senhor
de terra era enorme e toda a vida naquele local era estruturada em torno de laços
afetivos e emocionais privados, cuja figura era esse proprietário. Estabelece-se um
"padrão de convívio humano" baseado no patriarcado, no latifúndio e escravidão.
É uma das consequências da “plasticidade” resultante das dinâmicas de ocupação
e dominação portuguesa (CÂNDIDO, 1995).

FIGURA 56 - NOSSO “HOMEM CORDIAL” NA OBRA DE DEBRET

FONTE: Disponível em: <http://blog.esquerdaonline.com/wp-content/uploads/2015/10/escravos-


debret-620x264.jpg>. Acesso em: 25 jun. 2017.

De uma maneira geral, o negro teve pouco espaço ou poder nessa


configuração social. No tópico anterior, discutimos a ideia da desigualdade,
invisibilidade e violência contra as mulheres, presente nas instituições que são
parte da cultura brasileira. Pergunte-se: onde estão as mulheres em nossa história?
Elas estão ausentes ou excluídas da participação e da produção da história? O
mesmo vale para o negro.

Agora, problematizamos essa ideia de democracia racial. Ser negro no


Brasil é estar tendencialmente exposto a uma série de exclusões, à negação de
direitos, à perseguição de diversas formas e à violência. Ser uma mulher e negra,

190
TÓPICO 3 | AS DESIGUALDADES BRASILEIRAS EM TORNO DA RAÇA

então, possui implicações ainda mais complexas para o cenário de oportunidades


e direitos dessas pessoas.

2 A PERTINÊNCIA POLÍTICA E TEÓRICA DA CATEGORIA


“RAÇA” NA ATUALIDADE
A produção social da diferença, como já vimos na Unidade 1, é um ato
simbólico e cheio de significados voltando-se para a naturalização das diferenças,
que se modificam com o passar dos períodos históricos. Assim, podemos nos
perguntar: o brasileiro é racista? Manifesta preconceito de cor?

O livro “Não Somos Racistas”, publicado pelo jornalista Ali Kamel (2006),
defende a tese de que o racismo não constitui um traço marcante do país. Para
o jornalista, depois da abolição, nunca foram impostas barreiras institucionais
a negros ou a qualquer outra etnia. Não haveria um racismo institucional e
disseminado, reproduzido constantemente nas relações cotidianas. Kamel sustenta
a ideia de que o preconceito não é racial, mas, antes, social, contra os pobres. A
publicação causou polêmica. Mesmo que seja uma obra de cunho jornalístico, trata-
se de forma dissimulada de negação de certas políticas direcionadas a populações
pardas e negras. Será que os dados indicados a seguir sustentam essa hipótese?

Questiona-se essa tese porque tanto análises clássicas quanto


contemporâneas das Ciências Sociais brasileiras indicam a existência de
manifestações de um forte sistema de classificação social orientado pela “raça”
em nosso país.

Porém, pesquisas antigas e atuais apontam para outras situações. Apesar


de os brasileiros negarem possuir preconceito de cor, a esmagadora maioria indica
conhecer racistas ou atos de racismo e preconceito. Uma pesquisa realizada pelo
Datafolha (1995) apontou que 90% dos brasileiros admitiram que existe preconceito
de cor no Brasil, mas 96% dos entrevistados se identificavam como não racistas.
Na mesma linha, segundo pesquisa divulgada pelo Núcleo de Opinião Pública
(NOP) da Fundação Perseu Abramo, 90% dos brasileiros admitem que existe sim
a discriminação, 96% declaram que não têm preconceito contra negros, contra
brancos (97%) e contra índios (96%) (SOARES, 2013).

Como surge o racismo no Brasil? Como uma categoria teórica inventada e


delineada a partir das formas de perceber o mundo europeu. A ideologia eurocêntrica
forçou seu predomínio na história brasileira. Como discutimos no Tópico 1 da
Unidade 1, Edward Said, na obra “O Orientalismo”, define esse termo como um
construto intelectual amparado pela linguagem em que o que se lê e descobre
informa mais sobre a identidade ocidental do que a respeito do entendimento que os
orientais fazem de si mesmos (SAID, 2007). O mundo pautado pelo eurocentrismo
foi, também, um mundo etnocêntrico. A maneira de enxergar o mundo conformado
pelos europeus acabou por determinar e orientar as indagações, interesses e formas
de encarar as realidades em todos os cantos do planeta.
191
UNIDADE 3 | MULTICULTURALISMO, GÊNERO, RAÇA E ETNIA NO BRASIL

Como recorda Lilia Moritz Schwarcz (1993), a descoberta do Novo Mundo


– a América – no século XV levou os europeus de então a refletir sobre os homens e
mulheres aqui encontrados. Podemos lembrar as teorias do bom e do mau selvagem.
As primeiras, ligadas a nomes como Jean-Jacques Rousseau ou Michel de Montaigne.
A visão compartilhava de um paraíso terrestre e de humanos inocentes. Do outro
lado estavam seres preguiçosos, degenerados, bestas selvagens e primitivas. “A
América não era, portanto, apenas imperfeita, como sobretudo decaída, e assim
estava dado o arranque para que a tese da inferioridade do continente, e de seus
homens, viesse a se afirmar a partir do século XIX” (SCHWARCZ, 1993, p. 82).
Racismo pode ser entendido, em linhas gerais, como:

Qualquer conjunto de crenças que classifique a humanidade em


coletividades distintas, definidas em função de atributos naturais e/
ou culturais, e que organize esses atributos em uma hierarquia de
superioridade e inferioridade, pode ser descrito como racista. Sob
condições sociais e políticas que lhes sejam favoráveis, essas crenças são
associadas a conjuntos de práticas e instituições discriminatórias que
favorecem determinada coletividade em detrimento de outra, de acordo
com a suposta diferença e superioridade (ZUBAIDA, 1996, p. 643).

O racismo – uma ideia eurocêntrica e etnocêntrica – muda ao longo dos


tempos e contextos sociais, mas, também, entre um país e outro. Por exemplo, o
racismo brasileiro tem como característica a marca da cor da pele como objeto do
preconceito, nos EUA o preconceito está ligado à origem e ascendência hereditária
de uma pessoa. Conforme investigação de Oracy Nogueira (2006), em nosso país,
se o indivíduo é mestiço claro, independente de os pais e avós serem negros, as
chances de sofrer racismo e preconceito são menores. Já nos EUA, “a pessoa pode
não revelar nenhum traço negroide na aparência, mas se sabe que em sua origem
há pessoas negras, ela será considerada negra e sofrerá os mesmos preconceitos
(NOGUEIRA, 2006).

De maneira semelhante, Francisco Bethencourt, na obra “Racismo: Das


Cruzadas ao Século XX”, aponta que o racismo é relacional, sofrendo mudanças
com o tempo. Ele não pode ser visto apenas isoladamente, através da fragmentação
da história. Para este autor, o racismo é desencadeado por projetos políticos e está
ligado a condições econômicas específicas. O racismo atribui um único conjunto
de traços físicos e/ou mentais reais ou imaginários a grupos étnicos específicos,
acreditando que essas características são transmitidas de geração em geração. Os
grupos de fora, os outros, são considerados inferiores ou divergentes da norma
representada pelo grupo de referência, justificando assim a discriminação ou a
segregação. Da mesma forma, o racismo pode ser alimentado ou desencorajado
pelos poderes instituídos, sendo canalizado por uma rede complexa de memórias
coletivas e de possibilidades repentinas e que podem alterar a forma e os objetivos
do racismo (BETHENCOURT, 2015).

Em relação à raça, podemos também dizer que foi um conceito que mudou
de sentido. Ele sofreu críticas quanto à sua utilização nas Ciências Sociais, da
mesma forma como existe a defesa de sua utilização. Lívio Sansone (2003, p.
409) indica, por exemplo, categorias alternativas como “racialização, relações e

192
TÓPICO 3 | AS DESIGUALDADES BRASILEIRAS EM TORNO DA RAÇA

hierarquias raciais”, ou mesmo, o “racismo”. Existe, claro, o peso de seu passado e


a ligação com teorias e políticas de cunho racistas.

Raça, porém, ainda é relevante, especialmente quando se trata de pensar


as identidades em nosso país. O conceito teve importância em um período do
final do século XIX e início do século XX. Fomos um dos últimos países a abolir a
escravidão no mundo, cuja realidade durou aproximadamente quase três séculos,
mas não somos ou fomos os únicos. Basta lembrar das políticas oficiais de apartheid
na África do Sul e Estados Unidos, ou na Alemanha nazista de Adolf Hitler. Afinal,
qual a definição de raça? E como se deu o histórico e evolução de seus sentidos e
usos?

