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TEMAS E TEORIAS

DA SOCIOLOGIA

Autoria: Henrique Cignachi

2ª Edição
Indaial - 2019

UNIASSELVI-PÓS

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CENTRO UNIVERSITÁRIO LEONARDO DA VINCI
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Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI

Copyright © UNIASSELVI 2019


Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri
UNIASSELVI – Indaial.

C571t

Cignachi, Henrique

Temas e teorias da sociologia. / Henrique Cignachi. – Indaial:


UNIASSELVI, 2019.

155 p.; il.

ISBN 978-85-7141-422-8
ISBN Digital 978-85-7141-423-5

1. Sociologia. - Brasil. II. Centro Universitário Leonardo Da Vinci.

CDD 300

Impresso por:

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Sumário

APRESENTAÇÃO.............................................................................5

CAPÍTULO 1
A Sociologia E As Abordagens Teóricas Fundamentais:
Durkheim, Marx E Weber...............................................................7

CAPÍTULO 2
Estado, Poder, Classes Sociais e Cultura...............................55

CAPÍTULO 3
A Sociologia Nos Dias de Hoje: os Desafios
do Mundo Globalizado E Fragmentado.................................. 115

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APRESENTAÇÃO
Nesta obra será apresentado um panorama abrangente dos temas e teorias so-
ciológicas que possuem importância acadêmica e educacional. Neste sentido, bus-
cou-se apresentar as abordagens teóricas que fundamentaram a sociologia como dis-
ciplina acadêmica e como conhecimento social e político relevante no debate público,
abarcando dos temas e autores clássicos aos contemporâneos.

Assim, no Capítulo 1, vamos trilhar o caminho do desenvolvimento teórico e me-


todológico da Sociologia a partir da obra dos três grandes “clássicos” da Sociologia
(Durkheim, Marx e Weber), buscando apresentar os principais temas desenvolvidos
por estes autores no contexto do desenvolvimento da sociedade industrial ao longo
do século XIX e início do XX. Além disso, apresentaremos um pouco das dificuldades
apresentadas nas tentativas de garantir objetividade na pesquisa sociológica, ponto
considerado central para certificar o estatuto científico da nova disciplina.

No Capítulo 2, exploraremos e aprofundaremos alguns debates que partiram da


sociologia clássica como de outras vertentes que surgiram ao longo do século XX, a
partir das reflexões sobre os fenômenos da política e do poder do Estado, dos con-
flitos e identidades sociais, como a influência dos debates culturais da antropologia
sobre a sociologia. Veremos como boa parte das reflexões sobre conflito social e es-
trutura do poder político desenvolvidas principalmente a partir das obras de Marx e
Weber permaneceram constantes e como foram complexificadas ao longo do século
XX. Além disso, veremos como a crítica ao etnocentrismo cultural é importante para
realizar observações sobre culturas distintas entre si.

Por fim, no último capítulo, buscamos apresentar um panorama amplo acerca


das reflexões sociológicas acercas de temas atuais, como a pobreza, violência e a
globalização a partir da teoria sociológica contemporânea. Ao longo da história a so-
ciologia manteve como aprofundou a abordagem sobre temas com novas aborda-
gens teóricas derivadas da crítica aos teóricos clássicos. Entendemos que mais que
negações, os debates aprofundaram e tornaram mais complexo o entendimento dos
fenômenos sociais, principalmente quando observada a complexidade de identida-
des, desigualdades e conflitos observados na humanidade nos tempos atuais.

O recorte de autores e temas realizado na obra não é o único possível, mas foi
uma escolha necessária frente à multiplicidade de autores e tendências observadas
na pesquisa sociológica e nas ciências humanas em geral. O fio condutor de nossa
seleção foi a observação de temas que acompanham a pesquisa sociológica desde
o século XIX ­e que ainda são extremamente relevantes para o entendimento para
superação dos constantes desafios de nossa sociedade atual.

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Desta forma, esperamos que esta obra sirva para aprofundar seus estudos e
prática profissional, garantindo um aprofundamento teórico capaz de dialogar e sub-
sidiar tanto a pesquisa como a didática docente. Entendemos que é muito importante
que a pesquisa sociológica seja tornada parte do debate público e fundamento da
formação cidadã em nosso país.

Bons estudos!

Henrique Cignachi

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C APÍTULO 1
A Sociologia e as Abordagens
Teóricas Fundamentais: Durkheim,
Marx E Weber
A partir da perspectiva do saber-fazer, neste capítulo você terá os seguintes
objetivos de aprendizagem:

Saber:
3 Identificar a sociologia como área do conhecimento científico com origem no sécu-
lo XIX.
3 Identificar as contribuições de Émile Durkheim e Max Weber para a definição me-
todológicas da Sociologia.
3 Apontar a importância de Karl Marx na produção do conhecimento sociológico a
partir do materialismo-histórico.
3 Conhecer a visão de Max Weber acerca da modernidade marcada pela racionali-
zação e nas estruturas burocráticas.
3 Enunciar os conceitos de solidariedade propostos por Émile Durkheim a fim de com-
preender a sociedades humanas da era industrial em relação às eras passadas.

Fazer:
3 Analisar as contribuições teórico-metodológicas dos clássicos da sociologia para a
produção sociológica recente.
3 Realizar pesquisas sociológicas de maneira a identificar a importância do método
sociológico e dos conceitos como formas de compreensão da(s) sociedade(s) hu-
mana(s).
3 Diferenciar as contribuições dos três clássicos da sociologia a partir de suas leitu-
ras da sociedade industrial.

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Temas e Teorias da Sociologia

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A Sociologia e as Abordagens Teóricas
Capítulo 1 Fundamentais: Durkheim, Marx E Weber

1 CONTEXTUALIZAÇÃO
Nesta primeira unidade veremos o caminho percorrido pela sociologia quando
esta surge durante a segunda metade do século XIX. Neste período, ocorreram in-
tensos debates que buscavam delimitar as disciplinas que tinham na ação humana,
em suas dimensões histórico-culturais, o seu objeto de pesquisa e análise.

No entanto, é preciso ter em vista que mais do que um enquadramento no vasto


campo das ciências acadêmicas, a sociologia surge como resultado das transforma-
ções rápidas e intensas nas sociedades europeias daquela época. Na história pode-
mos lembrar o advento da “Era das Revoluções”, no qual o então denominado Antigo
Regime é substituído pela rápida industrialização, crescimento das cidades e consoli-
dação do mercado capitalista.

Neste sentido, é preciso resgatarmos a história da filosofia e da política do sécu-


lo XVIII e entender que a sociologia também é resultado direto da consolidação das
novas visões de mundo que deram base à nascente sociedade industrial: o Iluminis-
mo e o Liberalismo. Do Iluminismo temos a consolidação da razão e da ciência como
bases para o conhecimento humano e do Liberalismo temos a consolidação da ideia
de que a maximização do ganho individual pelo livre mercado era a chave para o de-
senvolvimento da sociedade.

Perceba também que ambas visões se coadunam na ideia de que a sociedade


poderia caminhar e controlar o seu próprio desenvolvimento. Esta ideia influenciou
diretamente intelectuais da época, comprometidos em explicar e compreender como
as sociedades humanas surgiram e se desenvolveram, as bases da permanência
das formas sociais e culturais como também das contradições que levam para suas
mudanças. Para isso também se fez importante delimitarem metodologicamente esta
tarefa de análise social e histórica da humanidade, bem como lidar com o problema
da separação dos valores do pesquisador ao objeto de pesquisa, como de sua inter-
venção política e se a ciência deveria servir ou não a este propósito.

Assim, neste capítulo retomaremos a trajetória e contribuição dos principais


autores clássicos que consolidaram as bases metodológicas e teóricas da socio-
logia contemporânea: Émile Durkheim, Karl Marx e Max Weber. Ao mesmo tempo
que suas obras são datadas e refletiram os debates de sua época, estes três
autores criaram bases para compreensão científica das sociedades humanas nos
seus mais diversos momentos históricos como cada autor também teve contribui-
ções essenciais na fundamentação de tendências políticas de sua época e atua-
lidade, sendo inclusive presentes em intensos debates e disputas até os dias de
hoje. Portanto, entendemos ser importante retomarmos suas obras a fim de que
como educadores possamos melhor contribuir para a formação científica e crítica
de jovens e adultos através do estudo sociológico.
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Temas e Teorias da Sociologia

2 ÉMILE DURKHEIM E A CRIAÇÃO


DA DISCIPLINA SOCIOLÓGICA:
CONTEXTO HISTÓRICO, POSITIVIS-
MO E TEORIA FUNCIONALISTA
Como visto na contextualização, na Europa do século XIX, os efeitos da Revo-
lução Industrial e da Revolução Francesa se faziam presentes por toda parte. Apesar
da tentativa de reação das monarquias absolutistas com a derrota de Bonaparte e
a criação da “Santa Aliança” em 1815, a realidade social, as ideias e a economia já
não eram mais daquela sociedade de traços feudais. A sociedade industrial triunfara
na Grã-Bretanha e se globalizava através da abundância de mercadorias industria-
lizadas e máquinas. Os ventos do republicanismo sopravam forças revolucionárias
em diversas regiões da Europa e mesmo da América (como 1848, a “primavera dos
povos” e no Brasil a Revolução Praieira) abriam terreno para o aparecimento das na-
ções e repúblicas modernas.

A burguesia triunfava moralmente e politicamente sobre a nobreza feudal.


Suas técnicas produtivas e racionalidade econômica tornavam-se o imperativo éti-
co da época. A moral da antiga economia feudal, das obrigações recíprocas entre
a nobreza e camponeses, das regulações do trabalho pelas corporações de ofí-
cio, do combate da Igreja Católica à “usura” comercial e bancária, da divisão so-
cial determinado pelo nascimento, todo este mundo fora enterrado como arcaico e
como empecilhos ao progresso humano. O ideal do homem livre e empreendedor
do liberalismo encontrava seu espaço de triunfo.

Para conhecer mais profundamente a história deste período,


sugerimos a leitura da seguinte obra: HOBSBAWM, Eric J. A era das
revoluções. 10ª. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.

Neste contexto, se a indústria e suas técnicas eram a expressão da racionalidade


prática da burguesia, a ciência do século XIX florescia como sua racionalidade teórica.
A natureza e os fatos físicos poderia ser explicado e organizado por princípios racionais
e matemáticos. A química demonstrava que a natureza poderia ser compreendida e
manipulada na dimensão invisível dos átomos. A matemática e a física explicavam to-
dos fenômenos naturais como precisos e calculáveis. A biologia evolucionista enterrava

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A Sociologia e as Abordagens Teóricas
Capítulo 1 Fundamentais: Durkheim, Marx E Weber

por vez a dogmática cristã da criação dos animais e humanos. A Igreja já não Tal como nas
determinava através de suas análises teológicas qual era a verdade dos ho- ciências da
mens. Prenunciava-se que esta verdade só poderia ser adquirida através do “natureza”,
meticuloso trabalho de observação, cálculo e descrição da natureza. acreditava-se que
a humanidade
também poderia
Podemos nos questionar por que o estudo deste contexto é tão im-
ser estudada
portante, mas é exatamente neste contexto que no campo das análises “cientificamente”
dos fenômenos humanos, a filosofia e a teologia cederiam terreno a ou- e que este estudo
tras especializações com pretensões científicas. poderia contribuir
para a melhoria
Tal como nas ciências da “natureza”, acreditava-se que a humani- da sociedade.
Consolidavam-
dade também poderia ser estudada “cientificamente” e que este estu-
se o direito, a
do poderia contribuir para a melhoria da sociedade. Consolidavam-se economia (chamada
o direito, a economia (chamada “economia política” à época), a história “economia política”
e surgia também a sociologia. E no terreno desta última é que iremos à época), a história
observar intensos debates em torno do estatuto e validade das “ciências e surgia também a
humanas” perante o mundo acadêmico e a sociedade. sociologia.

2.1 O POSITIVISMO A hipótese central


desta filosofia era
Como nos explica Löwy (2006), uma das vertentes mais emblemáticas que os fenômenos
destes esforços foi o chamado positivismo. A hipótese central desta filosofia humanos, as
era que os fenômenos humanos, as sociedades humanas, eram reguladas sociedades
humanas, eram
por leis naturais, ou seja, tal como a lei da gravidade, as leis que regem as
reguladas por
sociedades humanas seriam leis invariáveis, independentes das vontades leis naturais, ou
e ações dos indivíduos. seja, tal como a
lei da gravidade,
Assim, da mesma forma que os cientistas da natureza empregam di- as leis que regem
versos procedimentos objetivos, os procedimentos nas ciências sociais de- as sociedades
humanas seriam
veriam ser os mesmos, já que as leis da natureza também seriam aplicadas
leis invariáveis,
da mesma forma à humanidade. Desta forma se teria um conhecimento independentes das
neutro, independente de ideologias políticas ou juízos de valor. Seria um vontades e ações
conhecimento objetivo e o cientista social seria igual a um cientista químico. dos indivíduos.

Na França, este caminho fora percorrido pelo enciclopedista Condorcet, em fins


do século XVIII. Este filósofo via a história e a racionalidade humana como um pro-
gresso contínuo para a melhoria do futuro. Para ele, o conhecimento à época estava
apenas a serviço apenas das “classes poderosas” do antigo regime, movida por pai-
xões e interesses próprios e representados pelos dogmas religiosos (NASCIMENTO;
NASCIMENTO, 1998). Os revolucionários trariam a verdade, objetiva e clara, ao con-
trário das classes poderosas, movidas por sua cobiça ao poder.

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Por isso, ele foi um dos primeiros defensores do ensino laico universal e promul-
gava que o conhecimento científico deveria ser livre de interesses e paixões. Contudo,
registrava que o conhecimento científico sobre a sociedade andava a passos difíceis e
lentos porque “os objetos submetidos ao conhecimento social tocavam nos interesses
religiosos e políticos” (Condorcet apud. LÖWY, p. 40). Apesar do otimismo de Concorcet
com o progresso da humanidade e da possibilidade da consolidação de uma ciência
social objetiva e neutra, o maior empecilho para esta realização seria exatamente que
este é um conhecimento “social”, portanto, permeado por interesses conflitantes.

Já na primeira metade do século XIX, o pensador contemporâneo da Revolução


Francesa, o Conde de Saint-Simon, lançou as bases para o que denominou de fi-
siologia social, ou seja, o estudo da sociedade segundo o modelo biológico. Em sua
obra, buscou demonstrar como certas classes seriam parasitárias no “organismo so-
cial”, tal como a aristocracia e o clero. Acreditava que o “industriais” (ou seja, qualquer
pessoa que concorre para o enriquecimento material do país) orientariam o desenvol-
vimento da sociedade industrial para o bem de todos, sob o prisma da hierarquia do
mérito e do trabalho, e não da hierarquia da nobreza, do militarismo ou dos políticos.

Apontado como precursor do socialismo e denominado socialista


utópico por Marx e Engels em “O manifesto comunista”, Saint-Simon
inicialmente não via oposição de interesses entre trabalhadores e pa-
trões, mas, sim, entre estes e as “vespas” (como denominou as classes
ociosas em oposição às “abelhas”, as classes laboriosas). Em suas últi-
mas obras, contudo, percebeu que havia diferenças fundamentais entre
o proletariado e a classe dos industriais e que a miséria dos primeiros
era um problema para o desenvolvimento da sociedade industrial. Sua
obra não produziu impacto político significativo na sociedade de sua
época (com exceção de pequenos grupos após sua morte). Em boa
medida isso seu deu pela dubiedade de suas posições e por seu siste-
ma proposto de sociedade industrial ser pouco democrático e calcado
rigidamente na instalação de uma elite de industriais, sábios, banquei-
ros, recrutados por seu talento. Sua obra ficou marcada pelo otimismo
iluminista acerca do progresso histórico e pela tentativa de empregar a
ciência natural para observação da sociedade e de reformar sua organi-
zação (PETITFILS, 1977).

Posteriormente, Auguste Comte, seguindo os passos de seu mentor intelectual,


Saint-Simon (porém, do qual se afastaria ainda jovem), é quem iria consagrar na

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A Sociologia e as Abordagens Teóricas
Capítulo 1 Fundamentais: Durkheim, Marx E Weber

intelectualidade da época a chamada “ciência positiva” e a ciência que denominara de


“física social”, mais tarde chamada de sociologia. Através de seu “Curso de filosofia
positiva”, descreveu a história da França como o desenvolvimento de três Comte estabelece
estágios: a) o teológico, ou seja, a sociedade regida pelas regras religiosas, as bases
que teria durado até o advento do Iluminismo); b) metafísico, da sociedade fundamentais do
pós-revolução, regida pela ideia de razão, liberdade e igualdade; c) e, por reconhecimento
fim, o estado positivo ou científico, na qual a ordem social e econômica era acadêmico da
sociologia: a
determinada pela ciência.
necessidade de as
hipóteses exigirem
Para atingir o estado científico era preciso se ter domínio do estudo verificação pela
da sociedade, para dar previsibilidade à ação. Para ele, a física social era observação e
a mais importante das ciências, o ápice do desenvolvimento que partia da coleta de fontes
matemática à biologia. a qual dividiu em duas esferas: o estudo da “estática e dados. Perceba
como este é um dos
social” (ou seja, das forças que atuam para ordem social) e o estudo da
pressupostos da
“dinâmica social” (ou seja, dos elementos que determinam as mudanças sociologia até hoje!
sociais). Para ele, o estudo das sociedades era científico e orientado, como
as demais ciências, pelo princípio da verificação das teorias pelas suas evidências.

Comte estabelece as bases fundamentais do reconhecimento acadêmico da so-


ciologia: a necessidade de as hipóteses exigirem verificação pela observação e coleta
de fontes e dados. Perceba como este é um dos pressupostos da sociologia até hoje!

Apesar da admiração que sua obra “Curso de filosofia positiva” cau-


sou em vários círculos intelectuais da época, como o liberal inglês John
Stuart Mill, suas produções posteriores e problemas pessoais acabaram
impactando sua reputação. Sua proposta de colocar em prática os pre-
ceitos da filosofia positiva na política terminaram em uma exposição in-
flexível de como ela deveria ser, tornando extremamente autoritária sua
proposta de república, ficando conhecido como um representante de
conservadorismo político do século XIX. Além disso, distanciando-se dos
pressupostos objetivos da ciência, propõe uma nova religião, fundada no
culto à natureza. Longe do radicalismo de Condorcet contra a antiga or-
dem social, o positivismo de Comte apresentava-se como sustentáculo da
manutenção das hierarquias sociais. No Brasil a obra de Auguste Comte
influenciou o movimento republicano conservador, principalmente dos ele-
mentos do exército, em fins do século XIX e início do XX, difundidos pelo
militar Benjamin Constant.

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2.2 O FUNCIONALISMO DE DURKHEIM


Frente a estas questões e neste contexto é que podemos entender boa parte
da produção teórica de Émile Durkheim (1858-1917), sucessor de Auguste Comte
na consolidação da sociologia como área do conhecimento acadêmico. Formado em
filosofia em 1882, iria se interessar pela ciência social pela influência do positivismo de
Comte e do darwinismo social de Spencer. Conforme destaca Giddens (2005, p. 109):

As influências que mais contribuíram para a formação do


pensamento de maturidade de Durkheim derivam todas elas de
tradições intelectuais nitidamente francesas. As interpretações
até certo ponto convergentes que Saint-Simon e Comte
apresentaram do declínio do feudalismo e da constituição
da sociedade moderna são as principais fontes da totalidade
de sua obra. O principal tema da obra de Durkheim consistiu
na tentativa de reconciliação da concepção de Comte do
estágio “positivo” da sociedade com a exposição parcialmente
divergente das características do “industrialismo” feita do por
Saint-Simon.

Assim, além do positivismo francês outras influências de Durkheim foram as


concepções organicistas de sociedade, em que a sociedade é comparada
Além do positivismo a um organismo vivo, que deve ser analisada em sua unidade integrada
francês outras a partir das várias funções orgânicas interdependentes, como nos órgãos
influências de
dos animais e como nas células, unidade básica dos corpos vivos. A
Durkheim foram
as concepções Biologia no século XIX apresentara diversas novidades científicas, como
organicistas de fora inicialmente a teoria da evolução das espécies de Darwin, como a
sociedade, em identificação das propriedades das células pela análise microscópica e por
que a sociedade é isso sua influência sobre pensadores sociais na era menosprezável.
comparada a um
organismo vivo
É possível perceber como esta ideia de analogia fisiológica está
presente fortemente no debate público atual, visto a recorrência com que
cidadãos comuns, ou jornalistas, políticos ou intelectuais de diversas áreas referem-
se a sociedade através de expressões como “tecido social”, ou designam que
“a sociedade está doente”, que é preciso “extirpar este câncer da sociedade” (em
referência a algo/alguém a que se opõem).

Durkheim entrou em contato com estes pensadores, principalmente o represen-


tante do darwinismo social Herbert Spencer e do alemão Albert Schäffle, que utilizou
a metáfora do corpo animal para pensar as várias partes que compõe uma socieda-
de. E esta vai ser uma das principais influências para Durkheim pensar a sociedade
humana como um corpo, com partes e necessidades inter-relacionadas (GIDEENS,
2005). Esta foi a base para a constituição da chamada teoria funcionalista, ou seja,
pois aponta o estudo da sociologia para as instituições sociais coletivas, a partir das
funções inter-relacionadas que estas cumprem no corpo social.

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Capítulo 1 Fundamentais: Durkheim, Marx E Weber

Contudo, se Durkheim concorda com a analogia orgânica, explica que há uma


grande diferença entre a vida de um organismo e da sociedade. Para ele os animais
são governados por “leis mecânicas” enquanto a sociedade devia a sua coesão “não
a uma relação material, mas antes aos laços das ideias” (DURKHEIM, 1967 apud.
GIDDENS, 2005, p. 111).

Desta forma, Durkheim buscou entender as diversas sociedades a partir do que


nela gera a coesão e a integração social. Para ele, as sociedades não eram apenas
a união de vários indivíduos guiados pelo utilitarismo individualista, ou seja, guiados
pela maximização do ganho próprio (perspectiva liberal). No utilitarismo, todas formas
de interesse coletivos seriam resultado da conjugação dos interesses pessoais dos
indivíduos.

Para Durkheim esta perspectiva menospreza um aspecto essencial da vida


humana coletiva que é a moral e suas regras, que são essencialmente coletivas.
Estudando a história do desenvolvimento das sociedades humanas, para Durkheim
não havia existido situações em que as relações econômicas não foram subordinadas
a regras e formas legais baseadas em uma moral coletiva (GIDDENS, 2005, p. 113).

Assim, Durkheim conclui que as sociedades não são simples soma dos indivídu-
os. As instituições que formam o conjunto de regras morais que delimitam a liberdade
individual são os mecanismos que garantem o ordenamento social, exercendo força
coercitiva sobre as ações dos indivíduos. Para ele, a análise sociológica era definida
como a ciência das “instituições, da sua gênese e do seu funcionamento”, Durkheim
mas não instituições somente do ponto de vista comum, de uma empresa, estabelece como
o parlamento ou a presidência, mas, sim, “todas as crenças e todos os mo- objetivo da
dos de conduta instituídos pela coletividade” (DURKHEIM, 2007, p. 30). sociologia o estudo
dos chamados “fatos
sociais”.
Metodologicamente, Durkheim estabelece como objetivo da
sociologia o estudo dos chamados “fatos sociais”. Conforme Durkheim
expõe em sua obra “Regras do método sociológico”, (2007, p. 13):

É fato social toda maneira de fazer, fixada ou não, suscetível de


exercer sobre o indivíduo uma coerção exterior; ou ainda, toda
maneira de fazer que é geral na extensão de uma sociedade
dada e, ao mesmo tempo, possui uma existência própria,
independente de suas manifestações individuais

As instituições que geram coerção, não apenas física, mas moral – que vão da
família, às regras econômicas, às leis e instituições do Estado – devem ser estuda-
das no sentido que provocam uma relação de mutualidade e dependência entre si e
que exercem coerção sobre os indivíduos, ordenando a totalidade da vida social a
partir desta relação que é coletiva e independente das vontades individuais.

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Temas e Teorias da Sociologia

Para exemplificar esta questão em sala de aula, basta questionar seus alunos
as razões pelas quais eles devem obedecer a seus pais ou porque necessitam vir
a escola, ou o que entendem como certo ou errado. Verá como as suas respostas
podem ser explicadas pela presença das coerções, físicas e morais, presentes
nestas instituições sociais, como a família ou o Estado.

2.3 SOLIDARIEDADE SOCIAL E


ANOMIA SOCIAL
Tomemos como exemplo a pesquisa de doutorado de Durkheim, “Da divi-
são do trabalho social”, de 1893. Para ele, a sociedade capitalista, diferente das
sociedades anteriores, estaria marcada por uma cada vez maior divisão social
do trabalho onde as antigas instituições e tradições sociais, da família à religião,
não tinham mais o mesmo valor e atuação. Mesmo compreendendo os aspec-
tos disruptivos da sociedade industrial, ele vai identificar a consolidação de novas
instituições e de novas formas de moral coletiva, que podem explicar como uma
sociedade tão complexa e com uma divisão de formas de trabalho tão intensa
consegue manter a sua integridade. Para tanto, Durkheim vai desenvolver o con-
ceito de solidariedade social e suas subcategorizações: solidariedade mecânica
e solidariedade orgânica.

DURKHEIM, Émile. Da divisão do trabalho social. 2ª ed. São


Paulo: Martins Fontes, 1999.

A solidariedade social, para Durkheim, é o elemento necessário para


A solidariedade
social, para a manutenção da estrutura de qualquer sociedade: é o que mantém a coe-
Durkheim, é o são social. Dá-se a partir de dois tipos de consciência: a individual (a ideia
elemento necessário que temos de nós mesmos) e a coletiva (a consciência de regras comum a
para a manutenção todos do grupo, a moral). Enquanto a consciência individual é a expressão
da estrutura de de como nos vemos no todo social, a consciência coletiva seria marca-
qualquer sociedade:
da por um “conjunto das crenças e dos sentimentos comuns à média dos
é o que mantém a
coesão social membros de uma mesma sociedade [que] forma um sistema determinado
que tem vida própria” (DURKHEIM, 1999, p. 50).

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A Sociologia e as Abordagens Teóricas
Capítulo 1 Fundamentais: Durkheim, Marx E Weber

QUADRO 1 - O MODELO FUNCIONALISTA DE DURKHEIM

FONTE: Adaptado de THORPE (2015, p. 35)

O conjunto das duas formas consciência é o que garante o “ser social”, sendo
a segunda a mais importante. Quanto mais extensa for a consciência coletiva, maior
será a coesão social (o que, todavia, não deve ser interpretado como mera uniformi-
dade social). Para Durkheim, “esse apego a algo que supera o indivíduo, essa su-
bordinação dos interesses particulares ao interesse geral, é a própria fonte de toda
atividade moral” (DURKHEIM, 1999, p. 21).

Em uma sociedade, como a capitalista, com crescente divisão social


do trabalho, a consciência comum passa a ocupar uma parcela menor da Com crescente
consciência social total, permitindo o desenvolvimento da personalidade, ou divisão social
do trabalho, a
seja, da consciência individual. Quanto maior e vasto o meio social, maior
consciência comum
vai ser a divergência privada. Isso contudo, não significa uma diminuição da passa a ocupar uma
coesão social. Para Durkheim, é possível existir solidariedade social na di- parcela menor da
ferenciação e desigualdade social. A sociedade capitalista é um exemplo de consciência social
como uma maior divisão social do trabalho não destrói, pelo contrário, re- total, permitindo o
força a mútua dependência e com isto, a solidariedade social. Para explicar desenvolvimento da
personalidade
o novo tipo de solidariedade presente no capitalismo, Durkheim parte das
categorias de solidariedade mecânica (tradicional) e solidariedade orgânica
(moderna).

A solidariedade mecânica (“ou por similitudes”) serve para explicar o tipo


de solidariedade presente em sociedades com pouca diferenciação social e pouca
divisão do trabalho (sociedades antigas). São sociedade consideradas simples, com
pouca organização institucional. O indivíduo é “coisa” nessas sociedades. Ela é “me-

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Temas e Teorias da Sociologia

cânica” pois une os indivíduos diretamente à sociedade, sem nenhum intermediário,


através de um corpo quase que único de crenças e sentimentos comuns. Sua consci-
ência individual possui pouca diferenciação.

Podemos tomar como exemplo deste tipo de solidariedade as sociedade tribais,


tais como as sociedades indígenas existentes no Brasil. Nestas sociedades onde a
divisão do trabalho é simples (baseada na divisão sexual de tarefas), as regras são
baseadas na tradição e no respeito aos mais velho (e não em códigos escritos) e
as pessoas sentem-se muito mais próximas e parecidas umas das outras, comparti-
lhando valores e crenças. As famílias são extensas e hierarquizadas pelos membros
mais velhos e não há quebras de valores entre as gerações. Boa parte das pessoas
compartilham um estilo de vida semelhante, com pouca desigualdade e diferenciação
social dentro da tribo.

Já a solidariedade orgânica (“ou devida à divisão do trabalho”) é característica


de sociedades complexas, com maior divisão do trabalho, como a capitalista. Ela é
“orgânica” pois assegura coesão pela mútua dependência estabelecida entre as par-
tes desiguais. Esta seria a forma de consciência moderna, capitalista, marcada pela
individualidade profissional e a interdependência social com os demais membros,
cada um cumprindo sua finalidade no corpo social. Assim, também a personalidade
dos indivíduos seria fruto da divisão do trabalho. Como explicam Quintaneiro, Barbo-
sa e Oliveira (2002, p. 71):

Onde existe uma divisão do trabalho desenvolvida, a sociedade


não tem como regulamentar todas as funções que engendra
e, portanto, deixa descoberta uma parcela da consciência
individual: a esfera de ação própria de cada um dos membros.
À medida que a comunidade ocupa um lugar menor, abre-
se espaço para o desenvolvimento das dessemelhanças, da
individualidade, da personalidade autônoma.

Tomando por exemplo nossa sociedade atual, marcadas por uma intensa divisão
profissional e socioeconômica, as pessoas sentem-se indivíduos muito distintos uns
dos outros, cada vez mais particularizados em valores, crenças, hábitos e riquezas (por
exemplo, a diversidade de estilos musicais, a diversidade da “moda”, de religiões, filoso-
fias, de acesso ao conhecimento, renda e poder). As famílias são nucleares e marcadas
pela não permanência. As gerações mais novas tendem a questionar as regras morais
das gerações anteriores e a contravenção social é estabelecida pela legitimidade da lei
impessoal do Estado.

Isto, porém, não exclui uma análise política de Durkheim em torno da sociedade
capitalista de sua época e da necessidade de se reformar e criar instituições que man-
tivessem formas de solidariedade coletivas. Para Durkheim, a manutenção de associa-
ções profissionais seria extremamente importante para “conter egoísmos individuais,

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A Sociologia e as Abordagens Teóricas
Capítulo 1 Fundamentais: Durkheim, Marx E Weber

de manter no coração dos trabalhadores um sentimento mais vivo de sua solidariedade


comum, de impedir que a lei do mais forte se aplique de maneira tão brutal nas relações
industriais e comerciais” (DURKHEIM, 1999, p. 16).

Durkheim percebia que a destruição das corporações de ofício medie- Durkheim percebia
vais, sem terem substituídas por novas formas, levaram a situação de “esta- que a destruição
das corporações de
do de anomia" nas relações sociais nas sociedades industriais do século XIX.
ofício medievais,
Para ele, seja por falta de articulação nacional (na forma de confederações) e sem terem
de força como “instituição pública”, os sindicatos de trabalhadores ainda não substituídas por
haviam ocupado seu lugar. Os conflitos da sociedade capitalista seriam re- novas formas,
sultado, portanto, do fato que o progresso econômico ainda não havia levado levaram a situação
ao desenvolvimento de instituições dotadas de uma autoridade capacitada a de “estado de
anomia” nas
regulamentar os interesses e estabelecer limites aos indivíduos egoístas.
relações sociais
nas sociedades
Metodologicamente, Durkheim defendia que cientista social deveria se industriais do século
portar da mesma forma que os cientistas naturais. Deveriam analisar os fatos XIX
sociais objetivamente, delimitá-los e comprovar afirmações a partir de evidên-
cias. A observação dos fatos sociais deve ser feita sem preconceitos de valor. Isso não
impedia, porém, que o sociólogo se observa, tal como na biologia, o estudo das situa-
ções “normalidade” ou de “anomia social” (ou “patologia social”).

Estas situações podem ser sinteticamente descritas como situações sociais com
“regulamentação” (normais) ou situações sociais em que impera a “ausência de re-
gulamentações”, ou seja, a anomia. O egoísmo para Durkheim, seria uma anomia na
medida em que significa a ação individual sem levar em consideração os efeitos so-
bre o todo, na medida em que não possuem freios a isso. Um assaltante que comete
um crime e é punido conforme as regras legais e moralmente aceitas, estaria dentro
da normalidade, já que seu egoísmo foi limitado pelo Estado. Agora, ações criminosas
sem freios e gerando prejuízos coletivos gerariam uma situação de patologia social.

Para ele, a sociologia deveria servir de base para a melhoria da sociedade, a


partir da compreensão de suas situações e propostas de reformas. Isso não significa
que Durkheim estaria defendendo uma ordem autocrática de cidadãos definidos to-
dos igualmente por uma norma coletiva, como as sociedades tradicionais, mas sim
que a busca pelo interesse pessoal nas sociedades industriais deveria ser regula-
mentada por instituições sociais (principalmente as de tipo profissional).

Contudo, Durkheim foi criticado, notadamente pela tradição marxista, por não
perceber que este modelo também era dúbio e poderia ser empregado para justificar
uma ordem social injusta. Marx, à época, já havia criticado a obra de Comte por seu
conservadorismo em uma nota de rodapé em “O Capital”: “Auguste Comte e sua es-
cola teriam podido demonstrar, portanto, da mesma forma, a eterna necessidade dos

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Temas e Teorias da Sociologia

senhores feudais, como eles o fizeram para os senhores capitalista” (MARX, 1997, p.
449). A ideia de estudar o que mantém as sociedades coesas em “normalidade”, fren-
te a situação não esperadas de “anormalidade”, poderia significar que o pesquisador
agiria de forma compromissada a manter a ordem social vigente (ou seja, a ordem
capitalista).

Como destaca Löwy (2006, p. 47), a ideia que “o conflito entre a necessidade
de objetividade científica e a existência de diversos pontos de vista contraditórios”
pudesse ser resolvido por simples boa vontade, esforço, serenidade, e sangue-frio,
com “empenho na imparcialidade” poderia ser lida como a história do Barão de Mün-
chhausen, personagem de histórias infantis da Alemanha. Ao se ver afundando num
pantanal com seu cavalo, vendo seu corpo coberto de lama, ele teria tido a brilhante
ideia de se puxar pelos cabelos com seu cavalo, e com um salto, sair do pantanal, ou
seja, a proposta dos positivistas de analisar objetivamente sem preconceitos e ideolo-
gias seria tal como puxar-se pelos cabelos destes mesmos preconceitos e ideologias.

LOWY, Michael. As aventuras de Karl Marx contra o Barão


de Müchhausen: marxismo e positivismo na sociologia do
conhecimento. 5ª ed. São Paulo: Busca Vida, 1987.

Essa característica, de defender a “verdade” contra a “mentira, o engano, o mas-


caramento” é uma constante em movimentos de mudança política e social. É lógico
que Durkheim, como os precursores positivistas, buscavam legitimar o seu conhe-
cimento em bases científicas que compartilhassem da legitimidade que as ciências
da natureza possuíam, em oposição ao conhecimento social difundido pelas antigas
elites feudais, baseada na teologia cristã, que era particularmente forte na França.
No entanto, esta pretensão poderia esconder juízos de valor através do mando da
neutralidade científica pode ser uma forma de mascarar situações de dominação e
exploração, o que Marx chamou de “ideologia” (como veremos mais adiante nesta
unidade).

Por outro lado, Durkheim fora criticado por outros sociólogos, exatamente por
defender que a sociologia deveria tratar apenas de fenômenos coletivos e de forma
objetiva, menosprezando os fatos individuais (ou apenas os vendo como resultado
das ações da estrutura social). Além disso, como veremos, para Max Weber a dife-
rença fundamental das ciências humanas para os naturais não era tão simples, já que
o objeto da ciência humana é a própria humanidade do qual o cientista se faz parte.
Perceba como esta é uma tensão ainda debatida pela sociologia nos dias de hoje.

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A Sociologia e as Abordagens Teóricas
Capítulo 1 Fundamentais: Durkheim, Marx E Weber

De qualquer modo, Durkheim apesar de ser menos referenciado que Marx ou


Weber nas análises sociológicas atuais, foi reconhecido como clássico da sociologia
exatamente porque foi um dos mais destacados pensadores a tentar definir o objeto
de estudo e a metodologia de pesquisa da sociologia. Durkheim não deu somente
prosseguimento à tradição positivista - buscando legitimar a sociologia ao lado das
ciências naturais - como também ampliou o conteúdo destas perspectivas estabe-
lecendo as bases do que seria denominada de teoria funcionalista, que teve re-
percussão em autores como Marcel Maus (1872-1916) e o norte-americano Talcott
Parsons (1902-1979).

1 Disserte sobre as principais influências teóricas de Émile Durkheim,


explicando como ficou conhecida a sua teoria sociológica e por quê.

R.:______________________________________________________
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2 Quais os principais conceitos desenvolvidos por Durkheim?

R.:______________________________________________________
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Temas e Teorias da Sociologia

3 Descreva de que forma a adoção de uma perspectiva positivista de


ciência foi criticada por outras vertentes de teoria social.

R.:____________________________________________________
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3 A CONTRIBUIÇÃO DE KARL
MARX PARA A SOCIOLOGIA: O
MATERIALISMO-HISTÓRICO E A
CRÍTICA AO CAPITALISMO
A sociedade capitalista da indústria, que triunfava sobre o Antigo Regime (as mo-
narquias absolutistas, o mercantilismo e as sociedades estamentais), também trazia
junto de si sintomas de crise, desigualdades e contradições sociais e econômicas ter-
ríveis. A pobreza do operário fabril e a crescente poluição das cidades contrastavam
crescentemente com a crescente riqueza e opulência da burguesia e seus espaços
de sociabilidade. O livre mercado encaminhava a economia para sucessivas crises, e
com elas, a miséria humana. A desestruturação do feudalismo e a entrada do capita-
lismo no mundo rural levou a grandes ondas migratórias e períodos de fome em pleno
século XIX (como a grande fome irlandesa de 1848).

O Iluminismo havia dado bases para a reflexão crítica da sociedade do antigo re-
gime, mas boa parte dos seus pensadores não viveram as consequências e limites
sociais das revoluções que preconizaram. Em meados do século XIX diversos pensa-
dores se debruçavam em entender os mecanismos do crescimento da desigualdade
social e do caráter “anárquico” da economia capitalista, que em diversos momentos
interrompia o progresso e colocava a sociedade em situações críticas.

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A Sociologia e as Abordagens Teóricas
Capítulo 1 Fundamentais: Durkheim, Marx E Weber

Muitos perguntavam (e ainda se perguntam): se agora os humanos


Muitos perguntavam
triunfavam sobre a natureza, se o crescimento da produtividade do traba- (e ainda se
lho social era uma realidade, por que a desigualdade e a miséria pareciam perguntam): se
crescer exponencialmente em relação a este desenvolvimento? agora os humanos
triunfavam sobre
Esta era não era uma questão apenas para intelectuais da época. a natureza, se o
crescimento da
Diretamente na base do mundo do trabalho, operários (trabalhando sem
produtividade do
segurança de futuro) e antigos artesãos (ameaçados em suas formas de trabalho social era
trabalho) se organizavam em associações econômicas e políticas, fossem uma realidade, por
cooperativas, associações mutualistas ou sindicatos e questionavam a que a desigualdade
nova ordem social do capitalismo. e a miséria
pareciam crescer
exponencialmente
Ideias de uma sociedade firmada sobre a igualdade social e não ape-
em relação a este
nas sob a igualdade jurídica começavam a surgir, tendo a conspiração de desenvolvimento?
Graco Babeuf em 1896 na França sido considerado o primeiro movimento
socialista moderno, já que propunha uma comunidade com repartição igualitária dos
bens e do trabalho (HOBSBAWM, 1997).

Se o liberalismo era a pedra firme do ideário burguês, defensor da


Se o liberalismo
igualdade jurídica e da liberdade de mercado, o socialismo através da de-
era a pedra firme
fesa da igualdade social se tornaria a pedra angular dos movimentos ope- do ideário burguês,
rários. defensor da
igualdade jurídica
Por outro lado, das sínteses entre a antiga e nova classes dominantes, e da liberdade
surgia diversas tendências do conservadorismo social, que unia valores do de mercado, o
socialismo através
antigo regime (como família, religião e hierarquia social) ao liberalismo eco-
da defesa da
nômico, como representou o positivismo de Comte. Perceba que estas três igualdade social
tendências políticas ainda são ainda presentes, com diversas variações, se tornaria a
nas sociedades atuais. pedra angular
dos movimentos
Neste contexto, Karl Marx (1818-1883), com a colaboração de Frie- operários.
drich Engels (1920-1895), foi um dos pensadores do século XIX que mais
se debruçou em entender o capitalismo e sua sociedade a partir do materialismo-
-histórico e também se tornou um dos principais representantes teóricos e políticos
do socialismo no século XIX a partir da defes a do “socialismo científico”.

Sua obra, apesar de anterior a Durkheim e Max Weber, ficou inicialmente conheci-
da por sua influência no movimento político dos operários e intelectuais radicais, tendo
atingido maior influência acadêmica principalmente ao longo do século XX, na pesquisa
histórica, econômica e sociológica. Ao longo do século XX 1/3 da população mundial
viveu sob Estados cuja inspiração provinha das análises teóricas de Marx. Desta forma,
apesar da redução de sua influência nas últimas décadas, a obra de Marx continua se
apresentando como fonte de profundos debates políticos ou acadêmicos.

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Temas e Teorias da Sociologia

“Crise aumenta procura por livros de Karl Marx na Alemanha. A atu-


al crise financeira global parece estar aumentando a busca por obras
de um dos maios conhecidos e ferozes críticos do capitalismo: o pai do
comunismo, Karl Marx” (BBC Brasil, 20 out. 2008). Disponível em: <ht-
tps://bbc.in/2koTDKY>. Acesso em: 8 ago. 2019.

Isso possui uma razão na forma como Marx via a relação de ciência e política.
Diferente dos outros dois pensadores clássicos, Marx nunca fez questão de tentar
separar a pesquisa científica da intervenção política. Pelo contrário, a união entre o
conhecimento teórico da sociedade capitalista e a avaliação da situação das lutas de
classe de sua época guiavam sua intervenção política, voltada à emancipação social,
cultura e política do proletariado, em prol de uma sociedade sem classes.

Além disso, Marx sempre apontou seus antagonistas intelectuais como produ-
tores de conhecimento para determinadas classes sociais (não necessariamente a
sua). Desta forma, era comum referir-se a “economia política burguesa” quando es-
crevendo sobre Adam Smith ou David Ricardo e acusava de ideológicos os que ten-
tavam esconder-se por de trás de uma suposta neutralidade política, como vimos em
relação aos positivistas como Comte.

3.1 O MATERIALISMO-HISTÓRICO E
A CRÍTICA AO CAPITALISMO
Karl Marx nasceu na Alemanha, se exilou na França e posteriormente viveu boa
parte de sua vida, também como exilado político, na Inglaterra. Sua base de pensa-
mento, que foi denominado de materialismo-histórico, possui bases teóricas na crítica
das tradições intelectuais mais fortes destes países em sua época. A obra teórica de
Marx não pode ser compreendida separadamente de sua trajetória como homem in-
telectual e político. Sua obra sofre influência de algumas fontes, ao qual são identifica-
das quase sempre por sua crítica a elas: os “jovens hegelianos” na Alemanha; o mo-
vimento operário (cujo contato teve com o socialismo francês e o movimento cartista
britânico); a economia política inglesa (Smith e David Ricardo); e, no materialismo da
época, influente pelo Iluminismo e Positivismo Francês e pela tradição empirista britâ-
nica de Francis Bacon (LÖWY, 2002).

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A Sociologia e as Abordagens Teóricas
Capítulo 1 Fundamentais: Durkheim, Marx E Weber

Na Alemanha, o jovem Marx tentou se tornar professor universitário a partir da


defesa de sua tese de doutorado em Filosofia (acerca da diferença entre a teoria da
natureza em Epicuro e Demócrito). Nesta época, Marx fora especialmente influencia-
do pela filosofia de Georg Hegel, um representante do idealismo alemão do século
XVIII que descrevia o movimento das ideias na história de forma a compreender o
“espírito absoluto”. Porém, sua proximidade ao prof. Bruno Bauer, representante dos
chamados “jovens hegelianos” o impediu de se tornar professor, já que Bruno havia
sido demitido por acusação de ateísmo (MARX; ENGELS, 2007, p. 600). Perceba
como as mudanças do Iluminismo, como a laicidade do Estado e a liberdade de ex-
pressão, ainda não se faziam presentes em certas regiões da Europa, como a Alemanha.

Georg Hegel (1770-1831) foi considerado o último filósofo clássico


alemão, tendo sido descrito como extremamente complexo e de difícil
compreensão. Divergia, à época, do principal filosofo alemão, Imma-
nuel Kant. Acerca do pensamento de Hegel: “Sua filosofia parte assim
da necessidade de examinar, em primeiro lugar, as etapas de formação
da consciência, tanto em seu sentido subjetivo, no indivíduo, quanto em
seu sentido histórico ou cultural, representado pelo desenvolvimento do
espírito (geist). [...]. A filosofia de Hegel é dialética, porém esta não deve
ser vista como um método, mas como uma concepção do real mesmo,
a contradição constituindo a essência das próprias coisas. [...]. O seu
sistema representaria assim o fim da filosofia, a superação da oposição
entre os diferentes sistemas e a síntese das verdades que todos con-
têm, resultado de sua análise das etapas do desenvolvimento do espíri-
to [absoluto]” (JAPIASSÚ; MARCONDES, 1996, p. 123).

Trabalhando em um periódico alemão, a Gazeta Renana, Marx conhece Friedri-


ch Engels que estava visitando o jornal. Com seu jornal fechado pelo governo prus-
siano, Marx se dedica a escrever nos “Anais franco-alemães”, publicação de oposição
à censura ao antigo jornal. Por essa razão, o governo decreta sua prisão o que o faz
ter que se exilar na França, onde entra em contato com o movimento comunista local,
através da chamada “Liga dos Justos”. Por conta de um artigo de apoio a greve dos
trabalhadores da Silésia e por seu envolvimento político, Marx é também é expulso da
França vindo a residir brevemente em Bruxelas e posteriormente em Londres, onde
irá passar boa parte de sua vida adulta.

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Temas e Teorias da Sociologia

A liberdade de expressão política e as instituições democráticas


modernas ainda não haviam amadurecido e a trajetória errante e desa-
fiadora de Marx tanto na Alemanha como na França evidenciavam esta
realidade. Mas ainda hoje em dia, há diversos países que se mantém fe-
chados à livre circulação de ideias e pessoas. Alguns destes países são
exatamente países cuja proposta política se dizem inspiradas na obra de
Marx. Tendo em vista a vida de Marx, expulso e exilado, tendo sua obra
confiscada em diversos lugares, será que ele acharia o que da realidade
destes países? Muitos acusam a obra de Marx como responsáveis por
este autoritarismo, pois ele não defendia a democracia como meio de o
proletariado chegar ao poder, mas sim de uma revolução sangrenta, onde
a “ditadura do proletariado” iria suprimir o poder da burguesia, podendo
assim a humanidade caminhar ao comunismo (sociedade sem classes).
Marx não conviveu com regimes democráticos com sufrágio universal
para poder defendê-los alguns dirão. Por outro lado, Engels, algum tempo
após a morte de Marx, verificando o sucesso eleitoral de partidos operá-
rios como o Partido Social-Democrata alemão, prenunciava que a revo-
lução poderia passar pelas urnas. Por outro lado, muitos defensores dos
regimes socialistas dizem que a necessidade de uma revolução violenta
é necessária para a destituição das classes opressoras e a defesa das
conquistas da revolução é que acabam levando ao fechamento destes re-
gimes. Outros já consideram que as revoluções não ocorreram onde de-
veriam ocorrer inicialmente para sustentar as outras. Marx defendia que
as revoluções deveriam ocorrer no centro do capitalismo desenvolvido, já
que revoluções na periferia apenas gerariam “socialização da pobreza”,
visto que a riqueza estava concentrada em apenas alguns países (como
Inglaterra, França, Alemanha e Estados Unidos). E você, o que acha des-
ta polêmica?

Marx e Engels, durante este percurso de exílio, haviam escrito os manuscri-


tos d’A Ideologia Alemã (apenas publicada em 1933, na URSS), onde rejeitava o
idealismo de Hegel e dos chamados jovens hegelianos. Estes últimos, buscando
dar sentido político e de crítica histórica à filosofia de Hegel, consideravam que a
religião era responsável pela falta de liberdade humana, já que ela seria respon-
sável por obscurecer a consciência dos homens (conforme defendido por Bruno
Bauer e Feuerbach).

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A Sociologia e as Abordagens Teóricas
Capítulo 1 Fundamentais: Durkheim, Marx E Weber

Marx (notadamente pela escrita de “O Capital”, sua obra mais conhecida)


acabou sendo o autor classicamente identificado como “pai” do materialismo-his-
tórico, e por isso denominado “marxismo”. Porém, é preciso destacar que boa
parte da obra de Marx foi escrita em parceria direta ou indireta com Engels. Desta
forma, o “marxismo” deve ser entendido como tendência teórica da sociologia que
tem filiação à obra destes dois pensadores.

Para Marx e Engels (2007), estes pensadores nada fizeram em fazer avançar a
“libertação do homem” pelo desenvolvimento da “autoconsciência”. Antes era preciso
compreender que a escravidão ou a servidão dos homens não seria superada com a
simples crítica de ideias, mas sim com os avanços da modernidade industrial, como
a máquina a vapor ou a melhoria das técnicas agrícolas, quando a humanidade tiver
alimento, vestimenta etc., em quantidade e qualidade para todos. Em outras palavras,
entendiam que apenas se poderia provocar mudança de ideias com a transformação
da realidade social e econômica, das condições materiais da existência, ou seja, lan-
çavam as bases do que seria denominado como materialismo-histórico, o método
de pesquisa e análise sociológica preconizado por Marx e Engels.

Materialismo-histórico: “[...] concepção dos roteiros da História


universal que vê a causa final e a causa propulsora decisiva de todos os
acontecimentos históricos importantes no desenvolvimento econômico
da sociedade, nas transformações dos modos de produção e de troca,
na consequente divisão da sociedade em diferentes classes e nas lutas
dessas classes entre si” (ENGELS, 2008, p. 24).

Assim, antes de compreender as ideias como razão do movimento da histó-


ria, era preciso compreender as bases pelas quais estas ideias surgiam e o mun-
do que explicavam. Marx e Engels (2007, p. 32-33) explicam:

[...] devemos começar por constatar o primeiro pressuposto de


toda existência humana e também, portanto, de toda a histó-
ria, a saber, o pressuposto de que os homens têm de estar
em condições de viver para poder “fazer história”. Mas, para
viver, precisa-se, antes de tudo, de comida, bebida, moradia,
vestimenta e algumas coisas mais. O primeiro ato histórico é,
pois, a produção dos meios para a satisfação dessas neces-
sidades, a produção da própria vida material, e este é, sem
dúvida, um ato histórico, uma condição fundamental de toda a
história, que ainda hoje, assim como há milênios, tem de ser
cumprida diariamente, a cada hora, simplesmente para manter
os homens vivos.

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Temas e Teorias da Sociologia

Antes de tudo, era precisa estudar a forma como as sociedades se


Assim,
organizavam para satisfazer suas necessidades e reproduzir a suas vidas
preconizavam,
“a história da materialmente. E que este processo era histórico na medida de que, con-
humanidade deve forme saciavam suas necessidades, através do trabalho, novas surgiam.
ser estudada e Assim, a produção da vida teria um lado natural (próprio da satisfação das
elaborada sempre necessidades) e outro de relação social, ou seja, a forma como os indiví-
em conexão com a duos se organizam em sociedade para suprir estas necessidades. Assim,
história da indústria
preconizavam, “a história da humanidade deve ser estudada e elaborada
e das trocas”
(MARX; ENGELS, sempre em conexão com a história da indústria e das trocas” (MARX; EN-
2007, p. 32). GELS, 2007, p. 32).

Engels, também alemão, estudou brevemente na Universidade de


Berlim como ouvinte, mas foi enviado pelo pai à Inglaterra para assumir
uma tecelagem da família. Lá, entra em contato com a classe operária
inglesa e se assusta com as deploráveis condições de vida e trabalho
da classe operária britânica. Realiza um estudo sobre o tema posterior-
mente publicado sob o título “A situação da classe trabalhadora na In-
glaterra”. Foi amigo e colaborador de Marx durante toda sua vida, tendo
inclusive sido responsável pela edição póstuma dos dois últimos volu-
mes (inacabados) de “O Capital” e por diversas vezes auxiliado financei-
ramente a Marx e sua família.

Desta forma, para Marx e Engels, as bases da compreensão da história e das


sociedades humanas estavam na compreensão das formas como os seres huma-
nos se organizavam para suprir suas necessidades. No tocante à filosofia hegeliana,
Marx trazia a compreensão do movimento dialético das ideias ao plano material, ou
seja, buscou “inverter” a teoria hegeliana; ao estudar a história das sociedades hu-
manas percebeu uma sucessão de contradições em vários momentos e lugares da
história, reveladas na forma de lutas de classes. Para ele, as tentativas dos jovens he-
gelianos de implementar um programa de libertação da humanidade havia se tornado
uma ideologia: tal como os dogmas religiosos que visavam criticar, seu pensamento
também não atingia a compreensão das contradições da sociedade. Ali Marx expõe
um conceito central ao pensamento marxista, que é o de ideologia.

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A Sociologia e as Abordagens Teóricas
Capítulo 1 Fundamentais: Durkheim, Marx E Weber

Ideologia: “Assim, a inversão que Marx passa a chamar de ideologia


subsume tanto os velhos como os jovens hegelianos e consiste em partir
da consciência em vez de partir da realidade material. Marx afirma, pelo
contrário, que os verdadeiros problemas da humanidade não são as ideias
errôneas, mas as contradições sociais reais e que aquelas são consequ-
ências destas. Com efeito, enquanto os homens, por força de seu limitado
modo material de atividade, são incapazes de resolver essas contradições
na prática, tendem a projetá-las nas formas ideológicas da consciência, isto
é, em soluções puramente espirituais ou discursivas que ocultam efetiva-
mente, ou disfarçam, a existência e o caráter dessas contradições. Ocul-
tando-as, a distorção ideológica contribui para sua reprodução e, portanto,
serve aos interesses da classe dominante” (BOTTOMORE, 2001, p. 184)

Posteriormente, também fruto da colaboração política de Marx e Posteriormente,


Engels (2002), é lançado em 1848, “O Manifesto do Partido Comunista”. também fruto da
Neste documento, de caráter político, os autores apresentam a ideia de colaboração política
de Marx e Engels
que a história das sociedades que existiram até hoje é a história
(2002), é lançado
da luta entre diferentes classes sociais. Da luta entre exploradores em 1848, “O
e explorados, luta esta “ora disfarçada, ora aberta” é que Marx busca Manifesto do Partido
explicar as transformações das diversas sociedades, transformações re- Comunista”. Neste
volucionárias que – ou terminam com o declínio comum das classes em documento, de
luta, ou com o estabelecimento de uma nova estrutura socioeconômi- caráter político, os
autores apresentam
ca, bem como, e consequência disto, o surgimento de novas instituições
a ideia de que
culturais, políticas e ideológicas. a história das
sociedades que
Para Marx e Engels, a sociedade capitalista também é produto de um existiram até hoje
longo processo de desenvolvimento revolucionário nos modos de produ- é a história da luta
ção e de troca. Se o sistema escravista de Grécia e Roma, devido a suas entre diferentes
classes sociais.
contradições sociais levaram a formação do medievo feudal, neste, da luta
entre servos e burgueses embrionários contra os senhores feudais, deu-se
a origem ao capitalismo. Desta contradição, da luta contra a opressão feudal, contra
a Igreja (que combatia a usura, o lucro) e contra as corporações de ofício, nasce nas
cidades medievais (burgos) a classe burguesa, que com o crescimento comercial das
grandes navegações foi acumulando o capital necessário para a Revolução Industrial
e a tomada do poder político, tal como na Revolução Inglesa e na Francesa. Cada
nova etapa de desenvolvimento econômico da burguesia teria sido acompanhada por
um progresso político correspondente.

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Temas e Teorias da Sociologia

QUADRO 2 - A SUCESSÃO DA HISTÓRIA EM MARX

FONTE: O autor

A burguesia acabou com as relações feudais, patriarcais e idílica e a substituiu


pelo interesse nu e cru - o pagamento em dinheiro: “no lugar da exploração mascarada
por ilusões política e religiosas colocou a exploração aberta, despudorada, direta e ári-
da”. Ao contrário de uma visão nostálgica, Marx colocava este novo modo de produção
como o mais desenvolvido até então. “Foi a primeira [a burguesia] a mostrar o que pode
realizar a atividade humana. Criou maravilhas que nada têm a ver com as pirâmides do
Egito, os aquedutos romanos às catedrais góticas; realizou expedições muito diversas
das migrações dos povos e das Cruzadas” (MARX, ENGELS, 2002, p. 48).

A necessidade de abraçar novos mercados impeliu a burguesia por todo o globo


terrestre, criando vínculos em toda parte. No lugar da autossuficiência e do isolamento,
desenvolveu-se o intercambio mundial e interdependente. Submeteu o campo a cida-
de. Aglomerou populações urbana e centralizou a propriedade na mão de poucos. No
lugar das comunas e províncias independentes, estabeleceu uma só nação, uma só
legislação, um só governo, um só interesse nacional. Implementou a livre-concorrência
apropriada a si mesma através de guerras e pela submissão de povos de outras regi-
ões do planeta.

Por outro lado, Marx e Engels descreveram este movimento histórico e revolucio-
nário da expansão burguesa como o mesmo processo em que tão rápido a burguesia
alcançou o poder e desenvolveu a economia, tão rápido foram as manifestações de
suas contradições. Para eles, numa sequência metodológica que será desenvolvida
em obras posteriores de Marx, esta contradição poderia ser resumida no conflito entre
o sucesso das forças produtivas - ou seja, do operariado que movia a produção pelas

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A Sociologia e as Abordagens Teóricas
Capítulo 1 Fundamentais: Durkheim, Marx E Weber

máquinas tecnológicas - com as relações de produção, ou seja, as relações Nas crises se


sociais baseadas na propriedade privada e no trabalho assalariado, do qual destruíam grande
se extraia o lucro burguês, e que para Marx, impediriam o pleno desenvol- parte dos produtos
como também as
vimento humano.
forças produtivas:
os operários ficavam
Neste sentido Marx desenvolveria a análise sobre as crises econômi- desempregados
cas do capitalismo, que já se expressavam com certa gravidade no final da e as máquinas
primeira metade do século XIX. Estas crises seriam a manifestação da crise eram inutilizadas.
da sociedade burguesa. Nas crises se destruíam grande parte dos produtos A sociedade
capitalista, desta
como também as forças produtivas: os operários ficavam desempregados
forma, possuindo
e as máquinas eram inutilizadas. A sociedade capitalista, desta forma, pos- “demasiada
suindo “demasiada civilização, demasiados meios de subsistência, demasia- civilização,
da indústria, demasiado comércio”, “tornou-se estreita demais para conter a demasiados meios
riqueza por ela mesma criada” (MARX; ENGELS, 2002, p. 51). de subsistência,
demasiada indústria,
demasiado
Desta forma, sua saída é a destruição forçada de uma massa de for-
comércio”, “tornou-
ças produtivas; de outro lado, a saída só se dava pela conquista de novos se estreita demais
mercados e pela exploração de maiores contingentes humanos. para conter a
riqueza por ela
Assim, para Marx, da mesma forma que a burguesia se tornou a clas- mesma criada”
se dominante ela também teria criado seus “próprios coveiros”, o proleta- (MARX; ENGELS,
2002, p. 51).
riado, o operariado moderno. O proletariado é a classe criada pelas trans-
formações operadas pela burguesia na constituição do novo modo de produção, o
capitalista. O proletariado é a classe formada pelos indivíduos que dispõem apenas
de sua força de trabalho, o que os leva a ter de alienar esta força para os detentores
dos meios de produção (as terras, as fábricas, o comércio) - a burguesia. Tornando-
-se uma mercadoria como qualquer outra estão expostos a todas as vicissitudes da
concorrência e flutuações de mercado. Cada vez mais tornar-se-iam empobrecidos
em relação aos lucros concentrados da burguesia.

Da mesma forma que a burguesia teve suas fases de desenvolvimento na luta con-
tra a opressão feudal, assim também o teve o proletariado. Inicialmente sozinhos, depois
coletivamente, enfrentando o mesmo burguês e até mesmo destruindo as máquinas. Re-
agem institivamente, buscando retornar seu papel de artesão feudal. Com o passar do
tempo desenvolveram coalizões e organizações para lutar contra a burguesia.

Da luta individual do operário contra seu patrão, esta luta tomou condições de luta
de classe contra classe. E a luta de classes é essencialmente política. Desenvolvem-se
sindicatos, partidos nacionais e organizações internacionais. Para Marx, o proletariado,
desta forma, seria a classe que revolucionária a sociedade burguesa. Não teria nada a
perder e a única forma de conquistar os meios de produção é através da supressão do
modo de apropriação que a mantém. E diferente de outros movimentos minoritários, o
proletariado representaria o interesse da maioria da sociedade no capitalismo. Devido

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Temas e Teorias da Sociologia

às contradições econômicas e devido ao desenvolvimento da luta política proletária, a


burguesia e com ela a sociedade capitalista entrariam em crise, impotentes em impor a
sociedade sua dominância social e política. Em seu lugar, haveria o nascimento de uma
sociedade em que o regime de propriedade privado estaria suprimido por uma “ditadu-
ra do proletariado” e, consequentemente, os antagonismos sociais, levando ao que foi
chamado de comunismo.

QUADRO 3 - A LUTA DE CLASSES NO CAPITALISMO

FONTE: O autor

Desta forma, para Marx, o conflito capital X trabalho expresso no capitalismo


teria consequências revolucionárias na constituição da nova sociedade de traba-
lhadores sem patrões, uma sociedade socialista. Diferente da ideia de Durkheim
que as crises sociais revelavam uma anomia social que poderia ser resolvida com
a introdução de novas instituições sociais, para Marx a sociedade capitalista seria,
em essência, conflituosa e permeada por crises.

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A Sociologia e as Abordagens Teóricas
Capítulo 1 Fundamentais: Durkheim, Marx E Weber

3.2 A DIALÉTICA NO MATERIALISMO-


HISTÓRICO
A partir desta visão da história do desenvolvimento da sociedade humana até
a sociedade industrial capitalista, Marx e Engels destacam a luta de classes como
motor da história. Para eles, esta luta é a manifestação das contradições econômicas
em determinado modo de produção, em que a chave da crise de uma determinada
sociedade reside na observação das contradições expressas entre as forças produ-
tivas (meios de produção + forças de trabalho) e as relações de produção (relações
estabelecidas entre os homens na atividade produtiva, como as formas de trabalho e
relações de propriedade.

As relações humanas para Marx, de pensamento, são primordialmente explica-


das pelas relações econômicas e só depois por suas relações sociais: “a análise da
sociedade deve-se prender a sua estrutura, às forças de produção e as relações de
produção, e não à interpretação do modo de pensar dos homens sobre si e o mundo
circundante” (LIMA, 2010, p. 117). Desta forma, “a compreensão do processo históri-
co está condicionada à compreensão de tais relações sociais supra individuais” (LIMA,
2010, p. 119).

Na introdução do livro “Para a crítica da Economia Política”, que foi a base para
posteriormente escrever o seu clássico “O Capital”, Marx é incisivo na crítica ao indivi-
dualismo encontrado por ele na tradição liberal. Para ele, o homem é um ser essencial-
mente social, mas que só pode isolar-se quando em sociedade: “a produção do indiví-
duo isolado fora da sociedade [...] é uma coisa tão absurda como o desenvolvimento da
linguagem sem indivíduos que vivam juntos e falem entre si” (MARX, 1987, p. 5).

Marx foi um dos críticos mais contundentes à tradição clássica


do liberalismo inglês, cuja tradição remonta a John Locke e à ideia
de que a realidade se fundava a partir do desenvolvimento dos
indivíduos em um contexto de direitos naturais. Para Marx, essas ideias
mistificavam a realidade e escondiam o fato de que a burguesia só
se tornou classe dominante graças a diversas práticas de violência e
expropriação de camponeses e outros povos - a chamada acumulação
primitiva. Conforme expõe Marx: “Os profetas do século XVIII, sobre
cujos ombros se apoiam inteiramente Smith e Ricardo, imaginam este
indivíduo do século XVIII - produto, por um lado, da decomposição das
formas feudais de sociedade e, por outro, das novas forças de produção
que se desenvolvem a partir do século XVI - como um ideal, que teria

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Temas e Teorias da Sociologia

existido no passado. Veem-no não como um resultado histórico, mas


como ponto de partida da História, porque o consideravam um indivíduo
conforme a natureza - dentro da representação que tinham de natureza
humana -, que não se originou historicamente, mas foi posto como
tal pela natureza. Esta ilusão tem sido partilhada por todas as novas
épocas, até o presente (MARX, 1987, p. 4-5).

Tomando por base as considerações metodológicas expressas no prefácio do


“Para a crítica da Economia Política”, podemos perceber que a esfera política, como
esfera de ação humana, é tomada como parte constituinte do que chama de “supe-
restrutura”, determinado pela infraestrutura socioeconômica.

Na produção social da própria vida, os homens contraem


relações determinadas, necessárias e independentes de sua
vontade, relações de produção estas que correspondem a
uma etapa determinada de desenvolvimento das suas forças
produtivas materiais. A totalidade destas relações de produção
forma a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a
qual se levanta uma superestrutura jurídica e política, e à qual
correspondem formas sociais determinadas de consciência.
O modo de produção da vida material condiciona o processo
geral de vida social, político e espiritual (MARX, 1987, p. 29-
30).

Prosseguindo em suas considerações metodológicas, Marx diferencia na


apreciação do objeto econômico do “ideológico” (MARX, 1987, p.30):
Simplificadamente,
...é necessário distinguir sempre entre a transformação material
o caminho
das condições econômicas de produção, que pode ser objeto
metodológico de rigorosa verificação da ciência natural, e as formas jurídicas,
apresentado por políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em resumo, as
Marx é: parte formas ideológicas pelas quais os homens tomam consciência
da análise da deste conflito e o conduzem até o fim.
economia (“forças
produtivas”) e da Em ambas passagens é possível inferir que para Marx (1987) a polí-
sociedade (“relações
tica é determinada pelas relações de produção (e estas, correspondentes a
de produção”) - a
infraestrutura da uma etapa determinada das forças produtivas). Simplificadamente, o cami-
sociedade - para nho metodológico apresentado por Marx é: parte da análise da economia
então entender (“forças produtivas”) e da sociedade (“relações de produção”) - a infraes-
as bases da trutura da sociedade - para então entender as bases da política, ideias e
política, ideias e cultura (“formas ideológicas”) - a superestrutura social.
cultura (“formas
ideológicas”) - a
superestrutura No entanto, para o autor, este caminho deve ser apresentado dialeti-
social. camente, ou seja, pressupõe que seu conceito de determinação, não quer

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A Sociologia e as Abordagens Teóricas
Capítulo 1 Fundamentais: Durkheim, Marx E Weber

dizer o mesmo que “determinação” no sentido analítico (causal) (SARTORI, 1997 apud.
LIMA, 2010, p. 132). Se as formas materiais determinam as formas ideais, estas últimas
também atuam como determinações das formas materiais.

Por exemplo, as forças produtivas burguesas, através da produção industrial, do


livre mercado e do trabalho assalariado, ao se desenvolverem encontraram os limites
de seu desenvolvimento sob o estado absolutista. Este, por sua vez, era a forma supe-
restrutural da sociedade feudal em resistência ao avanço da burguesia sob a sociedade
da nobreza e da Igreja. A burguesia, frente a estes limites teve que substituir, A relação de
muitas vezes por revoluções, as antigas formas “superestruturais” por novas determinação,
formas. Nas ideias surgiu o Liberalismo e o Iluminismo. Nos Estados o laicis- mesmo que
mo, o republicanismo e o Estado de Direito (cujo princípio fundamental seria tenha foco inicial
a defesa da propriedade privada e da liberdade individual (dos burgueses). na análise da
infraestrutura
Estas formas, ao se instituírem, não seria simples consequências das formas
social, não deve
econômicas, mas agiriam dialeticamente para não só garantir como ampliar ser entendida
o livre comércio, a propriedade privada e a exploração do trabalho livre. A como simples
relação de determinação, mesmo que tenha foco inicial na análise da infraes- determinação
trutura social, não deve ser entendida como simples determinação mecânica mecânica à
à superestrutura. superestrutura.

Para Marx (1987), se por um lado as transformações das condições econômi-


cas da produção podem ser verificadas rigorosamente (como nas Ciências Naturais),
as formas ideológicas, ou seja, as formas como os homens tomam consciência das
relações estabelecidas na esfera material, somente podem ser explicadas a partir da
apreciação das contradições apresentadas nesta esfera econômica (a “produção da
vida material”), a partir do conflito existente entre as forças produtivas e as relações de
produção. O caminho que vai da economia para a ideologia, precisa voltar para a eco-
nomia, e assim sucessivamente, possibilitando compreender os processos históricos e
suas mudanças.

Apesar de boa parte da doutrina teórica de Marx ter nascido da escrita das obras
de “juventude”, foi somente com “O Capital” que Marx sistematizou seu método de pes-
quisa histórico, econômico e social e os seus achados teóricos e históricos acerca do
desenvolvimento da sociedade capitalista. Na época, a divisão do conhecimento huma-
no ainda era restrita e as disciplinas eram muito mais descritas como doutrinas teóricas,
tal como a “Economia Política”, do que como áreas compartimentadas do conhecimen-
to acadêmico (como temos hoje).

Nesta obra Marx vai identificar o desenvolvimento das formas de produção e troca
de “mercadorias”, que seria o núcleo aparente da nova sociedade industrial, ou seja,
sua capacidade de produzir produtos como nunca na história humana. A contribuição
mais significativa de Marx para a sociologia e a economia foi a exposição do mecanis-

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Temas e Teorias da Sociologia

mo pela qual a riqueza é gerada - o trabalho - e como ela seria expropriada pela bur-
guesia no processo de produção capitalista, através da extração de mais-valia.

Em uma exposição bastante sintética, podemos definir que, para Marx


(1997), os trabalhadores, ao serem dispostos como mercadoria, teriam seu valor
determinado da mesma forma como é determinado o valor de outras mercadorias.
Para Marx, independente das oscilações entre oferta e procura (a explicação da
economia clássica ao preço), seria o tempo de trabalho dedicado a um determinado
produto o que lhe conferiria valor. O dinheiro, assim, seria apenas um símbolo usado
para exemplificar as trocas de diferentes valores. Ou seja, ao comprar um casaco,
eu estaria trocando tempo de trabalho, do meu tempo de trabalho (expresso pelo
dinheiro que ganhei, seja produzindo outras coisas ou trabalhando para alguém)
pelo tempo de trabalho necessário à fabricação do casaco.

Assim, se o que configura o preço de uma mercadoria era o tempo necessário


para produzi-la, o preço (salário) de um operário, também era determinado pelo
tempo de trabalho necessário para “produzi-lo”, ou seja, a quantidade de recursos
necessários para o trabalhador manter-se para continuar trabalhando. Desta forma, o
que o burguês paga ao operário na forma de salário não é uma determinada
Assim, a luta
parte do trabalho que ele realizou. Ele paga apenas o necessário para o
de classes no
capitalismo operário poder sobreviver e manter sua força produtiva. O burguês está
constitui bases a apenas pagando a força de trabalho (a capacidade de trabalhar) do
partir da disputa operário durante um determinado período (jornada de trabalho, medida
entre o salário dos geralmente em horas) e não pelo trabalho total realizado nesta jornada.
proletários e o lucro Assim, na produção, a diferença entre o que o operário produziu na
(mais-valia) dos
jornada de trabalho e o que trabalhou para pagar seu salário é considerado
capitalistas.
valor a mais, ou seja, a mais-valia. Assim, a luta de classes no capitalismo
constitui bases a partir da disputa entre o salário dos proletários e o lucro (mais-valia)
dos capitalistas.

QUADRO 4 - JORNADA DE TRABALHO, SALÁRIO E MAIS-VALIA

FONTE: O autor

A teoria marxista foi sempre polêmica pois sua leitura científica é a de uma
proposta de estudo diretamente vinculada a um projeto de transformação radical
da sociedade capitalista. Além disso, Marx e os marxistas foram por diversas vezes
criticados por darem ênfase excessiva à “economia”, o que os teria levado a caírem
num “economicismo”, ou seja, numa explicação que reduz toda realidade social aos

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A Sociologia e as Abordagens Teóricas
Capítulo 1 Fundamentais: Durkheim, Marx E Weber

seus fundamentos econômicos. Como veremos, esta foi uma crítica inicialmente
formulada por Max Weber e também empregada por outros intelectuais, inclusive
dentre marxistas que tentaram desvincular o marxismo de análises puramente
econômicas e que excluíam a importância das formas culturais na determinação das
sociedades humanas.

Além disso, o marxismo foi criticado por ser excessivamente abrangente e por
reduzir os indivíduos a meras figuras determinadas por grandes estruturas sociais e
econômicas, ou seja, estes críticos veriam que o marxismo como um sistema em que
a estrutura se sobrepõe aos indivíduos e estes são determinados por esta estrutura.
Assim, Marx teria sido um dos grandes representantes das grandes teorias que
abarcavam toda realidade social e histórica, mas que se mostraram posteriormente
limitadas em servir de base metodológica para entender as vastas particularidades do
mundo social, particularmente, da análise dos indivíduos e de suas ações.

Apesar também de o marxismo ter sido historicamente vinculado como


experiências históricas autoritárias (como o período de ditadura estalinista na União
Soviética ou empregado como doutrina oficial de vários partidos comunistas), o que
é uma das fontes de críticas e polêmicas envolvendo o marxismo, é notável que boa
parte das críticas a certas consequências políticas e teóricas sobre a obra de Marx
tenham partido de diversos intelectuais marxistas (ANDERSON, 2004), como na
segunda metade do século XX e início do XXI pode-se ver em intelectuais vinculados
à tradição marxista, como Eric Hobsbawm, E. P. Thompson, Daniel Bensaid, Ernest
Mandel, Adam Przeworsky, Michael Burawoy e Pierre Bourdieu, entre outros.

É possível perceber como a obra de Marx é permeada por diversos conceitos


que são utilizadas em diversas áreas das ciências humanas (como história, economia,
direito, educação) e também no debate político e econômico recente. Percebemos
também que, apesar de crítico do Liberalismo e do Capitalismo, Marx compartilhava
do otimismo iluminista com a ciência e com a capacidade humana em controlar seu
progresso. Agora, na última parte deste capítulo, estudaremos um pensador que se
contrapõe em boa medida a este otimismo, verificando na moderna sociedade indus-
trial uma ameaça à liberdade humana.

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Temas e Teorias da Sociologia

1 Quais foram as principais influências teóricas de Karl Marx e


como ficou conhecida a sua teoria sociológica?

R.:____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
___________________________________________________

2 Cite os principais conceitos desenvolvidos por Marx a fim de


compreender a sociedade moderna.
R.:____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
___________________________________________________
____________________________________________________

4 MAX WEBER: O PROBLEMA DA


METODOLOGIA DE PESQUISA
NAS CIÊNCIAS SOCIAIS E O
DESENCANTAMENTO COM A
MODERNIDADE
Max Weber nasceu na Alemanha em 1864 e faleceu em 1920. Como os demais
clássicos da sociologia, sua obra e as questões que visava responder possui relação
direto com o contexto histórico de sua vida. A Alemanha, diferente da França e da
Inglaterra, teve um desenvolvimento capitalista tardio. A partir da unificação alemã de
1871, com a criação do Império Alemão e com a implementação das reformas de Otto
Bismarck, a sociedade alemã passou por intensas transformações, impactadas pelo

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A Sociologia e as Abordagens Teóricas
Capítulo 1 Fundamentais: Durkheim, Marx E Weber

desenvolvimento da indústria (e com ela, uma moderna classe empresarial e também


de uma numerosa classe operária) e pelo crescimento e expansionismo estatal (que
praticava um agressivo imperialismo, disputando espaço com França e Inglaterra no
mercado internacional). Perceba que Weber é o mais tardio de nossos pensadores
clássicos da sociologia e sua observação de mudanças históricas mais recentes mar-
cou sua obra de forma pessimista.

O desenvolvimento propiciado por um Estado que visava garantir a permanência


da nobreza prussiana em aliança com o desenvolvimento burguês imprimiu o Estado
em uma direção centralizadora e os movimentos de origem operária foram mantidos
na ilegalidade até fins do século XIX. Neste sentido, as consequências da sociedade
industrial foram sentidas com intensidade, como na luta política e social, marcada por
um forte movimento trabalhista e pelo crescimento do que era considerado o maior
partido operário da Europa no período, com forte influência marxista, o Partido Social-
-Democrata Alemão.

A obra de Weber, desta forma, vai compartilhar de questões semelhantes às de


Durkheim e Marx acerca da natureza da sociedade capitalista, porém, por caminhos
diferentes. Fora profundamente influenciado pela linha de pensamento destes auto-
res, mas sua proposta de método sociológico é perpassada pela tradição filosófica
alemã e principalmente pelo debate em torno das definições em torno das ciências
histórico-sociais, a partir de Dilthey, Windelband e Rickert.

O debate alemão em torno das definições de ciências sociais acom-


panha boa parte da segunda metade do século XIX e inicialmente mante-
ve-se isolada do debate internacional. Dilthey, representante da herança
romântica da escola histórica alemã, defendia a constituição da “ciência
do espírito”, baseada num método compreensivo, que por essência se-
ria particularista e humano, em oposição a ideia de causas das ciências
naturais. Winderlband, por sua vez, defendia uma síntese entre as dife-
rentes ciências, já que ambas poderiam descrever objetos e fenômenos
particulares interligados a ideia de leis universais. Desta forma, defendia
uma distinção das ciências não em humanas e naturais, mas entre as
ciências que tratam de leis universais (“nomotéticas”) e as que tratam de
individualidades e singularidades (“ideográficas”). E Rickert definia as “ci-
ências da cultura” como o conjunto de conhecimento que constituem seu
objeto a partir da “relação de valor” que constituem. Por exemplo, a ba-
talha de Waterloo em que Napoleão é derrotado e isto produziria um im-
pacto significativo e comum para ambos os lados em conflito, traduzindo
assim um valor universal que daria legitimidade ao estudo desta história.

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Temas e Teorias da Sociologia

Em síntese, o problema que se tratava tinha a ver com a questão da distinção


entre ciências da natureza e ciências histórico-sociais e a definição metodológica
para estas últimas. As propostas variavam do extremo contraponto ao naturalismo po-
sitivista e outras tentavam conciliar a ideia de as ciências humanas e naturais terem
um terreno em comum. Particularmente influenciou Weber a questão da influência
dos valores humanos como parte integrante da pesquisa sociológica, mas também
como problema a ser resolvido.

4.1 MAX WEBER, A QUESTÃO DOS


JUÍZOS DE VALOR E DO OBJETO
DE ESTUDO DA SOCIOLOGIA
Em 1913 Weber promoveu um grande debate sobre a relação dos juízos de valor
e ciência. Esperava obter um grande consenso em torno do princípio fundamental de
que a ciência não poderia emitir juízos de valor, nem deveria ou poderia defender argu-
mentos diretamente políticos a partir de seus resultados. Conforme explica Saint-Pierre
(2004, p. 30):

Seu esforço por “objetivar” as ciências culturais levou-o a


formular dois “imperativos” fundamentais da imparcialidade
científica. O primeiro exigia que tanto o autor como o leitor
devessem ter clara consciência sobre quais critérios estavam
sendo adotados para medir a realidade e obter, a partir deles,
o juízo de valor. [...]. O segundo imperativo exigia que o autor
esclarecesse explicitamente, tanto para o leitor como para
si mesmo, “quando cala o investigador e começa a falar o
homem como sujeito de vontade, quais argumentos se dirigem
ao intelecto e quais ao sentimento”. Desta maneira, Weber
pretendia dirimir a confusão entre a elucidação científica dos
fatos e a abordagem valorativa.