Primeiro, indicamos a reflexão de Antônio A. S. Guimarães (2004, p. 96), de


que “as raças são, cientificamente, uma construção social e devem ser estudadas a
partir dos estudos sobre as identidades sociais”. Para o autor, entra-se no campo
da cultura, e da cultura simbólica. Para ele, as raças são efeitos de discursos.
Ou, dito por outro autor: “o conceito de raça é uma convenção arbitrária e pode
ser enquadrada como uma categoria descritiva da antropologia, uma vez que é
baseada nas características aparentes das pessoas. Portanto, o uso dos termos
raça ou etnia está circunscrito à destinação política que se pretende dar a eles”
(OLIVEIRA, 2004, p. 58).

O termo raça como conhecemos é, assim, uma construção social do século


XVII. Seu significado começou a designar os tipos humanos e suas diferenças
biológicas, representando a extensão da classificação do reino animal para os
estudos sobre os seres humanos.

2.1 RACISMO CIENTÍFICO: UM EXEMPLO BRASILEIRO EM


NINA RODRIGUES (1862-1906)
Já dissemos que o racismo atual difere do passado. No século XVIII e
XIX se consolidam as bases de uma ciência positiva cujo modelo teórico é o
das Ciências Naturais. Charles Darwin publicou “A Origem das Espécies”, que
indiretamente contribuiu para o determinismo evolucionista de Herbert Spencer.
O clima intelectual deste período pode ser composto, também, pelos antropólogos
evolucionistas. Desta maneira, no Brasil, o racismo vinculava-se a uma explicação
que tinha espaço no universo científico daquele período. Através da Biologia e do
Determinismo, construíam-se distinções avalizadas pela Ciência. Essa perspectiva
influenciou a Sociologia, a Antropologia, o Direito e a Medicina Legal, por exemplo.

As justificativas para os muros e distâncias sociais presentes na sociedade


brasileira do final do século XIX sustentavam-se a partir de uma Ciência Positivista
e Determinismo Biológico. Desta forma, as raças eram diferentes entre si com bases
fenotípicas. Essas teorias científicas racistas legitimaram um esforço das elites
brasileiras que viveram neste tempo em torno das ideias de branqueamento da
população brasileira. Essa noção indica “um processo inventado e mantido pela
193
UNIDADE 3 | MULTICULTURALISMO, GÊNERO, RAÇA E ETNIA NO BRASIL

elite branca brasileira, embora apontado por essa mesma elite como um problema
do negro brasileiro” (BENTO, 2002, p. 5).

Parte das preocupações ligadas ao racismo científico levaram a elite


brasileira a estimular a ideia do branqueamento da população. De uma maneira
geral, essas ideias presentes nas elites indicava o Brasil como um país mestiço,
mas em transição, em vias de branqueamento. Desta forma, os negros seriam
assimilados pelos brancos (SCHWARCZ, 1993).

De maneira geral, podemos perceber o “branqueamento” como uma


ideologia, que resultou na construção social racista que organizou e impactou
o cotidiano das pessoas dessa época. Andreas Hofbauer (2006), no livro “Uma
História de branqueamento ou o Negro em questão”, procurou indicar que,
além de ser uma reação ao fim da escravidão por parte das elites brasileiras, o
branqueamento tinha duas formas de manifestar-se: Primeiro, através do viés
biológico da cor nos casamentos interétnicos, mas, também, como ideologia que
colocava o branco como figura histórica cuja cultura era desejada, desvalorizando
os grupos de cor. Para Hofbauer, existia uma complementação entre a escravidão
e a ideologia do branqueamento que sustentavam a ordem social privilegiada em
torno de certos grupos de indivíduos brancos.

O ideal do branqueamento brasileiro não se encontra localizado apenas no


século XIX. Ainda no Império, mas, força maior após a proclamação da República,
os diversos governos estabeleceram suas políticas imigratórias com base nessa
premissa. Assim, priorizou-se os imigrantes brancos, como italianos e alemães.
Ao mesmo tempo, estabeleceu restrições, algumas vinculadas à raça. Os negros,
orientais, japoneses e judeus, assim como idosos e deficientes, eram considerados
como “indesejáveis” (IOTTI, 2010).

Vejamos um exemplo do impacto sobre as características da população


brasileira dessa ideia de “negar-se” negro ou pardo, valorizando o sujeito branco.
Quando foi realizado o primeiro Censo demográfico em 1890, poucos anos depois
da abolição, 56% da população indicou a cor negra. Já depois do Estado Novo,
em outro censo realizado em 1940, mostrou os primeiros resultados da política de
branqueamento: 64% dos brasileiros foram identificados como brancos e apenas
36% como negros. Essa situação de maioria branca permaneceu até o final dos anos
1990. Atualmente, a população brasileira que se indicou parda ou negro representa
54,3% do total (IBGE, 2010).

Segundo Guimarães (2004), o preconceito de cor e racismo surgem no Brasil


em 1870, nas Escolas de Direito de Recife e de São Paulo e nas Escolas de Medicina
da Bahia e do Rio de Janeiro. Esse debate, com verniz científico e acadêmico, isto
é, construído a partir de instituições reconhecidas pela sociedade, elite e Estado,
tinha como alvo a miscigenação. Eram contrários ao que chamavam de mistura
de raças. Essa expressão racista surge na cena política brasileira, então, como
“doutrina científica”. Lilian Schwarcz (1994) cita o Conde Arthur de Gobineau, que
viveu um pouco mais de um ano no Brasil, a respeito de sua perspectiva sobre a
miscigenação. Segundo Gobineau, “trata-se de uma população totalmente mulata,
194
TÓPICO 3 | AS DESIGUALDADES BRASILEIRAS EM TORNO DA RAÇA

viciada no sangue e no espírito e assustadoramente feia". Além disso, a autora


indica outro exemplo:

[...] qualquer um que duvide dos males da mistura de raças, e inclua


por mal-entendida filantropia, a botar abaixo todas as barreiras que as
separam, venha ao Brasil. Não poderá negar a deterioração decorrente
da amálgama das raças mais geral aqui do que em qualquer outro país
do mundo, e que vai apagando rapidamente as melhores qualidades
do branco, do negro e do índio, deixando um tipo indefinido, híbrido,
deficiente em energia física e mental (AGASSIS, 1868 apud SCHWARCZ,
1994, p. 137).
 
Nas bases e justificativas do racismo brasileiro do século XIX podemos
apontar as influências do Conde de Gobineau, conhecido darwinista social, que
apontava a raça como uma “realidade ontológica” a separar os grupos sociais.
Nestas lógicas, qualquer cruzamento entre raças era condenável. A miscigenação
seria responsável, na visão dos teóricos racistas científicos, pela fragilização física
e moral. Tais teorias tornaram-se, aos poucos, ideais políticos voltados à submissão
ou eliminação de “raças inferiores” (SCHWARCZ, 1994).

Você já ouviu falar do médico Nina Rodrigues? Este maranhense foi um


exemplo precioso do tipo de intelectual que utilizou o racismo científico. Rodrigues
foi um médico respeitado no cenário nacional e internacional, tendo profundas
relações com intelectuais europeus. Sua posição intelectual e de médico legal
permitiu a sua participação em diversos projetos públicos, alguns deles geraram
leis e políticas públicas. Vale dizer que o momento em que viveu, o final do
século XIX, era permeado por um ambiente científico embasado no determinismo
biológico, nas políticas eugenistas etc.

O conjunto da obra de Nina Rodrigues, aliado ao momento científico, era


impregnado pelo determinismo e teorias racistas como de Cesare Lombroso e do
Conde de Gobineau. Na sua visão, existiam três raças “puras” primitivas: a branca,
a negra e a vermelha. Segundo Rodrigues (1935), o país foi percebido em termos de
raça, mas, num viés biológico e não cultural. Em razão de seus estudos, Rodrigues
influenciou na formação da Antropologia brasileira.

O Brasil era formado por três raças distintas. Porém, em consonância com
os sentidos do racismo deste momento essa mistura era condenada, colocando
em risco o futuro do país e sua população. O mestiço - o mulato - resultado desse
cruzamento, era uma “raça inferior” no sentido biológico, propenso ao crime, à
fragilidade biológica, indivíduos impulsivos e violentos (RODRIGUES, 1935).

Mestiços, vegetando na turbulência estéril de uma inteligência viva e


pronta, mas associada a decidida inércia e indolência, ao desânimo e por
vezes à subserviência, e assim, ameaçados de se converterem em parto
submisso de todas as explorações de régulos e pequenos ditadores [...].
O mestiçamento não faz mais do que retardar a eliminação do sangue
branco (RODRIGUES, 1935, p. 25).