Para Weber, ao contrário dos positivistas franceses, o sujeito não poderia se se-
parar facilmente dos juízos de valor e apenas o poder fazer não apenas recorrendo
às fontes apresentadas para legitimar a objetividade do argumento, mas sim, repor-
tando-se em relação ao objeto de pesquisa a partir do que esse lhe suscitasse em
juízo de valor. Por exemplo, alguém que escreve uma tese sociológica acerca de um
movimento/partido político certamente possui alguma relação de valor com esse ob-
jeto (seja de aproximação/simpatia ou repúdio). Logo, para Weber, faz-se necessário
expor essa relação, que fundamenta a escolha deste objeto, para em seguida despir-
-se disto e promover a análise objetiva do objeto.

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A Sociologia e as Abordagens Teóricas
Capítulo 1 Fundamentais: Durkheim, Marx E Weber

Weber repudiava especialmente a influência política que professores Weber era, portanto,
mantinham em suas cátedras como o prof. Gustav von Schmoller, muito um defensor
conhecido à época, por defender reformas sociais que adequassem a so- da neutralidade
ciedade industrial moderna aos valores passados. Também era crítico das acadêmica e
dos professores
tendências políticas marxistas que se tornavam referência para jovens pes-
acerca de assuntos
quisadores, já que para o marxismo, ciência e ação política seriam insepará- políticos. Quando
veis. Weber era, portanto, um defensor da neutralidade acadêmica e dos pro- vestiam o manto da
fessores acerca de assuntos políticos. Quando vestiam o manto da ciência, ciência, deveriam
deveriam deixar o homem político para fora de sala. deixar o homem
político para fora de
sala.
No entanto, como explica Saint-Pierre (2004), o próprio Weber não se-
guiu coerentemente com o modelo por ele mesmo proposto. Em julho de
1918, em uma conferência para oficiais do exército Austríaco acerca do tema “Socia-
lismo”, o autor não distinguiu qual parte de sua fala seria juízo de valor e qual seria
apenas análise intelectual (pretensamente científica e objetiva). Além disso, em “A
Política como Vocação” Weber teria emitido juízos de valor (acerca do nacionalismo,
tornando-o bandeira política não criticável) o que o tornava um “verdadeiro e radical
‘profeta de cátedra’, que ele tanto repudiava” (SAINT-PIERRE, 2004, p. 31).

Este aspecto foi bastante presente durante o período em que a Alemanha se


envolveu na Primeira Guerra Mundial, como no período posterior, já que Weber parti-
cipou ativamente nas negociações de paz com as nações vitoriosas, como da escrita
da nova Constituição alemã de 1918. Segundo Carvalho (2008, p. 98):

a crítica weberiana foi bastante influenciada por sua postura


político-ideológica ou, antes disso, pelos valores sociais que
a determinam. Em síntese, sustentamos que, sendo um autor
circunscrito no largo ideário liberal clássico, procurava obje-
tar o socialismo a partir do prisma dos valores liberais, rece-
ando que esse modelo de sociedade restringisse ainda mais
as liberdades individuais efetuada pela burocracia. Alemão
genuinamente nacionalista, preocupadíssimo, portanto, com
a manutenção da frágil integração de sua nação, Max Weber
atuava politicamente no sentido de conter os perigos de uma
revolução de caráter democrático-popular, principalmente na
medida em isso pudesse pôr a estabilidade alemã em risco.
Exemplo disso é a situação de seu nacionalismo que, durante
a guerra, atingira níveis particularmente intensos.

Desta forma, foi recorrente nos autores marxistas a crítica a neutralidade webe-
riana (a mesma crítica dirigida ao positivismo), ou seja, a ideia da ciência social pro-
duzida livre de juízos de valor. Desta forma, Weber também pode ser criticado pela
metáfora do Barão de Münchausen, como vimos anteriormente acerca das críticas
aos critérios de neutralidade adotados pelo positivismo.

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Temas e Teorias da Sociologia

Recentemente na sociedade brasileira existem movimentos que de-


fendem o controle do que o professor pode ou não falar em sala de aula,
buscando restringir ou acabar com o que tradicionalmente e legalmente
é chamado de “liberdade de cátedra”. E você, acha possível o pesquisa-
dor ou o professor pode se apresentar como neutro em relação a temas
sociais e históricos? Ele deve agir em autocensura? Qual é a liberdade
prevista pela liberdade de cátedra? Qual deve ser a ética do professor
em relação a seus alunos em relação a valores e opiniões? Deve haver
na sociedade mecanismos que censurem a expressão de valores ou opi-
niões políticas por parte dos professores? É possível produzir conteúdo
nas ciências humanas que seja “neutro”? Debata com os seus colegas
e alunos.

Weber não No entanto, para Michael Löwy, Max Weber não seria um positivis-
acreditava que ta no sentido clássico, por sua defesa de uma neutralidade científica nas
a ciência social ciências sociais. Weber não acreditava que a ciência social pudesse ser
pudesse ser
totalmente apartada de valores e nem que eles poderiam ser universais.
totalmente apartada
de valores e nem Os valores eram a base da ciência no sentido em que determinavam as
que eles poderiam escolhas dos objetos de pesquisa e guiavam as perguntas sobre o que
ser universais. seria importante conhecer (LÖWY, 2006).
Os valores eram
a base da ciência Além disso, Weber criticou fortemente os positivistas pela influência
no sentido em que
que a biologia exerceu sobre estes. Primeiro porque a realidade social
determinavam
as escolhas dos não poderia ser reduzida a leis naturais-universais e segundo pois a
objetos de pesquisa experiência social é permeada de ação social, que seria antes de tudo
e guiavam as individual e permeada por subjetividade. Diferente de Durkheim, que
perguntas sobre o defendia que a sociologia deveria se guiar por uma visão da sociedade
que seria importante como um todo integrado e com partes interdependentes (como órgãos),
conhecer (LÖWY,
Weber buscava antes de tudo o estudo da experiência do indivíduo,
2006).
do entendimento desta experiência. Para ele a sociologia deveria ser
“compreensiva” e não meramente causualística. Deveria compreender mais como
os fenômenos ocorrem e menos porque ocorriam a partir de uma determinação
orgânica ou derivada de uma lei geral.

Com relação ao marxismo, sua discordância se dava ao fato de os marxistas


não separarem corretamente a pesquisa social da intervenção política, vinculan-
do diretamente ambas (por isso mesmo, Marx e Engels reivindicavam seu método
como “socialismo científico” em oposição aos “socialismos utópicos”). Além disso,

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A Sociologia e as Abordagens Teóricas
Capítulo 1 Fundamentais: Durkheim, Marx E Weber

Weber discordava da primazia da determinação econômico-social em relação a


cultura, tendo se dedicado a contrapor as análises economicistas destacando a
importância da cultura religiosa dentre os protestantes para o desenvolvimento do
capitalismo moderno, como veremos mais adiante no livro “A ética protestante e o
espírito do capitalismo”.

Assim, frente a explicação de leis gerais do positivismo ou ao que considera-


va ser um determinismo economicista do marxismo, Weber irá propor a criação de
conceitos de tipos ideais a fim de compreender as diversas formas de ação social
humana.

Tipos ideais: “No que diz respeito à investigação, o conceito de


tipo ideal propõe-se a formar o juízo de atribuição. Não é uma “hipótese”,
mas pretende apontar o caminho para a formação de hipóteses. Embora
não constitua uma exposição da realidade, pretende conferir a ela meios
expressivos unívocos. Obtém-se um tipo ideal mediante a acentuação
unilateral de um ou de vários pontos de vista e mediante o encadeamen-
to de grande quantidade de fenômenos isoladamente dados, difusos e
discretos, que se podem dar em maior ou menor número ou mesmo fal-
tar por completo, e que se ordenam segundo os pontos de vista unila-
teralmente acentuados, a fim de se formar um quadro homogêneo de
pensamento. É impossível encontrar empiricamente na realidade este
quadro, na sua pureza conceitual, pois trata-se de uma utopia” (WEBER,
2001, p. 137-138).

Para Weber os conceitos nunca poderiam explicar diretamente a realidade, mas


poderiam ajudar a entendê-la a partir de certas características gerais que podem au-
xiliar o sociólogo a explicar certas formas de ação política, religiosa ou individual mais
ou menos semelhantes, recorrentes e, principalmente, compreendidas em seus fins.
Os conceitos de tipo ideal não servem para a descrição histórico-objetiva dos fenôme-
nos humanos, seriam uma aproximação lógica com a realidade a partir de evidências.
Para Weber, a realidade quando vista em si mesma sempre se mostrava particular
e diferente das demais. “Como a realidade empírica é infinita, a ciência não pode
abarcar a sua totalidade da realidade empírica. Quando o faz, transforma-a na em en-
tidade metafísica, prejudicial à filosofia e à pesquisa científica” (WEBER, 2001, p. 19).

Desta forma, Weber buscou desenvolver algumas tipologias para entender a


ação social, notadamente dos indivíduos. Conforme explicitado em Quintaneiro,

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Temas e Teorias da Sociologia

Barbosa e Oliveira (2002, p. 104), Weber distinguiu quatro tipos ideais de ação
social:

• ação racional, com relação aos fins.


• ação racional com relação a valores, como ideias e princípios do indivíduo.
• ação emotiva, ou seja, com relação aos sentimentos do indivíduo (como por
amor ou raiva, ciúmes).
• ação tradicional, com relação aos costumes, hábitos e crenças tradicionais
(que produzem um efeito de “imitação” entre os indivíduos).

Em Weber, a ação social partiria da ação mais racional para as mais irracionais.
O racional é aquilo que não segue nenhum outro ordenamento que não seja o de
atingir os fins esperados. Mas aí divide-se ações orientadas para um fim movido por
interesse, como um fim econômico ou a realização de uma pesquisa científica, das
ações motivado por valores, como a religião. Um seguidor de uma religião ao realizar
uma ação guiado por seus valores religiosos, terá realizado uma ação racional, como
por exemplo, fazer um jejum. Essa ação ela é racional aos valores, aos princípios que
ele quer seguir, mas isso não significa que é racional em relação aos fins do sujeito.
O fim da ação guiada por valores é o próprio meio de se realizar (ser casto, praticar o
jejum etc.) (QUINTANEIRO; BARBOSA; OLIVEIRA, 2002, p. 106).

Além disso, Weber desenvolveu outras tipologias, como a para compreender os


tipos de dominação (tradicional, carismática e a burocrática), como para compreender
a legitimidade do poder e das relações entre as classes sociais. Aprofundaremos es-
tes pontos na segunda unidade deste livro, ao tratar da questão do poder do Estado
e da atividade política.

4.2 O “ESPÍRITO DO CAPITALISMO”


E A “JAULA DE AÇO” DA
MODERNIDADE
Weber busca apresentar uma explicação da formação do capitalismo através de
um modelo culturalista, em contraposição ao modelo considerado “economicista” do
marxismo, bem como ao método de explicação “organicista” de Durkheim, notada-
mente na obra “A ética protestante e o espírito do capitalismo”. Para Weber, a gênese
da cultura capitalista moderna deve ser encontrada em relação com a religiosidade
puritana adotada por igrejas protestantes dos séculos XVI e XVII.

Para Weber (1987), o significado atual de capitalismo deve ser buscado em sua
associação a organização capitalística do trabalho e na rentabilidade da atividade eco-

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A Sociologia e as Abordagens Teóricas
Capítulo 1 Fundamentais: Durkheim, Marx E Weber

nômica, que ele considera uma organização racional. A organização do trabalho livre
e racional é o que possibilita o desenvolvimento da especulação, comercialização e
produção moderna. E esta organização só é possível graças a criação de estrutura
racionais de direito e administração: “isto porque o moderno capitalismo racional ba-
seia-se, não só nos meios técnicos de produção, como num determinado sistema le-
gal e numa administração orientada por regras formais” (WEBER, 1987, p. 10). Sem
esta racionalidade técnica e o formalismo de procedimentos administrativos e legais,
apenas haveria capitalismo mercantil aventuroso e especulativo. O desejo de ganhos
ilimitados existente em todos os momentos da história não é para ele o que explica o
“espírito do capitalismo”.

Para Weber, a racionalidade econômica do capitalismo moderno é decorrente


da capacidade e disposição dos homens em adotar certos tipos de conduta racional.
E esta disposição deve ser encontrada nas forças religiosas ou mágicas, que sempre
estiveram no passado entre os mais importantes elementos formativos da conduta.
Para explicar o capitalismo a resposta de Weber se encontra nos estudos da ética
racional do protestantismo ascético.

Sua explicação parte de uma questão de ordem empírica e atual ao autor, o da


predominância do capitalismo moderno (racional-legal) em regiões que foram favo-
ráveis a revolução na Igreja. Vê na Europa que os principais homens de negócio e
de altos cargos administrativos provém de filiação religiosa protestante. Além disto,
vê que estes demonstram, como classe dirigente ou dirigida, uma tendência para o
racionalismo econômico, que não pode ser vista nos católicos (WEBER, 1987, p. 32):

A explicação desses casos está, sem dúvida, nas peculiarida-


des mentais e espirituais adquiridas do meio, especialmente do
tipo de educação propiciada pela atmosfera religiosa do lar e
da família, que determinaram a escolha da ocupação, e, atra-
vés dela, da carreira profissional.

Ao contrário das críticas dos católicos ao “materialismo” dos protestantes, estes


possuíam um asceticismo puritano que contrariava as acusações. O que se viu foi a
combinação entre o senso comercial e capitalístico com as formas mais intensas de
religiosidade (principalmente nos calvinistas). E este espírito de “trabalho” e “progres-
so” contrapunha-se com a “alegria de viver”.

O “espírito do capitalismo” deriva de uma ética, cuja “infração não é tratada


como uma tolice, mas como um esquecimento do dever.” A ética protestante não via
a economia racional capitalista como “bom-senso” comercial, mas sim como “ethos”;
enquanto isto, os católicos continuavam considerando a atividade comercial e a acu-
mulação de capitais uma heresia condenável. Weber vê que o puritanismo calvinis-
ta que defendia a predestinação dos homens, funcionava enquanto mecanismo
para acumulação capitalista. A riqueza material, através do trabalho e da acumu-

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Temas e Teorias da Sociologia

lação ascética como fins (ou seja, reinvestindo na produção ao invés de prazeres mo-
mentâneos) era o mecanismos pelo qual os indivíduos buscavam identificar se eram
predestinados ou não: “ele [o indivíduo protestante ascético] não retira nada de sua
riqueza para si mesmo, a não ser a sensação irracional de haver “cumprido” devida-
mente a sua tarefa” (WEBER, 1987, p. 47).

Desta forma, para Weber, a ética protestante é o que funda o “ethos” necessário
ao capitalismo. Desta forma, contrariando o materialismo economicista que identifi-
cava na leitura marxista do advento do capitalismo, bem como a leitura generalizante
da diferenciação social como motivadora de uma nova forma de solidariedade social
de Durkheim, Weber antepõe fatores “superestruturais”, ou seja, causas culturais, no
caso, a ética protestante como fator preponderante para o advento do capitalismo
contemporâneo (WEBER, 1987, p. 47):

A questão das forças motivadoras da expansão do capitalismo


moderno não é, em primeira instância, uma questão de origem
das somas de capital disponíveis para uso capitalístico, mas, prin-
cipalmente, do desenvolvimento do espírito do capitalismo. Onde
ele aprece é capaz de se desenvolver, ele produz seu próprio ca-
pital e seu suprimento monetário como meios para seus fins, e
não o inverso (WEBER, 1987, p. 47).

Para Löwy (2014), Max Weber não seria um crítico apenas da burocracia que
invadiria todos os aspectos da vida moderna, mas do próprio capitalismo, que é onde
a burocratização da vida é um caminho sem retorno. O caminho para o lucro aprisio-
naria e torna alienados não só os proletários, mas também os maiores banqueiros,
tornando-os como que em “súditos sem mestre”, em que as pessoas perdem a sua
criatividade e liberdade frente a “jaula de aço” deste sistema.

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A Sociologia e as Abordagens Teóricas
Capítulo 1 Fundamentais: Durkheim, Marx E Weber

FIGURA 1 - A “JAULA DE AÇO” DA RACIONALIZAÇÃO DA VIDA

FONTE: O autor

Em Weber, a racionalidade necessária para o desenvolvimento e aprimoramento


do capitalismo moderno trazia como contrapartida a cada vez maior a burocratiza-
ção da vida, ou seja, a frieza produtiva controlada pelo relógio, pelas metas e técnicas
produtivas, pelo controle do Estado e seus procedimentos objetivos e pela objetivida-
de da lei, todos estes aspectos considerados necessários e pressupostos ao desen-
volvimento da sociedade industrial, seriam paralelamente os mesmos responsáveis
pela decadência de valores e práticas tradicionais, como os laços comunitários e re-
ligiosos, bem como da complacência mágica que configurava a visão de mundo das
pessoas comuns. Se o progresso material pode ser creditado à racionalidade técnica,
seja da ciência como da administração moderna, os seres humanos se tornaram “de-
sencantados” do mundo. Como evidência Weber em tom pessimista em “A ciência
como vocação” (1999, p. 51):

O destino de nosso tempo, que se caracteriza pela racionali-


zação, pela intelectualização e, sobretudo, pelo “desencanta-
mento do mundo” levou os homens a banirem da vida pública
os valores supremos e mais sublimes. Tais valores encontram
refúgio na transcendência da vida mística ou na fraternidade
das relações diretas e recíprocas entre indivíduos isolados.
Nada há de fortuito no fato de que a arte mais eminente de nos-

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Temas e Teorias da Sociologia

so tempo é íntima e não monumental, nem no fato de que, hoje


em dia, só nos pequenos círculos comunitários, no contato de
homem a homem, em pianíssimo [com pouca intensidade], se
encontra algo que poderia corresponder ao pneuma profético
que abrasava comunidades antigas e as mantinha solidárias.

Mesmo que afastado metodologicamente, Weber se aproxima de Durkheim na


constatação que a modernidade técnica afasta a humanidade do tipo de relações soli-
dárias e baseadas em valores comunitários, tradicionais e religiosos. E este é, apesar
da distância metodológica que separa os três autores clássicos, um dos elementos de
aproximação.

E neste ponto é possível estabelecer um paralelo com Marx. Este descreveu que
o capitalismo nas relações profissionais, “despojou de sua auréola todas as ativida-
des até então consideradas dignas de veneração e respeito”, nas relações familiares
“rasgou o véu de comovente sentimentalismo” que as envolvia e “as reduziu a meras
relações monetárias”, na vida “tudo que é sólido e estável se volatiliza, tudo o que é
sagrado é profanado, e os homens são finalmente obrigados a encarar com sobrieda-
de e sem ilusões sua posição na vida, suas relações recíprocas” (MARX, ENGELS,
2002, p. 48). Como destaca Cohn (1979 apud. CARVALHO, 2008, p. 9):

[...] é evidente que há um ponto em comum entre as


preocupações de Marx e de Weber, e que não deve ser
subestimado: a posição central atribuída aos problemas
da sociedade capitalista na obra de ambos, porém, [...]
com a diferença de que num caso isso conduz a uma
crítica revolucionária e no outro a uma crítica marcada
pela resignação

Neste sentido, para Löwy (2014), é possível entender o diálogo que muitos mar-
xistas estabeleceram entre Weber e Marx em relação ao capitalismo. Contudo, a dife-
rença entre Weber e Marx seria que o primeiro comporta uma crítica individual, liberal
do capitalismo, uma crítica resignada quanto ao destino, pessimista, enquanto o se-
gundo avaliava o capitalismo a partir de uma crítica que se propunha revolucionária.

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A Sociologia e as Abordagens Teóricas
Capítulo 1 Fundamentais: Durkheim, Marx E Weber

“A palavra “minimalismo” surgiu de movimentos artísticos do sé-


culo XX que seguiam como preceito o uso de poucos elementos visu-
ais, e, aos poucos, foi migrando para o campo do social. “Enquanto
expressão comportamental da sociedade, o minimalismo é um reflexo
de movimentos contraculturais anteriores, como o punk e o hippie, que
questionaram a sociedade de consumo e seus excessos”, explica o pes-
quisador em cultura e comunicação Marcelo Vinagre Mocarzel, profes-
sor da Universidade Federal Fluminense. Diferente dos contraculturais,
contudo, os minimalistas não buscam construir uma sociedade alterna-
tiva. “Os minimalistas têm buscado combater o consumismo por dentro
do sistema. Isso quer dizer que eles trabalham, se vestem normalmen-
te e até consomem.” “Em certa medida, os minimalistas se aproximam
mais dos capitalistas clássicos descritos por Max Weber: capitalismo
não é o problema para eles, mas sim esse capitalismo selvagem anco-
rado na ostentação e no desperdício”, aponta (O prazer do desapego':
minimalistas defendem que ter menos coisas cria mais liberdade. BBC
Brasil, 9 set 2017. Disponível em: <https://bbc.in/2mjCx1z>. Acesso em:
8 ago. 2019.

Além disso, é importante destacar que se Weber não se filiava às correntes


mais conservadoras da época, tendo atuado no sentido de garantir proteção a in-
telectuais ligados à socialdemocracia alemã, por outro lado ele não nutria simpa-
tias pela ideia de socialismo. Como explica Thorpe (2015, p. 43):

Weber achava que o comunismo levaria a um controle burocrá-


tico ainda maior que o capitalismo. Em vez disso, ele defendia
que, dentro de uma democracia liberal, a burocracia deveria ter
um nível de autoridade compatível com aquele que os mem-
bros da sociedade estivessem preparados a permitir. Isso é,
determinado, dizia, pelas ações sociais dos indivíduos confor-
me eles tentam melhorar sua vida e suas “chances de vida” (ou
oportunidades).

Neste sentido Weber geralmente é destacado como um intelectual politica-


mente situado no liberalismo, tanto por suas posições politicamente assumidas, como
também pelo método que dava ênfase à análise das ações individuais e culturais em
oposição a posições macrodeterminantes.

Entretanto, seu pessimismo também pode ser explicado às condições históri-


cas da Alemanha, onde a modernização capitalista ocorreu sem adoção do Libera-

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Temas e Teorias da Sociologia

lismo Clássico Inglês ou do Iluminismo Francês, mas, sim, através do romantismo


conservador do no nacionalismo de fins do século XIX. Além disso, seu pessimismo
parece ser compreensível frente a situação histórica alemã à época de sua morte. Os
comunistas haviam tentado uma revolução na Alemanha em 1919, acompanhando
os movimentos na Rússia, buscando instituir a “ditadura do proletariado”, como pela
presença de correntes tradicionais do conservadorismo prussiano e de novos movi-
mentos ultranacionalistas e racialistas como o nazismo, que em 1932 vão garantir a
chegada ao poder de Hitler e seu partido, ou seja, Weber expressava o pessimismo
das expectativas frustradas do desenvolvimento de sociedades democráticas liberais
no início do século XX.

1 Disserte sobre o que era o “espírito do capitalismo” para Max Weber.

R.:____________________________________________________
___________________________________________________
___________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________

2 Cite os tipos ideias de ação social.

R.:____________________________________________________
___________________________________________________
___________________________________________________

5 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
Chegamos ao fim deste primeiro capítulo, então é importante recapitularmos
alguns pontos centrais. Como vimos, as bases da sociologia contemporânea foi se
constituindo num contexto histórico de ascensão da sociedade industrial, do Estado
moderno e de crescente divisão do trabalho e de riqueza. Neste contexto, vimos o
papel desempenhado pela emergência do pensamento iluminista e positivista em pa-
vimentar as bases do pensamento científico e no liberalismo como base das relações
sociais da sociedade capitalista. Vimos também como o socialismo nasce como con-
traponto à sociedade burguesa, em defesa da igualdade social.

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A Sociologia e as Abordagens Teóricas
Capítulo 1 Fundamentais: Durkheim, Marx E Weber

Assim, em meio ao conflito de visões de mundo na sociedade capitalismo, enten-


der como as sociedades se ordenavam ou entravam em crise, entender os conflitos
sociais e a relação entre cultura e ideia com a realidade social tornaram-se questões
que iriam pavimentar o caminho da sociologia. Para isso, também era necessário es-
pecificar seu caráter científico.

Neste sentido, buscamos apresentar os três autores clássicos da sociologia a


partir de seus sistemas metodológicos e de suas visões teóricas acerca da socie-
dade capitalista de sua época. Nossa ordem não foi exatamente cronológica, mas
por uma ordem de diferenças metodológicas e teóricas. Neste sentido, perceba como
Durkheim tem importância primária por ter sido o mais empenhado na implementa-
ção da sociologia como área do conhecimento científico, enquanto tanto Marx como
Weber foram apenas reconhecidos enquanto “sociólogos” e suas obras tido influência
acadêmica posteriormente, notadamente na segunda metade do século XX.

Durkheim estabelece um modelo de sociologia baseado em parte na herança


positivista - que igualava as ciências sociais às ciências naturais, considerando
seu conhecimento também objetivo e neutro - e numa análise funcionalista da
sociedade, estabelecendo a necessidade de estudarmos fatos sociais coletivos e
interdependentes. Sua visão acerca da moderna sociedade industrial era baseada
na leitura que esta sociedade implementava uma profunda divisão das funções
sociais, o que levou ao estabelecimento de formas de solidariedade orgânica (ou
seja, baseada na interdependência das diversas funções das instituições sociais)
em oposição à antiga solidariedade mecânica. As situações de anomalia na socie-
dade industrial seriam resultado do fato que o progresso econômico ainda não havia
levado ao desenvolvimento de instituições dotadas de uma autoridade capacitada a
regulamentar os interesses e estabelecer limites a indivíduos egoístas.

Marx relaciona sua obra com várias esferas do conhecimento humano: filoso-
fia, economia, sociologia e história. Seu método de pesquisa contrastava com o de
Durkheim e Weber na medida em que, se estes dois concordam quanto a necessi-
dade de separar “juízos de valor” a fim de garantir a objetividade do conhecimento,
para Marx todo conhecimento advém de uma posição social e política na sociedade,
ou seja, seria compromissada politicamente com alguma classe e projeto social. Toda
teoria que servisse para a manutenção da ordem social era considerada uma ideolo-
gia, no sentido de mascarar a realidade das suas contradições centrais. Para Marx, o
materialismo-histórico era um método de pesquisa capaz de instrumentalizar a políti-
ca do proletariado em prol de uma revolução que acabasse com a ordem capitalista.
Para ele o capitalismo seria baseado na exploração econômica do proletariado, via
controle dos meios de produção e extração de mais-valia dos operários.
Weber, diferentemente dos outros autores, compreendia que a realidade social

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Temas e Teorias da Sociologia

era formada de juízos de valor. O método proposto para garantir a neutralidade cien-
tífica do sociólogo era de que, se a escolha do objeto de pesquisa era sempre um
ato motivado por juízos de valor (ou seja, por preferências pessoais do pesquisador
a partir de um determinado conjunto de motivos e valorações), sua pesquisa deveria
ser guiada por critérios objetivos de pesquisa, tratando-se sempre de distinguir quan-
do o pesquisador estava falando como sujeito de valores e quando estaria apenas se
referindo aos procedimentos de pesquisa e resultados. Para ele a ciência não deveria
servir a propósitos delimitados. Sua visão sobre a sociedade industrial é considerada
pessimista, já que percebeu que o desenvolvimento técnico e econômico foi possível
graças a organização racional das instituições e dos indivíduos, o que acarretou a for-
mação da burocracia, reduzindo a liberdade e a criatividade dos indivíduos, levando
ao desencantamento do mundo.

O sociólogo britânico Giddens (2005) tem buscado apresentar um maior


diálogo entre autores de tendências historicamente opostas na sociologia, como
Durkheim e Weber. Para ele a diferença de abordagens, de Durkheim dando ênfase
as relações estabelecidas na unidade social ou de Weber na ênfase da análise da
ação social individual, não deveriam ser avaliadas como certas ou erradas, mas sim
como forma de exemplificar uma perspectiva macro ou micro de sociologia.

Por outro lado, o marxismo sempre foi permeado por ambas perspectivas socio-
lógicas, seja a partir da influência do estrutural-funcionalismo francês (ANDERSON,
2004) ou por autores que adotaram parte das leituras weberianas no interior do capi-
talismo (LÖWY, 2014).

Assim, entendemos ser possível afirmar que tanto Durkheim, Marx e Weber,
através de caminhos distintos, pretenderam-se a fazer ciência ao estipular metodo-
logias abrangentes para ler a realidade social e apresentar respostas as questões
vividas pelas sociedades em seu tempo, sendo que muitas destas questões perma-
necem em nosso presente.

Entendemos ser nossa tarefa como professores apresentar o debate do pensa-


mento sociológico em sua riqueza, evocando as questões do contexto histórico da
época e mediando o debate da época para os tempos atuais, a fim de subsidiar a
atuação cidadã de nossos alunos, visando aprimorar a liberdade e a igualdade entre
as pessoas em uma sociedade cada vez mais complexa, diversa e integralizada.

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A Sociologia e as Abordagens Teóricas
Capítulo 1 Fundamentais: Durkheim, Marx E Weber

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Temas e Teorias da Sociologia.indd 54 14/11/2019 17:10:32


C APÍTULO 2
Estado, Poder, Classes Sociais e
Cultura

A partir da perspectiva do saber-fazer, são apresentados os seguintes


objetivos de aprendizagem:

Saber:
3 Identificar a relação e os conceitos de Estado e poder nas diversas tendências
sociológicas.
3 Compreender a origem e atuação do Estado e as formas de poder social.
3 Identificar as várias categorias para compreensão da dinâmica de grupos sociais
na sociedade moderna e os mecanismos de identificação social.
3 Compreender a relação entre cultura e ideologia nas sociedades humanas.

Fazer:
3 Identificar as diferentes formas de Estado e poder presentes na sociedade atual.
3 Compreender as diversas dinâmicas de formação e conflito entre os grupos sociais.
3 Identificar discursos e posições identificadas como etnocêntricas.

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Capítulo 2 Estado, Poder, Classes Sociais e Cultura

1 CONTEXTUALIZAÇÃO
Nesta segunda unidade estudaremos sobre os principais conceitos e temas de
pesquisa desenvolvidas pelas diversas correntes sociológicas observadas durante o
século XX. Como vamos observar, boa parte da sociologia do século XX parte das pre-
missas metodológicas e teóricas da sociologia clássica, conforme estudado na primeira
unidade desta obra.

Durante o século XX viveu-se a intensificação de conflitos sociais e geopolíticos,


ao que o historiador Eric Hobsbawm (1995) denominou como a “Era dos Extremos”.
Viveu-se duas intensas guerras de proporção mundial, viu-se a ascensão e queda do
Estado soviético, a intensidade das crises capitalistas (como a de 1929), que levaram
à crise do liberalismo e a criação de regimes totalitários que usaram a burocracia es-
tatal e partidária como meio de dominação social extremas (confirmando os receios
de Weber). Viveu-se os conflitos da guerra fria, o embate dos modelos capitalista e
socialista. Se o aparente sucesso de modelos de bem-estar social na Europa des-
mentia as teses marxistas, por outro lado o crescimento absoluto da desigualdade
entre nações e a dificuldade de acabar-se com a miséria e a fome, demonstravam a
confirmação de suas teses. A migração, a concorrência de mercado, os saltos tecno-
lógicos e quebras geracionais evidenciavam que os sintomas de fragmentação vistos
em Durkheim eram constantes nas sociedades ocidentais.

Em outras palavras, se as expectativas do capitalismo no século XIX fez os primei-
ros pensadores buscarem um modelo para compreender as consequências do capita-
lismo para a modernidade, o pensamento sociológico do século XX deu continuidade a
esta tarefa a partir dos escritos clássicos. Em boa medida o século XX pode ser visto,
em metáfora, como um grande laboratório onde as teorias e métodos puderam ser ob-
servados, dada a aproximação ou distanciamento dos processos observados com o
que as teorias descreviam e das dificuldades de pesquisa derivadas dos métodos clás-
sicos. Desigualdades regionais e sociais, exploração do trabalho, opressão, relações
sociais disruptivas, controle burocrático da vida e do trabalho, todos temas prenuncia-
dos no pensamento sociológico clássico.

Desta forma, neste capítulo buscamos apresentar os temas que guiaram a pes-
quisa sociológica derivada dos autores clássicos e as diferentes perspectivas adotadas
pela sociologia, bem como sua relação com as outras duas áreas das “ciências sociais”.
Neste sentido, iremos retomar e aprofundar certos temas clássicos e aprofundar os de-
bates derivados da sociologia clássica para os debates centrais no século XX. Num
primeiro momento vamos debates a relação entre Estado, política e dominação; em
seguida, as conceituações e controvérsias acerca dos conceitos de classes sociais (e
suas relações entre economia, consciência e identidade); e, por fim, das relações entre
antropologia e sociologia nos estudos culturais, notadamente no desenvolvimento a crí-
tica ao etnocentrismo e na adoção de perspectivas multiculturais.
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Temas e Teorias da Sociologia

2 A REFLEXÃO DOS CONCEITOS


FUNDAMENTAIS ACERCA DO
ESTADO E PODER A PARTIR DA
SOCIOLOGIA CLÁSSICA
Imagine a vida nas sociedades humanas nos dias hoje. Você consegue imaginar
uma sociedade complexa, com milhares e até bilhões de habitantes, convivendo sem
a mediação do que chamamos de Estado? E você consegue imaginar o conceito de
Estado sem este apresentar-se como sinônimo de poder? E como pensar o Estado
sem pressupor a existência da política?

Ora, estas são questões que evocam um longo passado de discussões na fi-
losofia política. Aristóteles definia o ser humano como um “animal político”, ou seja,
um ser cuja vida em comunidades amplas necessitavam a criação de mecanismos
de organização e resolução de disputas e conflitos sociais, ou seja, uma comunida-
de política.

Assim, Estado, política e poder são os objetos centrais da sociologia. No entanto,


durante o século XX, desenvolveu-se outra área de conhecimento que se consolidou
a partir dos estudos da sociologia, a chamada ciência política. Atualmente a ciência
política, por muitos considerada uma disciplina independente da sociologia, busca
identificar as formas de organização do poder político (partidos, mobilização, sistemas
eleitorais) e da estrutura de poder nos Estados, em suma, de como o poder político e
estatal se organiza e atua.

Então, como distinguir sociologia de ciência política? O estatuto de uma disciplina


é derivado de suas especializações, porém, é certo que há uma dependência interdis-
ciplinar entre diversas disciplinas que tratam do fenômeno humano, como a antropolo-
gia, o direito, a histórica, a economia e relações internacionais.

a sociologia busca
identificar as Neste caso, a distinção que propomos é que, mais do que estudar os
origens e bases procedimentos e sistemas de governo e administração do poder público,
do poder político e que é a especialização da ciência política, a sociologia busca identificar as
estatal e qual sua origens e bases do poder político e estatal e qual sua relação com outras
relação com outras estruturas de poder e com os indivíduos, ou seja, identificar as bases do
estruturas de poder
fenômeno político, do poder político e do poder do Estado.
e com os indivíduos,
ou seja, identificar
as bases do Como vamos ver nesta seção, a partir da teoria sociológica clássica,
fenômeno político, principalmente a de matriz weberiana e marxista, criou-se uma grande tra-
do poder político e dição de estudos que visaram identificar as relações entre o poder político,
do poder do Estado.

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Capítulo 2 Estado, Poder, Classes Sociais e Cultura

indivíduos, sociedade e poder econômico. Foi durante o século XIX e início do XX que
a maioria dos Estados Nacionais contemporâneos se consolidaram e a estrutura do
poder político da sociedade burguesa mostrava suas diferenças frente às antigas mo-
narquias absolutistas do antigo regime. Além disso, estas tornavam-se o pilar do novo
status quo (“o estado das coisas”), ou seja, uma instituição voltada à preservação da
nova ordem socioeconômica. Esta, contudo, não permaneceu sem questionamentos,
seja da tradição liberal weberiana, seja da vertente crítica do marxismo.

2.1 O ESTADO NO CAPITALISMO


PARA A TRADIÇÃO MARXISTA
OCIDENTAL
Para Marx, a ideia de política, poder e Estado estava intimamente ligada à sua
teoria sociológica. Mais do que identificar e classificar formas de poder político e es-
tatal ou definir os limites conceituais, Marx buscou identificar a sociedade humana
como uma totalidade complexa de relações interdependentes e conflituosas entre os
seres humanos vivendo em comunidade para satisfazer suas necessidades a partir
da mediação do trabalho.

Como vimos na unidade anteriores, as relações estabelecidas numa sociedade


para organizar o trabalho (relações sociais de produção) e as técnicas, tecnologias,
ferramentas e matéria-prima (meios de produção) vão determinar a estrutura de clas-
ses duma determinada sociedade - o que seria designado como infraestrutura da so-
ciedade - e as forma de organização de seu poder político, da ideologia e da cultura
em geral - a superestrutura da sociedade.

Foi precisamente Marx quem primeiro descobriu a grande lei da


marcha da história, lei segundo a qual todas as lutas históricas
que se desenvolvem quer no domínio político, religioso, filosófi-
co, quer em outro qualquer campo ideológico são, na realidade,
apenas a expressão mais ou menos clara de lutas entre classes
sociais, e que a existência e, portanto, também os conflitos en-
tre essas classes são, por sua vez, condicionados pelo grau de
desenvolvimento de sua situação econômica, pelo seu modo de
produção e de troca, que é determinado pelo precedente (EN-
GELS, 2000, p. 12).

No entanto, é importante destacar que esta não é uma determinação mecânica,


mas dialética, ou seja, não toma a superestrutura (o “campo ideológico” de que fala
Engels) como determinação direta da infraestrutura, mas sim como um campo de poder
condicionado pelo primeiro. A relação de poderes entre as diferentes classes sociais na

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Temas e Teorias da Sociologia

esfera produtiva (o controle dos meios de produção, o grau de exploração do trabalho,


as lutas econômicas pela valorização da força de trabalho, etc.) seria a base pela qual
o fenômeno político e ideológico poderia ser compreendido. A relação é dialética pois a
luta de classes não opera do econômico ao político, como se estas fossem esferas au-
tônomas, mas sim devem ser entendidas de forma inter-relacionadas. A organização e
expressão de uma classe social se daria essencialmente entre a esfera “sindical” (eco-
nômica) e a esfera “política”.

Sobre o desenvolvimento do poder político da burguesia: “cada


etapa da evolução percorrida pela burguesia foi acompanhada de um
progresso político correspondente. Classe oprimida pelo despotismo
feudal, associação armada e autônoma na comuna, aqui república
urbana independente, ali terceiro estado tributário da monarquia; depois,
durante o período manufatureiro, contrapeso da nobreza na monarquia
feudal ou absoluta, base principal das grandes monarquias, a burguesia,
com o estabelecimento da grande indústria e do mercado mundial,
conquistou, finalmente, a soberania política exclusiva no Estado
representativo moderno. O executivo no Estado moderno não é senão
um comitê para gerir os negócios comuns de toda a classe burguesa”
(MARX, ENGELS, 2002, p. 47).

Exemplifiquemos isto tomando por exemplo a política em vários países


ocidentais durante o século XX. Em diversos destes países a polarização política
se deu entre os partidos e movimentos políticos com bases na classe assalariada
e sindicatos de trabalhadores (trabalhistas, social-democratas, socialistas,
comunistas etc.), ligados a teorias revolucionários ou reformistas e partidos de
centro e direita, ligados à classe média, burguesia (ou poderes mais tradicionais,
como proprietários de terra, a igreja católica ou o exército), ligados ao liberalismo
e ao conservadorismo. Nos momentos mais extremos, tivemos revoluções
socialistas, como na Rússia em 1917 e situações de intensa luta de classes, como
na Alemanha, Itália e Espanha que terminaram com a vitória da extrema direita,
ligada a manutenção do poder social da burguesia e de classes mais tradicionais,
como os grandes proprietários rurais. No Brasil o conflito social levou a situações
como as grandes greves de 1917, na tentativa de uma revolução comunista
em 1935 e a instauração de ditaduras como as do Estado Novo (que via como
inspiração o estado fascista italiano) e a de 1964-1985 (que visava combater a
ameaça comunista, no contexto de Guerra Fria).

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Capítulo 2 Estado, Poder, Classes Sociais e Cultura

A crise do lulismo sob a perspectiva do marxismo: mais


recentemente, sob regime democrático, temos vivido intensa instabilidade
política no Brasil (2013-2019) derivada da derrocada de um governo de
matiz social-democrata, derrubado pelo conturbado impeachment do
então presidente Dilma Rousseff, do Partido dos Trabalhadores. Este
processo pode ser explicado, do ponto de vista marxista, pelo estudo das
formas de organização das classes sociais no país, suas organizações
“sindicais” e políticas (como movimentos sociais e partidos), e pela disputa
de projetos de desenvolvimento nacional distintos estabelecidos pelas
diferentes classes em luta num determinado contexto socioeconômico.
Esta situação pôde explicar o porquê, de por exemplo, o presidente
Lula não ter sofrido uma derrota por conta do escândalo do mensalão
em 2005. A situação econômica favorável e o apoio de parte da classe
burguesa, além do apoio popular, foi essencial para sua manutenção no
poder, evitando um impeachment e garantindo a reeleição. O contrário do
que teria ocorrido com Dilma em 2016, dado o escândalo do petrolão e
como consequência da crise econômica que quebrou sua base de apoio
popular frente a uma ofensiva da burguesia interna e externa por reformas
que barateassem o valor da força de trabalho no Brasil, como a reforma
trabalhista e previdenciária (CIGNACHI, 2018).

Para Marx, a existência do Estado moderno estava intimamente ligada a


existência da luta de classes. O comunismo, ou a sociedade sem Estado, só poderia
ser atingida com a supressão total da diferenciação social do capitalismo,
Para Marx, a
baseada no controle dos meios de produção pela burguesia e nas relações
existência do Estado
de trabalho alienantes, ou seja, o trabalho mediado pela necessidade moderno estava
burguesa do lucro. Os trabalhadores, administrando diretamente o intimamente ligada a
seu trabalho por meio de federações de associações de trabalhadores existência da luta de
administraria a sua própria vida social, desta forma, dissolvendo o Estado classes.
na sociedade (MARX, 2011).

A situação do Estado burguês ocidental, desenvolvido sobre a igualdade e


liberdades formais dos indivíduos, do Estado de Direito com divisão de poderes, do
direito ao voto universal, o que chama-se convencionalmente de Estado democrático-
liberal, apenas consolidou-se na segunda metade do século XX na maioria dos países
do ocidente, não sem antes passar por diversas situações de conflitos e fechamento
autoritário (nazifascismo ou ditaduras militares).

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Por isso a tradição marxista prosseguida a partir de lideranças políticas como Vla-
dimir I. Lenin e Leon Trotsky, que viveram no então antigo regime czarista russo,
mantinha a leitura que o Estado burguês era um organismo de dominação direta da
classe burguesa sobre o proletariado. Para Lenin o Estado era o produto do inconciliá-
vel antagonismo de classes e apenas poderia ser substituído a partir de uma revolução
violenta que instituísse uma ditadura da classe proletária até que esta terminasse por
derrotar a burguesia, não só nacionalmente, mas internacionalmente (LENIN, 2010).
Por esta razão Trotsky retomou a ideia de Marx de que a revolução socialista deveria
ser internacionalista e permanente, pois a estagnação sob fronteiras nacionais levaria
ao colapso das revoluções (TROTSKY, 2011).

A crítica de Trotsky à degeneração soviética: a tese de revolução per-


manente de Trotsky foi um dos focos de desavenças com o grupo dirigido
por Stálin na antiga União Soviética durante os anos 1920. A vitória do grupo
dirigido por Stálin, que defendia o desenvolvimento próprio e autônomo da
economia soviética, acarretou no fechamento autoritário do Estado, na expul-
são de Trotsky, e perseguição e assassinato de antigos dirigentes revolucio-
nários que discordassem da sua linha política. Trotsky, junto de outros mar-
xistas, inaugurou uma série de teses acerca da natureza do Estado soviético.
Para ele, na obra A Revolução Traída (TROTSKY, 2005), o Estado soviético
se caracterizaria como um “Estado operário burocraticamente degenerado”,
onde, apesar de os meios de produção terem sido socializados, a burocra-
cia partidária-estatal atuaria como classe dominante (politicamente). Desta
crítica ao Estado soviético surgiram outras teses de outros marxistas, como
Issac Deutscher, que viu o fenômeno da burocratização como inevitável nas
sociedades contemporâneas (compartilhando do pessimismo weberiano) e
István Mészáros, que defendeu que o regime soviético tornou-se um “novo
modo de produção”, nem socialista, nem capitalista, mas onde a hierarquia e
dominação do trabalho prosseguiam, numa espécie de “socialismo de mer-
cado”. Trotsky terminou sendo assassinado por um agente secreto de Stálin
em 1940 em seu exílio no México.

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Capítulo 2 Estado, Poder, Classes Sociais e Cultura

Tanto Lenin como Trotsky tiveram pouca experiência com os Estados democráti-
co-liberais do ocidente. Sua leitura permanecia vendo o Estado como estrutura de co-
erção física direita da burguesia sobre o proletariado. Foi o Italiano Antonio Gramsci
(2011) quem percebeu que a dominação burguesa no ocidente era distinta da domina-
ção política tradicional (que seria identificada aos Estados orientais, com o Estado sob
o czarismo na Rússia). Para Gramsci, a dominação nos países ocidentais não se dava
apenas a partir da coerção física direta da classe proletária, na sua sujeição explícita,
mas sim a partir de mecanismos que garantisse o consentimento das classes domina-
das, ou seja, sua aceitação. Por isso definia que no ocidente a hegemonia das classes
dominantes eram mantidas pelo “Estado ampliado”, ou seja, a união entre o Estado
“estrito” (coercitivo, poder político-legal) e o “Estado ético”, formado pela “sociedade ci-
vil”, organizado em instituições como as escolas, igrejas, sindicatos, jornais, teatros etc.
(GRAMSCI, 2011, p. 264).

Uma boa parte da obra teórica de Gramsci foi escrita enquanto esteve
preso na Itália de Mussolini. Para uma visão geral dos principais extratos
de seus vários “cadernos do cárcere” como obras anteriores de juventude.
Livro: O leitor de Gramsci: escritos escolhidos 1916-1935. Organizado
por Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.

Assim, a igualdade formal perante a lei e a possibilidade de participação po-


lítica, via legalização de partidos operários socialistas, abria a possibilidade das
classes dominadas alicerçarem posições na máquina do Estado, fazendo com
que lideranças se tornassem não mais revolucionários, mas políticos e burocratas
negociando com a burguesia formas de “suavizar” a dominação e garantir conces-
sões econômico-materiais aos assalariados.

Como explica o sociólogo Adam Przeworski (1989), o proletariado de países


ocidentais não mais atuou majoritariamente no sentido de revolucionar as sociedades.
Passaram a adotar a estratégia social-democrata que se tornou dominante: buscar
acordos e consensos com a classe dominante, buscando reduzir e mitigar as consequ-
ências da exploração do trabalho, através de uma maior distribuição da renda gerada.
Assim, legislação trabalhista (direito a férias, salário mínimo, proteção ao desemprego),
estruturas previdenciárias, serviços públicos de educação e saúde, seriam tanto con-
quistas da luta do proletariado quanto, paradoxalmente, fatores auxiliares no desen-
volvimento do consentimento desta classe à dominação. Foi por esta razão que boa

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parte dos partidos de trabalhadores nos países ocidentais teria optado por estratégias
de negociação com a burguesia, na formação de governos de “compromissos de
classes” e se afastado de estratégias revolucionárias. Isso não significava o fim da luta
de classes ou o fim da dominação de uma classe por outro, mas a interpretação de que
no processo de consolidação democrática, é possível o surgimento de acordos políticos
e econômicos entre as classes antagônicas.

Isso, por outro lado, não significou que as democracias burguesas se desenvol-
veram como regra no mundo ocidental. Em países centrais, como Inglaterra, França e
Alemanha, as lutas do operariado por direitos trabalhistas como liberdades políticas e
sociais (como as lutas como o direito ao voto feminino), só foram conquistados no início
do século XX. Além disso, onde a ameaça de revoluções socialistas se mostrava forte,
a reação burguesa não foi tímida, inaugurando a era de regimes autoritários, como o
fascismo italiano e o nazismo alemão. Cabe lembrar que Antonio Gramsci, que atuava
como liderança do Partido Comunista Italiano, foi preso e terminou falecendo nas pri-
sões de Mussolini no ano de 1938.

Como explica Mascaro (2013), na sociedade burguesa o Estado cum-


Como explica
Mascaro (2013), na pre o papel de agente aparentemente externo à luta de classes, como um
sociedade burguesa administrador deste conflito e como gerenciador dos vários interesses con-
o Estado cumpre flitantes da própria burguesia. Como a burguesia é uma classe formada por
o papel de agente indivíduos em concorrência entre si na esfera econômica, o Estado precisa
aparentemente adquirir esta característica que é própria do Estado moderno: sua separação
externo à luta de
e diferenciação em relação às esferas social e econômica.
classes, como um
administrador deste
Tomado a partir da forma política, o Estado revela-
conflito e como se relativamente autônomo em relação à totalidade
gerenciador dos social. De fato, há uma separação entre o poder
vários interesses político e o poder econômico. A reprodução do
conflitantes da capitalismo só é possível apartando-se o poder
própria burguesia. político da miríade de agentes econômicos, tanto
burgueses quanto trabalhadores (MASCARO,
2013, p. 44).

Anteriormente, nas monarquias absolutistas, os poderes político, econômico,


social e religioso estavam concentrados no rei. Sua propriedade era a propriedade
do Estado. Ou seja, não havia separação entre Estado e sociedade civil, já que os
interesses da nobreza eram personificados na figura real. As propriedades feudais
não eram tratadas como empresas capitalistas, mas como extensões do poder
político desta classe. Não havia separação entre econômico e político.

O mesmo ocorria no modelo de exploração econômica dos camponeses. Não


havia igualdade jurídica, não havia tentativa de encobrimento na cobrança das
taxas feudais. Era uma expropriação direta dos camponeses através do exercício
da coerção física direta. Já no capitalismo, a exploração econômica se encontra

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Capítulo 2 Estado, Poder, Classes Sociais e Cultura

encoberta na esfera econômica, a partir da ideia de livre competição econômica dada


a situação de igualdade jurídica entre trabalhadores e burgueses.

Assim, em resumo, na tradição marxista o Estado moderno foi construído para


servir como uma instituição acima e aparentemente neutra em relação às classes
sociais, servindo como suporte ideológico e coercitivo à dominação burguesa. Atua como
mediador tanto dos conflitos interburgueses (ou seja, acima dos interesses individuais dos
burgueses e de suas frações específicas) como dos conflitos interclassistas. Desenvolveu-
se como instituição garantidora da ordem burguesa, tratando a todos como indivíduos
cidadãos com iguais direitos perante a lei, o que garante legitimidade à extração de mais-
valia dos assalariados pelos burgueses. No entanto, em momentos de luta de classes
extrema, renunciou a sua aparência democrática e atuou coercitivamente na contenção
dos movimentos de mudança que ameaçaram o domínio da burguesia.

Sugestão de atividade: Neste sentido, em sala de aula é possível


trabalhar o debate marxista acerca da configuração do Estado capitalista
a partir de reportagens que expressem o conflito social e as disputas entre
distintas posições políticas aí expressas, por exemplo, a partir dos debates
sobre reformas nas leis trabalhistas, previdenciárias e acerca dos “gastos”
do Estado. De um lado pode-se ver os argumentos clássicos do liberalismo,
evocando a diminuição da intromissão estatal nas relações econômicas
e diminuição de seu tamanho (posição identificada com demandas da
burguesia); do outro veremos a busca por melhores serviços públicos,
garantias de emprego e salário ou alternativas de organização econômica
(posições ligadas ao proletariado). Perceba aí como o conceito de luta de
classes não deve ser lido como uma luta aberta, mas uma luta permanente,
perpassando várias questões. Perceba também, como em geral os meios
de comunicação apresentam as ideias liberais como uma necessidade
inquestionável (exemplo abaixo), como as únicas possibilidades de
superação da crise. Mesmo que na prática as reformas tenham por objetivo a
geração de lucros através de menores gastos trabalhistas e previdenciários
(ou seja, com o que Marx definia como “valor da força de trabalho”), elas se
apresentam como necessidade de todos. Perceba aí como o conceito de
ideologia em Marx é um conceito válido para a compreensão das relações
de cominação de classe na sociedade capitalista.

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Temas e Teorias da Sociologia

FIGURA 1

Em 2016, o Brasil gastou com benefícios previdenciários 13,1% do Produto Interno Bruto (PIB); esse nível de
despesas com a Previdência só é encontrado em países muito mais envelhecidos que o nosso, como a França.
FONTE: O Estado de São Paulo. 12 dez 2017. Disponível em: <https://
economia.estadao.com.br/noticias/geral,reforma-da-previdencia-
necessaria-e-justa,70002116550>. Acesso em: 18 set. 2019.

2.2 O ESTADO E OS TIPOS IDEIAS


DE DOMINAÇÃO EM WEBER
Como vimos anteriormente, no Capítulo 1, a obra de Max Weber possui múlti-
plas dimensões. Seus escritos acerca da política e do Estado estão em boa medida
condensados na obra Economia e Sociedade (WEBER, 2004) e em outros artigos
publicados em coleções, como a organizada por Gabriel Cohn (2004). Em alguns tex-
tos Weber irá destacar alguns conceitos que considera centrais para compreensão do
fenômeno político-estatal e, no que considera ser o mais significativo, compreender
os diferentes tipos de dominação político-estatal.

A coleção de textos organizada por Gabriel Cohn é uma das


formas mais acessível de ler os textos do sociólogo Max Weber.
WEBER, Max. Max Weber. (coletânea de textos organizados por
Gabriel Cohn). São Paulo: Ática, 2003.

É importante lembrarmos que o fundamento da sociologia weberiana se en-


contra no estudo da ação social e da relação social entre indivíduos. Ou seja, busca
compreender e identificar os “tipos ideais” de ação social, que tem por base a ação
individual para então compreendermos a coletiva. Neste sentido, Max Weber entende
a “comunidade política” (como descrevia o fenômeno sociológico da relação do Es-
tado e sociedade), como (2004, p. 155, grifos do autor):

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Capítulo 2 Estado, Poder, Classes Sociais e Cultura

Compreendemos por comunidade política aquela em que a ação


social se propõe a manter reservados, para a dominação ordenada
pelos seus participantes, um "território" (não necessariamente um
território constante e fixamente delimitado, mas pelo menos de al-
guma forma delimitável em cada caso) e a ação das pessoas que,
de modo permanente ou temporário, nele se encontram, mediante
a disposição do emprego da força física, normalmente também ar-
mada (e, eventualmente, a incorporar outros territórios).

Em síntese, o autor parte da compreensão de que é das unidades mais Para Weber, a
básicas de associação política, que regule e proteja os seus membros, como política é o exercício
os clans familiares ou interfamiliares, clubes secretos ou grupos religiosos fe- do poder puro, da
chados (como os quáqueres), é que é possível compreender este tipo de capacidade de
ação social política, que não tem objetivo meramente econômico e que se exercer a coerção
física direta sobre
exerce ultimamente pelo uso da força. Para Weber, a política é o exercício
os indivíduos de
do poder puro, da capacidade de exercer a coerção física direta sobre uma determinada
os indivíduos de uma determinada comunidade política ou contra outras. comunidade política
ou contra outras.

O Estado em Weber: “Todo Estado se funda na força’, disse um dia


Trotsky a Brest-Litovsk. E isso é verdade. Se só existirem estruturas sociais
de que a violência estivesse ausente, o conceito de Estado teria também
desaparecido e apenas substistiria o que, no sentido próprio da palavra,
se denomina “anarquia”. A violência não é, evidentemente, o único instru-
mento de que se vale o Estado - não haja a respeito de qualquer dúvida -,
mas é seu instrumento específico. Atualmente, a relação entre o Estado e a
violência é particularmente íntima. Em todos os tempos, os agrupamentos
políticos mais diversos - a começar a família - recorreram a violência física,
tendo-a como instrumento normal do poder. Em nossa época, entretanto,
devemos conceber o Estado contemporâneo como uma comunidade hu-
mana que, dentro dos limites de determinado território [...] reivindica o mo-
nopólio do uso legítimo da violência física” (WEBER, 2017, p. 56).

O regulamento legal
da coação física
O desenvolvimento do Estado passa pela extensão desta comunida- é o que confere
de que se alicerça na lei. O regulamento legal da coação física é o que con- legitimidade última
fere legitimidade última a uma comunidade política, o que irá ser designado a uma comunidade
de Estado. Esta legitimidade confere poder sobre as outras comunidades e política, o que irá
os indivíduos, atuando como expressão máxima da “comunidade política. ser designado de
Estado.
Weber assim explica:

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Temas e Teorias da Sociologia

A posição moderna das associações políticas baseia-se no pres-


tígio que lhes concede a crença específica, difundida entre os
participantes, numa especial sagração, dada pela "conformidade
à lei" da ação social por elas ordenada. E isso também e preci-
samente quando esta ação compreende coação física, incluindo
o poder sobre vida e morte: trata-se, no tocante a essa situação,
do reconhecimento específico da sua legitimidade. Esta crença
na "conformidade à lei" específica da ação de associação política
pode intensificar-se o que de fato é o caso nas condições moder-
nas - até o ponto em que, exclusivamente, certas comunidades
políticas (sob o nome de "Estados") são consideradas capacita-
das a ordenar ou admitir a aplicação de coação física "conforme a
lei" por parte de outras comunidades quaisquer. Em consonância
com isso, para o exercício e a ameaça desta coação, existe, na
comunidade política plenamente desenvolvida, um sistema de
ordens casuísticas, às quais se costuma atribuir aquela "legiti-
midade" específica: a "ordem jurídica", da qual a única criadora
normal é considerada hoje a comunidade política, porque de fato
tem usurpado, em regra, o monopólio de impor, mediante coação
física, a observação daquela ordem (WEBER, 2004, p. 157).

Assim, historicamente, o poder estatal reside na capacidade legítima de utilizar


a força física contra os indivíduos. Contudo, historicamente a legitimidade pela lei é a
última forma a ser desenvolvida, que é o que compreendemos como o Estado e os go-
vernos modernos.

Seguindo o método de estabelecer tipos ideias, Weber irá descrever três tipos
ideais de dominação e legitimação do poder: a tradicional (patrimonialista), a caris-
mática e a racional-legal (ou burocrática).Isso não significa que não tenha desenvolvido
outros, mas estes três seriam o que permitiriam abranger várias evidências dispersas
pela história. E para estudar os três tipos de dominação e legitimação do poder, é im-
portante compreender os quatro tipos ideais de ação individual. Para Héctor Saint-Pier-
re (2004, p. 101), “Weber construiu a tipologia da ação para prover-se de um arcabouço
categorial que lhe permitisse articular uma rede conceitual capaz de suportar sua teoria
da legitimidade da dominação”.

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Capítulo 2 Estado, Poder, Classes Sociais e Cultura

A política e a ciência em Weber: “a causa [política] é tomada ou aban-


donada, abraçada ardorosamente ou combatida até a morte, de acordo
com sua ‘dignidade’, sem que nenhum juízo científico possa ajudar-nos
em nossa escolha ou em sua justificação; e, quando a abraçamos, faze-
mo-lo com paixão” [...]. A ‘causa’ orienta, a ‘paixão’ empurra; está como
causa eficiente, aquela como final. Entre ambas, a ciência pode contri-
buir para a ação propondo os meios mais adequados para atingir os fins
previamente determinados, prevendo e calculando seus efeitos possíveis;
mas com respeito à ‘dignidade’ da causa, a ciência é e permanecerá eter-
namente muda” (SAINT-PIERRE, 2004, p. 87)

Assim, a dominação, “ou seja, a probabilidade de encontrar obediência a um deter-


minado mandato” (WEBER, 2003, p. 128), pode ser distinguido em três tipos ideias:

Dominação legal:
• Dominação legal: aquela em que não se obedece a uma pessoa por seu
aquela em que não
poder próprio, mas sim pela regra legal que confere poder e legitimidade se obedece a uma
a pessoa na posição de poder (seja um governante ou burocrata), a partir pessoa por seu
da lei e do regulamento instituído. Como diz Weber, “seu tipo mais puro é poder próprio, mas
a dominação burocrática” (WEBER, 2003, p. 128), O funcionário deste Es- sim pela regra legal
tado é aquele que tem formação profissional relativo ao cargo que ocupa e que confere poder
e legitimidade a
seu objetivo é trabalhar conforme regras racionais e não por motivos pes-
pessoa na posição
soais. Ou seja, esta é a dominação típica dos Estados que instituíram servi- de poder (seja
ços públicos e direitos de cidadania universais. Weber explica, porém, que um governante
nenhum Estado é exclusivamente burocrático. Geralmente os cargos mais ou burocrata),
altos são destinados à figuras políticas (seja por monarcas, presidentes ou a partir da lei e
parlamentares), mas o que caracteriza a dominação legal-burocrática é que do regulamento
instituído.
as políticas são executadas por um corpo de burocratas profissionais, seja
nos serviços públicos, seja na justiça e até mesmo no corpo parlamentar e
governamental (os políticos tem limites de atuação destacados pela lei).
• Dominação Tradicional: é aquela que se constitui “em virtude da crença na
Dominação
santidade das ordenações e dos poderes senhoriais de há muito existentes”.
Tradicional: é aquela
“Seu tipo mais puro é o da dominação patriarcal”, aquela que possui caráter que se constitui “em
comunitário, onde “quem ordena é o ‘senhor’, e os que obedecem são ‘súdi- virtude da crença
tos’, enquanto o quadro administrativo é formado por servidores” (WEBER, na santidade das
2003, p. 131). A obediência é dada pela dignidade e santidade própria de ordenações e dos
quem manda. Quem obedece, obedece por fidelidade. A legitimidade das or- poderes senhoriais
de há muito
dens se dá pela tradição e sua obediência milenar. Porém, por não ser um
existentes”.
código escrito, mas baseado no reconhecimento da tradição, há espaço para

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Temas e Teorias da Sociologia

arbítrios, onde o senhor age conforme seu prazer e simpatias e antipatias puramente
pessoais. No quadro administrativo os servidores atuam conforme dependentes pesso-
ais do senhor (amigos, parentes, vassalos). Aqui não há competência profissional nem
estatuto legal das funções dos servidores. Eles atuam por mando pessoal e pela discri-
ção dada pelo seu senhor. Historicamente, podemos vincular esta forma de dominação à
sociedade do antigo regime e da antiguidade, ao poder dos senhores feudais, dos prínci-
pes, de sultanatos a monarquias: “todos os verdadeiros despotismo tiveram esse caráter,
segundo o qual o domínio é tratado como um direito corrente de exercício do senhor”
(WEBER, 2003, p. 132).
• Dominação carismática: é o tipo de dominação que se dá “em virtude de devoção afe-
tiva à pessoa do senhor e a seus dotes sobrenaturais (carisma) e, particularmente: fa-
culdades mágicas, revelações ou heroísmo, poder intelectual ou de oratória” (WEBER,
2003, p. 135). Assim, quem manda, o líder, o faz porque possui seguidores, tais como
Dominação “apóstolos”, que o seguem por crença nas capacidades extraordinárias do
carismática: é o líder. Assim, não é um poder que reside na lei ou na virtude da tradição. O po-
tipo de dominação der de dominação do líder pode ser perdido quando decai a “fé” de seus se-
que se dá “em guidores na crença de suas qualidades. Aqui também não há critério racional
virtude de devoção
de competência para os que exercem cargos administrativos na dominação
afetiva à pessoa
do senhor e a seus carismática. A escolha é feita pela posição de carisma e proximidade ao líder,
dotes sobrenaturais não seguindo fatores tradicionais ou legais. Historicamente este tipo de domi-
(carisma) e, nação está vinculada aos antigos demagogos gregos e às figuras políticas ou
particularmente: religiosas que adquirem poder pela capacidade de criar legiões fiéis, a partir
faculdades mágicas, de um suposto poder mágico ou de oratória e vinculação pessoal. Na Améri-
revelações ou
ca Latina, vincula-se à tradição do caudilhismo e do populismo.
heroísmo, poder
intelectual ou de
oratória” (WEBER, A partis dos tipos ideais de dominação, Weber busca apresentar um
2003, p. 135). modelo pela qual a realidade histórica possa ser estudada pela aproxima-
ção ou não com cada um destes modelos. E historicamente, a dominação
não se apresenta “idealmente”, mas como uma mistura destes tipos de dominação.
Na realidade, pode haver um tipo de dominação cuja legitimidade pode ser encon-
trada nas três formas de dominação, com uma sendo dominante em determinado
momento e outra em outro. Estes tipos ideais servem para evidenciar como o poder é
legitimado pelas pessoas e qual o tipo de ação social é realizada pelo indivíduo para
aceitar esta dominação (se racionalmente, por força da tradição ou por afetividade).

Apesar de destacar que a dominação legal e burocrática ser a mesma emprega-


da também nas empresas econômicas modernas, que atuam de forma estritamente
racional (visando fins), Weber se furtou de relacionar as relações entre o poder políti-
co e o poder econômico, tal como o fez Marx, sendo uma das críticas mais apontadas
ao modelo weberiano (SAINT-PIERRE, 2014, p. 104).

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Capítulo 2 Estado, Poder, Classes Sociais e Cultura

Sugestão de atividade em sala de aula: uma sugestão de ativida-


de para trabalhar com seus alunos em sala de aula seria fazer os alu-
nos pesquisar reportagens que exponham como os interesses privados
de grandes empresas atuam sobre o Estado, seja através de práticas
legais, através de associações econômicas, debates nos meios de co-
municação, doações a candidatos que defendam suas propostas, ou
mesmo de práticas corruptas. Neste sentido, peça para os alunos rela-
cionarem os conteúdos trabalhados.

2.3 AS ELITES POLÍTICAS E


DEMOCRACIA PROCEDIMENTAL
Você já parou para se perguntar por que mesmo nas democracias mais avançada
ou mesmo nas experiências com propostas de participação política mais revolucioná-
rias o trabalho da “política” acaba sendo realizado sempre por um pequeno grupo de
pessoas, que já são ou se tornam “profissionais da política”?

Na sociologia política, para além da tese weberiana da tendência da burocratiza-


ção nas sociedades modernas, desenvolveram-se duas grandes teorias que descre-
vem a política como atividade de elites profissionalizadas e onde a democracia não
mais seria sinônimo de participação popular, mas de um espaço onde elites disputam
o voto das massas utilizando-se técnicas de marketing moderno. Estamos falando da
chamada teoria das elites, desenvolvidas na obra “Sociologia dos Partidos Políticos de
Robert Michels” (1982) e, da teoria da democracia procedimental, na obra de Joseph
Schumpeter (1984), “Capitalismo, socialismo e democracia”.

Robert Michels, o partido político mais representativo de sua época era o Partido
Social-Democrata da Alemanha, pois representava as tendências mais democratizan-
tes de sua época. No entanto, pela própria necessidade da luta política eleitoral, estes
partidos tornaram-se organismos controlados por uma oligarquia de dirigentes partidá-
rios (MICHELS, 1982, p. 21):

inelutavelmente organismos oligárquicos, mesmo os mais democrá-


ticos, isto é, os partidos socialistas. Esta seria a dura lição da experi-
ência. [...] A organização tem o efeito de dividir todo partido ou sindi-
cato profissional em uma minoria dirigente e uma maioria dirigida. [...]
Quem fala em organização fala em tendência à oligarquia.

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Temas e Teorias da Sociologia

Em outras palavras, percebia um paradoxo, que o levava a uma visão pessimista


do poder de transformação liderados por partidos políticos. Mesmo que defendessem a
democracia, a necessidade de organização dos partidos socialistas de maneira quase
militar, com disciplina e liderança, acaba por contradizer as expectativas de expansão
da democracia e transformação social: “podemo-nos perguntar igualmente se a cisão
aguda que existe no terreno político, entre partidos de classe representando interesses
de classes, não é um jogo inútil e condenável” (MICHELS, 1982, p. 138).

As transformações produzidas pela organização partidária acabavam acarretando


no afastamento cada vez maior entre os “chefes” (lideranças partidárias) dos seus mi-
litantes de base. Haveria também, por conta da luta sindical, eleitoral e organizativa da
estrutura partidária, a formação de uma camada de profissionais que não mais seriam
membros da classe operária, apesar de proclamarem falar em seu nome. Michels des-
crevia como um fenômeno de “aburguesamento dos partidos operários”: “todo membro
da classe operária aspira elevar-se a uma classe superior que lhe garanta uma existên-
cia melhor e mais longa. Elevar-se até a pequena-burguesia: esse é o ideal individual
do operário” (MICHELS, 1982, p. 187)

Esta seria a sua “lei de bronze da oligarquia”. Ou seja, uma lei histórica que todo
tipo de organização social vai levar ao surgimento de uma classe de indivíduos acima
dos demais, uma elite dominante. Esta teoria se relaciona em partes com a teoria da
tendência à burocracia vista em Weber. Para Michels (1982, p. 230), contrariando os
preceitos revolucionários do marxismo:

Marx pretende que entre a destruição da sociedade capitalista e o


estabelecimento da sociedade comunista haverá um período de
transição revolucionária, período econômico, ao qual correspon-
derá um período de transição política “durante a qual o Estado
não poderá ser outra coisa a não ser a ditadura revolucionária do
proletariado”; ou, para utilizar uma expressão menos eufêmica,
assistiremos, nesse caso, à ditadura dos chefes que tiveram a
astúcia e a força para arrancar das mãos da sociedade burguesa
agonizante, em nome do socialismo, o espectro da dominação.

Assim, o pessimismo de Michels revela que tendências conservadoras podem


surgir em qualquer movimento revolucionário, tendo inclusive sido atestada pela crítica
de Trotsky à degeneração burocrática da U.R.S.S. Por outro lado, esta teoria das elites
aplicada à política parece levar à tese de que não haveria mudanças sociais, visto
que a organização política sempre acarretaria a formação de novas elites do poder.
Entretanto, nas democracias, a disputa destas elites poderia ser benéfica desde que
reguladas pelo procedimento do voto, garantindo liberdade de expressão e de mídia.

Esta leitura tornou-se melhor conhecida na obra do economista liberal Joseph Schum-
peter, que marcou a teoria política do século XX por sua doutrina da democracia procedimen-
tal. Para Schumpeter, as democracias não eram expressões da participação do povo na políti-

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Capítulo 2 Estado, Poder, Classes Sociais e Cultura

ca, mas espaços em que elites políticas disputam o voto das “massas” (vistas como indivíduos
sem capacidade de organização própria, manipuláveis). Para ele, “bem comum” e “vontade
do povo” eram objetos de fé religiosa, não um fato observável (SCHUMPETER, 1984, p. 315).

Schumpeter estabelece a “natureza humana da política” em analogia à psicologia das


multidões, que as multidões aglomeradas não possuem lógica ou racionalidade, e à teoria
econômica sobre o consumidor. Revela-se que o consumidor, tal como o eleitor, não possui
necessidades próprias muito claras, mas sim que o mercado - tanto econômico como o polí-
tico - lhes transfere e formula necessidades e pautas. Não haveria “vontade nacional” (a não
ser em regimes autoritários) e grande parte dos eleitores não pensa politicamente de maneira
racional. Assim “vontade do povo” é o resultado do processo político, ou seja, uma vontade
criada pelo “marketing político”, não a causa das posições políticas.

As democracias, desta forma, estariam resumidas não a um sistema de expressão das


vontades populares, da participação popular, mas um método, um procedimento. Conforme
explica Schumpeter (1984, p. 329): “O método democrático é um sistema institucional, para
a tomada de decisões políticas, no qual o indivíduo adquire o poder de decidir mediante uma
luta competitiva pelos votos do eleitor”. Neste sentido, “a escolha glorificada idealmente como
o chamado do povo, não é iniciativa deste último, mas criada artificialmente.[...] Os eleitores
se limitam a aceitar essa candidatura de preferência a outras, ou a recusar-se a sufragá-la.”
(SCHUMPETER, 1984, p. 344).

Neste sentido, a organização partidária, aproximando-se da clássica tese de Michels,


se resumiria a uma série de indivíduos organizados hierarquicamente, disputando entre si o
poder do partido, e, através do partido contra outros partidos, o poder do Estado. Neste senti-
do, nas democracias modernas Schumpeter os partidos deveriam ser vistos como estruturas
competitivas, tal como empresas na economia disputando consumidores (1984, p. 344):

O partido não é, como nos queria convencer a doutrina clássica (ou


Edmund Burke), um grupo de homens que tenciona promover o
bem-estar público baseado em algum princípio comum. Essa raciona-
lização é muito perigosa justamente porque é muito tentadora. [...] O
partido é um grupo cujos membros resolvem agir de maneira concer-
tada na luta competitiva pelo poder político. Se não fosse assim, seria
impossível aos diversos partidos adotar exatamente, ou quase exata-
mente, os mesmos programas. E isso acontece, como todos sabem.
Partido e máquina eleitoral constituem simplesmente a reação ao fato
de que a massa eleitoral é incapaz de outra ação que não o estouro
da boiada. Representam, por conseguinte, uma tentativa de regular a
luta eleitoral da maneira exatamente semelhante à que encontramos
nas associações patronais de comércio. A psicotécnica da admi-
nistração e da propaganda partidária, slogans e marchas patrióticas
não constituem, pois, acessórios, mas a própria essência da política.
Da mesma maneira, o chefe político

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Temas e Teorias da Sociologia

Esta ideia de democracia procedimental tornou-se bastante adotada por cientis-


tas políticos. Um dos mais conhecidos, Robert Dahl (2005), descreve a democracia
como uma “poliarquia”: um espaço em que elites políticas disputam o poder através
do voto dos cidadãos. Estes estudos, desenvolvidos a partir da ótica da análise eco-
nômica individual tornaram-se base para a reivindicação “científica” dos promotores
da Ciência Política. Para eles, afastando-se da filosofia política (que estaria mais no
terreno da especulação e disputas políticas), defendiam que a descrição objetiva dos
procedimentos e da organização do Estado e partidos a partir de uma leitura procedi-
mental garantiria a objetividade científica de sua área de conhecimento (em oposição
a sociologia em geral).

Sugestão de atividade: ao apresentar as ideias de Michels, Schum-


peter e Dahl a seus alunos, busque antes de tudo realizar uma avaliação
diagnóstica com seus alunos acerca de como eles percebem a “política” e
os “políticos”. A partir deste diagnóstico e dos elementos apresentados, será
muito mais fácil fazê-los entender os conceitos da teoria das elites, demo-
cracia procedimental ou de poliarquia: mais do que explicar uma realidade,
eles expressam uma tendência perceptível nas sociedades democráticas
de afastamento cada vez maior entre os “políticos” e o “povo”.

Por outro lado, mesmo que tendo consistência nas várias pesquisas empíricas le-
vadas a cabo pelos cientistas políticos, muitos carecem de interpretação das bases reais
pela qual se emana o poder político e das bases da legitimidade ou não deste poder. Des-
ta forma, a fim de compreender as bases pela qual opera a política, a sociologia particu-
larmente tem como campo de atuação o estudo das relações sociais estabelecidas pelos
indivíduos e as classes e grupos sociais estabelecidos nestas relações.

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Capítulo 2 Estado, Poder, Classes Sociais e Cultura

1 Um dos temas centrais da sociologia é a compreensão do


fenômeno do poder político-estatal. Sobre como o Estado
pode ser descrito na tradição marxista, assinale a alternativa
CORRETA:

( ) a) como uma comunidade humana que, dentro dos limites de


determinado território “reivindica o monopólio do uso legítimo da
violência física”
( ) b) espaços em que elites políticas disputam o voto das “massas”.
( ) c) monarquias absolutistas, onde o poder político, econômico,
social e religioso estava concentrados no rei.
( ) d) como agente aparentemente externo à luta de classes, como
um administrador deste conflito e como gerenciador dos vários
interesses conflitantes da própria burguesia.

2 Segundo a obra de Weber, descreva os três tipos ideais de


dominação política e suas características gerais.

R.:____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________

3 A obra de Joseph Schumpeter ficou marcada pela enunciação


da teoria da democracia procedimental. Qual era seu argumento
central?

( ) a) Que a democracia era uma comunidade humana que, dentro dos


limites de determinado território reivindica o monopólio do uso legítimo
da violência física.
( ) b) Que as democracias não eram expressões da participação do povo
na política, mas espaços em que elites políticas disputam o voto das
“massas”.
( ) c) Que a democracia é uma instituição acima e aparentemente neutra
em relação às classes sociais, servindo como suporte ideológico e
coercitivo à dominação burguesa.
( ) d) Que a democracia constituiu o “bem comum” e a “vontade do povo”.

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Temas e Teorias da Sociologia

3 AS CLASSES SOCIAIS NA
SOCIEDADE MODERNA:
IDENTIDADES, DINÂMICAS E
CONFLITOS
Conforme destacado desde a primeira unidade, o estudo da Sociologia deve ser
relacionado sempre ao contexto histórico e social de sua produção. Quando nos de-
paramos com a sociologia clássica de Marx, Durkheim e Weber, é visível como os
problemas relativos à organização da sociedade, dos seus conflitos e formas de re-
produção, ocupou boa parte destas obras.

As teorias sobre a luta de classes no capitalismo em Marx ou do estudo das


“anomalias” sociais em Durkheim (como a falta de associações profissionais que mi-
tigassem a extrema concorrência do mercado), são dirigidas diretamente pela obser-
vação do fenômeno de conflito social que transbordava nas sociedades europeias do
século XIX.

Neste contexto, principalmente a partir das revoluções nacionais de 1848 é que


temos a formação dos primeiros partidos e sindicatos de operários, culminando com
a formação do maior partido de massas da Europa no final do século XIX, o Partido
Social-Democrata Alemão, com milhões de filiados organizados a partir das suas bases
sindicais. Por outro lado, a burguesia, já aliada às antigas classes dominantes rurais
(como os junkers na Alemanha), buscavam formas de enfrentar este avanço da orga-
nização dos trabalhadores assalariados, através do enfrentamento e repressão física,
tanto quanto a concessão de benefícios materiais e políticos, como a extensão do direi-
to ao voto aos homens do povo (posteriormente, às mulheres) e criação das primeiras
formas de legislação trabalhistas.
As pesquisas sobre
conflitos sociais As pesquisas sobre conflitos sociais permaneceram como um dos mais
permaneceram significativos campos de estudos no século XX. Neste sentido, neste tópico
como um dos buscaremos apresentar em linhas gerais o desenvolvimento da teoria so-
mais significativos ciológica sobre classes sociais, conflitos e identidades, tendo em vista as
campos de estudos
mudanças observadas a partir do contexto histórico do século passado.
no século XX.

Conforme já vimos, o conceito de classes sociais e luta de classes são centrais


para a compreensão do fenômeno político para o marxismo. O “poder político” sempre
reside em identificar as origens deste poder nas relações sociais de produção no seio
de uma determinada sociedade. Dito isso, como as classes se organizam, quais seriam
suas formas de identidade, de conflitos internos?

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Capítulo 2 Estado, Poder, Classes Sociais e Cultura

A questão parece ter se complexificado no século XX, particularmente para a tra-


dição marxista, visto que as principais revoluções socialistas não ocorreram nos países
centrais do capitalismo e que o proletariado nestes países não consolidou grandes par-
tidos revolucionários, mas, sim, grandes partidos reformistas e trabalhistas.

Por outro lado, a interpretação liberal-weberiana, que busca identificar a ação so-
cial sob a ótica da racionalidade individual e econômica, não consegue explicar a força
com que as classes sociais se expressão na política e na disputa por projetos políticos
na sociedade, visto que no século XX tivemos o desenvolvimento dos primeiros “parti-
dos de massas”, notadamente os ligados ao proletariado industrial europeu. Por outro
lado, para Durkheim, a falta de organizações que garantissem a solidariedade profissio-
nal parecia levar os indivíduos ao isolamento e a falta de identidade pessoal.