195
UNIDADE 3 | MULTICULTURALISMO, GÊNERO, RAÇA E ETNIA NO BRASIL

Em torno desse olhar negativo aos povos de cor negra ou parda,


representados principalmente na figura do mestiço-mulato, Rodrigues entendeu
que as raças deveriam receber tratamento distinto pelo governo, polícia, medicina
etc. É neste sentido que pode ser entendida sua defesa no livro “As Raças humanas
e a responsabilidade penal no Brasil” (1894) pela criação de Código Civil e Penal
específicos para brancos e outros, para negros, pardos e indígenas.

Como indicou Mariza Corrêa (2005), o interesse estava na produção da


ordem social, desde a repressão aos violentos e desocupados, imposições sanitárias
e médicas que visavam a eliminação de doenças, epidemias, assistência aos
alienados, bem como o aperfeiçoamento das leis brasileiras. A mistura entre essas
três formas originais era vista como prejudicial. No contexto desse racismo científico,
delimitar identidades em termos de raça biológica significou o enquadramento
desses indivíduos de cor dentro de categorias e concepções de mundo presentes na
intelectualidade e política brasileira, assim como em hierarquias sociais.

FIGURA 57 - NINA RODRIGUES

FONTE: Disponível em: <https://upload.wikimedia.org/wikipedia/


commons/1/1c/Nina_02.jpg>. Acesso em: 25 jun. 2017.

O preconceito

Dentre as convergências daqueles que estudam o tema do preconceito


no universo das Ciências Sociais, sabe-se que o preconceito não é inato, é
socialmente aprendido e reproduzido. Da mesma forma, não é monopólio de

196
TÓPICO 3 | AS DESIGUALDADES BRASILEIRAS EM TORNO DA RAÇA

um ou poucos países. As inúmeras manifestações do preconceito encorajam


os comportamentos discriminatórios, de onde surgem, como reação, as
iniciativas governamentais orientadas em torno de políticas públicas.

Definido aqui como um julgamento prévio rígido e negativo sobre um


indivíduo ou grupo, o conceito deriva do latim prejudicium, que designa um
julgamento ou decisão anterior, um precedente ou um prejuízo. As conotações
básicas incluem inclinação, parcialidade, predisposição, prevenção. No uso
moderno, o termo veicula muitos significados variantes. Comuns à maioria
deles, contudo, são as noções de julgamento prévio desfavorável, efetuado
antes de um exame ponderado e completo, e mantido rigidamente mesmo
em face de provas que o contradizem (WILLIAMS, 1996).

Dos preconceitos, por exemplo, podem surgir atitudes,


comportamentos, crenças etnocêntricas. E quais as fontes desses preconceitos?

Quando grupos étnicos e raciais distintos entraram em contato, a


COMPETIÇÃO econômica estimulou o preconceito. Do mesmo modo, as
fronteiras entre grupos e as atitudes negativas são acentuadas por lutas pelo
poder político ou pela conquista de prestígio e deferência sociais. Portanto, as
ameaças a interesses egoístas em valores tão escassos são potentes estímulos
para o conflito entre grupos (WILLIAMS, 1996).

A discussão sobre o etnocentrismo esteve presente na Unidade 2.


Porém, nas manifestações menos intensas, ele pode indicar “tão-somente
uma atitude positiva em relação ao próprio grupo a que se pertence e às
suas formas de conduta”. Agora, de maneira geral, “o termo também implica
alguns sentimentos de superioridade do grupo em comparação com outros
grupos a que não se pertença” (WILLIAMS, 1996, p. 603). Se for necessário,
retorne e relembre os temas estudados.

FONTE: Williams, JR. Dicionário do pensamento social do Século XX. 1996, p. 603.

2.2 GILBERTO FREYRE (1900-1987), A MISCIGENAÇÃO E A


DEMOCRACIA RACIAL
Foi a partir dos anos 1920 que se estabeleceu uma nova tradição em torno
da questão racial. A partir de uma construção social que incluiu uma série de
intelectuais, o Brasil foi sendo lapidado como uma “democracia racial”, fundada
no mito da contribuição original de três povos: o encontro entre brancos, índios e
negros.
 
Sobretudo a partir do final dos anos 20, os modelos raciais de análise
começam a passar por uma severa crítica, à semelhança do que já acontecera

197
UNIDADE 3 | MULTICULTURALISMO, GÊNERO, RAÇA E ETNIA NO BRASIL

em outros contextos intelectuais. As diferenças entre os grupos deveriam ser


explicadas a partir de argumentos de ordem social, econômica e cultural, não se
levando mais em conta as supostas diferenças biológicas e somáticas. Raça, nesse
contexto, aparece quase como um "slogan de época", uma noção em desuso que
deveria ser rapidamente extirpada do vocabulário local.
 
Esse é o caso de Sílvio Romero, que, mesmo defendendo a existência de
diferenças ontológicas entre as raças, apostou na ideia de que a mistura poderia
ser positiva (SCHWARCZ, 1995).

O sangue português, em um poderoso rio deverá absorver os pequenos


confluentes das raças Índia e Etiópica. Em que a classe baixa tem lugar
nesta mescla, como em outros países se formam as classes superiores dos
elementos das inferiores, e por meio dela se vivificam e se fortalecem,
assim se prepara atualmente na última classe da população essa mescla
de raças, que daí a séculos influirá poderosamente sobre as classes
elevadas, e lhes comunicará aquela atividade histórica para a qual o
Império do Brasil é chamado (ROMERO, 1953, p. 391).

Apesar de observar a mestiçagem como um traço essencial na formação


da nacionalidade brasileira, Romero ainda assim é um agente de seu tempo,
acreditando na superioridade do homem branco. Disso resultou uma obra que,
mesmo timidamente, esboçou alguma positividade cultural das populações negras
e mestiças na formação da sociedade brasileira.

E
IMPORTANT

Existe uma tradição intelectual ligada às Ciências Sociais brasileiras em torno


do que podemos definir como “interpretações” a respeito da realidade nacional. Entre o final
do século XIX e as primeiras cinco décadas do século XX, foram realizadas diversas análises
considerando os elementos humanos e econômicos de um país republicano que surgia. As
reflexões desses intelectuais centravam-se em torno de uma “inquietação essencial” (IANNI,
1993) sobre a cultura política e as relações sociais.
Dentre os nomes que podemos indicar como integrantes dessa linha de pensamento social,
temos Nina Rodrigues, Gilberto Freyre e Florestan Fernandes, apresentados ao longo dessa
Unidade 3, mas eles não os únicos.

Utilizando uma classificação indicada por Renato Lessa (2011), é possível indicar uma primeira
geração, ainda mesmo quando não existia o campo das Ciências Sociais no Brasil, a partir
da Proclamação da República em 1889. Essa geração pode ser indicada em nomes como
Euclides da Cunha, Sylvio Romero, Ruy Barbosa, Alberto Torres e Oliveira Vianna. Em segundo
momento, já no século XX, podem ser indicadas figuras como Alberto Torres, Oliveira Vianna,
Francisco Campos e Azevedo Amaral, cujas obras produziram “forte impacto na agenda política
e institucional do país, a partir dos anos 1930” (LESSA, 2011, p. 30).

Dentre os temas tratados por esta geração de intelectuais encontram-se aspectos ligados à
realidade nacional do momento, como a centralização ou descentralização política, abolição,
propriedade fundiária, papel das forças armadas e forma de governo, entre outros (LESSA, 2011,
p. 30).

198
TÓPICO 3 | AS DESIGUALDADES BRASILEIRAS EM TORNO DA RAÇA

A partir da década de 1930, as Ciências Sociais brasileiras institucionalizam-se, isto é, ligam-


se ao modelo das universidades e passam a ser utilizados métodos científicos de pesquisa.
Além do próprio Freyre (Casa-Grande & Senzala, Sobrados e Mucambos), outros representantes
dessa nova forma de produzir ciência social são encontrados em nomes como Sérgio Buarque
de Holanda, com seu livro clássico “As Raízes do Brasil”; Caio Prado Júnior (Formação do Brasil
Contemporâneo); Raymundo Faoro (Os Donos do Poder); Victor Nunes Leal (Coronelismo,
voto e enxada). Merece destaque, também, Celso Furtado. São nomes que estiveram no centro
do debate intelectual até os anos 1950.