Como podemos ver, a partir do confronto com algumas teses da sociologia clás-
sica, muitos sociólogos puderam colocar novas questões de pesquisa e buscar novas
fontes e métodos de estudo. Outra questão que se colocou na sociologia do século XX
foi o estudo dos impactos das mudanças tecnológicas e organizacionais no chamado
“mundo do trabalho”. Ou seja, como o desenvolvimento das tecnologias foi modificando
a forma como os seres humanos se relacionam com seu trabalho e sociedade. Este
tornou-se um espaço de ampla discussão teórica, muitas vezes unindo os clássicos em
novas sínteses teóricas e produzindo novas formas de enxergar a realidade social.

3.1 AS CLASSES SOCIAIS,


CONSCIÊNCIA DE CLASSES E
CONFLITO POLÍTICO NA TRADIÇÃO
MARXISTA
Para a maioria dos marxistas que se dedicaram à análise de classes na sociedade
capitalista do século XX, havia a carência de uma conceituação de classes A obra de maior
mais apurada para ser empregada nas análises sociológicas. A obra de maior desenvoltura teórica
desenvoltura teórica e conceitual de Marx, O Capital, permaneceu inacabada e conceitual de
pela sua morte e junto a ela a parte reservada ao estudo e conceituação das Marx, O Capital,
classes sociais. Como explica Bottomore (2001, p. 61): “o conceito de classe permaneceu
inacabada pela sua
tem importância capital na teoria marxista, conquanto nem Marx nem Engels
morte e junto a ela
jamais o tenham formulado de maneira sistemática”. a parte reservada
ao estudo e
conceituação das
classes sociais.

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Temas e Teorias da Sociologia

De maneira geral, Marx costumava se referir às classes sociais em


duas formas: uma primeira, encontrada no manifesto comunista, reduzindo
toda sociedade capitalista à disputa entre detentores dos meios de produção
versus vendedores da força de trabalho. A outra seria explicitando as várias
subdivisões de classe, como os de proprietários de terra rentistas, dos
banqueiros, dos industriais, dos pequeno-burgueses (referidos geralmente
como trabalhadores autônomos que possuem seus meios de produção,
como o campesinato ou artesãos) e das várias categorias de trabalhadores
que formam o proletariado (divididos em trabalhadores “produtivos” e
“improdutivos” em relação à geração de mais-valia) e daqueles que
pertenciam à “superpopulação relativa”: os desempregados (o “exército de
reserva”), pessoas idosas, enfermas ou vivendo em extrema penúria. Em
algumas obras, referia-se às margens mais pauperizadas da sociedade pelo
termo inglês de lumpemproletariado, aqueles que não possuíam as condições
mínimas para venda do seu trabalho, vivendo do crime ou da mendicância.

Engels teria feito uma tentativa de sistematizar e expor algumas complexificações


da teoria de classes de Marx na sua edição do terceiro volume (inacabado) de O
Capital. Para ele, camadas intermediárias e transitórias acabam obscurecendo os
limites entre as classes (BOTTOMORE, 2001, p. 62). Além disso, para os marxistas,
as classes sociais seriam situações típicas do capitalismo, sendo que anteriormente as
lutas se davam por grupos ou estamentos, sendo que a experiência de classe social só
se daria no mundo burguês.

Um dos pesquisadores marxistas que tentou criar uma conceituação a partir


da obra de Marx foi o grego Nicos Poulantzas (1971). Para este autor, apenas os
trabalhadores “produtivos” (ou seja, os que estão em situação de exploração direta do
capital, produzindo a mais-valia) formaria o proletariado industrial moderno. Os demais
trabalhadores seriam situados entre os “pequeno-burgueses” e “setores intermediários”.
Já as classes dominantes seriam distribuídas por uma variedade de categorias
conceituais, como burguesia interna, burguesia compradora, ou burguesia imperialista.

Esta conceituação de Poulantzas serviria para compreensão das posições de


classe referidas nas diversas disputas políticas nas sociedades capitalistas, que não se
resumiriam à luta de classes entre proletariado e burguesia, mas das disputas destas
classes em suas múltiplas “frações de classe” (suas subdivisões internas). Estas
posições poderiam ser analisadas a partir da “consciência de classe” que é desenvolvida

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Capítulo 2 Estado, Poder, Classes Sociais e Cultura

na luta política entre estas frações de classe, já que a questão da consciência socialista
e revolucionária do proletariado não aparecia no século XX como uma expressão direta
da situação de identidade entre o proletariado, mas sim como um elemento político e
teórico a ser desenvolvido pela classe na sua organização em partido político.

Contudo, apesar da tentativa de definição conceitual trazer facilidades à análise


de classes, elas tornam-se complicadas quando se realiza a análise empírica destas
classes. A dubiedade analítica na obra de Marx e as tentativas de resolvê-la trouxeram
incertezas para a conceituação de classes sociais no capitalismo desenvolvido do
século XX. Com descreve Michael Löwy (2006, p. 117-118),

Há várias maneiras de se definir o proletariado. Existe uma que


é bastante tradicional, que me parece insuficiente, sobretudo
hoje em dia, tanto nos países capitalistas avançados, como
nos países do terceiro mundo, é a concepção para a qual o
proletariado é igual à classe operária industrial, produtiva, no
sentido econômico do termo. Para mim, o conceito marxista do
proletariado é muito mais amplo. O proletariado é o conjunto
daqueles que vivem da venda de sua força de trabalho. Isso inclui
não só a classe operária industrial, como uma série de camadas
que tradicionalmente eram de origem pequeno-burguesa (ou da
classe média) mas que conheceram ou estão conhecendo no
período histórico contemporâneo um processo de proletarização
ou de semiproletarização.

A questão central que se colocou para a sociologia marxista em relação a sua


análise de classes tradicional foi a de que a promessa de revoluções socialistas nos
países centrais parecia não estar ocorrendo e os partidos revolucionários não eram os
que majoritariamente reuniam o proletariado industrial. Conforme explica o marxista
francês Henri Weber (1972, p. 10):

Contrariamente ao postulado-base do marxismo, o potencial


revolucionário das massas populares não cresceu com o
desenvolvimento do capitalismo avançado. Aparentemente, foi
o contrário que se verificou. Principalmente a partir da Segunda
Guerra Mundial, mas já muito antes, nos países anglo-saxões
e escandinavos, que o crescimento do capitalismo avançado é
acompanhado por uma crescente integração da classe operária

A questão colocou-se principalmente no debate em relação ao conceito de


“consciência de classe”. Segundo Lenin (2010), a consciência da classe dominante
atua como ideologia dominante da sociedade, ou seja, a ideologia que defende que os
indivíduos são todos iguais e podem igualmente concorrer no mercado por melhores
posições. Neste sentido, o desenvolvimento da consciência da classe do proletariado
desenvolve-se das lutas individuais às lutas coletivas nos locais de produção, avançando
ao que seria o desenvolvimento de uma “consciência trade-unista” (sindical).

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Temas e Teorias da Sociologia

Coletivamente, o proletariado teria consciência de disputar melhorias com os


burgueses utilizando-se de seus mecanismos de “luta econômica”, como as greves.
Desta luta derivar-se-ia a luta política, que, contudo, se limitada à consciência sindical,
estaria limitada à conquista de melhorias trabalhistas e democráticas; porém, não
libertariam o proletariado de sua dominação.

Os operários, já Os operários, já dissemos, não podiam ter ainda


dissemos, não a consciência social-democrata. Esta só podia
podiam ter ainda a chegar até eles a partir de fora. A história de todos
consciência social- os países atesta que, pelas próprias forças, a classe
democrata. Esta operária não pode chegar senão a consciência
só podia chegar sindical, isto é, à convicção de que é preciso unir-
até eles a partir de se em sindicatos, conduzir a luta contra os patrões,
exigir do governo essas ou aquelas leis necessárias
fora. A história de
aos operários etc. (LENIN, 2010, p. 110).
todos os países
atesta que, pelas
próprias forças, Para fazer o operariado se libertar da opressão do capital, seria ne-
a classe operária cessário utilizar-se da ciência revolucionária, o marxismo, para organizar
não pode chegar o proletariado como partido revolucionário. Assim, a organização do prole-
senão a consciência tariado em classe e o desenvolvimento de uma consciência revolucionária
sindical, isto é, à
nesta classe deveria passar necessariamente pela organização do pro-
convicção de que
é preciso unir-se letariado em partido político revolucionário. Este seria organizado a partir
em sindicatos, da união da “vanguarda do proletariado” com a intelectualidade marxista
conduzir a luta (muitas vezes de origem pequeno-burguesa), ou seja, uma união entre os
contra os patrões, membros mais destacados na luta sindical do proletariado com os que tra-
exigir do governo riam a ciência da revolução (o materialismo-dialético). Neste sentido, para
essas ou aquelas
Lenin o proletariado seria potencialmente revolucionário, desde que orga-
leis necessárias
aos operários etc. nizado em partido com as ferramentas necessárias, que seria o próprio
(LENIN, 2010, p. marxismo.
110).
Esta realidade se delineou e foi debatida no início do século XX tanto na
Rússia como na Alemanha. No entanto, se na Rússia o proletariado organizado no partido
bolchevique promoveu a primeira grande revolução comunista da história, na Alemanha
o partido social-democrata desenvolveu-se como um grande partido de massas eleitoral
e reformista, abandonando a proposta revolucionária em favor da formação de governos
de conciliação entre as classes antagônicas a partir do desenvolvimento do Estado demo-
crático (tese desenvolvido incialmente por Eduard Bernstein). Esta realidade colocava um
problema para os teóricos marxistas. A resposta inicial, tanto de Lenin foi a acusação de
“traição” por parte das lideranças da social-democracia alemã.

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Capítulo 2 Estado, Poder, Classes Sociais e Cultura

Para conhecer melhor os debates entre intelectuais marxistas no


ocidente, sugerimos a seguinte obra:

ANDERSON, Perry. Considerações sobre o marxismo ocidental:


nas trilhas do materialismo histórico. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004.

Como explicar por que o proletariado teria seguido seus líderes nesta
O sociólogo Adam
traição? Neste sentido, o sociólogo Adam Przeworski, na obra “Capitalismo e Przeworski, na
social-democracia” (1989) buscou resgatar a contribuição do marxista Antonio obra “Capitalismo e
Gramsci acerca do estudo das relações de forças na luta de classes a fim de social-democracia”
questionar as definições de classes no marxismo. (1989) buscou
resgatar a
contribuição do
Przeworski desenvolveu a tese de que nas democracias ocidentais as
marxista Antonio
classes dominantes, a fim de desenvolver a sua “hegemonia” de classe - ou Gramsci acerca
seja, desenvolver a ideia que seus interesses são os interesses que devem do estudo das
guiar o desenvolvimento de toda a sociedade -, precisam conceder benefí- relações de forças
cios políticos e econômicos às classes dominadas, a fim de que estas con- na luta de classes
sintam à dominação. Além disso, identificou historicamente que foi o próprio a fim de questionar
as definições
proletariado que buscou desenvolver melhorias dentro do sistema de do-
de classes no
minação quando seus partidos aceitaram participar da luta política eleitoral marxismo.
da democracia burguesa. Esta estratégia eleitoral acabou reduzindo a luta
do proletariado à conquista de melhorias sem se aventurar na luta revolucionária, que
traria riscos enormes. Assim, o partido social-democrata alemão não teria realizado
uma “traição” de classe. Desta forma, como explica Przeworski (1989, p. 174):

Organizado como uma democracia capitalista, o sistema


hegemônico estabelece uma forma de compromisso de classes,
no sentido de que nesse sistema nem o agregado dos interesses
capitalistas individuais nem os interesses dos assalariados
organizados podem ser violados além de limites específicos.

No entanto, ao organizarem-se em partidos eleitorais, o proletariado


acabou fragilizando sua organização política de classe, já que como partido Ao organizarem-
eleitoral, necessitava ampliar suas reinvindicações para os membros se em partidos
eleitorais, o
de outras classes. Assim, reduzia sua identidade política que seria
proletariado acabou
exatamente a sua identidade de classe. fragilizando sua
organização política
de classe

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Temas e Teorias da Sociologia

Desta forma, para além da determinação conceitual de classes como realizada


em Poulantzas, seria necessário avaliar as classes sempre processualmente, visto
os resultados das estratégias adotadas nas lutas políticas também atuam constan-
temente no processo de organização e desorganização das classes sociais. Neste
sentido, as classes não deveriam ser analisadas pelos seus “lugares de produção”,
mas pelos seus esforços de organização sindical e políticos e pelas consequências
das estratégias de luta implementadas.

as posições nas relações de produção, ou quaisquer outras


relações, não são mais, portanto, consideradas objetivas no
sentido de serem anteriores às lutas de classes. São objetivas
apenas na medida em que validam ou invalidam as práticas de
formação de classes, na medida em que tornam os projetos
específicos realizáveis ou não. E aqui o mecanismo de
determinação não é único; vários projetos podem ser viáveis
em uma dada conjuntura. Portanto, as posições nas relações
sociais estabelecem limites para o sucesso da prática política,
mas dentro desses limites historicamente concretos, a formação
de classes em luta é determinada por lutas que têm como efeito
a formação de classes (PRZEWORSKI, 1989, p. 187).

Esta definição remete à necessidade de, mais do que formular conceitos


teóricos ideais, o papel do sociólogo marxista deve ser o de analisar na sociedade
as fontes para a análise de classes. Por outro lado, por reduzir a estrutura de
classes marxistas a um efeito de lutas políticas, Przeworski acabou sendo
acusado de afastamento do materialismo-histórico.

O debate na tradição marxista sempre foi muito rico e complexo


e boa parte dos sociólogos marxistas mais do que reduzirem o debate
ao nível teórico-conceitual, dedicaram várias pesquisas sobre as
estratégias de partidos políticos com relação as suas posições de classe,
bem como implementaram diversas pesquisas a fim de compreender a
vida dos trabalhadores em seus locais de produção (os estudos sobre
o “mundo do trabalho”). No entanto, a realidade do mundo do trabalho,
cada vez mais dominado pela tecnologia e pela administração, levou a
muitos teóricos a questionar as teses sobre a centralidade do trabalho
na determinação das classes sociais e de sua atuação política, no que
se tornou uma crise do marxismo sociológico em fins do século XX.

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Capítulo 2 Estado, Poder, Classes Sociais e Cultura

3.2 CLASSES, ESTAMENTOS,


CASTAS E CONFLITOS SOCIAIS NA
TRADIÇÃO WEBERIANA
Max Weber dedicou sua obra a fim de apresentar uma teoria diversa das teorias
naturalistas-funcionalistas, como da teoria “econômica” de Marx. Neste sentido, Weber
apresentou uma interpretação das classes sociais distinguindo-as em três esferas
(devendo ser tratadas como tipos ideias): classe, estamento e casta.

As classes, para Weber, devem ser compreendidas como fenômenos puramente


econômicos, derivados da situação de mercado. Para ele, as classes se organizariam
conforme a disponibilidade ou não de acesso a bens de produção e pela divisão dos
bens materiais numa sociedade, “em lutas de preços” ou “lutas de concorrência”. Con-
forme explica Weber (2004, p. 176):

Falamos de uma "classe" quando 1) uma pluralidade de pessoas


tem em comum um componente causal específico de suas
oportunidades de vida, na medida em que 2) este componente
está representado, exclusivamente, por interesses econômicos, de
posse de bens e aquisitivos, e isto 3) em condições determinadas
pelo mercado de bens ou de trabalho ("situação de classe").

A situação de “classe” seria uma situação de “mercado”. Neste senti- A situação de


do, Weber buscava confrontar diretamente a teorização marxista acerca das “classe” seria
classes sociais, reduzindo-as a uma interpretação política. Para ele, “Toda uma situação de
“mercado”
classe pode, portanto, ser portadora de uma "ação de classe", possível em
inúmeras formas diferentes, mas não o é necessariamente”. Assim, as classes não de-
veriam ser equivalentes às “comunidades” pois as formas com que as pessoas numa
determinada situação de classes costumam agir não são necessariamente guiadas por
“àquela espécie de operações pseudocientíficas com o conceito de "classe", de ‘inte-
resse de classe’” (WEBER, 2004, p. 179).

Para Weber, os conflitos de classe nada mais seriam do que conflitos delimitados
na esfera econômica. Seria uma luta em torno da definição dos “preços no mercado
de trabalho”. Assim, não haveria uma correspondência entre classes sociais e política
como descrita pelos marxistas. Para Weber as lutas políticas consideradas “lutas de
classes” seriam muito mais lutas de “estamentos”. Na verdade, ambas se inter-relacio-
nariam, explicando assim parte da organização de partidos políticos a partir de classes.

Estamentos são definidas por Weber (2004, p.180), como:

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Temas e Teorias da Sociologia

Em oposição à "situação de classe", determinada por fatores


puramente econômicos, compreendemos por "situação
estamental" aquele componente típico do destino vital humano
que está condicionado por uma específica avaliação social,
positiva ou negativa, da honra, vinculada a determinada qualidade
comum a muitas pessoas. Esta honra pode também estar ligada
a uma situação de classe: as diferenças das classes combinam-
se das formas mais variadas às diferenças estamentais, e a
propriedade como tal, conforme já observamos, nem sempre,
mas com regularidade extraordinária, adquire, a longo prazo,
também significação estamental.

Os estamentos Assim, os estamentos seriam os espaços de “comunidades huma-


seriam os espaços
nas” em que os indivíduos seriam distintos por uma avaliação de sua
de “comunidades
humanas” em que qualidade comum aos membros de seu estamento. Esta “honra” poderia
os indivíduos seriam estar ligada a situações de classe, mas não necessariamente, dependen-
distintos por uma do das tradições sociais locais. Weber exemplifica citando que enquanto
avaliação de sua nos Estados Unidos um proprietário industrial poderia se sentar à mesa
qualidade comum num clube de jogos com um operário, tratando-o com igualdade, na Ale-
aos membros de
manha esta situação não se repetiria, visto que a situação de classe era
seu estamento
acompanhada por uma situação estamental, de status. No entanto, para
Weber (2004, p. 180), descrevendo seu liberalismo, “possuidores e não-possuido-
res podem pertencer ao mesmo estamento, o que ocorre muitas vezes e com con-
sequências muito sensíveis, por mais precária que esta "igualdade" da avaliação
social possa tornar-se a longo prazo”.

Assim, “as "classes" diferenciam-se segundo as relações com a produção


e aquisição de bens, os "estamentos", segundo os princípios de seu consumo de
bens, que se manifestam em "conduções da vida" específicas” (WEBER, 2004, p.
185). Além disso, outras situações estamentais seriam as derivadas de certas profis-
sões que garantiriam certa “honra” social, devido à um certo estilo de vida próprio que
necessita ser adotado, por exemplo, entre médicos ou intelectuais.

Assim, na tradição sociológica weberiana a análise de classes é muito mais fo-
cada na análise de relações econômicas (analisando uma classe por sua capacidade
de consumo, por exemplo) e as experiências de organização política de “classes” se-
ria muito mais derivada das distinções estamentais do que das situações econômicas
propriamente ditas.

A partir desta leitura, o sociólogo norte-americano Seymor Lipset (1992), contra-


pondo-se a sociologia marxista, explicou que em países onde se criaram democracias
estáveis, onde os trabalhadores detinham direitos de igualdade formal e participação
política, os partidos que tiveram origem nesta classe foram progressivamente tornando-
-se partidos moderados e afastados de tendências radicais.

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Capítulo 2 Estado, Poder, Classes Sociais e Cultura

Assim, a luta de classes marxistas, presente em realidade no século XIX teria A luta de classes
diminuído conforme foi se reduzindo as práticas de distinção tradicionais baseadas marxistas, presente
no status social dos indivíduos, ou seja, conforme a realidade estamental perecia. em realidade no
Assim, esta seria a razão pela qual o socialismo e partidos operários floresceram século XIX teria
na Europa, mas nunca se tornaram representativos nos Estados Unidos, uma na- diminuído conforme
foi se reduzindo as
ção onde as diferenças de status social nunca foram tão fortes.
práticas de distinção
tradicionais
Se por um lado Lipset consolidou uma interpretação provocadora ao baseadas no
marxismo e simpática à vitória do liberalismo ocidental, por outro lado a teo- status social dos
ria weberiana de classes também produziu uma crítica ferrenha à estrutura de indivíduos, ou
classes no centro do capitalismo a partir da obra de outro sociólogo norte-ame- seja, conforme a
realidade estamental
ricano, Charles Wright Mills.
perecia

Para Wright Mills no seu livro “A Elite do Poder” (1968) a moderna sociedade indus-
trial norte-americana da década de 1960 estava marcada pela colaboração dos sindica-
tos operários aos capitalistas e pela formação de uma extensa “classe média burocratiza-
da” que estava desumanizada pela racionalização cada vez maior do trabalho.

Charles Wright Mills (1916-1962) foi um dos sociólogos mais


conhecidos publicamente no século XX. Sua obra provocadora, A elite do
poder, publicada em 1956, no auge da guerra fria lhe rendeu a antipatia
e perseguição política por membros desta mesma elite, sendo acusado
de apoiar os comunistas. No entanto, rejeitava o referencial marxista
e acreditava que o bloco soviético padecia dos mesmos problemas
provocadas pela racionalização do ocidente e pela formação de uma
elite do poder. Defendia que os sociólogos deveriam sair do isolamento
universitário e deveriam participar do debate público a fim de propiciar
bases na sociedade para a crítica desta elite do poder, o que lhe rendeu
inimizades no meio acadêmico. Neste sentido, apesar de não ser um
marxista, impulsionou a formação da chamada “Nova Esquerda” na
década de 1960, apesar de não ter visto seu desenvolvimento posterior
devido a sua morte prematura em 1962.

Retomando o processo descrito pessimistamente por Weber de “racionalização”


das sociedades, descrevia que as classes médias, formadas por “trabalhadores de
colarinho branco” encontravam-se vivendo como “robôs alegres”, encontrando prazer

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Temas e Teorias da Sociologia

nas coisas materiais, mas tornados despreocupados intelectual, política e socialmente


em relação ao seu mundo ao redor. Esta realidade se dava pelo fato de que, diferente
das sociedades europeias em que a burguesia teve que tomar o poder de uma classe
dominante existente, a classe feudal, nos Estados Unidos ela pode desenvolver seu
poder desde o início sem ameaças da existência de outro estamento dominante.

Esta situação levou a formação de uma elite empresarial-militar, que favorecia


membros da política e do mundo sindical a se unirem como sócios nesta que foi descri-
ta como uma “elite do poder”. Assim, a racionalização típica da mentalidade empresa-
rial, que deveria trazer progresso e bem-estar, estaria criando esta realidade que estaria
por se desenvolver em todas as democracias liberais. Assim, devido à apatia do povo,
esta elite do poder governava sem opositores internos.

A obra de Wright Mills foi um dos livros de sociólogos mais lida


nos Estados Unidos.
Livro: MILLS, Charles Wright. A elite do poder. Rio de Janeiro:
Zahar, 1968.

O pensamento weberiano não só serviu para legitimar a aparente situação de


“sucesso” das democracias ocidentais (como descrita em Lypset), como também ser-
viu para a formulação de forças críticas das contradições de classe nascidas nestas
mesmas democracias.

3.3 AS IDENTIDADES SOCIAIS E A


DESIGUALDADE SOCIAL
A sociologia do trabalho é uma área da sociologia que se define por pesquisa em-
píricas e interpretativas sobre a relação entre as formas de trabalho, a divisão social do
trabalho e as relações destas com a conformação das classes sociais. Neste sentido,
historicamente, apesar da preponderância de sociólogos marxistas, a sociologia do traba-
lho tornou-se um espaço profícuo para diversas tendências teóricas e metodológicas na
sociologia, como no emprego de pesquisas etnográficas, nos estudos sobre a administra-
ção e as relações de poder no mundo do trabalho, como da função de identidades sociais
advindas das estruturas profissionais e sua relação com à educação.

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Capítulo 2 Estado, Poder, Classes Sociais e Cultura

Neste sentido, a sociologia do trabalho serve para exemplificar a proliferação de no-


vas teorias baseadas em críticas ou sínteses das tradições sociológicas clássicas. Uma
das influências mais fundamentais neste sentido está na síntese entre os fundamentos
teórico-metodológicos de Marx, Durkheim e Weber na obra de Pierre Bourdieu.

Pierre Bourdieu é um dos sociólogos mais “populares” do mundo no


final do século XX e início do XXI, pela grande dimensão de temas que
abarcou em suas pesquisas, como pela originalidade teórica. É um autor
usado em várias áreas do pensamento humano (da Educação ao Direito) e
desenvolveu uma teoria baseada na análise social e política a partir de sua
teoria do “capital” (que não deve ser considerado apenas como “econômi-
co”) e do estudo dos vários campos de poder existentes nas sociedades
ocidentais, que tornaram o estudo das relações de poder e desigualdade
muito mais complexos.

Em sua obra “A distinção”, Bourdieu (2007b), buscando complexificar as defini-


ções clássicas acerca das classes sociais, introduz o conceito de habitus. Para ele,
as pessoas não eram só definidas pela economia, “mas pelo habitus de classe que
normalmente está associado a esta posição”, ou seja, gostos, preferências estéticas e
artísticas, de vestuário, palavreado e até forma de alimentação servem para compreen-
der a identificação de classes e subclasses entre os indivíduos. Como explica Bourdieu
(2007b, p. 13):

De fato, por intermédio das condições econômicas e sociais que


elas pressupõem, as diferentes maneiras, mais ou menos sepa-
radas ou distantes, de entrar em relação com as realidades e as
ficções, de acreditar nas ficções ou nas realidades que elas si-
mulam, estão estreitamente associadas às diferentes posições
possíveis no espaço social e, par conseguinte, estreitamente in-
seridas nos sistemas de disposições (habitus) características das
diferentes classes e frações de classe. 0 gosto classifica aquele
que procede a classificação: os sujeitos sociais distinguem-se pe-
las distinções que eles operam entre a bela e a feio, a distinto e
o vulgar; por seu intermédio, exprime-se ou traduz-se a posições
desses sujeitos nas classificações objetivas. E, deste modo, a
análise estatística mostra, par exemplo, que oposições de estru-
tura semelhante as que se observam em matéria de consumo cul-
tural encontram-se, também, em matéria de consumo alimentar:
a antítese entre a quantidade e a qualidade, a grande comilança
e as quitutes.

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Temas e Teorias da Sociologia

Uma distinção social bastante exemplar a partir da alimentação pode ser dada
entre a diferença do tipo e quantidade de alimentos ingeridos por trabalhadores manu-
ais em relação aos trabalhadores de escritório. Por isso popularmente se designa a um
prato bem cheio como sendo um “prato de pedreiro”. Por outro lado, também, como
marca de distinção social, as classes mais abastadas tendem a refinar e complexificar
sua alimentação e formas de etiqueta social à mesa, como nas festas em que estão
dispostos diferentes tipos de talheres, pratos e taças para servir os diferentes tipos de
alimentos e bebidas, fato considerado frívolo por populares.

Neste sentido, trabalhadores assalariados em um mesmo nível de consumo, po-
rém com diferentes espaços de trabalho e vivência, podem criar distinções que os se-
param na realidade social (normalmente a separação entre trabalho manual, do traba-
lho de escritório e, este, do trabalho intelectual-artístico). Assim, estilos artísticos, locais
de convivência, estruturas de linguagem e temas de conversa tornam-se espaços de
habitus que distinguem as diversas frações de uma determinada classe social. O mes-
mo ocorreria na classe dominante, onde setores consolidados distinguem-se por refina-
mento de “novos ricos”, já que estes ainda não teriam as práticas do habitus da classe
dominante. Além disso, aspectos étnicos e de gênero também entram na definição de
um determinado habitus de uma fração de classe ou mesmo de profissões específicas.

Os habitus de classe são criados a partir da interação dos indivíduos com


Para Bourdieu a cultura de um determinado grupo e das instituições sociais de convivência
(2012b, p. 164) deste grupo. Agindo conforme as disposições do habitus de grupo, o indivíduo
, o habitus seria
fortalece o grupo e sua presença nele. Desta forma o habitus está sempre se
uma “estrutura
estruturante” como reproduzindo e sofrendo mudanças, conforme se apresentam novas variáveis
uma “estrutura nas estruturas sociais que ele se apresenta. Para Bourdieu (2012b, p. 164) , o
estruturada”, já que habitus seria uma “estrutura estruturante” como uma “estrutura estruturada”, já
ela tanto atua como que ela tanto atua como forma de determinar a vivência dos indivíduos (estru-
forma de determinar tura estruturante), como ela é determinada e modificada pela estrutura social
a vivência dos
em que se encontra (estrutura estruturada), onde fatores como mercado de
indivíduos (estrutura
estruturante), como trabalho, concorrência e desenvolvimento tecnológico impactam na capacida-
ela é determinada de de reprodução de um determinado habitus.
e modificada
pela estrutura Outra contribuição central de Bourdieu é sua definição de “classes mé-
social em que se dias”. Estas não seriam designadas por um local intermediário nas relações
encontra (estrutura
de produção ou por se encontrarem intermediariamente na divisão de riquezas
estruturada)
de uma sociedade. Para Bourdieu, nas sociedades ocidentais classe média
passou a ser sinônimo de diplomados, ou seja, profissionais com diplomas de profissões
que exigem cursos superiores e que são regulados por corporações profissionais tradi-
cionais, como médicos, advogados, arquitetos ou professores. Apesar de existirem hie-
rarquias de diplomas e algumas profissões não terem a mesma situação financeira, em
boa medida os diplomados identificam-se por práticas comuns, baseados numa estrutura
de mérito por dedicação aos estudos. Seria a classe que teria sua riqueza concentrada num

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Capítulo 2 Estado, Poder, Classes Sociais e Cultura

determinado capital cultural (o acesso ao conhecimento), acessível somente por meio da


dedicação aos estudos e aos hábitos de uma determinada profissão (BOURDIEU, 2012a).

Nas famílias de classe média, desta forma, desde cedo as crianças de classe mé-
dia são preparadas para reprodução deste capital cultural, sendo reservados gastos a
bens culturais (como jornais, livros, cursos de línguas) e com educação (escolas parti-
culares). Nestas escolas particulares seria desenvolvido o habitus de classe média atra-
vés do estímulo à concorrência de estudos e à preparação para o vestibular, canal de
acesso ao ensino superior. Enquanto isso, filhos de trabalhadores manuais geralmente
estimulam seus filhos a já “ganharem a vida” desde cedo, enquanto os de classe média
são estimulados a não se preocupar com finanças até não completarem seus estudos
superiores.

No Brasil foi adotado o conceito de “nova classe média” para desig-


nar o enriquecimento de pessoas advindas das classes de renda mais
baixas no período de crescimento econômico em fins da primeira década
deste século. Esta interpretação derivada de uma leitura baseada na divi-
são social baseada no acesso a bens materiais (ou seja, pelo critério eco-
nômico de capacidade de consumo) foi bastante criticada por sociólogos
brasileiros, a partir da leitura da obra de Bourdieu ou a partir da sociologia
do trabalho marxista. Neste sentido, para o sociólogo Dawid Bartelt (2013)
as bases da classe médias não estariam no consumo, mas na capaci-
dade real de acesso a serviços – públicos ou privados (como educação
superior e planos de saúde), na estabilidade garantida pelo habitus pro-
fissional e no controle do capital cultural que garanta a reprodução desta
situação social, perspectiva esta que estava longe da realidade da maioria
dos integrantes da heterogênea “nova classe média”. Para o sociólogo
Márcio Pochmann (2012), ex-presidente do IPEA, o que teríamos visto
não foi a formação de uma nova classe média, mas a expansão dos tra-
balhadores assalariados formais, já que boa parte dos novos postos de
trabalho (cerca de 95%) eram destinados ao setor de serviços e com salá-
rios de 1 a 1,5 salários mínimos.

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Temas e Teorias da Sociologia

No campo de pesquisas da sociologia marxista as pesquisas sobre o mundo do


trabalho são tradicionalmente vinculadas a metodologias de pesquisa estatística, de
entrevistas, como do estudo dos impactos dos modelos organizacionais (fordismo,
Toyotismo) como fundamentos dos modelos de exploração da força de trabalho.

Neste sentido, o sociólogo brasileiro Ricardo Antunes, na obra “Os sentidos do


trabalho” (2009) analisa o fenômeno do impacto das mudanças de gerenciamento do
trabalho vistas no mundo nas últimas décadas (no Brasil, com maior intensidade na
década de 1990). A antiga fábrica organizada pelo fordismo favorecia a concentração
operária e facilitava a solidariedade de classe e organização sindical, como visto nas
grandes fábricas automobilísticas dos Estados Unidos como no Brasil. Além disso, o
operário possuía uma identidade clara de sua profissão e de seus conhecimentos,
que eram basicamente os mesmo por toda a vida.

No entanto, as mudanças de gerenciamento de descentralização do


Acompanhados pela
trabalho com o advento do chamado “toyotismo”, baseado na produção des-
desintegração das
antigas políticas de centralizada em várias unidades produtivas (em várias regiões do globo),
bem-estar social a como do uso intenso da robótica nas linhas de produção, trouxe o enfraque-
partir da vitória do cimento do operariado fabril, de suas identidades sociais e de sua solida-
neoliberalismo, viu- riedade. (ANTUNES, 2009). Acompanhados pela desintegração das antigas
se a desintegração políticas de bem-estar social a partir da vitória do neoliberalismo, viu-se a
do antigo operariado
desintegração do antigo operariado fabril do fordismo, cuja vivência, apesar
fabril do fordismo
de marcada pela alienação do trabalho advinda da intensa divisão e simpli-
ficação de funções, geralmente era considerada uma função estável para toda a vida.
No neoliberalismo se passou a defendeu o desenvolvimento do trabalhador polivalente,
capaz de realizar múltiplas funções e de não ter mais um estatuto profissional, em uma
só empresa, como fundamento de sua vivência para toda vida (ANTUNES, 2009).

Para o sociólogo brasileiro Ruy Braga, na obra” A política do precariado” (2012), a


divisão de classes no capitalismo brasileiro sempre foi condicionada pela posição perifé-
rica do desenvolvimento do fordismo no Brasil. A ele não se acompanhou a hegemonia
burguesa dos países centrais, baseadas no desenvolvimento de políticas de
Conforme explica
Braga (2012, p. bem-estar para os assalariados, mas sim foi marcado pelo autoritarismo da di-
19): “identificamos tadura militar de 1964-1985 e pela formação de um proletariado precarizado, o
o precariado como que designou de precariado, que seria marcado pela insegurança profissional
a fração mais mal e pela pauperização. Conforme explica Braga (2012, p. 19): “identificamos o
paga e explorada do precariado como a fração mais mal paga e explorada do proletariado urbano e
proletariado urbano
dos trabalhadores agrícolas”.
e dos trabalhadores
agrícolas”.
Ruy Braga buscou então identificar as formas de trabalho, vivência e
as expressões do que designou inquietação operária, a partir do estudo dos trabalha-
dores de call centers, disseminados no Brasil a partir da década de 2000. Identificou
nestes locais de trabalho, a partir de uma série de entrevistas e observações parti-

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Capítulo 2 Estado, Poder, Classes Sociais e Cultura

cipantes (etnografia), que boa parte dos assalariados nos calls centers viram inicial-
mente este trabalho tanto como um forma de ascensão social (em relação à trabalhos
manuais, como de serviços gerais ou de diaristas), mas posteriormente uma fonte de
frustração (dado o alto grau de stress e enfermidades adquiridas no local de trabalho
para adquirir metas e a falta de possibilidades de ascensão em posições de geren-
ciamento). Boa parte dos trabalhadores de telemarketing são formados por mulheres,
de descendência negra ou nordestina, advindas de famílias muito pobres, e de uma
minoria de homens, em sua maioria homossexuais e negros. Assim, identificaram um
ciclo no trabalho do teleoperador, que dura muitas vezes menos de um ano: da con-
tratação, à satisfação, ao adoecimento pela rotinização e pela pressão das metas, à
demissão e seguro-desemprego (BRAGA, 2012, p. 196).

Estas pesquisas foram influenciadas pela perspectiva metodológica do sociólo-


go norte-americano Michael Buroway, que conciliou as análises teóricas marxistas
com o emprego de investigações etnográficas em diversos contextos e países, des-
crito em sua obra “marxismo sociológico” (2014). Nesta obra Buroway defende a me-
diação entre os elementos empíricos dispostos das análises etnográficas, as pesqui-
sas de “chão de fábrica”, com a teoria social marxista “teórica” e totalizante. Segundo
Buroway (2014), é possível e necessário trazer a teoria ampla e estruturante para as
análises micro estruturadas, da mesma forma que a teoria sempre precisa ser verifi-
cada na realidade empírica e individual.

Neste sentido, originalmente publicada sob o título “Manufacturing Consent” - Fa-


bricando Consentimento - (BUROWAY, 1979), o autor vai identificar que o consentimen-
to à dominação é produzido diretamente nas relações de trabalho em que os indivíduos
são sujeitados. Trabalhando em uma fábrica nos Estados Unidos, Buroway observa
que, diferente da ideia tradicional encontrada em Marx de que os trabalhadores seriam
simplesmente coagidos a trabalhar o máximo que puderem, ele encontrou uma orga-
nização gerencial que cria espaços de “ilusão de escolha”, que garantem a aceitação
dos trabalhadores à exploração do trabalho. Para ele, a gerência organizou a produ-
ção em espécies de “jogos”, desde a negociação coletiva ao sistema de pagamento de
produção por peças (estimulando a produtividade individual de cada operário). Assim,
cria-se a ilusão de os operários estarem num “jogo”, em que os operários atuam como
jogadores que competem entre si para vencer, ou seja, ultrapassar sua meta individual
de produção, como a dos próprios colegas.

Conciliando pesquisas em fábricas em países como Zambia (semi-colonial),


Hungria (a época ainda sob regime socialista), Rússia pós União Soviética, como nas
fábricas de automóveis dos Estados Unidos, Buroway conseguiu desenvolver uma

91

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Temas e Teorias da Sociologia

ampla visão teórica do desenvolvimento do capitalismo em países cen-


Para Buroway
(2014) é preciso trais, periféricos, e inclusive da transição do antigo socialismo burocrático
que os sociólogos ao capitalismo restaurado no leste europeu. Para Buroway (2014) é preci-
marxistas não se so que os sociólogos marxistas não se contentem em criar grandes cate-
contentem em criar goriais explicativas, mas observem em nível de “chão de fábrica” como a
grandes categoriais teoria marxista pode ser enriquecida.
explicativas, mas
observem em nível
de “chão de fábrica” Além disto, como veremos no terceiro capítulo, fatores como raça,
como a teoria gênero e nacionalidade tornam-se fatores importantes para compreensão das
marxista pode ser distinções, concorrência e conflitos sociais nas sociedades contemporâneas.
enriquecida.

Sugestão de atividade: o relacionamento entre a formação cidadã e


para o mundo do trabalho é um dos objetivos fundamentais da educação
no Brasil. Desta forma, evoque em seus alunos atividade e temas para
pesquisa que os traga de encontro com o mundo do trabalho no Brasil,
destacando temas como a rotina de trabalho, as diferentes profissões
e remunerações (e posições de classe aí percebidas), as identidades e
desigualdades no mundo profissional (trabalho manual, de escritório,
trabalho intelectual) e de como estes temas se relacionam como a forma
como as pessoas se veem no mundo. Debata as diferentes perspectivas
de vida para pessoas nascidas em distintas classes sociais e busque
relacionar isto às próprias percepções de vida e de identidade dos alunos,
muitos possivelmente já ingressos no mundo do trabalho ou buscando
preparar-se para fazer alguma faculdade.

92

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Capítulo 2 Estado, Poder, Classes Sociais e Cultura

1 Disserte sobre a relação que Max Weber estabelecia entre os


conceitos de classe social e estamento social.

R.:____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________

2 Assinale a alternativa CORRETA que define a contribuição


de Adam Przeworski para a sociologia marxista em relação ao
conceito de classes sociais.