Podemos dizer que a partir da obra “Casa-Grande & Senzala”, Freyre criou
uma nova imagem e mito de origem a respeito do Brasil, produto do cruzamento e
miscigenação entre as raças branca, negra e indígena (HOFBAUER, 2006; BENTO,
2002).

FIGURA 58 - GILBERTO FREYRE

FONTE: Disponível em: <http://www.onehealthmag.com.br/wp-content/


uploads/2014/04/025700.jff-2.jpg>. Acesso em: 20 jun. 2017.

Ao longo do livro, Freyre sistematiza as contribuições originais de cada um


desses elementos formadores do país. Para Freyre, o passado brasileiro indica um
dualismo complementar entre a figura do senhor e do escravo. Neste sentido, não
haveria barreiras que impedissem a mudança ou ascensão social de não brancos.
Haveria, sim, interdependência.

Essas movimentações sociais entre as raças brasileiras apagam os conflitos


e estimulam a harmonia social interna do Brasil. Neste sentido, o Brasil não seria
um país com preconceito de cor (FREYRE, 2002).

A miscigenação que largamente se praticou no Brasil corrigiu a distância


social que de outro modo se teria conservado enorme entre a casa-grande e a

199
UNIDADE 3 | MULTICULTURALISMO, GÊNERO, RAÇA E ETNIA NO BRASIL

mata tropical; entre a casa-grande e a senzala. O que a monocultura latifundiária


e escravocrata realizou no sentido de aristocratização, extremando a sociedade
brasileira em senhores e escravos, com uma rala e insignificante lambujem de gente
livre sanduichada entre os extremos antagônicos, foi em grande parte contrariado
pelos efeitos sociais da miscigenação (FREYRE, 2002).

Essa visão cultural e não biológica do Brasil foi possível num contexto
político ligado aos acontecimentos de 1920 e 1930, “quando se tenta superar o
trauma da escravidão negra incorporando, de modo positivo, os afrodescendentes
ao imaginário nacional" (GUIMARÃES, 2004, p. 398).

A ideia ganhou força a partir do momento em que a sociedade teve de


pensar a presença de negros livres, após a escravidão. O mito da democracia racial
não nasceu em 1933, com a publicação de Casa-Grande & Senzala, mas ganhou,
através dessa obra, sistematização e status científico.

Ligado a essa necessidade de pensar a integração das raças no país, a partir


dos anos 1930, ao longo do Estado Novo de Getúlio Vargas, as populações negras
passaram a integrar o discurso oficial em torno da sua participação na cultura
nacional. Sua figura foi incorporada e enaltecida pelos ideólogos da cultura
brasileira. Será que isso implicou em maior cidadania? De acordo com Olívia Maria
Gomes Cunha (1999), o Estado Novo e a relação com as populações negras podem
ser percebidos a partir da dimensão “monumento” e “documento”. Em relação ao
primeiro, tratou-se de apontar contribuições desses povos para a cultura popular,
o folclore, a música, sendo enaltecido. Porém, na dimensão “documento”, isto é,
ligada ao arcabouço jurídico e legal, o negro continuava sendo um problema para
as políticas de segurança.

Um dos pesquisadores brasileiros que mais veementemente criticou a


ideia da democracia racial foi Abdias Nascimento (1976). Segundo suas palavras, a
democracia racial brasileira era:

[...] a metáfora perfeita para designar o racismo estilo brasileiro: não tão
óbvio como o racismo nos Estados Unidos e legalizado qual o apartheid
da África do Sul, mas eficazmente institucionalizado nos níveis oficiais
de governo assim como difuso no tecido social, psicológico, econômico,
político e cultural da sociedade do país. Da classificação grosseira dos
negros como selvagens e inferiores, ao enaltecimento das virtudes da
mistura de sangue como tentativa de erradicação da “mancha negra”;
[...]. Monstruosa máquina ironicamente designada democracia racial
que só concede aos negros um único “privilégio”: aquele de se tornarem
brancos, por dentro e por fora (NASCIMENTO, 1978, p. 93).

O que é importante entender? Que a partir do Brasil republicano, pós-


abolição, a sociedade brasileira sofreu profundas transformações sociais,
econômicas e culturais. A mão de obra livre, a inclusão do país no circuito
internacional de nações forçou modificações nas estruturas e instituições básicas
em nosso país, incluindo as manifestações de racismo e preconceito. Se antes
o foco estava na biologia e nas políticas de branqueamento, a obra de Freyre é
significativa para identificar essa transição, ao empregar, de maneira inédita, a
cultura como elemento de explicação das características brasileiras, incluindo aí as
relações raciais.
200
TÓPICO 3 | AS DESIGUALDADES BRASILEIRAS EM TORNO DA RAÇA

DICAS

Documentário dirigido por Nélson Pereira dos Santos, Casa-Grande & Senzala, é
baseado no livro homônimo de Gilberto Freyre.
A produção está dividida em quatro
episódios, no primeiro, "Gilberto Freyre,
o Cabral moderno", fala do próprio autor,
comparando-o ao descobridor do Brasil
por sua atividade intelectual; o segundo
capítulo, "A cunhã de família brasileira"
discute a contribuição do índio à formação
brasileira; na terceira parte, "O português,
colonizador dos trópicos", Freyre analisa as
características do povo português e quais
suas influências na formação brasileira; por
fim, o último episódio, "O escravo negro
na vida sexual e de família do brasileiro",
discute a participação africana na vida social
brasileira. Você encontra no Youtube. Acesse: FONTE: Disponível em: <https://i.ytimg.com/
<https://www.youtube.com/watch?v=0- vi/1d6B9GqNTTM/hqdefault.jpg>. Acesso em:
UGWuzSYmY>. 20 jun. 2017.

2.3 CRÍTICAS À IDEIA DE “DEMOCRACIA RACIAL” E OS


ESTUDOS RACIAIS BRASILEIROS
Os estudos raciais brasileiros, a partir das ideias estimuladas pela obra “Casa-
Grande e Senzala”, procuraram se afastar da categoria raça para debruçar-se sobre
as implicações da cor das pessoas em relação à classe social. Segundo estudamos
na unidade anterior, o conceito de classe social difundiu-se a partir do modelo
desenvolvido por Karl Marx. Esse conceito foi e é ainda muito importante para
compreender a produção das diferenças, das desigualdades e das hierarquias sociais.

Após a publicação de “Casa-Grande e Senzala”, as análises realizadas pelas


Ciências Sociais brasileiras promoveram críticas à ideia da “democracia racial”.
Para refutar o quadro traçado de harmonia das raças, diversos pesquisadores
lançaram-se ao empreendimento teórico de articular raça/cor e classe social.
Como exemplar dessas correntes de pensamento social brasileiro, apresentamos
Florestan Fernandes.

Segundo Octávio Ianni (1994), Florestan Fernandes é um dos pioneiros


responsáveis pela virada científica ocorrida com a abertura de cursos universitários
em Ciências Sociais no Brasil. Construiu um tipo de reflexão que estabeleceu as
bases de uma Sociologia Crítica brasileira. Em seu conjunto, a leitura de sua obra
traz preocupações com a formação, os desenvolvimentos, as lutas e as perspectivas
do povo brasileiro. Enquanto intelectual, seu olhar volta-se para os índios, os
negros, os trabalhadores urbanos e rurais, submetendo o “real e o pensando à
reflexão crítica” (IANNI, 1994, p. 26).
201
UNIDADE 3 | MULTICULTURALISMO, GÊNERO, RAÇA E ETNIA NO BRASIL

Seu livro, que se tornou clássico, foi “A Revolução Burguesa no Brasil”


(1974). De uma forma mais específica aos objetivos desse tópico, Fernandes refletiu
intensamente sobre esses personagens invisíveis de nossa história: A organização
social dos Tupinambá (1948), A integração do negro na sociedade de classes (1965),
O negro no mundo dos brancos (1972) e Mudanças sociais no Brasil (1960).

Sobre as relações raciais, a obra de Fernandes indica que existe uma


sobreposição de classe e raça, em que as diferenças e injustiças encobrem o conflito
social, indicando que a pobreza, no Brasil, ofuscava a raça e o racismo (FREITAG,
2005). Portanto, não haveria essa ideia de “democracia racial”.

Para Florestan Fernandes (1954, p. 99), “a maior parte da população brasileira


adulta não tinha participação direta na vida política”. Em uma sociedade com passado
escravocrata, surgiram obstáculos à integração do negro na sociedade capitalista,
atirando-o a uma posição subalterna. As estruturas do poder e da sociedade, bem
como do mercado, não foram capazes de modernizar as relações sociais brasileiras,
em prejuízo de pobres e negros, geralmente, o mesmo personagem.

Para ele, o dilema racial brasileiro indicava os limites da ordem social


capitalista brasileira, que continuava embebida de tradições do passado. A
análise das relações raciais feitas por Florestan Fernandes apontou para novas
desigualdades, sem prender-se à raça. Apesar das críticas, atualmente direcionadas
a algumas teses de sua análise, Fernandes apontou como as desigualdades são
complexas e multidimensionais. Tanto o racismo como o preconceito, neste
sentido, são indícios de um capitalismo subordinado, herdeiro de ideias oligarcas
e escravocratas.

FIGURA 59 - O MESTIÇO, 1934, ÓLEO SOBRE TELA DE CÂNDIDO


PORTINARI DESTACANDO UM TRABALHADOR MESTIÇO

FONTE: Disponível em: <https://www.historiadasartes.com/wp-content/uplo


ads/2016/09/m_mesti%C3%A7o.jpg>. Acesso em: 20 jun. 2017.

202
TÓPICO 3 | AS DESIGUALDADES BRASILEIRAS EM TORNO DA RAÇA

3 RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS NA SOCIEDADE


BRASILEIRA ATUAL
Até agora, estivemos centrados nas visões sobre o Brasil mais relevantes no
universo das Ciências Sociais brasileiras. Destacamos algumas que têm o poder de
sintetizar as ideias do seu tempo histórico. Miramos em análises de nosso passado
que ajudam a compreender a complexidade brasileira. Adiante, procuramos
fornecer elementos com base em pesquisas empíricas que materializam em
estatísticas os abismos raciais. Segundo Pierre Bourdieu e Loic Wacquant (2002),
o Brasil pode ser entendido como um país em que se leva em consideração traços
físicos, e a posição de classe é relevante para as produções de definições de sua
hierarquia social.

Essa questão é bastante pertinente ao debate brasileiro, em que “existiu


e existe uma tentativa de negar a importância da raça como fator gerador de
desigualdades sociais por uma parcela significativa dos setores dominantes”
(SILVÉRIO, 2012, p. 222). Como perceber o fenômeno do racismo?

O racismo implica em considerar a existência de raças, indicando uma


pertinência das características físicas e morais. Ele funciona como uma doutrina
de psicologia coletiva, hostil à ideologia individualista, hierarquizando as raças
orientadas por um olhar etnocêntrico. A partir de fatos, científicos e do senso
comum, o racismo estabelece uma política racista, conjugando teoria e prática
discriminatória (TODOROV, 1993).

Segundo informações da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio


(PNAD), divulgada em 2014, o grupo de pessoas que se indicava pardos
representavam 45%, ao passo que os negros 8,6% da população, representando a
maioria (IBGE, 2010; IBGE, 2015). Segundo o IBGE (2014, s.p.): 

Segundo o critério de declaração de cor ou raça, a maior parte da


população residente (92,4 milhões de pessoas) era de cor branca,
representando 45,5%. O grupo de pessoas de cor parda representava
45,0% do total populacional. Outros 8,6% se declararam de cor preta
(17,4 milhões de pessoas) e 1,8 milhão de pessoas (0,9%) declarou outra
cor ou raça (indígena ou amarela). Dentre as Grandes Regiões, 76,0% da
população residente da Região Sul declarou-se de cor branca, enquanto
nas Regiões Norte e Nordeste a maioria se declarou parda, com 69,3% e
61,9%, respectivamente. 

No país, em 2014, mais da metade (53,6%) das pessoas se declararam como


de cor ou raça preta ou parda, enquanto as que se identificaram como brancas
foi 45,5%. Em 2004, o cenário era diferente, pouco mais da metade se declarava
como branca (51,2%), enquanto a proporção de pretos ou pardos era 48,2% (IBGE,
2014). Em geral, numa sociedade democrática e liberal, os grupos sociais estão
mais ou menos representados na pirâmide social de forma igualitária, ou, ao
menos, não desequilibrada. Todavia, em nosso país, negros e mulheres estão sub-
representados. O que é uma desigualdade?

203
UNIDADE 3 | MULTICULTURALISMO, GÊNERO, RAÇA E ETNIA NO BRASIL

[...] as desigualdades são um produto de uma trama complexa entre o


plano econômico, político e cultural. Além disso, a multiplicidade de
fatores na explicação das desigualdades tem a vantagem de mostrar
tanto a multicausalidade dos elementos explicativos da vida social
quanto o aspecto dinâmico e relacional das relações sociais (SILVÉRIO,
2002, p. 222).

Nos ambientes contemporâneos, as desigualdades, muitas vezes, estão


concentradas nos chamados grupos minoritários. O professor Valério Roberto
Silvério (2002) questiona: Como podemos incluir minorias historicamente
discriminadas, uma vez que as políticas universalistas não têm tido o sucesso
almejado, e, ao mesmo tempo, debater em que bases é possível rever aspectos
fundamentais do pacto social?

Para o pesquisador, a primeira indicação diz respeito à igualdade. Além


disso, é fundamental discutir sobre o estatuto da raça como uma categoria válida
para a explicação e compreensão das desigualdades sociais. Por fim, é preciso
entender os limites e possibilidades daqueles pressupostos para a solução de
problemas contemporâneos, especialmente, das ações afirmativas (SILVÉRIO,
2012). Vejamos os problemas enfrentados tomando as populações a partir desse
recorte político “Raça”.

3.1 RAÇA E POBREZA


Num país com características como o Brasil, a naturalização de desigualdades
raciais causa profundas distâncias sociais e econômicas entre brancos e negros.
É importante entender que tais contextos nada têm de naturais ou divinos. São,
antes, problemáticas sociais, culturais, políticas e econômicas. Aqui, novamente,
temos muitas camadas de disparidades que se influenciam mutuamente, muitas
vezes, sobrepondo-se. O caso dos negros brasileiros é bastante contundente nesta
direção.

É interessante a discussão sugerida por Maria Aparecida Silva Bento (2014),


que indica a ausência da figura do branco nas discussões sobre as desigualdades
raciais. As populações brancas, numa espécie de pacto e “descompromisso político
com o sofrimento de outro”, agem como se as desigualdades raciais fossem apenas
dos negros. Assim, evita-se discutir as diferentes dimensões do privilégio.

Para Ricardo Henriques (2001), o pertencimento racial produz importância


significativa na estruturação das desigualdades sociais e econômicas no Brasil.
Disso resulta um país que não reconhece a cidadania para todos, onde a cidadania
dos incluídos é distinta da dos excluídos e, em decorrência, também são distintos
os direitos, as oportunidades e os horizontes.

A intensa desigualdade racial brasileira, associada a formas


usualmente sutis de discriminação racial, impede o desenvolvimento
das potencialidades e o progresso social da população negra. O
entendimento dos contornos econômicos e sociais da desigualdade

204
TÓPICO 3 | AS DESIGUALDADES BRASILEIRAS EM TORNO DA RAÇA

entre brasileiros brancos e brasileiros afrodescendentes apresenta-se


como elemento central para se construir uma sociedade democrática,
socialmente justa e economicamente eficiente (HENRIQUES, 2001, p. 2).

Sutis porque o racismo brasileiro está incorporado à vida cotidiana, às


instituições sociais, às interações sociais. Trata-se de um esforço consciente ou não
de invisibilizar essas populações, afetando o conjunto de suas oportunidades. Se
em nossa vida já incorporamos esta lição (as oportunidades não são iguais para
todos), no caso dos negros a situação explode aos nossos olhos.

No Brasil, em 1999, cerca de 34% da população brasileira vivia com


renda inferior à linha de pobreza, e 14% com renda inferior à linha de indigência
(HENRIQUES, 2001). A maior parte desse contingente era composto por homens
e mulheres negros e negras. Naquele ano, os negros representavam 64% da
população pobre e 69% da população indigente. Ao analisar diversos dados,
Ricardo Henriques (2001, p. 20) conclui que ““Brasil branco” é cerca de 2,5 vezes
mais rico que o “Brasil negro””.

DICAS

Quanto Vale ou É por Quilo?


 
Quanto Vale ou É por Quilo? é um filme brasileiro de 2005, do
gênero drama, dirigido por Sérgio Bianchi.
 
O filme faz uma analogia entre o antigo comércio de escravos e
a atual exploração da miséria pelo marketing social, que formam
uma solidariedade de fachada.

FONTE: Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=fZh


aZdCqrHg>. Acesso em: 10 ago. 2017.