( ) a) Explicou que as pessoas não eram só definidas pela economia,


“mas pelo habitus de classe que normalmente está associado a esta
posição”.
( ) b) Definiu a sociedade capitalista se divide entre os detentores dos
meios de produção versus vendedores da força de trabalho.
( ) c) Buscou resgatar a contribuição do marxista Antonio Gramsci
acerca do estudo das relações de forças na luta de classes a fim de
questionar as definições de classes no marxismo.
( ) d) Definiu que apenas os trabalhadores “produtivos” (ou seja, os
que estão em situação de exploração direta do capital, produzindo a
mais-valia) formaria o proletariado industrial moderno.

3 Disserte sobre o conceito de habitus como uma “estrutura


estruturante” ora como uma “estrutura estruturada”, segundo
Bourdieu.

R.:____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________

93

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Temas e Teorias da Sociologia

4 A CULTURA ENTRE A
SOCIOLOGIA E A ANTROPOLOGIA:
ETNOCENTRISMO, IDEOLOGIA,
EVOLUCIONISMO E RELATIVISMO
CULTURAL
Nesta seção, queremos lançar um questionamento. Sabemos que boa parte das
ações humanas não são definidas como atividades econômicas, sociais ou políticas, mas
sim como atividades “culturais”. Este termo é usado das mais diversas formas e com os
mais diversos sentido, ora mais estritos, ora mais amplos, mas porque deixamos este
conceito, que parece preceder os demais quando falamos em atividade humana ou pen-
samos em socióloga foi relegado para um segundo plano?

Acreditamos que “cultura” é exatamente o que faz a atividade humana e o


que a distingue dos demais animais. Um cachorro ou um gato vai latir ou miar, in-
dependentemente do local e época (a não ser que estejamos falando em algumas
centenas de milhares de anos) vai miar e latir da mesma forma. As formigas e
abelhas, apesar de realizarem obras fenomenais, sempre agem da mesma forma,
uma forma “instintiva”, “natural”.

Nenhum outro animal produz, cria e desenvolve formas de comuni-


Nenhum outro cação, trabalho e sociabilidade tão diversas quanto ao ser humano. Uma
animal produz, cria
das formas mais simples de sintetizas essa produção e suas mais diver-
e desenvolve formas
de comunicação, sas formas e épocas é utilizando o conceito de cultura. Ela é usada para
trabalho e designar os tipos de materiais encontrados na pré-história como para de-
sociabilidade tão finir o conjunto filosófico-religioso e dos hábitos cotidianos de trabalho,
diversas quanto ao matrimônio e morte nas mais diversas sociedades já existentes. O ser
ser humano. Uma humano é um ser “cultural” e boa parte do que definimos como político,
das formas mais
social ou econômico também pode ser entendido como formas com que
simples de sintetizas
essa produção e a “cultura” humana se expressa em suas particularidades.
suas mais diversas
formas e épocas é Se até agora definimos o estudo sociológico entre a política, economia e
utilizando o conceito sociedade, muitos pesquisadores preferiram acentuar as particularidades hu-
de cultura. manas que distinguem as sociedades e os indivíduos uns dos outros, ou seja,
os estudos culturais.

Há também uma questão em termos de divisão metodológica nas Ciências


Sociais. Boa parte dos estudos “culturais” são trabalhados pela Antropologia, ou
seja, a área de conhecimento definida pela observação da diversidade das formas
de atuação humana. Assim, estudos sobre a religião, sexualidade, etnias, apesar

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Capítulo 2 Estado, Poder, Classes Sociais e Cultura

de também desenvolvidas por “sociólogos”, tradicionalmente são as áreas de ex-


celência das pesquisas de “antropólogos” e “etnólogos”.

Como veremos, estas distinções são apenas sedimentações do conhecimento


sobre a atividade humana e boa parte dos métodos e técnicas de pesquisa de antro-
pólogos e sociólogos é compartilhada (como o são com outras áreas das “humani-
dades”). Da mesma forma que a sociologia clássica foi marcada pela influência das
ciências naturais, o mesmo pode ser observado no nascimento da chamada “ciência
da cultura”, a antropologia.

A partir deste debate é possível compreender o desenvolvimento de uma gama


de novas perspectivas e objetos da sociologia contemporânea, como o estudo das
relações de afetividade, gênero, raça e “cultura popular” num mundo cada vez mais
globalizado, como iremos trabalhar na unidade final deste livro de estudos.

4.1 ETNOCENTRISMO E IDEOLOGIA


Não é incomum atualmente vermos políticos e pensadores definirem sua luta em
defesa de suas tradições e da cultura “ocidental”? Por outro lado, também não vemos
fanáticos religiosos produzindo barbáries sangrentas em defesa de sua cultura? Não ve-
mos pessoas sendo barradas em fronteiras ou discriminadas por sua cor da pele ou reli-
gião? Não vemos pessoas sendo discriminadas ou criminalizadas por sua sexualidade?
Não vemos povos sendo discriminados e encurralados por tentarem manter modos de
vida tradicionais? Não vemos pessoas que ainda consideram certas culturas Estas são posições
como “atrasadas” em relação às outras, entraves ao “desenvolvimento”? associadas ao
etnocentrismo,
Estas são posições associadas ao etnocentrismo, ou seja, tomar a vi- ou seja, tomar a
são de mundo de seu grupo, de sua sociedade, seus valores e sentido, visão de mundo de
seu grupo, de sua
como parâmetro central pelo qual se analisa (e se julga) outras visões de
sociedade, seus
mundo, outras culturas e sociedades. São questões que perpassam a for- valores e sentido,
ma de ver o “eu” e o “outro”. como parâmetro
central pelo qual
E este foi um pensamento dominante na Sociologia do século XIX e que se analisa (e
continuou influente no século XX, apesar de ter perdido força no pensamen- se julga) outras
visões de mundo,
to acadêmico na segunda metade do século. Como define a questão Rocha
outras culturas e
(1988, p. 15): sociedades.
Como uma espécie de pano de fundo da questão etnocêntrica
temos a experiência de um choque cultural. De um lado, conhe-
cemos um grupo do “eu”, o “nosso” grupo, que come igual, veste
igual, gosta de coisas parecidas, conhece problemas do mesmo
tipo, acredita nos mesmos deuses, casa igual, mora no mesmo
estilo, distribui o poder da mesma forma, empresta à vida signifi-

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Temas e Teorias da Sociologia

cados em comum e procede, por muitas maneiras, semelhante-


mente. Aí, então, de repente, nos deparamos com um “outro”, o
grupo do “diferente” que, às vezes, nem sequer faz coisas como
as nossas ou quando as faz é de forma tal que não reconhece-
mos como possíveis. E, mais grave ainda, este “outro” também
sobrevive à sua maneira, gosta dela, também está no mundo e,
ainda que diferente, também existe. Este choque gerador do etno-
centrismo nasce, talvez, na constatação das diferenças. Grosso
modo, um mal-entendido sociológico. A diferença é ameaçadora
porque fere nossa própria identidade cultural. O monólogo etno-
cêntrico pode, pois, seguir um caminho lógico mais ou menos as-
sim: Como aquele mundo de doidos pode funcionar? Espanto!
Como é que eles fazem? Curiosidade perplexa? Eles só podem
estar errados ou tudo o que eu sei está errado! Dúvida ameaçado-
ra?! Não, a vida deles não presta, é selvagem, bárbara, primitiva!
Decisão hostil!

Estes fenômenos causam debates intensos em nossa sociedade contempo-


rânea e causaram muitos mais quando as relações humanas passaram a ser glo-
balizadas e o contato entre diferentes povos, línguas, religiões, modos de vida e
cultura entraram em contato.

“Alguns livros colocavam que os índios eram incapazes de trabalhar


nos engenhos de açúcar por serem indolentes e preguiçosos. Ora, como
aplicar adjetivos tais como “indolente” e “preguiçoso” alguém, um povo
ou uma pessoa, que se recuse a trabalhar como escravo, numa lavoura
que não é a sua, para a riqueza de um colonizador que nem sequer é
seu amigo: antes, muito pelo contrário, esta recusa é, no mínimo, sinal
de saúde mental. Outro fato também interessante é que um número
significativo de livros didáticos começa com a seguinte informação: os
índios andavam nus. Este “escândalo” esconde, na verdade, a nossa
noção absolutizada do que deva ser uma roupa e o que, num corpo, ela
deve mostrar e esconder” (ROCHA, 1988, p. 20).

Boa parte das formas de se posicionar frente a estas questões estão colocadas no de-
senvolvimento das pesquisas acerca da cultura humana em seu debate central, entre o evolu-
cionismo (etnocentrista) e o relativismo cultural na antropologia e na sociologia clássica.

Na Sociologia, tema análogo a este é o de ideologia, conforme visto no primeiro


capítulo a partir da obra de Marx. Uma visão etnocentrista pode ser também, de uma
classe contra outra classe, ou como imposição de visão dominante de uma determinada

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Capítulo 2 Estado, Poder, Classes Sociais e Cultura

sociedade por parte de sua classe dominante, ou seja, uma visão de mundo, Antonio Gramsci
uma visão “cultural” de fundo religioso, estético e artístico, também pode servir descrevia que os
para legitimar a dominação social. Antonio Gramsci descrevia que os grupos grupos dominantes
dominantes impõem seus valores e crenças aos grupos dominados, num pro- impõem seus
cesso descrito como “hegemonia cultural”, exercida por diversos aparelhos pri- valores e crenças
aos grupos
vados, dedicados à produção e disseminação da visão de mundo dominante
dominados, num
(GRAMSCI, 2011). Esta leitura influenciou diversos estudos culturais de mar- processo descrito
xistas, como Erich Fromm, Herbert Marcuse, Guy De Bord, Raymond Willians, como “hegemonia
Stuart Hall e Benedict Anderson. cultural”, exercida
por diversos
Como veremos a seguir, estudos antropológicos do século XIX serviram aparelhos privados,
dedicados à
como legitimação para a dominação de povos considerados “bárbaros” e “atra-
produção e
sados”. Paradoxalmente, a legitimação do imperialismo europeu sobre povos disseminação
na África e Ásia (em boa medida até fins da Segunda Guerra Mundial) que da visão de
cometeu diversas barbáries e extermínios de povos nativos (como no caso do mundo dominante
Congo Belga), foi construída por acadêmicos sérios em Universidades euro- (GRAMSCI, 2011).
peias em fins do século XIX e início do XX, guiados por uma visão de evolução
das sociedades humanas e de progresso, ou seja, a ciência também é um espaço de
gestação de ideologias, ou seja, visões de mundo que mascaram a realidade e legitimam
a exploração e a dominação.

4.2 EVOLUCIONISMO E
PROGRESSO
No primeiro capítulo, vimos a influência das noções de objetividade das ciências
físicas e da biologia sobre a sociologia clássica. O eixo central do desenvolvimento da
antropologia clássica foi o debate entre o evolucionismo cultural e o relativismo cultural,
como do desenvolvimento de técnicas de pesquisa que garantisse a objetividade da
análise antropológica. Do ponto de vista da chamada escola evolucionista a ideia cen-
tral, adotada pelos primeiros pesquisadores das mais diversas culturais humanas, foi a
de evolução e progresso.

Castro (2005) descreve que para entendermos a ideia de evolução apresentada


nestes textos clássicos, do século XIX e início do século XX, como explicação para
o desenvolvimento cultural humano, é preciso desfazer o equívoco que esta tradição
seria decorrência direta do trabalho de Darwin ao expor a teoria da evolução biológica.
Para Darwin a seleção natural se dava através de variações acidentais, ou seja, de
maneira aleatória, imprevisível e dependente das complexas relações de interdepen-
dência biológica (expressa na metáfora “luta pela existência”) que não se opera em

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Temas e Teorias da Sociologia

O progresso está uma instância simples, como na ideia de progresso linear e ascendente, do
ligado a imagem de simples ao mais complexo, a um patamar que só existe na expectativa dos
uma escada, linear pesquisadores.
e hierarquizada,
que caminha do Assim, a associação do conceito de evolução era com uma ideia mais
mais simples para
antiga, dos filósofos iluministas, a de progresso. O progresso está ligado
o mais complexo,
considerado o mais a imagem de uma escada, linear e hierarquizada, que caminha do mais
“evoluído” aquele simples para o mais complexo, considerado o mais “evoluído” aquele que
que está em um está em um estágio superior, mais complexo, desenvolvido.
estágio superior,
mais complexo, E obviamente, para estes primeiros etnógrafos, as suas sociedades -
desenvolvido.
notadamente Reino Unido e França - eram o estágio superior, mais evoluído
da humanidade, ponto final da evolução, ponto do qual se analisaria para as
outras sociedades, vistas como formas pré-históricas ou situadas em degraus inferiores
da evolução. Esta ideia foi popularizada no século XIX pelo pensador inglês Herbert
Spencer (que também influenciou criticamente Durkheim) e teve maior impacto que a
ideia de evolução darwiniana.

Enquanto a teoria biológica de Darwin não implicava uma


direção ou progresso unilineares, as ideias de Spencer levaram
à disposição de todas as sociedades conhecidas segundo uma
única escala evolutiva ascendente, através de vários estágios.
Essa se tornaria a ideia fundamental do período clássico do
evolucionismo na antropologia (CASTRO, 2005, p. 26).

Assim, o evolucionismo reduzia as diferenças culturais a estágios históricos
de um mesmo caminho evolutivo, estágios sucessivos, obrigatórios, formando uma
trajetória linear e ascendente. Castro destaca que o postulado que dava corpo a esta
ideia era a da unidade psíquica da espécie humana – a uniformidade de pensamento.
Ou seja, se concebia uma mesma “natureza humana”, porém vista em distintos
momentos de sua evolução.

Assim, era necessário tratar a humanidade como homogênea em natureza,


embora situada em diferentes graus de evolução. Para Lewis Morgan a civilização
humana (singularizada) havia caminhado do estágio de barbárie para o de selvageria
e enfim, para o estágio de civilização (representada em si mesma) a partir da
sociedade em que vivia na época. Tomava assim, a sua sociedade como ponto
culminante da “evolução humana” (CASTRO, 2005, p. 28-29).

Assim, “a história da raça humana é uma só - na fonte, na experiência, no


progresso”, em um processo descrito como “corrida para o progresso” (MORGAN,
1887 apud. CASTRO, 2005, p. 44). Para Morgan, através da exposição de evidências
tecnológicas comuns em várias sociedades era possível “mostrar a origem única
da humanidade, a semelhança de desejos humanos em um mesmo estágio e a
uniformidade das operações da mente humana em condições similares de sociedade.”

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Capítulo 2 Estado, Poder, Classes Sociais e Cultura

(MORGAN, 1887 apud. CASTRO, 2005, p. 45). A uniformidade de operações e a


exposição dos estágios poderia ser observada descrevendo-se o desenvolvimento
dos quatro aspectos mais importantes: as invenções (tecnologia), o crescimento da
ideia de governo, família e propriedade.

A obra de Lewis Morgan teve importante destaque para a escrita do


livro “A Origem da família, da Propriedade Privada, do Estado”, por Marx
e Engels. Para Morgan, o desenvolvimento da propriedade como central
para a diferenciação entre as sociedades primitivas para a civilização;
além disto, a propriedade seria o fator diferenciador dos sistemas de pa-
rentesco e de governo entre as sociedades. A ideia de progresso adotada
em Marx, apesar de não declarada, tornou-se dominante na Sociologia e
História produzidas na antiga União Soviética, gerando uma visão da his-
tória dos modos de produção como um processo de progresso evolutivo
do desenvolvimento humano. E isto gerou a interpretação que era neces-
sária a passagem de um modo de produção para o outro. Assim, para se
chegar ao socialismo, era preciso antes desenvolver o capitalismo plena-
mente. Esta visão gerou problemas políticos em vários Partidos Comunis-
tas em países que eram avaliados como sendo “feudais”, “coloniais” ou
“semicoloniais”, países onde não teria ocorrido uma “revolução burgue-
sa”, ou seja, sociedades ainda não consideradas plenamente capitalistas.
Nestes países a Internacional Comunista dirigida por Moscou impunha
estratégias de aliança das forças populares (campesinato, operariado e
classes médias) com as suas “burguesias nacionais”, a fim de modernizar
as sociedades, libertar os países da dominação imperialista e promover
o necessário desenvolvimento capitalista, considerado necessário para o
pleno desenvolvimento da classe assalariada e como pré-condição para
a passagem para o socialismo. Esta visão desenvolvida na União Sovié-
tica recebeu inicialmente a crítica de Leon Trotsky, principalmente em sua
obra “Revolução Permanente” e, no Brasil, foi criticada por muitos pensa-
dores marxistas como Caio Prado Jr. e Florestan Fernandes.

Os povos não ocidentais, considerados selvagens, tradicionais, eram vistos como


um “museu vivo” da história humana, caminhando para o patamar mais avançado -
considerada a própria civilização ocidental. Segundo James Frazer, desta forma é
possível compreender “o caminho que os ancestrais da raça mais elevadas devem ter
trilhado em seu progresso ascendente, através da barbárie até a civilização” (FRAZER,

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Temas e Teorias da Sociologia

1890 apud. CASTRO, 2005, p.107-108). Aqui temos uma visão do etnocentrismo
europeu que foi dominante durante o período de imperialismo tardio (fins do século XIX
até fins da Segunda Guerra Mundial).

Para Edward Tylor, a situação da cultura entre as várias sociedades da humanida-


de, seria um tema adequado para o estudo de leis do pensamento e da ação uniforme
de causas uniformes. Buscando fundamento nas ciências da natureza, que reconhece
uma “unidade da natureza”, com “fixidez de leis”, com “sequência definida de causa de
efeito ao longo da qual todo fato depende do que se passou antes dele e atua sobre o
que vem depois” (TYLOR, 1871 apud. CASTRO, 2005, p. 69).

Antropologia: Edward Tylor buscou fundamentar a nova área das


ciências sociais, a antropologia. Para ele, “a ciência da cultura” seria uma
parte “essencial da história da natureza”, e que nossos pensamentos,
desejos e ações funcionam “de acordo com leis tão definidas quanto
aquelas que governam o movimento das ondas” (TYLOR, 1871 apud.
CASTRO, 2005, p. 70). Seguindo esta visão, Frazer defendeu que a
antropologia “visa a descobrir as leis gerais que regularam a história
humana no passado e que, se a natureza for realmente uniforme, é de
se esperar que a regulem no futuro” (FRAZER, 1890 apud. CASTRO,
2005, p.103-104). Para eles a antropologia era a ciência que deveria
estudar a “infância” da humanidade, o estado de selvageria, barbárie e
as “sobrevivências” do primitivo na sociedade civilizada.

Esta tradição evolucionista baseada no progresso das formas, do simples para o


complexo em um desenvolvimento com base biológica, também pode ser encontrada
nas obras sobre a religião de Émile Durkheim.

Como vimos no primeiro capítulo, para Durkheim era preciso compreender as


funções (como a família, religião, Estado etc.) que regulam e compõem o organismo
social como um todo. Esta é a base da explicação funcionalista. Para ele, as catego-
rias que compõe o ser social são representações coletivas, “são o produto de uma
intensa cooperação que se estende não apenas no espaço, mas no tempo; [...] lon-
gas séries de gerações nelas acumularam sua experiência e seu saber.” O homem
é um ser duplo, composto pelo indivíduo e a sociedade. A sociedade ultrapassa os

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Capítulo 2 Estado, Poder, Classes Sociais e Cultura

indivíduos, que não agem apenas utilitariamente, mas em função das nor- “nas sociedades
mativas da sociedade em que participa (DURKHEIM, 2000, p.23-24). Para inferiores”, “tudo
Durkheim, a moral era central na explicação dos fatos sociais, que era sem- contribui para
pre um fato coletivo. reduzir as diferenças
e as variações ao
mínimo”. “Tudo é
Durkheim, na introdução de “As formas elementares da vida religiosa” vai
comum a todos. Os
buscar a religião primitiva a partir de duas condições: (1) em sociedades cuja movimentos são
organização seja a mais simples e (2) que seja possível explicá-la sem tomar estereotipados”;
nenhum elemento tomado de uma religião anterior. Desta forma, fica evidente “tudo é uniforme,
a sua ligação com o esquema evolucionista, calcado na ideia do desenvolvi- tudo é simples”
mento de formas sociais mais “simples” para as mais “complexas”. Para ele, (DURKHEIM, 2000,
p. 11).
“nas sociedades inferiores”, “tudo contribui para reduzir as diferenças e as va-
riações ao mínimo”. “Tudo é comum a todos. Os movimentos são estereotipa-
dos”; “tudo é uniforme, tudo é simples” (DURKHEIM, 2000, p. 11). Se os fatos são mais
simples, as relações se tornam mais fáceis de ser compreendidas.

Livro: DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida


religiosa. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

Além disto, partilha da ideia de humanidade como um ser comum, já que concebe
a ideia de que o homem possui uma “natureza religiosa” comum. Tomando o objeto
religioso, percebe que “na base de todos os sistemas de crenças e de todos os cultos,
deve necessariamente haver certo número de representações fundamentais e de atitu-
des rituais que [...] têm sempre a mesma significação objetiva e desempenham por toda
parte as mesmas funções” (DURKHEIM, 2000, p. 10). Para compreender este objeto, a
sociologia, uma “ciência positiva”, deve buscar explicar as religiões arcaicas para com-
preender a realidade presente da humanidade.

A função da religião para Durkheim é de instituição social normativa, que explica e


justifica a ordem social. Tal como outras instituições, é considerado um organismo ne-
cessário para a manutenção de todo organismo social já que os ritos dão sociabilidade
dão um coletivo, sentimento de pertença. E o estudo do totemismo, desta forma, foi
apresentado por Durkheim como um meio de evidenciar padrões mais simples para se
estudar as religiões a partir do que nelas se apresenta como representações fundamen-
tais que “desempenham em toda parte as mesmas funções”.

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Temas e Teorias da Sociologia

4.3 O ETNOCENTRISMO NA
ANTROPOLOGIA EVOLUCIONISTA
Além dos estudos sobre culturas “exóticas” e “primitivas”, do “outro” distante,
também surgiram estudos sobre elementos considerados “exóticos” e “primitivos” que
poderiam ser observados dentro das sociedades “civilizadas”. Este etnocentrismo le-
vou ao surgimento de área do conhecimento conhecida como “folclore”, que sob a
perspectiva evolucionista, tornou-se o estudo das “sobrevivências” culturais primiti-
vas na sociedade civilizada. Seriam sobrevivências de um suposto estágio inferior de
desenvolvimento das comunidades e dos indivíduos, consideradas irracionais e sem
função social, como os costumes, superstições e crendices populares. A sobrevivên-
cia deste “folclore” seria determinada por uma suposta desigualdade natural entre os
humanos. As classes mais pobres seriam mais pobres e ignorantes por uma incapaci-
dade natural de se desenvolverem plenamente.

É possível destacar uma passagem exemplar desta compreensão em Frazer,


que eleva a desigualdade evolutiva de diferentes sociedades em diferentes espaços
geográficos a uma desigualdade natural que se encontra até mesmo nos indivíduos
de uma mesma sociedade:

Se perguntarmos como acontece de as superstições continuarem


a existir entre um povo que, em geral, alcançou um nível mais
elevado de cultura, a resposta deve ser encontrada na natural,
universal e erradicável desigualdade dos homens. Não apenas
diferentes raças são diferentemente dotadas no que diz respeito a
inteligência, coragem, habilidades e assim por diante, mas, dentro
de uma mesma nação, homens de uma mesma geração diferem
enormemente quanto à capacidade e ao valor inatos (FRAZER,
1890 apud. CASTRO, 2005, p. 113).

Esta e outras concepções derivadas da concepção etnocentrista europeia, de


triunfo civilizatório, revelava os mais diversos tipos de preconceitos que iriam ser ma-
terializados no tratamento brutal dado pelos europeus sobre os povos africanos, in-
dígenas e asiáticos em fins do século XIX. Além disto, muitos intelectuais viram no
evolucionismo social a justificativa para legitimar o racismo. Esta concepção norteou
a ideia de que os povos asiáticos, africanos e ameríndios eram interiores biologica-
mente por serem considerados atrasados.

Com isso, a tradição evolucionista foi perdendo força nas Universidades, ou vista
de maneira crítica. Por mais que a ideia de sucessão histórica de formas mais simples
para mais complexas possa ser uma ideia com razoabilidade empírica (como visto no
funcionalismo de Durkheim ou na ideia de desenvolvimento histórico do marxismo), ela
não permite defender a ideia de uma natureza universal e que caminha inexoravelmen-
te por mesmas etapas ou caminhos.

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Capítulo 2 Estado, Poder, Classes Sociais e Cultura

Apesar de ter diminuído sua influência, o evolucionismo permaneceu


presente nas universidades durante boa parte do século XX. Os trabalhos
de Morgan continuaram sendo referência para o marxismo soviético du-
rante boa parte do século XX (tornando-se a tradição antropológica “ofi-
cial”). Outros pesquisadores buscaram atualizar e retirar os componentes
etnocêntricos do evolucionismo, tais como Leslie White, Julian Steward e
no Brasil, Darcy Ribeiro. Além disto, esta tradição voltou a ganhar força
através de uma vertente da biologia moderno, a sociobiologia, através da
publicação de um livro com este título por Edward O. Wilson em 1975.
Esta tradição ressurge periodicamente em várias roupagens e muitas de
suas ideias clássicas permanecem disseminadas no senso comum (CAS-
TRO, 2005, p. 37-38).

As primeiras críticas ao evolucionismo antropológico partiram da escola nor-


te-americana iniciadas por Franz Boas e da escola funcionalista francesa de Bro-
nislaw Malinowski teceram diversas críticas ao evolucionismo, abrindo caminho
para análises que buscavam evidenciar a historicidade da cultura humana, em
oposição a uma visão naturalista.

Por parte de pesquisadores marxistas, apesar de em parte influenciados pela visão


de progresso, o evolucionismo passou a ser considerado uma ideologia que legitimou a
dominação e exploração de culturas e povos de todo o mundo durante a chamada “Era
dos Impérios”, da mesma forma que serviu para legitimar a desigualdade social nas so-
ciedades industriais (HOBSBAWM, 1997).

4.4 O RELATIVISMO CULTURAL E A


CRÍTICA AO EVOLUCIONISMO

Por um lado, o antropólogo Frans Boas (2005) inicia uma tradição do particularismo
histórico e do relativismo cultural, que buscava comprovar que as semelhanças culturais
vistas em povos de regiões distantes, usadas pelos evolucionistas para justificar uma uni-
dade da natureza humana e de suas fases de desenvolvimento civilizatório, decorriam
das trocas culturais entre as sociedades e não por uma suposta unidade da natureza
humana. Também evidenciava que a cultura deveria ser tomada em sua totalidade para
então comparar-se a outras (cada cultura deve ser tomada em sua particularidade).

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Temas e Teorias da Sociologia

A tradição iniciada por Bronislaw Malinowski (1984), por sua vez, levantou a preposi-
ção de que era fundamental o antropólogo ir a campo realizar a observação empírica para
a constituição de qualquer análise. Para ele, os evolucionistas passaram a ser considera-
dos, pejorativamente, “antropólogos de gabinete”, pois formulavam suas análises a partir
de relatos de viajantes ou observadores pagos.

Além disto, para Malinowski (1984), era necessário compreender uma dada cultura
em sua totalidade e particularidade, sendo que a dissecação de um aspecto de uma dada
sociedade para fins de comparação com outras passou a ser considerado um método
equivocado, já que se detinham na aparência de distintas sociedades sem compreende-
-las em sua totalidade – o que difere uma das outras (CASTRO, 2005, p. 35-36).

O nascimento da sociologia acadêmica no Brasil teve grande influ-


ência de antropólogos e sociólogos franceses, como Lévi-Strauss e Ro-
ger Bastide, em pesquisas acerca das sociedades ameríndias no Brasil.
Estes pesquisadores trouxeram ao Brasil os conceitos e métodos de ma-
triz durkheimniana, aplicada aos estudos de religião, família e matrimô-
nio, notadamente em sociedades consideradas exóticas ou em extinção,
como as tribos indígenas. Esta perspectiva teórica teve importância cen-
tral no desenvolvimento dos primeiros estudos sociológicos acadêmicos
de brasileiros, como de um dos patronos da sociologia no Brasil, Florestan
Fernandes.

Para Boas (2005), A escola norte-americana é marcada pela oposição ao evolucionismo


o evolucionismo e ao racismo antropológico. A produção de seu principal expoente, Franz
estava preso
Boas, como vimos acima, é de crítica as formulações evolucionistas ou
a perspectiva
etnocêntrica, biologicistas da “natureza humana” (na antropologia como na psiquiatria).
prisioneira dos
pressupostos e Para Boas (2005), o evolucionismo estava preso a perspectiva etno-
valores da cultura do cêntrica, prisioneira dos pressupostos e valores da cultura do observador. As
observador. culturas primitivas eram percebidas pelo que nelas faltava em relação à cultura
da civilização ocidental: família, Estado, propriedade privada, ciência, etc. Para
Boas, a complexidade da cultura humana é imensa, por isso “parece justificável indagar
se é possível almejar atingir quaisquer conclusões generalizáveis que reduzam os dados

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Capítulo 2 Estado, Poder, Classes Sociais e Cultura

antropológicos a uma fórmula que possa ser aplicada a cada caso, explicando seu passa-
do e prevendo seu futuro” (BOAS, 2005, p. 106).1

Desta forma, Boas (2005) vai evidenciar que os estudos sobre a cultura
De modo oposto
humana, devido a sua “matéria-prima” complexa, calcada na interação indiví- ao evolucionismo,
duo e sociedade, não pode ser reduzida a um estudo classificatório. Para ele, a a cultura em Boas
antropologia “precisa ser uma ciência histórica, uma ciência cujo interesse está é considerada um
centrado na tentativa de compreender os fenômenos individuais, mais do que todo, “a cultura
no estabelecimento de leis gerais” (BOAS, 2005, p. 107). De modo oposto ao é integrada”, “é
uma totalidade”:
evolucionismo, a cultura em Boas é considerada um todo, “a cultura é integrada”,
“invenções,
“é uma totalidade”: “invenções, vida econômica, estrutura social, arte, religião e vida econômica,
moral, todas estão inter-relacionadas” (BOAS, 2005, p.105 e 103). estrutura social,
arte, religião e
Para ele, as determinações biológicas e racialistas sobre a cultura eram moral, todas estão
meramente especulativas. Para ele, “a cultura é um determinante muito mais inter-relacionadas”
(BOAS, 2005, p.105
importante do que a constituição física” e que “os resultados do extenso ma-
e 103).
terial reunido durante os últimos cinquenta anos não justifica a suposição de
qualquer relação estreita entre tipos biológicos e forma cultural” (BOAS, 2005, p. 97).

Na obra “Raça e Progresso” (2005), Boas vai realizar uma crítica contundente ao
pensamento racial na antropologia. Não negava a necessidade de estudarmos o de-
senvolvimento racial humano, mas considerava que a assimilação de raça com deter-
minações culturais, geográficas e mentais (como traços culturais sendo determinados
hereditariamente) era um empreendimento temerário, não apropriado para o desenvol-
vimento de um conhecimento que pudesse trazer elementos para a compreensão da
própria sociedade. Pelo contrário, para Boas os estudos raciais desenvolvidos na an-
tropologia pareciam reproduzir os preconceitos raciais estabelecidos nas sociedades.

Embora os indivíduos difiram, as diferenças biológicas entre as ra-


ças são pequenas. Não há razão para acreditar que uma raça seja
naturalmente mais inteligente, dotada de grande força de vontade,
ou emocionalmente mais estável do que outra, e que essa diferença
iria influenciar significativamente sua cultura. Também não há razão
para acreditar que as diferenças entre as raças são tão grandes,

1 Importante aqui, para evidenciar o contraponto com o evolucionismo, retomar o argumento


de Frazer sobre os objetivos da antropologia: “Portanto, a antropologia, no sentido mais
amplo da palavra, visa a descobrir as leis gerais que regularam a história humana no passado
e que, se a natureza for realmente uniforme, é de se esperar que a regulem no futuro”
(FRAZER, 2005, p.103-104). Conferir descrição de Boas sobre a influência da biologia na
antropologia com o advento da teoria darwinista: “A idéia de que os fenômenos do presente
se desenvolveram a partir de formas anteriores com as quais são geneticamente ligados
– e que os determinam – sacudiu as fundações dos antigos princípios de classificação,
permitindo que se reunissem grupos de fatos até então aparentemente desconexos. Uma
vez claramente anunciada, a visão histórica das ciências naturais se mostrou irresistível”
(STOCKING Jr., 2004, p.44-45).

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Temas e Teorias da Sociologia

que os descendentes de casamentos mistos devem ser inferiores a


seus pais. Biologicamente não há razão para se opor à endogenia
em grupos saudáveis, nem à mistura das principais raças (BOAS,
2005 apud. CASTRO, 2005, p. 82).
O problema reside
em que “quando
as divisões sociais O problema reside em que “quando as divisões sociais seguem fron-
seguem fronteiras teiras raciais, como acontece entre nós, o grau de diferença entre formas
raciais, como raciais é um elemento importante para o estabelecimento de grupos raciais
acontece entre nós, e para a criação do conflito entre raças” (BOAS, 2005, p. 84). O indivíduo
o grau de diferença passa a expressar seu sentimento de solidariedade por meio de uma idea-
entre formas raciais
lização de seu grupo e um desejo que este sentimento se perpetue.
é um elemento
importante para o
estabelecimento Se os grupos sociais são também grupos raciais a consequência será
de grupos raciais e o conflito social transvertido em conflito racial: “a estratificação da socieda-
para a criação do de em grupos sociais de caráter racial irá sempre levar à discriminação de
conflito entre raças” raça” (BOAS, 2005 apud. CASTRO, 2005, p. 85). Desta forma, a antipatia
(BOAS, 2005, p. 84). racial não é fato natural, mas fato social e cultural.

Um amplo campo de produção sociológica se desenvolveu a par-


tir dos estudos sobre como fatores tais como gênero e raça tornaram-se
centrais para compreender o desenvolvimento das desigualdades so-
ciais no mundo moderno. Esta perspectiva tornou-se presente na acade-
mia com as investigações do sociólogo norte-americano e negro Wilian
Edward Du Bois, para o qual raça e desigualdade social eram sinônimos
nas sociedades do século XX. Para ele, apesar de os escravos norte-a-
mericanos terem sido libertos e terem sido criadas medidas para incluí-los
na sociedade (através de compensações legais), isto apenas fez crescer
a hostilidade dos brancos. Assim, mesmo que legalmente livres, os ex-es-
cravos continuavam “escravos da sociedade”. Os próprios negros, apesar
de muitos ascenderem socialmente, vivem com uma dupla identidade,
paradoxal: a autoimagem positiva de adquirir uma profissão conceituada
(como Du Bois, professor universitário, o que os fariam se sentir incluídos
na sociedade), conviveria com a autoimagem estigmatizada que os bran-
cos tem dos negros, como perigosos e ameaçadores, como a de um pos-
sível criminoso. Sua obra influenciou a formação de organizações pelos
direitos civis dos negros e a formação de lideranças como Marthim Luther
King (THORPE et al., 2015).

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Capítulo 2 Estado, Poder, Classes Sociais e Cultura

Para George Stocking Jr., a crítica de Boas “era relativista, tanto no que diz res-
peito ao método como à apreciação em si mesma – as raças, as línguas e as culturas
não podiam ser estudadas nem apreciadas de um ponto de vista eurocêntrico” (STO-
CKING, 2004, p. 31).

A perspectiva multicultural e histórica de Boas foi aprofundada por Ruth Bene-


dict, levantamos alguns pontos centrais de questionamento sobre os estudos cultu-
rais. Para ela, o importante era “compreender o modo como as culturas se transfor-
mam e se diferenciam, as formas diferentes por que se exprimem, e a maneira como
os costumes de quaisquer povos funcionam nas vidas dos indivíduos que as compõe”
(BENEDICT, 1985, p. 14). Antes de estabelecer estágios, limites e fronteiras entre as
diferentes culturas, era preciso explicar seu surgimento, transformações, trocas, bem
como evidenciar a relação indivíduo-sociedade.

Para Benedict era preciso perceber a dialética estabelecida entre indivíduo e so-
ciedade, evidenciando que sociedade e indivíduo não são antagônicos, mas interde-
pendentes, numa relação de necessidade recíproca, um “toma lá, dá cá”. Benedict
fez uma defesa enfática em defesa da relatividade cultural, ou seja, da aceitação e
adoção de trocas culturais pacíficas e buscando a compreensão mútua:

Logo que o ponto de vista seja aceite como uma crença habitual,
ela será um bastião de confiança da vida perfeita. Atingiremos en-
tão uma fé social mais realista, adoptando como razões de espe-
rança e novas bases de tolerância os padrões de vida coexistente
e igualmente válidos que a humanidade criou para seu uso a par-
tir das matérias-primas da existência (BENEDICT, 1985, p. 304).

Desta forma a antropologia passava, com Boas e Benedict, do determinismo


evolucionista para a compreensão da relatividade cultural, da complexidade cultural
das sociedades. A explicação para as semelhanças entre as culturas não estava em
sua “unidade da natureza”, mas na capacidade de realizar trocas culturais. Argumen-
tam que há uma diferença fundamental entre os elementos e concepções das ciên-
cias biológicos para as culturais, o que os torna impossível transferir os métodos de
uma para outra.

Esta perspectiva abriu caminho para a elaboração de pesquisas como critica-


ram o racismo institucionalizado em vários países durante o século XX, como nos
Estados Unidos, Índia e África do Sul. Além disso, a perspectiva de relativismo cultu-
ral influenciou também o desenvolvimento dos estudos sobre gênero, destacando os
fatores sociológicos, culturais e históricos como predominantes na compreensão que
“homens” e “mulheres” e seus distintos papéis sociais”, a heterossexualidade ou a
homossexualidade, não são fatos determinados biologicamente.

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Temas e Teorias da Sociologia

Mead buscou A pesquisadora norte-americana Margaret Mead ficou conhecida por


confrontar a ideia inaugurar os estudos de gênero, tendo por base a crítica de Boas ao deter-
dominante na
minismo biológico presente nas análises evolucionistas. Mead buscou con-
sociedade norte-
americana do frontar a ideia dominante na sociedade norte-americana do início do século
início do século XX, que via como naturalmente designados os papéis dos homens e mu-
XX, que via como lheres, onde os homens deveriam ser os provedores da casa enquanto às
naturalmente mulheres cabia o cuidado da vida doméstica (THORPE, 2015, p. 298).
designados os
papéis dos homens
Mead, no entanto, a partir de pesquisas antropológicas em tribos da
e mulheres
Nova Guiné observou que os papéis de gênero dos homens nestas socieda-
des eram bastante semelhantes aos das mulheres e que eles seriam vistos no Ociden-
te como “femininos” e as mulheres como “masculinas” (THORPE, 2015, p. 298).

Assim, Mead defendeu a ideia de que o gênero não é baseado nas diferenças bio-
lógicas entre os sexos, mas sim nas condições culturais e históricas de uma determina-
da sociedade. Assim, baseados na ideia de que “os papéis de gênero não são naturais,
mas criados pela sociedade”, Mead estabeleceu “o gênero como um conceito crítico”
(THORPE, 2015, p. 299). Suas ideias influenciaram o movimento de libertação sexual
e feminista dos anos 1960 em diante e na formação de uma área de estudos sobre
gênero nos estudos sociológicos e antropológicos pelo desenvolvimento da chamada
teoria queer.

Sugestão de atividade: ao tratar destes temas em sala de aula, perceba


como os estudos sobre cultura são insuperáveis de um certo posicionamento
dos pesquisadores em relação à própria realidade social. Ou tomaram posi-
ção afirmando sua superioridade e dominância cultural, típica de uma leitura
etnocentrista, da conservação das formas sociais ou passaram a desenvolver
perspectivas multiculturais, de defesa de um relativismo cultural e de valori-
zação da particularidade e trocas culturais entre as mais variadas formas de
vida humana. Perceba que a partir destes autores muitos debates podem ser
realizados em sala de aula acerca de temas contemporâneos, como as ques-
tões relativas a gênero e raça e de como estes temas produzem polêmicas
intensas no debate público (como na reportagem abaixo) a ponto de haver
projetos de censura em debatê-los em sala de aula. Sugere-se como aborda-
gem à questão, junto aos alunos, o texto da promotora de justiça Fabíola Su-
casas Negrão Covas, “A proibição do debate de gênero nas escolas” (2018),
disponível em nossas referências.