3.2 A VIOLÊNCIA
A violência social e racial atinge, principalmente, os jovens. Os riscos são
distribuídos de maneira desigual entre as regiões brasileiras. Segundo o Índice de
Vulnerabilidade Juvenil à Violência e Desigualdade Racial (2014), quatro estados
brasileiros estão na categoria de vulnerabilidade muito alta, com índices acima de
0,500: Alagoas, Paraíba, Pernambuco e Ceará. Outras cinco unidades da federação
apresentam baixa vulnerabilidade, com índices abaixo de 0,300: São Paulo, Rio
Grande do Sul, Santa Catarina, Minas Gerais e Distrito Federal (BRASÍLIA, 2015).
Porém, a situação dos jovens negros é mais gritante.

205
UNIDADE 3 | MULTICULTURALISMO, GÊNERO, RAÇA E ETNIA NO BRASIL

Ao se tratar especificamente do risco relativo à raça/cor, destaca-se


Paraíba com o maior risco: 13,401. Isso significa dizer que a chance de
um jovem negro ser vítima de homicídio na Paraíba é 13 vezes maior do
que um jovem branco. Na sequência está o Estado de Pernambuco, onde
o risco relativo é de 11,565, e Alagoas, com 8,748. [...] A prevalência de
jovens negros serem mais vítimas de assassinatos do que jovens brancos
é uma tendência nacional: em média, jovens negros têm 2,5 mais chances
de morrer do que jovens brancos no país (BRASÍLIA, 2015, p. 21).

Em realidade, os números ligados à violência estatal e social contra jovens


negros no Brasil são um problema social de primeira grandeza e complexidade.
Isso porque as desigualdades internas em nosso país afligem de maneiras distintas
as suas cinco regiões.

De acordo com a “Nota Técnica Vidas Perdidas e Racismo no


Brasil”, produzida por pesquisadores através do Instituto Pesquisas Econômicas
Aplicadas (IPEA) no ano de 2013:

Considerando apenas o universo dos indivíduos que sofreram morte


violenta no país entre 1996 e 2010, constatou-se que, para além das
características socioeconômicas – como escolaridade, gênero, idade
e estado civil –, a cor da pele da vítima, quando preta ou parda, faz
aumentar a probabilidade do mesmo ter sofrido homicídio em cerca de
oito pontos percentuais (IPEA, 2013, p. 14).

A Nota do IPEA destaca que entre os brancos, a maior causa de morte


violenta é o trânsito. Já em relação aos homens negros, os resultados mostram
que o principal componente causador da perda de expectativa de vida são os
homicídios, o que se dá de forma mais aguda nas regiões Nordeste, Norte e
Centro-Oeste. Entender como tais situações ocorrem e se reproduzem são tarefas
fundamentais para as Ciências Sociais. Isso porque a Nota do IPEA indica que
mais de 39 mil pessoas negras são assassinadas todos os anos no Brasil, contra 16
mil indivíduos de todas as outras “raças”. Esta publicação conclui que o negro
brasileiro é “duplamente discriminado”, seja por sua situação socioeconômica ou
por sua cor de pele, que levando a “discriminações combinadas podem explicar a
maior prevalência de homicídios de negros vis-à-vis o resto da população” (IPEA,
2013, p.13). As chances de um negro morrer de forma violenta são 2,4 vezes mais
altas que uma pessoa branca.

Dados chocantes são trazidos pelo Mapa da Violência: homicídios por


armas de fogo. Em 2003, foram cometidos 13.224 homicídios com armas de fogo,
resultando na morte de uma pessoa branca. Em 2014 esse número desceu para
9.766, queda de 26,1%. Todavia, tomando esse mesmo período, o número de
vítimas negras passa de 20.291 para 29.813, aumento de 46,9%. Quer dizer, para o
Mapa, em 2014 existiam 158,9% de chances a mais que um negro morra de forma
violenta (especialmente, arma de fogo) do que um branco (WAISELFISZ, 2015).

Os jovens entre 15 e 29 anos representam quase 60% dos assassinatos.


Em outros “números”, em 2014 foram assassinados 23.100 jovens negros nessa
faixa etária, representando 63 jovens mortos por dia, um a cada 23 minutos
(WAISELFISZ, 2015).
206
TÓPICO 3 | AS DESIGUALDADES BRASILEIRAS EM TORNO DA RAÇA

FIGURA 60 – ASSASSINATO DE JOVENS NO BRASIL

FONTE: Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/imagens/imgNoticiaUpl


oad1437734294836.jpg>. Acesso em: 20 jun. 2017.

FIGURA 61 - GENOCÍDIO JOVEM E NEGRO NO BRASIL

FONTE: Disponível em: <http://www.ilheus24h.com.br/v1/wp-content/uploads/2015/09/


genocidio.jpg>. Acesso em: 20 jun. 2017.

Outra conquista dos movimentos sociais negros pode ser indicada no


Estatuto da Igualdade Racial, criado em 20 de julho de 2010, através da Lei Federal
nº 12.288/2010. Este estatuto visa garantir à população negra a efetivação da
igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos
e difusos e o combate à discriminação e às demais formas de intolerância étnica
(BRASIL, 2010). Este debate esteve presente no Tópico 1 desta unidade.
207
UNIDADE 3 | MULTICULTURALISMO, GÊNERO, RAÇA E ETNIA NO BRASIL

Ele estimula a inclusão da população negra nas políticas públicas de


educação, cultura, esporte, lazer, saúde, o respeito às suas crenças religiosas e
liberdade de expressão, direito à terra e à moradia digna, políticas de inclusão da
população negra no mercado de trabalho, a valorização da herança cultural negra,
através dos meios de comunicação, combate à discriminação e às demais formas de
intolerância étnica, levando em consideração critérios como gênero e classe social.

3.3 MOVIMENTO NEGRO E RAÇA


É importante destacar o papel do Movimento Negro na sociedade
brasileira, presente desde o período da colonização, quando foram trazidos para
o Brasil e escravizados. Como maior movimento de resistência à escravidão,
temos a organização de um movimento liderado que culminou com a criação
de um território livre, chamado Quilombo dos Palmares, local no qual os negros
refugiados reuniam-se para lutar contra a escravidão e a exploração imposta pelos
brancos colonizadores. Sua principal liderança chamava-se Zumbi.

Mais tarde, nas décadas de 1960 e 1970, período de ditadura militar, o


Movimento Negro espalhou-se por diversos estados no Brasil. Com a ditadura,
as organizações negras tiveram que transformar-se em entidades de cultura e
lazer. Desta forma, formaram-se grupos de teatro, música e dança que afirmaram
a identidade e a cultura negra.

Nos anos 1970, também os negros pobres que moravam nas periferias das
grandes cidades do país foram fortemente influenciados por James Brow, cantor
negro norte-americano. Através da chamada soul music (música típica dos negros
estadunidenses), os bailes nos subúrbios cariocas deram origem ao movimento
Black Rio.

Na década de 1970, com a finalidade de articular os negros do Brasil


inteiro, surgiu no dia 7 de julho de 1978 o Movimento Negro Unificado contra a
Discriminação Racial. Esse movimento teve um grande desafio de lutar contra o
racismo em pleno período de ditadura militar, pois os militares diziam que já se
vivia numa democracia racial no Brasil, portanto, os negros não tinham nenhum
objetivo para lutar. Ainda neste momento histórico, surge no interior do Movimento
Negro a discussão específica das mulheres, liderada por Lélia Gonzalez. Ela trouxe
o argumento de que existe diferenciação nas formas de sofrer o preconceito de
acordo com o sexo, ou seja, ser um homem negro é diferente de ser uma mulher
negra no Brasil. Além de levar em consideração a questão de gênero, é necessário
levar em consideração também a questão da classe social.

Diversas organizações negras para lutar contra a discriminação racial


foram criadas neste período. A maioria dessas organizações é de origem urbana,
mas atualmente o Movimento Negro tem atingido também a área rural, onde
participa ativamente do Movimento dos Sem-Terra (MST). Outra área importante
em que o Movimento Negro tem atuado são as comunidades de remanescentes de
quilombos.
208
TÓPICO 3 | AS DESIGUALDADES BRASILEIRAS EM TORNO DA RAÇA

Outra conquista importante do Movimento Negro no Brasil foi lutar para


que o governo brasileiro começasse a adotar medidas políticas de ação afirmativa,
combatendo o racismo e a discriminação racial. Uma dessas medidas adotadas foi
a lei de cotas raciais e sociais nas universidades.

Para finalizar este tópico, sugerimos pensar que a abolição da escravatura


lançou ao relento enormes massas populacionais de cor negra que deveriam tornar-
se trabalhadores livres. Porém, a introdução de trabalhadores imigrantes nas
lavouras (italianos e alemães, por exemplo) colocou em situação de desvantagem
os negros ex-escravos. Neste período de nossa história, os negros tornaram-se casos
de medicina legal e de polícia. Assim, um dos resultados nefastos das teorias raciais
brasileiras, envoltas em legitimidade científica e política, foi “solapar e abortar” da
discussão sobre cidadania no país a questão racial; assim, foi e continua operante
em nosso país, na medida em que seleciona visões de mundo e as transforma em
senso comum, dividindo e classificando os grupos sociais (SCHWARCZ, 1994).

LEITURA COMPLEMENTAR

Entrevista Lilia Schwarcz: Quase pretos, quase brancos

A antropóloga Lilia Schwarcz discute a ligação entre ciência e racismo no


Brasil do século passado e de como essas teorias ainda permanecem entre nós.

Quando até a secretária Especial de Política da Promoção da Igualdade


Racial usa o “senso comum” para justificar o racismo, o que se pode esperar da
sociedade?

– Foi evidentemente uma declaração infeliz. É preciso desmontar o que há


por trás do senso comum, dessa fala que “aflora”. O racismo é sempre deletério. Ele
impede que você avalie uma pessoa, partindo de uma formação física, sobretudo da
coloração da pele, ou então que você atribua à coloração da pele uma explicação de
ordem biológica. O racismo é sempre uma perversão. Não há nada de natural nele,
que é uma construção cultural nascida das profundas diferenças sociais que nos
dividem. Eu acho correto que se recorra à história para tentar entender e modificar
esse panorama, formar uma política. Chamar de natural qualquer tipo de racismo
é fazer da história um campo de batalha ideológico. Não há naturalidade aí. Acho
que isso pode levar de fato a uma excitação, a um ódio e, sobretudo, a algo que
todos devemos discordar, que é transformar a raça humana numa essência, numa
realidade. Ela não é raça, é uma construção social e política.

Como ciência e racismo se relacionam historicamente no Brasil?

– O Brasil é um país de paradoxos, porque ao mesmo tempo que nós


carregamos esse tremendo pessimismo, que foi do século XIX até os anos 1930,
depois convivemos com um grande otimismo: raça sempre deu muito o que falar
no Brasil, para o bem e para o mal, como elemento de detração ou como elemento
de positivação. Esse senso comum, ele já foi ciência, ou seja, o preconceito já
209
UNIDADE 3 | MULTICULTURALISMO, GÊNERO, RAÇA E ETNIA NO BRASIL

foi conceito. No final do século XIX, a ponta de lança científica brasileira e a


internacional diziam que a mistura de raças era prejudicial e que um país formado
por raças muito diferentes estava fadado à decadência. Nina Rodrigues, da Escola
de Medicina da Bahia, era o arauto dessa ideia. Ele mostrava, a partir da ideia, de que
a esquizofrenia, a bebida, a loucura, inclusive as tatuagens, eram demonstrações de
que os indivíduos eram degenerados e que essa degeneração passaria para o corpo
da nação. Essa seria uma nação sem futuro. Essa visão não era só de Rodrigues;
nós a encontrávamos em Euclides da Cunha, cujo relato maravilhoso é cheio de
confrontos: o sertanejo é um desequilibrado, um degenerado, porque é fruto de
raças muito equilibradas e diferentes. Ao mesmo tempo, ele também é “rocha
viva, a rocha dura”. Euclides da Cunha não dá conta de que, nem por que, enfim,
esse mestiço sobrevive. Sílvio Romero, por exemplo, tem uma frase sensacional
que revela o espírito de época: “É preciso não ter preconceito. Os homens são
diferentes”. Então, nessa época, ter preconceito era afirmar a igualdade. Agora isso
virou um senso comum. Nos anos 1930 há uma exaltação oficial da mestiçagem
como nossa profunda singularidade, a saída que o Brasil dará para o mundo. A
ciência passa a deslegitimar a ideia de que a mestiçagem é ruim. O senso comum
assume isso também.

Essas teorias chegam aqui “copiadas” ou passam por uma adaptação?

- O movimento no Brasil estava na contramão, porque, no momento em


que as teorias raciais viram a palavra de ordem da ciência brasileira, estavam
entrando em descrédito na Europa. E no momento em que as teorias raciais
passam a ser desacreditadas no Brasil, isso já nos anos 1930, 40, na Europa elas
voltam com força, com a questão do nazismo. As ideias, quando entram nesse
momento da história brasileira, e nessa configuração social, política e específica,
ganham uma nova dimensão e, inclusive, na nova leitura, uma seleção. Afinal,
uma coisa é pensar na eugenia em povos não misturados, outra é a eugenia em
povos já misturados, os chamados de laboratórios raciais. Aqui, o que houve? Um
casamento de teorias que em outros lugares acabaria em desastre. Claro que são
as teorias do evolucionismo com as teorias mais deterministas raciais, porque o
determinismo racial supõe o quê? Não há como misturar. O evolucionismo prevê
o quê? A ideia de que certas misturas podem ser benéficas e outras não. Há uma
seleção. Não foi uma cópia, mas uma tradução.

Como entender as tentativas de branqueamento da nação, por meio de


imigrantes, separação de raças e outras iniciativas?

- Essa saída, via branqueamento, é um exemplo da solução à brasileira,


porque não é dizer que o Brasil evitou o branqueamento. Claro que não, porque há
todo um movimento na Europa que prevê a política da eugenia. Para poder aplicar
a política de branqueamento num contexto já “branco” é diferente de pensar
em política de branqueamento num país em que a população está africanizada.
Já se pede uma política de emigração. João Batista Lacerda, do Museu Nacional,
vai participar do Congresso Oficial das Raças. Naquele momento, vivemos no
contexto do pan-americanismo, há um receio político de que os Estados Unidos
pratiquem uma política de invasão dos nossos territórios e Lacerda leva como
210
TÓPICO 3 | AS DESIGUALDADES BRASILEIRAS EM TORNO DA RAÇA

saída o branqueamento. Ele mostra como, num estágio de cem anos, o Brasil
seria branco, pela seleção natural e pela implementação de políticas migratórias
brancas. Para ter noção do “calor da hora”, Lacerda é considerado pessimista, pois
falou em um século, o que seria demais para o branqueamento da nação. Isso sem
esquecer de política de migração implementada sobretudo por Pedro II. Pode-se
entender a política de migração, mas por que branca? A explicação está no conteúdo
racial ideológico dessa política. Há, por exemplo, um professor da Faculdade de
Medicina do Rio de Janeiro, Renato Kehl, que era partidário do modelo da África
do Sul. Ele faz um elogio à política sul-africana, que selecionava a migração, e
emigrantes brancos, e pede o movimento dos dois lados. De um, a emigração
branca e selecionada e, de outro, faz um elogio à esterilização de mestiços. Quer
dizer, o país da alentada democracia racial estava a um passo do apartheid social.

De que forma a raça foi usada como forma de criar uma identidade
nacional?

- Esse é um processo lento, porque sabemos que nações são construções,


projetos feitos de memórias. Como dizia Walter Benjamin, “a memória é um
passado feito de agora, repleto de agora”. A memória é feita de algumas lembranças
e de muitos esquecimentos. Um processo de formação de uma memória nacional
é um processo de esquecimento, de seleções e de reelaborações. Até de uma
literatura, como a de 1922, que mostrou que criamos um Estado, mas não uma
nação. A identidade, ela é uma construção contrastiva e o material, o fermento da
identidade, era a ideia da diferença. Então era preciso fermentar essa noção da
diferença. Esse bolo vai sendo cozinhado durante o século XIX e a gestão de Pedro II
é fundamental para entender esse modelo de Brasil que vai se construindo. Pedro II
não era grande adepto dos modelos racialistas, mas não se pode dizer que não fosse
influenciado pela época, pois, lembrando Sílvio Romero, nesse momento, assumir
as diferenças era não ter preconceito. Daí a seleção do indígena como o ícone da
nacionalidade, embora o indígena romantizado. Essas teorias raciais entrariam
em fins do século XIX na Faculdade de Direito, na Faculdade de Medicina, nos
círculos militares. Mas foi no começo do século XX que esse debate em torno da
raça fica mais evidenciado. O interessante é que, para a confirmação da identidade,
a raça teve que ser positivada: assim como no Império você positiva o indígena,
no século XX, positiva-se a mestiçagem. A mestiçagem de nosso profundo veneno
se transforma na grande virtude: é o momento em que você tem a oficialização
da capoeira, a descriminalização do candomblé, o futebol se transforma numa
prática negra, Nossa Senhora Aparecida se transforma numa santa mestiça, ícone
nacional. Nos anos 1930 a raça vira de fato um elemento da nacionalidade, mas
como “a boa raça”, “a boa mistura”, e uma mistura racial se transforma cada vez
mais numa mistura cultural.