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Capítulo 2 Estado, Poder, Classes Sociais e Cultura

FIGURA 2

FONTE: G1. 9 mai 2018. Disponível em: <https://glo.bo/2VSOQzw>. Acesso em: 19 set. 2019.

1 Descreva o que é etnocentrismo e cite exemplos de etnocentrismo


vistos na sociedade atual.

R.:____________________________________________________
____________________________________________________
___________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________

2 Qual foi uma das principais contribuições do antropólogo Franz


Boas para as ciências sociais na passagem do século XIX para o
XX?

( ) a) Defendeu que as raças determinam o estágio histórico vivido


pelos povos, a partir do estudo comparativo dos povos de diversos
continentes.
( ) b) Defendeu que os estudos raciais desenvolvidos na antropologia
pareciam reproduzir os preconceitos raciais estabelecidos nas
sociedades.
( ) c) Defendeu que era fundamental o antropólogo ir a campo realizar
a observação empírica para a constituição de qualquer análise.
( ) d) Defendeu a ideia de uma natural, universal e erradicável
desigualdade dos homens.

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Temas e Teorias da Sociologia

3 O evolucionismo cultural foi influenciado pela visão de progresso


humano. Assinale a alternativa CORRETA que descreve o con-
ceito de progresso adotado pelos estudiosos evolucionistas:

( ) a) A defesa da relatividade cultural e social, ou seja, da aceitação e


adoção de trocas culturais pacíficas e buscando a compreensão mútua.
( ) b) A ideia de que a dissecação de um aspecto de uma dada socie-
dade para fins de comparação com outras passou a ser considerado
um método equivocado.
( ) c) tomar a visão de mundo de seu grupo, de sua sociedade, seus
valores e sentido, como parâmetro central pelo qual se analisa (e se
julga) outras sociedades.
( ) d) A imagem de uma escada, linear e hierarquizada que conside-
rado o mais “evoluído” aquele que está em um estágio superior, mais
complexo.

5 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
Neste capítulo observamos como os conceitos de política, Estado, classes e
identidades sociais foram trabalhadas a partir da sociologia clássica de Marx e Weber.
Vimos também como o mundo do trabalho sofreu mudanças significativas que impac-
tam na identidade dos indivíduos. Por fim, destacamos o debate entre evolucionismo
e relativismo cultural nos estudos culturais desde a segunda metade do século XIX e
o problema colocado pelo etnocentrismo nas pesquisas sociais.

Percebemos como na tradição marxista, a política é vista como um espaço de


luta entre classes, de onde o Estado surgiu como ferramenta de dominação da clas-
se dominante sobre a dominada, mas também como ferramenta de organização da
concorrência e das disputas dentro da própria classe dominante. Vimos como a socio-
logia marxista complexificou as definições de classe social e conflito social em Marx,
vistos a partir de suas diversas frações em conflitos, como das dificuldades encon-
tradas pela classe dos trabalhadores assalariados em se organizar como classe re-
volucionária, um dos grandes debates enfrentados pelos marxistas durante o século
XX, marcado pela construção da primeira grande experiência socialista (URSS) como
pelas experiências reformistas na Europa.

Neste sentido, pudemos perceber como os conceitos de consciência de classe e


ideologia são essenciais para a definição de classes e na compreensão da luta políti-

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Capítulo 2 Estado, Poder, Classes Sociais e Cultura

ca para os marxistas, não podendo tomar as simples posições na estrutura produtiva


como determinantes para a organização de classes. Além disso, muitos sociólogos
marxistas como Michael Buroway colocaram a necessidade de os marxistas pesqui-
sarem a vivência concreta dos trabalhadores assalariados para poder realizar as co-
nexões entre a teoria (“macro”) com a vivência cotidiana (“micro”).

Por outro lado, vimos como a sociologia de matriz weberiana dá maior destaque
a uma análise que não toma a posição econômica comum (“situação de classe”) como
expressão de uma identidade de interesses que se desenvolveria em distinções sociais
e políticas claras, como visto no marxismo. Vimos como a tradição sociológica webe-
riana, no entanto, não se traduz em posições políticas simplificadas. Por um lado, se
desmentia teses marxistas ao analisar a inexistência de classe operária organizada em
partidos comunistas ou trabalhistas nos Estados Unidos visto que nos EUA não havia
reminiscências dos estamentos feudais europeus, por outro lado se destacou a extrema
dominância de uma elite política, econômica e militar que exerce o poder sem oposi-
ções neste mesmo país e que consegue cooptar e manter alienadas as classes mais
baixas e médias, num sistema de dominação burocrática nunca visto antes.

Também observamos a confluência das três tendências sociológicas clássicas na


obra de Bourdieu, a partir de seus estudos sobre identidades sociais e de classe a partir
do conceito de habitus. Vimos como um conjunto de práticas distinguem diferentes gru-
pos sociais e classes sociais distintas. Além disto, vimos como o acesso a bens cultu-
rais e o acesso à educação também se tornam sinônimos de distinção entre as classes
sociais.

Por fim, percebemos como as ideias derivadas da biologia, além de influencia-


rem a sociologia de Durkheim, também influenciaram na formação da área de estu-
dos culturais, a antropologia. A ideia de progresso das sociedades humanas, a partir
da evolução das formas sociais mais simples para as mais complexas (civilização), foi
construída a partir de uma visão legitimadora da dominação europeia sobre os outros
povos do mundo, tomando sua cultura e visão de mundo como parâmetro superior e
critério de avaliação dos demais (etnocentrismo).

Vimos como a crítica ao evolucionismo tomou forma na defesa de estudos que


defendem uma perspectiva de estudo das culturas de povos distintos a partir de seu
próprio sistema de significados internos e de sua própria particularidade. Defendeu-se
o relativismo cultural, ou seja, a visão de que a humanidade é formada por diversas
formações culturais, que podem conviver e realizar trocas pacificamente. Além disso,
vimos como esta perspectiva levou a crítica dos estudos que legitimavam o racismo
como da tradicional ideia de que os papéis de gênero são determinados biologicamen-
te, consolidando as novas perspectivas de pesquisa sociológica no século XX e XXI.

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Temas e Teorias da Sociologia

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C APÍTULO 3
A Sociologia Nos Dias De Hoje: os
Desafios do Mundo Globalizado e
Fragmentado

A partir da perspectiva do saber-fazer, são apresentados os seguintes


objetivos de aprendizagem:

Saber:

� Explorar os temas sensíveis à pesquisa sociológica no mundo contemporâneo.

� Compreender a ligação entre as contribuições e temas tradicionais da sociologia


com as novas tendências sociológicas atuais.

� Identificar a historicidade dos problemas identificados pelas sociedades contempo-


râneas.

Fazer:

� Realizar pesquisas orientadas juntos aos alunos como professor-sociólogo.

� Delinear as tendências de pesquisa da sociologia contemporânea sem perder a


conexão umbilical com as abordagens teóricas fundamentais da sociologia.

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Temas e Teorias da Sociologia

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A Sociologia Nos Dias De Hoje: os Desafios do
Capítulo 3
Mundo Globalizado e Fragmentado

1 CONTEXTUALIZAÇÃO
Neste capítulo, pretendemos fazer um breve apanhado dos temas e refle-
xões sociológicas atuais. O objetivo não é exaurir ou aprofundar os temas pro-
postos, mas apresentar algumas das principais problemáticas que se colocam em
nossa sociedade contemporânea. Pretendemos que estas reflexões sirvam para o
aprofundamento de leituras e para a reflexão sobre a necessidade e as formas de
se pensar o ensino da sociologia no sistema de ensino brasileiro.

Nosso recorte temático se inicia na reflexão sobre os problemas do aprofunda-


mento da desigualdade social no fim do século passado e início do XXI e da incapaci-
dade dos sistemas políticos constituídos (as democracias liberais) conter as frustrações
sociais derivadas principalmente da sensação de quebra e perda de quaisquer estabili-
dades que alicerçavam as sociedades industriais até fins do século XX.

Além disso, temos a emergência de temas relativos às identidades sociais e


liberdades individuais. A reflexão acerca do etnocentrismo cultural e da ideia de
progresso e evolução (apresentada na segunda unidade deste livre), frutos do
pensamento antropológico e sociológico do século XIX, nos servem para refletir
sobre os problemas da persistência das mais variadas formas de preconceitos e
intolerância em nosso mundo globalizado.

Se as tecnologias da informação e as redes sociais pareceram criar a otimis-


ta possibilidade de conexão, diálogo e acesso globalizado às informações e possi-
bilidades econômicas e culturais, a realidade que se apresenta em várias regiões
é a de conflitos étnicos, religiosos, de xenofobia, e de persistência do racismo e
de preconceitos de gênero. Vertentes políticas denominadas pela grande mídia de
“neopopulistas” ou por muitos intelectuais como “neofascistas” ameaçam as ins-
tituições democráticas. Apresentam-se como novas variantes de antigas formas
de ultranacionalismo e pregação de superioridade étnica ou nacional (típicas dos
movimentos fascistas), principalmente nas nações centrais do capitalismo, mas
também em nações periféricas.

Por fim, buscamos retomar a ideia da importância de refletirmos sobre os


rumos e contestações acerca da pesquisa e do ensino de Sociologia no Brasil,
marcada pela consolidação recente, mas também por questionamentos e possi-
bilidades de exclusão curricular ou censura de serem trabalhados certos temas
fundamentais da sociologia. Além disso, apresentamos algumas ideias para ativi-
dades a serem realizadas junto aos alunos derivadas principalmente dos debates
realizados nesta terceira unidade.

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Temas e Teorias da Sociologia

2 AS MUDANÇAS NAS RELAÇÕES


HUMANAS E DO MUNDO DO
TRABALHO NA ATUALIDADE
Midiaticamente, politicamente e intelectualmente se anunciava que no final do
século XX e início do século XXI ter-se-ia um período de paz e prosperidade com
a vitória do capitalismo representado pelas democracias liberais ocidentais sobre o
socialismo representado pelo aparentemente fechado sistema político soviético e paí-
ses satélites. A democracia liberal calcada no Estado moderno, na preservação da in-
dividualidade e da propriedade, tornava-se as bases possíveis para o “fim da história”
e a formação de uma sociedade mundial integrada e globalizada.

O restante da humanidade deveria seguir este modelo, e as exceções eram as re-


gressões em sociedades que não consolidaram estruturas de Estado modernas e que
estavam reféns de retóricas religiosas ou ultranacionalistas. Seriam os atrasados e desa-
justados de uma história sem volta. Os problemas sociais na periferia seriam derivados da
recusa em adotar o padrão ocidental, de consolidar Estado burocráticos e de Direito e de
adotar o padrão do livre mercado como balizador da globalização em curso.

No entanto, esta tese não se tornou representativa da nova realidade. Se no


século XIX o imperialismo usava a roupagem da civilização da ciência e da razão
sobre a barbárie do atraso e da ignorância, atualmente a suposta defesa da demo-
cracia passou a ser usada para defender interesses econômicos hegemônicos sobre
regiões com importância econômica ou geopolítica. Às nações periféricas se apre-
sentava como urgente e necessária a adoção das regras do neoliberalismo, calcada
na abertura total da economia, desregulamentação de regras trabalhistas e renúncia
à projetos de desenvolvimento alternativos.

Se a redução da pobreza absoluta (das pessoas que vivem com menos de 1


dólar ao dia e vivem na fome ou desnutrição) estaticamente obteve certo sucesso, o
mesmo não pode ser dito em relação à desigualdade social absoluta. Viu-se nos últi-
mos 30 anos a manutenção das desigualdades entre os países de desenvolvimento
clássico do capitalismo (Europa e EUA) e os periféricos (América Latina, Ásia e Áfri-
ca), com algumas exceções (a mais representativa sendo a China).

Mas o fenômeno mais abrangente é o do crescimento da desigualdade social


no interior dos países. Se em alguns países logrou-se certa redução da desigualdade
e da pobreza durante certos períodos (como na China, Índia e Brasil), a regra mun-
dial foi do crescimento absoluto da desigualdade social entre os 10% mais ricos e os
50% mais pobres. Nos países centrais a principal propaganda contra o socialismo
durante os anos de 1960 a 1980 foi a consolidação de classes médias com grande

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A Sociologia Nos Dias De Hoje: os Desafios do
Capítulo 3
Mundo Globalizado e Fragmentado

capacidade de consumo e estabilidade social e de classes trabalhadoras amparadas


por regras trabalhistas e contratos de trabalho estáveis, a partir do avanço das teses
neoliberais viu-se a ampliação da desigualdade e a quebra da antiga estabilidade da
“era de ouro do capitalismo”.

Apesar de contestações políticas à globalização neoliberal inicialmente se deram no


desenvolvimento de partidos o movimentos sociais contestatórios, geralmente identificados
à esquerda na política (os movimentos “antiglobalização” e eleição de presidentes de es-
querda na América Latina durante a década de 2000) também se viu o renascer de movi-
mentos de contestação identificados classicamente com o ultranacionalismo, à xenofobia e
ao racismo como críticos dos efeitos da globalização neoliberal.

No entanto, há dois aspectos nesta nova configuração política: a esquerda em


boa medida abandonara projetos de revolução baseados no marxismo e ficou restrita
ás lutas “progressistas” e a direita neoconservadora se afastou da defesa da demo-
cracia liberal, do respeito às liberdades individuais e o livre mercado e a substitui pelo
conservadorismo nos valores e promove guerras comerciais e ideológicas entre Es-
tados.

HOBSBAWM, Eric. Tempos fraturados. Cultura e Sociedade


no século XX. São Paulo: Companha das Letras, 2013.

Neste sentido, apresentaremos aqui algumas reflexões e roteiros de pesquisa


de alguns sociólogos que ajudam a compreender as dinâmicas aqui apresentadas, de
crescimento da desigualdade, da quebra das possibilidades de estabilidade social na
economia atual e dos efeitos políticos e culturais destes fenômenos.

2.1 O “FIM DA HISTÓRIA”: A


SOCIEDADE PÓS-INDUSTRIAL E A
SOCIEDADE EM REDE
Desde a década de 1960 e 1970 o marxismo enfrentou diversas contestações
intelectuais dentro do seio da própria esquerda e partidos de tendência marxista tor-
naram-se minoritários e os outrora influentes Partidos Comunistas perderam quase

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Temas e Teorias da Sociologia

que totalmente seu poder durante as décadas seguintes. A filosofia pós-moderna,


com Lyotard, Deleuze e Foucault questionavam as regras da lógica, da racionalida-
de iluminista e da ciência, do qual o marxismo era derivado e representante radical.
Estes filósofos viam relações de poder em todas as esferas da vida humana e viam
a razão como principal agente da repressão Desta forma, os antagonismos do mar-
xismo careciam de fundamento, servido apenas como outra “metanarrativa” para o
poder (ROUANET, 1987).

A crise do marxismo: muitos partidos comunistas abandonaram as


teses de revolução social e passaram a adotar agendas social-democrá-
ticas, com respeito às instituições liberais e à economia de mercado. A
agenda política, da confrontação entre classes, passou a ser de concer-
tação social, ou seja, de negociação para resolução das desigualdades.
Com o fim da União Soviética em 1991 esta tendência, já em curso, se
aprofundou. Apesar de presente em círculos acadêmicos e blindados de
controles políticos, o marxismo apresentava-se como uma teoria socio-
lógica em crise, questionada à esquerda pelos pós-modernos, além das
tradicionais críticas por sociólogos weberianos ou de outras vertentes
identificadas ao liberalismo político e econômico, como a ciência política
norte-americana.

O fim da União Soviética passou a ser celebrado por boa parte das forças políti-
cas do ocidente (inclusive de esquerda), como a vitória da economia de mercado ca-
pitalista e/ou como a vitória da sociedade calcada na democracia liberal, com respeito
às liberdades individuais, à democracia competitiva e à propriedade privada.

Teses como do filósofo político Francis Fukuyama (1992), ligado às tendências


conservadoras da Inglaterra e dos EUA na década de 1980 e 1990 ganharam noto-
riedade midiática e acadêmica. Em seu livro lançado em 1992, “O fim da História e o
último homem”, defende a tese de que a vitória da democracia ocidental e da sociedade
de mercado representavam o “fim da história” humana, em uma interpretação sua do
conceito hegeliano. Apesar de midiaticamente popular no início da década para repre-
sentar a vitória do bloco capitalista na guerra fria, a tese foi bastante criticada por inte-
lectuais de variadas matizes por seu caráter triunfalista e teleológico .

Na sociologia surgiram novas teses explicativas acerca das sociedades no fim


do século XX. Diversamente da tese marxista de que o trabalho, seu produto e or-
ganização eram as categorias centrais para se entender as disputas e conflitos em

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A Sociologia Nos Dias De Hoje: os Desafios do
Capítulo 3
Mundo Globalizado e Fragmentado

uma determinada sociedade, agora a sociologia passou a identificar nas identidades


culturais e nas disputas em torno do consumo a centralidade do estudo sociológico.

Os conceitos de sociedade de consumo ou sociedade pós-industrial tornaram-se


substitutos dos clássicos conceitos de sociedade capitalista e industrial. Conforme ex-
posto pelo sociólogo italiano Domenico De Masi:

Enquanto a sociedade industrial simplifica enormemente a di-


nâmica social, empurrando os contendores para os dois polos
opostos, burguesia e proletariado, a sociedade pós-industrial
coloca em jogo novos sujeitos, fraciona os dois precedentes,
desincorpora-os e diversifica-os com base nas tecnologias, na
organização do trabalho, no mercado, no sexo, na idade, no pro-
fissionalismo, na raça, na religião, na região, na escolaridade,
nos gostos e assim por diante” (MASI, 2000, p. 174).

Na sociedade pós-industrial as oposições não seriam mais baseadas mais na


velha oposição entre capital e trabalho, mas sim em identidades culturais diversas.
Domenico de Masi, antes de tudo é um otimista das possibilidades de libertação do
trabalho dadas pelo avanço tecnológico atingido pela humanidade e da capacidade,
portanto, dos seres humanos viverem livres (no que denominou “ócio criativo”).

Desta forma, haveria uma superação das necessidades do homem impostas


pela natureza, conforme classicamente colocara Marx. Conforme o autor, “na socie-
dade pós-industrial, a cultura prevalece sobre a natureza: serenamente, sem com-
plexos de culpa, o homem pode finalmente delegar às máquinas não só o esforço
físico mas também a parte mais tediosa do trabalho intelectual” (MASI, 2000, p. 333).
Assim, a liberdade criativa permitiria o ser humano se afastar da ideia de “trabalho”
tradicional e se aproximar do que ele denominou “ócio criativo”, que misturariam o
trabalho com conhecimento, criatividade e prazer.

Neste sentido, os avanços tecnológicos mais significativos da segunda metade


do século XX foi a informática e a robotização das linhas produtivas. No século XXI,
a globalização da internet, do computador pessoal (muitas vezes na forma do smar-
tphone), a criação de redes sociais e aplicativos de serviços trouxe novas perspecti-
vas de sociabilidade, expressão política e acesso à informação.

Para o sociólogo
Para o sociólogo Manuel Castells (2000), saímos da era industrial e
Manuel Castells
passamos para a era da informação, cuja expressão seria a “sociedade em (2000), saímos
rede”. Uma sociedade permanentemente conectada por redes baseadas da era industrial e
na tecnologia e na internet, permitindo a disseminação de conhecimentos passamos para a
outrora especializados. Um dos exemplos do uso das redes foi a expansão era da informação,
vertiginosa do mercado financeiro internacional, capaz de conectar os vá- cuja expressão seria
a “sociedade em
rios mercados globais e verificar automaticamente as flutuações de preços
rede”.
de commodities e ações.

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Temas e Teorias da Sociologia

Para Castells (2000) mudança da produção de bens e serviços alterou profun-


damente a natureza da sociedade contemporânea e a incapacidade de acompanhar
estas mudanças é apresentado por Castells como a razão para o esfacelamento da
antiga União Soviética, demasiadamente fechada e centralizada para acompanhar as
mudanças da sociedade em rede. Na sociedade em rede as organizações não têm
mais centro, a própria rede torna-se a forma de organização das atividades humanas.
Dos dados financeiros, as redes sociais, ao entretenimento e às compras, a internet
tornou-se o palco de múltiplas possibilidades e liberta os indivíduos ao permitir que
qualquer um possa usar as redes para propósitos criativos e permitir, virtualmente, se
ligar a qualquer lugar do mundo, a qualquer momento.

Entretanto, diferente de Domenico De Mais, Manuel Castells não se apresenta


como totalmente otimista. Para ele, o capitalismo se torna literalmente “global” pela
capacidade dos mercados se integrarem “online” e permitir formas de transação e
controle das flutuações de preços, também impõe ao mundo do trabalho o controle
global das cadeias produtivas. O capital agora se dirige onde a mão-de-obra se tor-
nam mais baratas. O conhecimento produtivo fundamental permite que ele possa se
mover por vários continentes e não mais se concentrar em algumas regiões.

As redes e o mundo do trabalho: As redes convergem para uma


meta-rede de capital que integra os interesses capitalistas em âmbito glo-
bal e por setores e esferas de atividades: não sem conflitos, mas sob a
mesma lógica abrangente. Os trabalhadores perdem sua identidade co-
letiva, tornam-se cada vez mais individualizados quanto a suas capaci-
dades, condições de trabalho, interesses e projetos. Distinguir quem são
os proprietários, os produtores, os administradores e os empregados está
ficando cada vez mais difícil em um sistema produtivo de geometria vari-
ável, trabalho em equipe, atuação em redes, terceirização e subcontrata-
ção” (CASTELLS, 2000, p. 571)

2.2 A “MODERNIDADE LÍQUIDA”: A


FRAGMENTAÇÃO DO TRABALHO E
A CORROSÃO DO CARÁTER
A fragmentação produtiva era prenúncio de novas possibilidades para a liber-
tação humana e maior controle do tempo, não mais preso ao tempo do relógio do
trabalho industrial:

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A Sociologia Nos Dias De Hoje: os Desafios do
Capítulo 3
Mundo Globalizado e Fragmentado

A grande empresa monolítica vai-se desarticulando e diluindo-


-se em distritos e aparatos e para um número crescente de
dependentes torna-se tecnicamente possível trabalhar com o
terminal na própria casa ou em unidades organizativas inter-
mediárias. Isso determina uma progressiva desestruturação
do espaço produtivo. Paralelamente, vai-se desestruturando
o tempo de trabalho: um número crescente de trabalhadores
consegue horários flexíveis, trabalho temporário ou interino,
distribuição personalizada de férias, possibilidade de delegar
a um parceiro parte de seu trabalho e assim por diante (MASI,
2000, p. 330).

Se para Mais (2000) esta fragmentação criaria a possibilidade de maior controle


do tempo livre, para outros, a realidade da fragmentação produtiva também trouxe con-
sequências muito mais profundas para a experiência humana.

Para Richard Sennett (2006), a sociedade de mercado do fim do século XX e iní-


cio do XXI, triunfante sobre o socialismo burocrático, não trouxe maior felicidade ou rea-
lização às pessoas, tanto trabalhadores manuais como à denominada classe média. O
autor analisa criticamente as transformações acarretadas pela flexibilização do trabalho
e da gerência criadas pelas transformações políticas e tecnológicas do último 30 anos,
nas obras “A cultura do novo capitalismo” (2006) e em “A corrosão do caráter” (2009).
Sennett apresenta um panorama nada otimista:

Os insurgentes da minha juventude acreditavam que, desmon-


tando as instituições, seriam capazes de gerar comunidades:
relações pessoais diretas de confiança e solidariedade, relações
constantemente negociadas e renovadas, um reino comunitário
no qual as pessoas haveriam de tornar-se sensíveis às necessi-
dades umas das outras. Não foi, certamente, o que aconteceu.
A fragmentação das grandes instituições deixou em estado frag-
mentário as vidas de muitos indivíduos: os lugares onde traba-
lham mais se parecem com estações ferroviárias do que com
aldeias, a vida familiar se viu desorientada pelas exigências do
trabalho; a migração tornou-se o verdadeiro ícone da era global, e
a palavra de ordem é antes seguir em frente que estabelecer-se,
O desmantelamento das instituições não gerou maior senso co-
munitário (SENETT, 2006, p. 12).

Para o autor, a cultura deste novo capitalismo é baseada na ideia de que a ins-
tabilidade econômica, profissional e pessoal deve ser o novo normal. A premissa do
novo capitalismo é a de que “não há mais longo prazo” nas orientações gerenciais e
econômicas das empresas (SENNET, 2006). O resultado do lucro em curtíssimo pra-
zo precisa ser demonstrado rapidamente para felicitar os acionistas e para o bônus
dos executivos. Empresas, mesmo estáveis em lucratividade, são vendidas ou fundi-
das e sob o signo do aumento da produtividade e do lucro. Sempre ocorre enxuga-
mento de pessoal e mudanças de orientação ou sede produtiva. Os trabalhadores
precisam se adaptar e ser polivalentes e reclamar da realidade é soar como alguém
dependente e inflexível (SENNET, 2006).

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Temas e Teorias da Sociologia

Para Sennet (2006), esta realidade desorienta qualquer perspectiva de planeja-


mento dos indivíduos, carreiras e famílias a longo prazo. A ideia de “carreira”, como
uma progressão consequente do mérito por tempo e especialização em uma determi-
nada profissão é combatida fortemente pelo novo capitalismo. Esta desorientação e
falta de perspectivas, leva ao afrouxamento dos laços de confiança, dos compromis-
sos e do comportamento humano.

A rotina no novo capitalismo: “Se, no entanto, estamos dispostos


a encarar a rotina como inerentemente degradante, atacaremos a na-
tureza mesma do próprio processo de trabalho. Detestaremos a rotina
e sua mãe, a mão morta da burocracia. Podemos ser em grande parte
levados pelo desejo prático de maior responsividade, produtividade e lu-
cro do mercado. [...] A questão se torna então: a flexibilidade, com todos
os riscos e incertezas que implica, remediará de fato o mal humano que
ataca? Mesmo supondo que a rotina tem um efeito pacificador sobre o
caráter, exatamente como vai a flexibilidade fazer um ser humano mais
engajado?” (SENNET, 2009, p. 50).

Assim, estas novas formas flexíveis de trabalho, apesar da aparência de liber-


dade do indivíduo sobre seu tempo de trabalho e tempo livre, escondem uma nova
forma de dominação. Como explica Sennet:

Imaginamos o estar aberto à mudança, ser adaptável, como qua-


lidades de caráter necessárias para a livre ação — o ser humano
livre porque capaz de mudança. Em nossa época, porém, a nova
economia política trai esse desejo pessoal de liberdade. A repulsa
à rotina burocrática e a busca da flexibilidade produziram novas
estruturas de poder e controle, em vez de criarem as condições
que nos libertam (SENNET, 2009, p. 54)

As consequências destas mudanças levaram a uma espécie de “corrosão do ca-


ráter” das pessoas, no sentido que não há mais fundamentos para o julgamento dos
indivíduos e de suas ações. Como tudo se torna flexível para permitir as cadeias fle-
xíveis de produção, o sedimento do caráter humano, que seria a capacidade de previ-
sibilidade e comprometimento entre as pessoas, encontra-se ameaçado. O desapego
a valores, ao local, à família, em função das necessidades do trabalho flexível, torna
os indivíduos, mesmo os de “sucesso” financeiro, presos a uma vida sem sentido e
sem caráter.

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A Sociologia Nos Dias De Hoje: os Desafios do
Capítulo 3
Mundo Globalizado e Fragmentado

"Quem precisa de mim?" é uma questão de caráter que sofre um


desafio radical no capitalismo moderno. O sistema irradia indife-
rença. Faz isso em termos dos resultados do esforço humano,
como nos mercados em que o vencedor leva tudo, onde há pouca
relação entre risco e recompensa. Irradia indiferença na organiza-
ção da falta de confiança, onde não há motivo para se ser neces-
sário. E na reengenharia das instituições, em que as pessoas são
tratadas como descartáveis (SENNET, 2009, p. 174)

Esta situação explica porque atualmente, em várias regiões do planeta, a busca


por explicações para a crise econômica e do próprio esfacelamento da ideia de caráter,
ao invés de remeterem-se à forma como se organiza o novo capitalismo, voltam-se
para o imigrante (acusado de roubar seus trabalhos ou desvirtuar valores da nação),
para minorias em busca de reconhecimento ou através da busca de refúgio e estabili-
dade na religião ou em formas de romantização cultural (a busca por raízes num mundo
fluído).

O historiador Eric Hobsbawm, por usa vez, destaca que o retorno do fundamenta-
lismo religioso no mundo, seja no ocidente ou no oriente, deriva de uma reação da crise
de noção de “comunidade” e “sociedade”, típicas do mundo descrito pelos sociólogos:

Em síntese, enquanto muitas das antigas práticas eram castigadas


pelos furacões que traziam dramáticas transformações econômicas
e crises no fim do século XX e no começo do XXI, a necessidade
de recuperar certezas perdidas ficou mais urgente. A globalização
desmantelou todas as fronteiras menores e a tecnologia secular
criou um vazio, um agregado mundial de agentes puramente indi-
viduais maximizando seus benefícios num livre mercado (como na
frase da sra. Thatcher: “Não existe esse negócio de sociedade”).
Qual era o nosso lugar nessa treva social, tão vasta para os concei-
tos sociológicos de “comunidade” ou “sociedade” do século XIX, e
mais ainda para instituições constituídas de pessoas, e não de gru-
pos estatísticos? A que lugar pertencíamos, numa escala humana e
em tempo e espaço reais? Pertencíamos a quem ou a quê? Quem
éramos nós? É característico que em algum momento a partir dos
anos 1960 a frase “crise de identidade”, originariamente cunhada
por um psicólogo para resumir as incertezas do desenvolvimento
adolescente na América do Norte, adquirisse as amplas dimensões
de uma armação genérica, mesmo de invenção, de uma identidade
de grupo num universo de relações humanas em transformação.
Para ser mais exato, a demanda era por uma identidade primária
em meio a um excesso de maneiras de nos descrevermos a nós
mesmos, idealmente uma que incluísse e incorporasse todas as
outras debaixo de um único título. O renascimento religioso pesso-
al era uma forma de responder a essas perguntas (HOBSBAWM,
2013, p. 161-162).

Estes aspectos da sociedade atual ressaltados por Sennet e por Hobsbawm tam-
bém se apresentam em diversos outros autores. Para o sociólogo Zygmunt Bauman
(2001), todos estes fenômenos seriam resultado do advento de uma nova fase da mo-

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Temas e Teorias da Sociologia

dernidade, a “modernidade líquida”. A alegoria ao “líquido” em oposição ao


Para o sociólogo
sólido é bastante evidente da situação história e das relações sociais que
Zygmunt Bauman
(2001), todos visa descrever. Remete à famosa frase de Marx e Engels no Manifesto Co-
estes fenômenos munista, de que “tudo que é sólido se desmancha no ar”, no sentido de que
seriam resultado o capitalismo era avassalador sobre as antigas formas de organização, rela-
do advento de ção e instituições das antigas sociedades.
uma nova fase
da modernidade,
Porém, para Marx e Engels, inicialmente era uma questão de o
a “modernidade
líquida”. capitalismo substituir uma por outras. Da extensa família patriarcal
para a família patriarcal nuclear. Do mundo de obrigações feudais e de
vassalagem para o lucro e individualismo. Do mercado limitado pela moral
cristã para a moral do livre mercado. Para o tempo do trabalho das estações para o
tempo do relógio. A grande questão do capitalismo do final do século XX e início do
XXI é que ele tornou estas relações “líquidas”, no sentido de que no curso de poucos
anos as relações sociais e afetivas entre os indivíduos se modificam rapidamente
conforme as necessidades expressas pela produtividade do trabalho.

Modernidade líquida e a distopia da liberdade capitalista: “Ao


contrário da maioria dos cenários distópicos, este efeito não foi alcan-
çado via ditadura, subordinação, opressão ou escravização; nem atra-
vés da “colonização” da esfera privada pelo “sistema”. Ao contrário: a
situação presente emergiu do derretimento radical dos grilhões e das
algemas que, certo ou errado, eram suspeitos de limitar a liberdade
individual de escolher e de agir. A rigidez da ordem é o artefato e o se-
dimento da liberdade dos agentes humanos. Essa rigidez é o resultado
de “soltar o freio”: da desregulamentação, da liberalização, da “flexibili-
zação’ da “fluidez” crescente, do descontrole dos mercados financeiro,
do trabalho, tornando mais leve o peso dos impostos etc. Das técnicas
de “velocidade, fuga, passividade” - em outras palavras, técnicas que
permitem que o sistema e os agentes livres se mantenham radical-
mente desengajados e que se desencontrem em vez de encontrar-se.
Se o tempo das revoluções sistêmicas passou, é porque não há edi-
fícios que alojem as mesas de controle do sistema, que poderiam ser
atacados e capturados pelos revolucionários; e também porque é terri-
velmente difícil, para não dizer impossível, imaginar o que os vencedo-
res, uma vez dentro dos edifícios (se os tivessem achado), poderiam
fazer para virar a mesa e pôr fim à miséria que os levou à rebelião.
Ninguém ficaria surpreso ou intrigado pela evidente escassez de pes-
soas que se disporiam a ser revolucionários: do tipo de pessoas que
articulam o desejo de mudar seus planos individuais como projeto para
mudar a ordem da sociedade” (BAUMAN, 2001, p. 12-13).

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A Sociologia Nos Dias De Hoje: os Desafios do
Capítulo 3
Mundo Globalizado e Fragmentado

O cenário que se apresenta por Bauman é de distopia da liberdade apresentada


pelo capitalismo no final do século XX: ao se quebrarem todas as amarras e
padrões morais que limitavam os seres humanos e regulavam sua vida, a liberdade
encontrada faz com que os seres humanos se desencontrem, se desengajem da
vida comunitária, vivam à revelia das demandas do mercado de trabalho do capital. E
tanto Bauman quanto Sennet parecem pessimistas quanto à possibilidade de projetos
de mudança encontrarem sucesso em meio a este cenário avassalador.

Você já parou para se perguntar, refletir com seus familiares, amigos e alunos
sobre esta aparente fluidez da vida cotidiana, da sensação de que sempre falta algo
para nos realizarmos, que parece que estamos sempre “incompletos”, pessoalmente
e profissionalmente? Já se perguntou como esta “insegurança” generalizada tem
formatado a ordem social nos últimos tempos? Quantas pessoas que você conhece
sofrem de problemas psicológicos?

Em recente entrevista, o jornalista e psicólogo Andrew Solomon, que sofreu


de depressão por anos e escreveu livros sobre o tema, descreve uma passagem
muito ilustrativa sobre a insegurança e fluidez no mundo contemporâneo aumenta
a eclosão de doenças psicológicas, como ansiedade e depressão:

Muitos adultos e adolescentes não sabem o que fazer. A


variedade de profissões cresceu muito. Acho que as pessoas não
se sentem convictas ao tomar decisões que vão afetar o resto de
suas vidas. O surgimento de aplicativos de namoro e o aumento
da mobilidade geográfica faz com que as pessoas raramente se
sintam realmente confortáveis com os relacionamentos que elas
começam [...]. Você não se sente resolvido nem no seu trabalho
nem nas suas relações pessoais (SOLOMON, 2019, s. p.).

Sugestão de Atividade: a citação anterior é de uma entrevista


disponível on-line no seguinte link e que pode ser passada para os alunos
refletirem sobre sua saúde mental individual e relacioná-la às condições
socioculturais do mundo em que vive. Você pode sugerir a seguinte
atividade: a partir dos temas desenvolvidos na entrevista do psicólogo
e jornalista Andrew Solomon, relacionem os conceitos de modernidade
líquida do sociólogo Zygmunt Bauman, seus efeitos nas relações humanas
nos dias de hoje e como isso pode ser relacionado à profusão de doenças
psicológicas como ansiedade e depressão, apresentadas no vídeo.
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=Tu7yhw9eNL8>.

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Temas e Teorias da Sociologia

Para David Harvey (2001), a filosofia pós-moderna seria a expressão intelectu-


al deste fenômeno irracional das transformações do capitalismo flexível do final do
século XX. O capitalismo flexível leva a quebra dos significados da modernidade, do
planejamento, estabilidade, do discurso e da razão. Relacionando com a questão ex-
pressa por Sennett, de que isso levaria a corrosão do caráter, a pós-modernidade
também não apresentaria respostas a não ser a negação de unidade e de possibi-
lidades de transformações gerais (como propostas pelas linhagens do pensamento
iluminista):

Mas se, como insistem os pós-modernistas, não podemos aspi-


rar a nenhuma representação unificada do mundo, nem retratá-lo
com uma totalidade cheia de conexões e diferenciações, em vez
de fragmentos em perpétua mudança, como poderíamos aspirar
a agir coerentemente diante do mundo? A resposta pós-moderna
simples é de que, como a representação e a ação coerentes são
repressivas ou ilusórias (HARVEY, 2001, p. 55)

Para Harvey (2001), no entanto, estes não eram sintomas de uma sociedade
pós-industrial, pois toda sociedade contemporânea se alicerça sobre a produção in-
dustrializada, apesar de cada vez mais robotizada, apesar de geograficamente ex-
pandida (dos centros para as nações periféricas alinhadas com a política do capital).
No argumento de Harvey (2001), a expansão da indústria para outros centros e a
flexibilização de valores e significados não mudaria a realidade mais essencial do
capitalismo, que é a produção de mais valia.

Esta realidade levou a muitos sociólogos contemporâneos a tentar entender o
fenômeno de transformações radicais no mundo do trabalho que acarretam na preca-
rização das relações de trabalho causado pelo avanço da informática e das tecnolo-
gias baseadas em aplicativos on-line.

FIGURA 1 - “BRASILEIROS QUEREM DORMIR MELHOR”

FONTE: <https://saude.abril.com.br/bem-estar/pesquisa-brasileiros-
querem-dormir-melhor-mas-nao-conseguem-por-que/>.

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A Sociologia Nos Dias De Hoje: os Desafios do
Capítulo 3
Mundo Globalizado e Fragmentado

A reportagem da figura anterior, por exemplo, descreve o rápido aumento de pro-


blemas relacionados ao sono e aponta como principais causas a ansiedade e stress,
o horário de trabalho e o uso intenso de aparelhos eletrônicos (hoje indispensáveis,
na maioria das profissões). O problema pode ser relacionado diretamente com as
condições das relações instáveis (“líquidas”), inclusive no trabalho e nas relações
pessoais, o que tem gerado maior ansiedade e stress. Você já percebeu como as
relações de adoecimento no trabalho passaram a ser cada vez mais relacionadas
à problemas psicológicos do que os problemas mais tradicionais como de fadiga ou
acidentes “físicos” no trabalho?

Para Antunes e Braga (2009), a realidade do trabalho de desenvolvimento de


softwares por home office e uso de apps de oferta de serviços é descrita pela grande
mídia e empresas como condições de trabalho que garantiriam maior liberdade de or-
ganização do tempo do trabalhador, alçado à condição de “empreendedor”. Por outro
lado, a realidade da situação destes trabalhadores - denominados “infoproletários” - é
de insegurança jurídica nas relações entre empregados e empregadores, e de ins-
tabilidade financeira e de carreira e de sujeição a extenuantes jornadas de trabalho,
acentuando nos últimos anos as características descritas por Sennett como parte da
cultura do “novo capitalismo”.

Sugestão de atividade didática: leia com os alunos a reportagem a


seguir sobre a “uberização” do mercado de trabalho e debate as opiniões
e posições sobre a questão. Podem dividir a turma entre os que apoiam e
os que acham que deve haver limitações neste processo de liberalização
do mercado de trabalho. Apresente os argumentos gerais de cada posi-
ção. A favor, comentar a facilidade oferecida pelos apps na oferta de ser-
viços para consumidores e como alternativa para o desemprego ou para
garantir renda extra para trabalhadores. Contra, demonstrar como o uso
da tecnologia tem sido uma forma de aumentar a exploração e precarie-
dade do trabalho no capitalismo contemporâneo, sem contrato trabalhista
estável e sem garantias e amparos legais. E debatam o problema ético
e público gerado pela situação descrita na reportagem, da morte de um
motorista de aplicativo durante o trabalho. Segue a reportagem:

A uberização das relações de trabalho

No último dia 6 de julho, São Paulo testemunhou mais uma vítima


da debilidade das novas relações de trabalho. O motorista de aplicativo
da plataforma RAPPI, Thiago de Jesus Dias faleceu aos 33 anos, após
acidente vascular cerebral, durante uma entrega, sem qualquer tipo de
assistência, seja da empresa de aplicativo ou dos serviços públicos.
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Temas e Teorias da Sociologia

  
O motorista passou mal no local da entrega, a cliente chegou a
entrar em contato com a central da RAPPI, que de maneira desumana
se limitou a solicitar que a mesma desse baixa no pedido, para que
eles conseguissem cancelar as próximas entregas do mesmo, evitando
prejuízo aos clientes do aplicativo, afirmando nada poder fazer em relação
ao estado de saúde do “motorista parceiro”.