Como se pode reunir preocupação com raça e racismo?

- Na verdade, não há uma solução de continuidade. Pode parecer, pela


etimologia, raça e racismo, que há, mas não obrigatoriamente. Estávamos à beira
de uma política de apartheid social, de políticas raciais evidentes. Estávamos para
implementar uma política oficial de racialização, o que não aconteceu. Já o ideário
211
UNIDADE 3 | MULTICULTURALISMO, GÊNERO, RAÇA E ETNIA NO BRASIL

modernista transformou o tema da raça num tema da humanidade. A primeira


definição de Macunaíma é um homem sem raça; daí para o homem sem nenhum
caráter é jogar a questão para o bojo da cultura. O ideário modernista transformou
raça, cultura em etnia e desfalcou o tema para pensar de alguma forma em modelos
de assimilação. A ideia modernista de Macunaíma, daquilo que você deglute,
do que você devolve, é um pouco essa ideia de que você devolve o homem ao
caldeirão de cultura. É claro que essa noção, de alguma maneira, via o conflito, mas
fazia o oposto. A vantagem da literatura sobre Nina Rodrigues é que em nenhum
momento ela camufla o conflito, antes expõe diferença. O problema de Rodrigues
não era o diagnóstico, mas o remédio que ele implementava.

E sua ideia da “ilha de democracia racial, cercada de racismo”, o brasileiro


que só vê o racista no outro?

- Arthur Ramos teria sido o primeiro a falar de democracia racial, mas


Freyre levou a fama. É preciosismo saber quem foi o primeiro, pois o tema estava
na agenda nacional. Tanto que encontrou lastro na discussão nacional, via Estado
Novo, e ganhou resultados fora do Brasil. Não se pode esquecer o impacto que
essa ideia teve no exterior, como no caso da pesquisa da Unesco que chamou o
Brasil de caso exemplar, uma grande democracia racial. A ideia do mito é forte
e ganha diferentes conotações. Quando falamos em mito, não é no sentido da
mentira. Hoje se pensa menos no que o mito esconde e mais no que o mito revela.
Quando se pensa na análise estrutural do mito, eles trabalham em espiral, falam
entre si e o tempo todo de elementos que estão aqui na nossa realidade social.
Então, eu penso que é preciso levar a sério o mito, porque ele já foi desmontado
muitas vezes e continua presente. O que significa levar a sério o mito? Não é dizer
“temos democracia racial”. Não, não temos. Praticamos uma política perversa
de exclusão e de discriminação. Então, não há a tal democracia social ou racial,
mas também não acho que devemos apostar em modelos de fora, análises que
dicotomizam a realidade entre negros e brancos. Talvez essa seja a afirmação mais
infeliz da ministra, aparada em modelos que não são os praticados neste país. A
mestiçagem é uma realidade, mas o problema não é a constatação da mestiçagem,
mas a qualificação positiva sempre da mestiçagem. Mestiçagem não é sinônimo
de igualdade. Mestiçagem não é obrigatoriamente sinônimo de ausência de
discriminação. É esse vácuo que me incomoda.

Podemos pensar, enfim, que ainda se possa manter o conceito de raça?

- Raça não é uma realidade ideológica, mas raça é uma construção, muitas
vezes perversa, porque ela leva a um campo de hierarquização. Dito isso, raça
é uma construção, identidade também é uma construção. Estamos nesse campo:
identidade também não é uma construção que se faz em contexto e com lutas
sociais e com tensões sociais a todo momento. Então seria preciso pensar por que
é que no Brasil raça sempre foi material para pensar em identidade e o que é que
seria esse racismo à brasileira. Eu acho que existe, sim, um racismo à brasileira,
cuja grande complexidade é que ele é uma ideia que é, sobretudo, de caráter
privado. Isso tem se alterado e muito. Esse racismo brasileiro ainda se manifesta
na esfera do privado, por conta da ausência de movimentos no corpo da lei. O que
212
TÓPICO 3 | AS DESIGUALDADES BRASILEIRAS EM TORNO DA RAÇA

está havendo é uma inversão. Estamos tentando colocar no corpo da lei políticas
de compensação, praticando políticas que de alguma maneira estão retornando e
racializando o debate. Esse racismo à brasileira é de caráter privado, por não se
manifestar no corpo da lei e por não se manifestar nas estâncias mais oficiais. Além
de tudo, ele também é um racismo que sempre joga no outro a cota de preconceitos.
Pode ser o argentino, no caso do futebol. O lado bom do momento em que nós
vivemos é enfim que as pessoas estão passando a refletir sobre essa questão. Não
falar a respeito não significa que você não viveu o problema. As pessoas negam e
jogam no outro o racismo que na verdade é de cada um.

O que acontece quando se junta a questão racial à de gênero?

- Já é uma discriminação duplicada. Não é a dupla jornada de trabalho,


mas é a dupla jornada de preconceito, porque se existe um leque de representações
negativas com relação ao malandro, ao mestiço, quando se refere à mulher, isso
aumenta. A mulata é palco para a ideia de que não é só a preguiça, mas os atos
sexualmente condenáveis; há a influência da prostituição, a traição, a mulata que
é matreira.

Enfim, como antropóloga, qual é a sua visão do futuro do conceito de


raça e do “ser brasileiro”?

- Nós acionamos várias brasilidades dependendo do lugar, do momento e


da situação, porque é um conceito baseado, sobretudo contrastivo. A identidade se
constrói pela imposição que ela apresenta, pela posição que ela ilumina. Escrevi um
artigo para um jornal de Portugal sobre um jogo de futebol, em Paraisópolis, que se
chama “Preto contra Branco: é um jogo de futebol, no final do ano”. Nele, as pessoas
mudam de posição: num ano jogam pelo Preto, noutro pelo Branco. Daí você nota
como, primeiro, a identidade é uma questão circunstancial e raça, uma situação,
no senso comum, “passageira”. As pessoas “embranquecem”, “empretecem”. O
que é uma prova de como raça, não como um conceito biológico, mas raça como
uma construção social, continua a ser acionada no nosso imaginário. O que eu
posso dizer, sem medo de errar, é que as raças sempre deram o que pensar no
Brasil, porque, enfim, elas sempre acionaram, em momentos estratégicos, que a
identidade, também pensada como uma construção, é transformada num elemento
conformador de políticas públicas e de políticas de Estado.

FONTE: Disponível em: <http://revistapesquisa.fapesp.br/2007/04/01/quase-pretos-quase-brancos/>.


Acesso em: 20 jun. 2017.

213
RESUMO DO TÓPICO 3

Neste tópico, você aprendeu que:

• O Brasil possui um passado de escravidão, cuja herança ainda persiste nas


estruturas da nossa sociedade.

• Uma das manifestações dessa herança é o racismo. Trata-se de um conceito


teórico e político surgido no continente europeu, mas que tratou de classificar
as relações sociais mundo afora. A partir do século XIX, o racismo ganha ares
científicos, fortalecido por ideias evolucionistas, deterministas e racistas.

• O racismo brasileiro tem como foco a marca da cor da pele, indicando um


racismo institucionalizado e generalizado pelas instituições sociais. Em razão
disso, a situação social das populações negras encontra-se precária, fruto da
discriminação, da pobreza e do racismo.

• Os dados discutidos apontam para a invisibilidade do negro nas instâncias de


poder.

• Os negros brasileiros, principalmente os jovens entre 15 e 29 anos, são os


principais atingidos pela violência.

• Devemos pensar o racismo e o preconceito como fenômenos localizados


no nosso cotidiano, agindo de maneira sutil, na forma de brincadeiras, em
comportamentos e situações comuns. Quer dizer, devemos pensar o racismo
como um fenômeno institucionalizado e generalizado, seja no Estado, no
mercado ou na sociedade.

214
AUTOATIVIDADE

1 A ideologia racista chega ao Brasil a partir das teorias


científicas de teor evolucionistas e deterministas no século
XIX. Um dos nomes importantes dessa corrente foi o médico
e antropólogo Nina Rodrigues. Sintetize as características
desse racismo científico.

2 Observe a imagem abaixo e procure sintetizar a ideia de


“democracia racial” brasileira.

FONTE: Disponível em: <http://academiadopsicologo.com.br/wp-content/


uploads/2017/03/n2.jpg>. Acesso em: 20 jun. 2017.

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