Thiago foi levado ao hospital por uma amigo, em carro particular,


cerca de duas horas depois, já que a SAMU não chegou ao local, e um
motorista de “UBER”, chamado para conduzi-lo ao hospital, se recusou
a permitir sua entrada no automóvel, pois o mesmo “sujaria o veículo”, já
que havia urina em sua roupa.  Ele não resistiu e faleceu cerca de doze
horas após dar entrada no hospital.

Esta situação traz à tona a fragilidade e riscos decorrentes dos novos


modelos de contrato de trabalho, oriundos de dispositivos tecnológicos,
denominados de sharing economy - economia colaborativa ou cultura de
compartilhamento.

Trata-se do fenômeno da Uberização das relações de trabalho,


através da qual, há uma exploração da mão de obra, por parte de poucas
e grandes empresas que concentram o mercado mundial dos aplicativos
e plataformas digitais, que tem como principal característica, a ausência
de qualquer tipo de responsabilidade ou obrigação em relação aos
“parceiros cadastrados”, como são chamados os prestadores de serviços.
Isto porque deixam claro que têm como objeto, a prestação de serviços
de tecnologia, contratados pelos “parceiros”.

O modelo de trabalho é vendido como atraente e ideal, pois


propaga a possibilidade de se tornar um empreendedor, autônomo,
com flexibilidade de horário e retorno financeiro imediato. Esta ilusão fez
o mercado crescer rapidamente, em detrimento as relações formais de
emprego que estávamos acostumados, principalmente, no que se refere
a identificação profissional”.

FONTE: Carta Capital, “a uberização das relações de trabalho”, 9


ago 2010. Disponível em: <https://www.cartacapital.com.br/justica/a-
uberizacao-das-relacoes-de-trabalho/>. Acesso em: 20 set. 2019.

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A Sociologia Nos Dias De Hoje: os Desafios do
Capítulo 3
Mundo Globalizado e Fragmentado

1 Disserte sobre a diferença de avaliação sobre as mudanças no


mundo do trabalho apresentadas pelos autores de Masi e Sennet.

R.:____________________________________________________
____________________________________________________
___________________________________________________
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____________________________________________________
____________________________________________________

2 Disserte sobre a relação que podemos estabelecer entre conceitos


de “modernidade líquida” de Zygmun Bauman com o conceito de
“condição pós-moderna” de David Harvey.

R.:____________________________________________________
____________________________________________________
___________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________

3 DESIGUALDADE SOCIAL,
MOVIMENTOS SOCIAIS E CRISE
POLÍTICA NO MUNDO ATUAL
Como vimos na seção anterior, as mudanças no mundo do trabalho são contro-
versas quanto aos efeitos gerados. A crença que a tecnologia pode libertar o homem
do trabalho (a tese de Masi) é frustrada pela realidade de que as novas relações de
trabalho, baseadas em “redes”, geram frustração e desmancham a ideia de “estabili-
dade”, seja nas relações de trabalho ou da vida, levando à situação de “modernidade
líquida” (Bauman). No entanto, a questão da desigualdade e seus efeitos parecem
ser mais consensuais, no sentido que atingiram um ponto que leva ao questionamen-
to da situação até pelos mais ferrenhos defensores do neoliberalismo.

Um dos efeitos mais visíveis do empobrecimento das massas trabalhadoras na


segunda metade do século XX foi decorrente do avanço da produtividade no campo

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Temas e Teorias da Sociologia

e da demanda por mão de obra nas indústrias, levando bilhões de pessoas a migrar
para as cidades em busca de melhores oportunidades de emprego. Se a pobreza já
existia nas populações camponesas de países como Brasil, África do Sul, Índia e China,
a concentração destas populações nas periferias das grandes cidades levou ao surgi-
mento de enormes favelas, do tamanho de cidades, onde passaram a viver milhares de
pessoas de forma concentrada, com péssimas moradias e sem acesso a saneamento
básico.

No Brasil, até os anos 2000, a fome e a miséria permaneciam uma realidade em


muitas periferias de cidades e interior. Apesar do movimento de redução da pobreza
extrema iniciada nos anos 1990, esta realidade tem retornado em vários lugares. A
extensão da crise econômica e política e a falta de políticas que resolvam a situação
de desemprego alto e crise dos serviços públicos tem gerado situações críticas,
de polarização política e social. A representação política tem enfrentado desafios
e modificado a relação entre políticos e bases sociais através das redes sociais.
Políticas de identidade e representação tem adquirido centralidade nos debates
públicos (e como veremos, atingem a própria pesquisa e ensino de sociologia).

E, como nós podemos debater essas questões com os alunos? Vamos observar
que contribuições na exposição e explicação destas questões tem surgido no debate
acadêmico e público nas últimas décadas.

3.1 O CAPITAL NO SÉCULO XXI: O


CRESCIMENTO DA DESIGUALDADE
SOCIAL NO CAPITALISMO
CONTEMPORÂNEO

Nas periferias do mundo contemporâneo, a visão do esgoto ao céu aberto,
da sujeira e da concentração de casebres mal construídos, um ao lado do outro,
levou ao sociólogo Mike Davis estudar este fenômeno, em sua obra “planeta
favela” (DAVIS, 2006). Para o autor, as medidas de caráter neoliberal, impostas via
contratos de empréstimos por instituições como o Fundo Monetário Internacional
e o Banco Mundial, levaram ao acentuamento da pobreza em países periféricos e
ao crescimento do fenômeno de favelização das massas trabalhadoras urbanas.

Conforme explica Davis (2006), o termo “slum” para designar os locais de


degradação social, pobreza e vício, que eram geralmente locais específicos e às vezes
centrais em grandes cidades, passou a designar a formação de grandes cidades
informais nas periferias de grandes capitais do capitalismo periférico, como visto em São

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A Sociologia Nos Dias De Hoje: os Desafios do
Capítulo 3
Mundo Globalizado e Fragmentado

Paulo, Rio de Janeiro, Nova Délhi e Joanesburgo (que possui a maior favela do mundo,
Soweto, com quatro milhões de habitantes). Para Davis (2006), o descompromisso do
Estado em financiar a moradia popular via crédito barato, a valorização capitalista dos
espaços urbanos e a precariedade dos trabalhos informais são as razões apontadas
para se entender o fenômeno de favelização nos grandes centros urbanos.

A luta pela moradia popular no Brasil: No Brasil, movimento


populares urbanos como o Movimento dos Trabalhadores Sem
Teto (MTST) ganharam notoriedade pelas ações de ocupação de
terrenos e imóveis vazios pertencentes ao Estado ou a grandes
empresas devedoras de impostos. Movimentos como este tornaram-
se centrais na reinvindicação que o Estado voltasse a atuar na oferta
de moradias populares a baixos custos ou à crédito consignado, vindo
a se concretizar em partes na política instituída em 2011, o programa
“minha casa, minha vida”. No entanto, apesar dos sucessos do
MSTS em controlar os locais e qualidade das obras, na maioria das
cidades as grandes empreiteiras decidiam onde seriam construídos os
conjuntos habitacionais do programa “minha casa, minha vida”. Isso
acabou reproduzindo a lógica de segregação dos espaços urbanos,
já que a maioria dos conjuntos habitacionais foram construídos em
locais afastados e sem infraestrutura de transporte e serviços públicos
disponíveis (ALVARENGA; RESCHILIAN, 2018).

Esta situação, da valorização rápida de espaços urbanos e expulsão de


populações trabalhadoras mais pobres para as periferias levou o sociólogo francês
Henri Lefebvre (2001) a declarar a necessidade dos movimentos sociais se organizar
para lutar pelo “direito à cidade”. No capitalismo as grandes cidades se organizam e
tem suas demandas impostas por grandes empresas em detrimento da maioria da
população trabalhadora, que fica marginalizada em guetos ou bairros específicos,
enquanto certos locais são privilegiados e exclusivos ao mundo da burguesia e
pequena burguesias. Assim, para Lefebvre, as cidades e a organização de seus
espaços que refletem as relações de classes da sociedade e se tornam um palco da
luta de classes, com as disputas de seus espaços refletindo as disputas na sociedade.

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Temas e Teorias da Sociologia

Sugestão de atividade: A partir da escola em que trabalhamos


surgem diversas possibilidades de se refletir sobre as desigualdades
sociais e o problema da exclusão social nas cidades. Sugira aos seus
alunos que façam entrevistas com parentes, vizinhos e pessoas na
velhice para que comentem as mudanças que presenciaram nas cidades
e suas trajetórias de trabalho e moradia. Sua cidade possui “favelas”
ou comunidades indicadas como “perigosas”, “pobres”? E vocês têm
um “bairro dos ricos”? Peça que formulem um mapa de sua cidade e
organize um seminário para que apresentem os diferentes relatos e
trajetórias, buscando refletir sobre os fenômenos da desigualdade e
diferenciação social perceptíveis na sua cidade.

Apesar de movimentos de reação ao neoliberalismo em países da América Latina


e Ásia tenham impedido o crescimento das desigualdades sociais nestes países (e
até diminuído), o crescimento da desigualdade social nas últimas quatro décadas nos
países centrais do capitalismo tem gerado efeitos políticos adversos, expressos no
retorno do ultranacionalismo, xenofobia, conservadorismo de valores e populismo de
extrema direita. O uso de redes sociais na propagação do pensamento conservador
tem colocado em xeque as ideias positivas acerca da liberação criativa das pessoas
para o conhecimento proporcionado pela democratização do acesso a saberes.

Em obra recente, “O capital no século XXI”, o economista Piketty (2014) apre-


sentou dados acerca do crescimento da desigualdade social no mundo no final do sé-
culo XX e início do XXI. Para ele, se durante um certo período, das décadas de 1920
a 1970, houve uma redução da desigualdade social no mundo, a partir da década de
1970 há um acelerado crescimento da desigualdade social mundial, principalmente
nos países que anteriormente haviam diminuído substancialmente (na Europa e Esta-
dos Unidos) e tem aumentado após a crise econômica de 2008, levando a eclosão de
movimentos contestatórios, como o Occupy Wall Street, que criticava a concentração
de poder e riquezas nas mãos dos 1% mais ricos.

A redução das desigualdades para o autor, durante um longo período do sé-


culo XX havia se dado por conta da retribuição gerada ao final dos conflitos mundiais
e pelo enfrentamento da grande crise de 1929, o que levou à adoção de medidas polí-
ticas de incentivo à demanda agregada, via empregos e salários. Como representan-
te do legado de John Maynard Keynes, Piketty (2014) apresenta o argumento que em
partes concorda com o argumento marxista que o capitalismo invariavelmente leva ao
aumento da desigualdade social e à pauperização da classe trabalhadora. Discorda,

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A Sociologia Nos Dias De Hoje: os Desafios do
Capítulo 3
Mundo Globalizado e Fragmentado

porém, que somente revoluções podem acabar com o ciclo, apostando e colocando
como programa a regulação política do capitalismo atual. A concentração absurda de
riquezas nas mãos de uma minoria leva à redução da demanda consumidora, geran-
do desemprego e pobreza. A questão foi sintetizada por Piketty (2014, p. 368):

Quando a taxa de rendimento do capital é, por um longo perío-


do, muito mais alta do que a taxa de crescimento da economia,
é quase inevitável que a herança, ou seja, os patrimônios ori-
ginados no passado predominem em relação à poupança, que
são os patrimônios originados no presente.

Em outras palavras, gera-se uma situação em que os ricos tendem a ficar cada
vez mais ricos à revelia da grande maioria da massa trabalhadora. Cita o exemplo
dos Estados Unidos, que na atualidade apresenta dados de concentração de riqueza
enormes: os 10% mais ricos detém 72% da renda nacional enquanto os 50% mais
pobres detém apenas 2%. Além disso apresenta outro dado alarmante: dentre os ri-
cos existe uma minoria descrita como “super-ricos”, que concentram boa parte da
riqueza nacional em suas mãos.

À época do lançamento do livro de Piketty, Martin Wolf, editor-chefe da revista


Financial Times, a mais consagrada revista ligada ao mercado financeiro e à defesa
do liberalismo econômico, apesar de atestar os fundamentos da obra, destacou que
o crescimento da desigualdade foi necessária para se dar o salto de produtividade no
trabalho e que esta beneficia a grande maioria da população mais pobre do mundo,
reapresentando um dos centros do argumento de economistas neoliberais: “a desigual-
dade é menos importante em uma economia que é 20 vezes mais produtiva do que a
de dois séculos atrás: mesmo os mais pobres aproveitam de produtos e serviços que
não estavam disponíveis aos mais ricos décadas atrás” (WOLF, 2014, s.p.).

Por outro lado, o mesmo representante do neoliberalismo adverte que o conceito


de cidadania moderno é ameaçado pela avassaladora desigualdade e destaca que
medidas precisam ser tomadas para evitar o aumento da desigualdade atual. Atual-
mente, o mesmo celebrador das reformas neoliberais de décadas atrás vem desta-
cando os perigos dos governos neopopulistas que ameaçam as bases das democra-
cias liberais.

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Temas e Teorias da Sociologia

FIGURA 2 - O DESGASTE DOS GOVERNOS DEMOCRÁTICOS

FONTE: WOLF, Martin. Financial Times. 3 jul. 2019. Disponível em: <https://
www1.folha.uol.com.br/colunas/martinwolf/2019/07/por-que-o-governo-
democratico-mostra-desgaste-nos-estados-unidos-e-no-reino-unido.shtml>.

Para Piketty (2014), a questão que se coloca é que os fundamentos do sistema


democrático e meritocrático do capitalismo que triunfou do século XX tem sido colocado
em xeque nas últimas décadas pela elite econômica. As chances de ascensão social e
a existência de uma classe média (fundamento do sucesso na neutralização da luta de
classes na Europa e Estados Unidos) são realidades hoje remotas.

Esta situação tem gerado reações políticas cada vez mais adversas, como o cres-
cimento de movimentos nacionalistas, conservadores e de protecionismo e fechamento
comercial (o “BREXIT” ou a saída do Reino Unido da União Europeia e a guerra comer-
cial entre EUA e China). No entanto, estes governos, como o de Trump nos Estados
Unidos, citado como exemplo de “populista”, apesar de ter sido eleito sob o discurso de
defesa dos empregos e da indústria norte-americana, não tomou medidas eficazes em
reduzir a desigualdade e o emprego no setor industrial apresentou pouco crescimento.
A retórica agressiva e de ataque a minorias (reacendendo movimentos de superiorida-
de racial, como visto no conflito entre supremacistas brancos e movimentos contrários
na cidade de Charlottesville, nos EUA) coloca os fundamentos da democracia liberal
em crise (reportagem da figura a seguir). Como você vê estes conflitos em nosso país?
Que exemplos você poderia elencar?

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A Sociologia Nos Dias De Hoje: os Desafios do
Capítulo 3
Mundo Globalizado e Fragmentado

FIGURA 3 - ACIRRAMENTO DE CONFLITOS RACIAIS E ÉTNICOS NOS EUA

FONTE: El País, 13 ago. 2017. Disponível em: <https://brasil.elpais.


com/brasil/2017/08/12/internacional/1502553163_703843.html>.

3.2 AS LUTAS IDENTITÁRIAS, OS


NOVOS MOVIMENTOS SOCIAIS E
AS MUDANÇAS DE PARADIGMAS
SOCIOLÓGICOS
Um dos fenômenos da segunda metade do século XX foi a eclosão de movi-
mentos mais específicos de luta em torno de temas como diversidade de gênero, par-
ticipação política e meio ambiente. Muitos sociólogos refletiram sobre a emergência
destes movimentos e buscaram evidenciar certas diferenciações com os antigos mo-
vimentos sociais. Percebe-se uma mudança de orientação, de agendas econômicas
para agendas definidas como identitárias e culturais, como movimentos antirracismo,
de liberdade de expressão de gênero e em defesa do meio ambiente.

Com a difusão do pensamento e obras de filósofos como Michael Foucault


(2006), a ideia de que o poder era disseminado e espalhado por várias instituições
e pessoas e que o saber científico era usado como instrumentos disciplinares na
sociedade trouxe questionamentos à questão da transformação “estrutural” das
sociedades como prenunciadas pelo marxismo

Para Foucault (2006), não haveria um centro onde o poder poderia seria to-
mado da classe dominante e a ordem capitalista substituída por outra. Para ele,
os perigos de se manter ou criar novas instituições disciplinares e punitivas tam-
bém era uma realidade nos Estado socialistas da época. Como explica Foucault,
criticando a falta de interesse de intelectuais marxistas franceses de sua época
acerca das questões das instituições e saberes punitivos/disciplinares realizadas
em seus primeiros estudos sobre a psiquiatria:

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Temas e Teorias da Sociologia

Entretanto, me pergunto se não havia por parte dos intelectuais


do P.C.F (Partido Comunista Francês), ou dos que lhe estavam
próximos, uma recusa em colocar o problema da reclusão da
utilização política da psiquiatria ou, de forma mais geral, do es-
quadrinhamento disciplinar da sociedade. Sem dúvida, por volta
dos anos 55−60, poucos tinham conhecimento da amplitude real
do Gulag, mas creio que muitos a pressentiam, muitos tinham a
sensação de que sobre estas coisas melhores era não falar. Zona
perigosa, sinal vermelho (FOUCAULT, 2006, p. 12)

Para esta geração de militantes e intelectuais, a divulgação dos crimes come-


tidos na União Soviética na era Stálin e as invasões de tropas soviéticas para de-
belar manifestações populares na Hungria e da Tchecoslováquia pareciam confirmar
tal tese. As denúncias de homofobia na Cuba socialista e dificuldades no avanço da
liberação das mulheres do mundo doméstico e na sexualidade no mundo socialista
evidenciavam os limites da transformação social para esta geração de militantes e
intelectuais, principalmente a partir da década de 1960.

Mais do que um movimento de frustração e questionamento da política revolu-


cionária do marxismo de sua época, o pensamento de Foucault colocou novas ques-
tões aos movimentos de contestação da sociedade capitalista da segunda metade do
século XX. A tomada do poder passava por uma mudança de leitura, do coletivo para
a análise individual, em nível de “corpo”, e dos micropoderes que permeiam a socie-
dade. Desta forma, Foucault declara:

Eu não estou querendo dizer que o aparelho do Estado


não seja importante, mas que me parece que, entre todas
as condições que se deve reunir para não recomeçar a ex-
periência soviética, para que o processo revolucionário não
seja interrompido, uma das primeiras coisas a compreender
é que o poder não está localizado no aparelho de Estado e
que nada mudará na sociedade se os mecanismos de poder
que funcionam fora, abaixo, ao lado do aparelho de Estado
a um nível muito mais elementar, quotidiano, não forem mo-
dificados (FOUCAULT, 2006, p. 134).

Apesar de terem surgido movimentos em prol de uma “nova esquerda” que pre-
servasse o legado marxista da opressão soviética ou do controle intelectual pelos
Partidos Comunistas (ANDERSON, 2004), os movimentos da década de 1960 trou-
xeram novas identificações políticas e a chamada filosofia pós-moderna (também de-
nominada de “pós-estruturalista”) ganha relevância.

Desta forma, o movimento de maio de 1968 na França e movimentos ocorri-


dos em todo mundo, definidos como de “contracultura”, evidenciam o protagonismo
de jovens e movimentos específicos, reunidos em torno de pautas amplas e muitas
vezes ligadas aos valores, atitudes e opressões e não propriamente voltadas a uma

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A Sociologia Nos Dias De Hoje: os Desafios do
Capítulo 3
Mundo Globalizado e Fragmentado

reinvindicação econômica ou político-institucional. Negros, jovens e mulheres lutaram


contra a cultura racista, machista e opressora da sua era, inaugurando as liberdades
de vestimenta e comportamento social de nossa era.

Filosofia pós-moderna: “[Jean François] Lyotard introduz a ideia da


“condição pós-moderna” como uma necessidade de superação da mo-
dernidade, sobretudo da crença na ciência e na razão emancipadora,
considerando que estas são, ao contrário, responsáveis pela continuação
da subjugação do indivíduo. De acordo com Lyotard, seguindo uma inspi-
ração do movimento romântico, a emancipação deve ser alcançada atra-
vés da valorização do sentimento e da arte, daquilo que o homem possui
de mais criativo e, portanto, de mais livre” (JAPIASSÚ; MARCONDES,
1996, p. 185)

Para a Andrea Nye (1995) a questão da crítica ao marxismo em relação ao femi-


nismo estava em sua insuficiência metodológica em abarcar fenômenos que não di-
zem respeito às grandes estruturas sociais e econômicas e às relações de produção
capitalistas. Para ela:

O marxismo já não oferece uma explanação histórica da opres-


são das mulheres ou um modo de situar a opressão em realida-
des materiais específicas; nem oferece um programa de ação.
As representações da feminilidade ou masculinidade - seja na
mente das pessoas, ou na cultura popular, ou na ciência ou na
filosofia - devem ser examinadas independentemente de serem
burguesas ou proletárias. Pode-se dizer corretamente, sugeria
Coward, o que é progressista ou reacionário. Todavia, já não há
critérios estáveis. O sadomasoquismo pode ser uma expressão
da hostilidade masculina ao feminino ou um aspecto essencial da
sexualidade feminina. Roupas podem ser um esquema masculi-
no para escravizar e objetificar as mulheres ou uma expressão le-
gítima do gosto feminino. Você pode indagar dos efeitos de certas
representações ideológicas, mas já não há qualquer padrão para
avaliar sua progressividade. No final todos os julgamentos devem
basear-se na perspectiva política de cada um. A essa altura, o
marxismo contribui apenas com seu nome para a análise feminis-
ta (NYE, 1995, p. 82).

Como explica Antony Giddens ao definir as consequências da modernidade


na nossa época “pós-moderna”: “os interesses dos oprimidos não são uniformes e
frequentemente colidem entre si” e “as mudanças sociais benéficas com frequência
exigem o uso de poder diferencial mantido apenas pelos privilegiados” (GIDDENS,

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Temas e Teorias da Sociologia

1991, p. 154). A multiplicação de identidades e a identificação de que vários espaços,


pessoas e instituições são opressoras, trouxe a percepção de insuficiência da socio-
logia clássica, calcada em análises estruturais e identificando antagonismos gerais
na sociedade. Por isso Foucault (2006) e outros estudiosos são denominados como
“pós-estruturalistas”.


Na antropologia e na sociologia surge, a partir dos anos 1980, os estudos
de gênero sob uma perspectiva pós-estruturalista, que iriam ser descritos
Na antropologia e
na sociologia surge, como a teoria queer. Se a partir das contribuições clássicas de Margareth
a partir dos anos Mead (estudada ao final do Capítulo 2) e da influência filosófica do existen-
1980, os estudos cialismo feminista de Simone de Beauvoir os estudos de gênero passaram
de gênero sob uma a se tornar um campo da sociologia, posteriormente, pela influência da fi-
perspectiva pós- losofia pós-estruturalista (como de Foucault e Derrida), surge esta corrente
estruturalista, que
de intelectuais que busca em seus estudos dismistificar os rótulos sociais
iriam ser descritos
como a teoria queer. em torno dos gêneros masculino e feminino tradicionais. Como explica Ri-
chard Miskolci:

Teórica e metodologicamente, os estudos queer surgiram do en-


contro entre uma corrente da Filosofia e dos Estudos Culturais
norte-americanos com o pós-estruturalismo francês, que proble-
matizou concepções clássicas de sujeito, identidade, agência e
identificação. Central foi o rompimento com a concepção carte-
siana (ou iluminista) do sujeito como base de uma ontologia e de
uma epistemologia. Ainda que haja variações entre os diversos
autores, é possível afirmar que o sujeito no pós-estruturalismo é
sempre encarado como provisório, circunstancial e cindido. Teóri-
cos queer encontraram nas obras de Michel Foucault e Jacques
Derrida conceitos e métodos para uma empreitada teórica mais
ambiciosa do que a empreendida até então pelas ciências sociais.
De forma geral, as duas obras filosóficas que forneceram suas
bases foram História da Sexualidade I: A Vontade de Saber (1976)
e Gramatologia (1967), ambas publicadas em inglês na segunda
metade da década de 1970 (MISKOLCI, 2009, p. 152)

A própria adoção da denominação “queer”, que era o termo usado depreciativa-


mente para designar os que fugiam das normas de gênero, busca demonstrar sua
preocupação com as perspectivas de aceitação de indivíduos e corpos que estejam
fora da heteronormatividade (ou seja, a norma do padrão de comportamento e dualis-
mo heterossexual), ou seja, também dos estudos que tomavam os padrões de gêne-
ro que identificavam a homossexualidade como um desvio à regra social.

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A Sociologia Nos Dias De Hoje: os Desafios do
Capítulo 3
Mundo Globalizado e Fragmentado

Os estudos “queer” sublinham a centralidade dos mecanismos


sociais relacionados à operação do binarismo hetero/homossexu-
al para a organização da vida social contemporânea, dando mais
atenção crítica a uma política do conhecimento e da diferença.
Nas palavras do sociólogo Steven Seidman, o queer seria o es-
tudo “daqueles conhecimentos e daquelas práticas sociais que
organizam a ‘sociedade’ como um todo, sexualizando - heteros-
sexualizando ou homossexualizando - corpos, desejos atos, iden-
tidades, relações sociais, conhecimentos, cultura e instituições
sociais” (MISKOLCI, 2009, p. 154).

Um dos pontos centrais da teoria queer é o questionamento a ideia heteronormativa


adotada em estudos anteriores de gênero, mesmo que críticos. Além do público gay e
lésbicas, incluem-se nos estudos os indivíduos que modificam o corpo e a aparência,
como travesti, transsexuais e transgêneros.

Como você tem visto o efeito destes movimentos em nossa sociedade? Estes
são debates centrais a serem realizados com nossos alunos para formação de uma
perspectiva de cidadania calcada no respeito à diversidade e a não discriminação.
Sugerimos uma atividade a seguir, a partir da leitura de uma reportagem histórica, que
permite o debate do tema.

Sugestão de Atividade: Os extratos da reportagem a seguir, realiza-


da pela BBC Brasil, contam a história do caso jurídico em torno da pri-
meira cirurgia de mudança de sexo realizada no Brasil. O estudo deste
caso serve para ilustrar e exemplificar a crítica de Foucault em como o
conhecimento médico e jurídico podem servir como ferramentas orga-
nizadoras do corpo humano, disciplinando-o à norma de gênero. Esta
reportagem pode ser trabalhada com seus alunos para debater as ques-
tões relativas ao debate de gênero na sociedade contemporânea, rela-
cionando-os com as perspectivas da teoria queer.

Monstro, prostituta, bichinha: com a justiça condenou a pri-


meira mudança de sexo do Brasil

“Nua, Waldirene passou a ser fotografada. Primeiro, de frente. A


jovem loira, de 30 anos, 1,72 metro de altura, olhava para o chão, evi-
tando o homem por trás das câmeras. Seus lábios estavam cerrados.
Os braços, colados ao lado do corpo, enquanto as pernas apertavam-se
uma contra a outra, em uma tentativa de se proteger da exposição. Pe-
diram a ela que se virasse de um lado, de outro e depois se sentasse.
Em cada posição, uma nova foto.

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Temas e Teorias da Sociologia

Waldirene foi ainda submetida a um exame ginecológico. Um


espéculo de metal foi introduzido em seu corpo e, dentro dele, uma
fita métrica. A cena foi fotografada para registrar o comprimento e a
largura do canal vaginal. A jovem, que trabalhava como manicure no
interior, havia pedido um habeas corpus preventivo para não ser sub-
metida a tudo isso, mas a Justiça paulista negou.

O objetivo do IML era extremamente peculiar: verificar se Waldirene


era mulher. O nome que constava em sua ficha era outro, Waldir Noguei-
ra. Cinco anos antes, em dezembro de 1971, Waldirene havia sido sub-
metida a uma cirurgia para mudança de sexo genital - de masculino para
feminino. Ou melhor, “para a fixação do seu verdadeiro sexo, que sempre
foi feminino”, segundo ela mesma. Essa é considerada a primeira opera-
ção do tipo feita no Brasil.

Tudo correu bem. Até que, em 1976, o Ministério Público de São


Paulo descobriu a intervenção médica e denunciou Farina por lesão cor-
poral gravíssima, sujeita a pena de dois a oito anos de prisão.

Waldirene foi considerada vítima, a sua própria revelia. Os órgãos


masculinos retirados na operação foram tidos como um “bem físico” tute-
lado pelo Estado, “inalienável e irrenunciável”. “Dizer-se que a vítima deu
consentimento é irrelevante”, afirmou relatório policial sobre o caso.

“Não há nem pode haver, com essas operações, qualquer mudan-


ça de sexo. O que consegue é a criação de eunucos estilizados, para
melhor aprazimento de suas lastimáveis perversões sexuais e, também,
dos devassos que neles se satisfazem. Tais indivíduos, portanto, não são
transformados em mulheres e, sim, em verdadeiros monstros”, denunciou
o procurador Luiz de Mello Kujawski em pedido de instauração de inqué-
rito policial.

“Eu não tinha lei a meu favor, era tudo contra mim. Eu era tida como
puta. Não consigo me desvencilhar dessas coisas até hoje”, diz Waldire-
ne, agora uma senhora de 71 anos, ainda manicure no interior de São
Paulo”.

FONTE: BBC Brasil, Monstro, prostituta, bichinha: com a justiça


condenou a primeira mudança de sexo do Brasil”. 28 mar 2018. Disponível
em: <https://www.bbc.com/portuguese/geral-43561187>.

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A Sociologia Nos Dias De Hoje: os Desafios do
Capítulo 3
Mundo Globalizado e Fragmentado

Acompanhando este movimento de virada dos estudos com perspectivas “pós-


-estruturalistas”, na sociologia funda-se uma área de estudos dedicada a estes mo-
vimentos definidos como “novos movimentos sociais”, que buscam identificar os
movimentos sociais da nossa era a partir de uma perspectiva sociológica que supere
os limites da sociologia clássica sobre o tema. Conforme explica Jorge Machado:

Ao resgatar as abordagens clássicas sobre a ação coletiva, Pas-


quino (1992), ressalta que estas poderiam ser divididas em duas
grandes correntes. De um lado, estariam as descrições que vêem
uma manifestação de irracionalidade nas motivações das erup-
ções das massas. Tais abordagens associam os comportamentos
coletivos de massa ao questionamento ao risco à ordem social
existente. Aproximam-se de tal interpretação as leituras de Le
Bon, Ortega y Gasset e Tarde. Le Bon e Tarde que contrapõem
os indivíduos, como agentes da racionalidade, civilização e cul-
tura, à credulidade das massas caracterizada pela exasperação
das emoções, ao instinto de manada e à tendência à imitação
do comportamento coletivo (Le Bon, 2005 [1895]; Tarde, 2004
[1895]). Para Ortega y Gasset, as massas, incapazes de serem
responsabilizadas em coletivo, são suscetíveis à manipulação
de seus líderes. Disso resulta a irrupção de massas privadas de
identidade (cf. Menucci, 1999: 13). De outro lado, estariam Marx,
Durkheim e Weber que, embora com enfoques bastante distintos
entre si, vêem nos coletivos sociais um modo peculiar de ação
social, os quais dariam veredas a tipos de solidariedades comple-
xas (Durkheim), a mudanças sociais do tradicionalismo para o tipo
racional-legal (Weber) ou poderiam marcar o início de um proces-
so revolucionário (Marx). Vale dizer que os autores clássicos, em
sua maioria, falam em “comportamento coletivo” e “ação social”.
A referência deles aos movimentos sociais, ainda que de grande
importância, é apenas indireta. A ideia de “movimentos sociais”,
tal como a concebemos hoje, não consistia, por si, em tema espe-
cífico de investigação (MACHADO, 2007, p. 250).

Para Machado (2007), os novos movimentos sociais colocam uma dinâmica so-
cial incapaz de ser avaliada sob um ponto de vista estrutural-institucional, sendo fre-
quentemente descritos como movimentos não institucionalizados.

A concepção de movimentos sociais “clássica”, até os anos 1970, tomava os


movimentos sociais como resultado das lutas políticas dentro de um quadro de dis-
putas econômicas e classistas. Como destaca o sociólogo Melucci (2001, p. 30), não
havia propriamente uma teoria dos movimentos sociais. Assim, coletivos em ação
eram tomados apenas sob a ótica das contradições estruturais do capitalismo e como
blocos de interesses mais ou menos homogêneos.

A própria concepção metodológica sobre os “novos movimentos sociais” traz a


perspectiva de análise que toma os movimentos sociais como “um fenômeno coletivo
que se apresenta com uma certa unidade externa, mas que, no seu interior, contém

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Temas e Teorias da Sociologia

significados, formas de ação, modos de organização muito diferenciados”, e que por


isso, precisam “destinar muitos dos seus recursos para gerir a complexidade e a dife-
renciação que os constitui” (MELUCCI, 2001, p. 29).

Para Machado (2007), por outro lado, os novos movimentos sociais deveriam
ser tomados como os movimentos que não se enquadravam no esquema sociológi-
co de até então:

Tal interpretação da natureza dos movimentos sociais foi particu-


larmente característica nas abordagens marxistas-estruturalistas.
Esta leitura se foi tornando antiquada à medida que os movimen-
tos sociais passaram a proliferar, ganhando notável complexi-
dade e alcance com o surgimento de organizações e coletivos
que lutavam pelas causas mais diversas. Surgiu então o termo
“novos movimentos sociais” para designar tais coletivos que
não encontravam uma interpretação satisfatória na maioria das
interpretações predominantes. Os “novos” movimentos sociais
seriam principalmente os movimentos pacifistas, das mulheres,
ambientalistas, contra a proliferação nuclear, pelos direitos civis
e outros. Tais movimentos, a maioria de base urbana, estavam
bastante afastados do caráter classista dos movimentos sindical
e camponês, atuando, não raras vezes, em cooperação com o
sistema econômico e no escopo político das instituições vigentes
(MACHADO, 2007, p. 253).
As demandas
destes movimentos As demandas destes movimentos não eram mais restritas às condi-
não eram mais ções materiais da vida ou para a redistribuição da riqueza, mas sim vol-
restritas às
tados para a afirmação de diferentes estilos de vida. São as demandas
condições materiais
da vida ou para “pós-materiais”, pois exigem mudanças que vão para além da tradicional
a redistribuição lógica de disputa econômica, identificada com o movimento operário, típico
da riqueza, mas das sociedades industriais.
sim voltados para
a afirmação de Essas demandas “pós-materiais”, como as chamou
diferentes estilos Inglehart (1971), se completavam com a opção por
de vida. São as formas diretas de ação política e pela demanda por
demandas “pós- mudanças paulatinas na sociabilidade e na cultura, a
materiais”, pois serem logradas pela persuasão, isto é, léguas longe
da ideia de tomada do poder de Estado por revolução
exigem mudanças
armada (ALONSO, 2009, p. 51).
que vão para além
da tradicional
lógica de disputa Outras perspectivas em torno da questão da participação política de
econômica grupos sociais coletivos sob a ótica dos “novos movimentos sociais” se tor-
naram então presente, não situando-se somente em torno da dualidade
democracias liberais (calcado na lógica da representação pelo voto indivi-
dual) vs. Estados socialistas (estabelecidos sobre o primado da organização classista
e pela supremacia da representação do partido sob o indivíduo).

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A Sociologia Nos Dias De Hoje: os Desafios do
Capítulo 3
Mundo Globalizado e Fragmentado

Assim, novos estudos acerca de modelos alternativos de democracia (direta, as-


sociativa, participativa ou deliberativa) tornam-se o cerne de estudos na sociologia, a
fim de estudar as possibilidades de transformação em torno do advento dos novos mo-
vimentos sociais. Conforme colocado por Lüchmann (2012, p. 59):

Os problemas e os limites apontados à democracia representativa


vêm estimulando o debate e o desenvolvimento de novos mode-
los teóricos de democracia que ampliam os atores, os espaços,
e os sentidos da política. “Democracia participativa”, “democracia
associativa” e “democracia deliberativa” têm se destacado, entre
um leque mais amplo de modelos, como aportes teórico-analíticos
valiosos no sentido do questionamento dos pressupostos democrá-
ticos que tendem a restringir a ação política a determinados atores
e estruturas institucionais, dadas como únicas e possíveis frente à
pluralidade e a complexidade social.

O debate em torno das questões de gênero e racismo tornaram-se parte do de-
bate público das sociedades contemporâneas. Exigências em torno de mudanças na
forma de representação política também trouxeram consequências para o mundo atual.

Mais recentemente, também se viu mudanças em torno de movimentos de fundamen-


to econômico-políticos. Os movimentos que eclodiram nos países árabes e do norte da Áfri-
ca a partir de 2009 (à época chamados de “Primavera Árabe”), os movimentos de rua de
2013 no Brasil, o movimento Occupy Wall Street nos Estados Unidos, exigiam avanços em
torno das estruturas políticas (por aprofundamentos democráticos) e sociais (crítica a desi-
gualdade social e pela oferta de serviços públicos universais).

Por outro lado, o que tem se visto em várias regiões do planeta mais recentemente
é o aprofundamento das desigualdades e o crescimento de situações políticas extre-
mistas, o que leva à reflexão sociológica sobre as condições para a ação política nos
tempos de hoje.

Como você percebe estas mudanças? Você considera que as perspectivas de


aprofundamento da democracia têm sido frustradas por “maiorias” revoltadas com a as-
censão de “minorias” ligada aos “novos movimentos sociais”? Temos visto muitas expli-
cações vinculadas aos meios de comunicação e debatido por líderes “liberais-progres-
sistas”, em defesa da diversidade, e por líderes “populistas”, que se dizem representar
as “maiorias” em defesa das tradições e nação. Como podemos ler a crise política e
social do mundo contemporâneo para além das aparências?

Veja como o enunciado deste jornal alemão, exposto na figura a seguir,


demonstra preocupação com a ascensão de movimentos que exploram os
medos presentes em nossas sociedades nestas primeiras duas décadas do
século XX. Que medos são estes, de onde brotaram?

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Temas e Teorias da Sociologia

FIGURA 4 - O POPULISMO NO MUNDO ATUAL

Populistas vêm ganhando força mundo afora, explorando temores da população e descontenta-
mento com a política. Uma análise sobre os casos de Estados Unidos, Itália, França, Alemanha
e Brasil.
FONTE: Deutsche Welle, 25 out 2018. Disponível em: <https://www.dw.com/
pt-br/como-o-populismo-instrumentaliza-o-medo-pelo-mundo/a-46030839>.

3.3 A CRISE POLÍTICA DA NOSSA ERA


Um dos efeitos contemporâneos da quebra das relações humanas e a falta de
alternativas é o retorno dos discursos nacionalistas (cuja origem remonta o século XIX,
a fim de garantir a coesão interna e pacificação dos conflitos sociais dentro de uma de-
terminada fronteira nacional), da exclusão e ataque a imigrantes (xenofobia) e o retorno
a fundamentalismo religiosos (seja cristão ou muçulmano). As respostas políticas a esta
situação tem sido a eleição de personalidades “populistas” e ligadas ao conservadoris-
mo dos valores. Um dos efeitos da tentativa de manutenção da estrutura familiar nu-
clear, ameaçada pelas necessidades da flexibilização do mundo do trabalho, tem sido
apontar os movimentos identitários de gênero como responsáveis por essa crise e não
o “novo capitalismo”, conforme descrito por Sennett (2006; 2009).

Do campo definido como “progressista” em relação aos valores e identidades


sociais, por outro lado, definem-se vozes críticas à compartimentalização de discur-
sos identitários que se isolam das realidades socioeconômica. Essa situação levou ao
que a filósofa Nancy Fraser definiu como “neoliberalismo progressista”: “uma aliança
real e poderosa de dois companheiros improváveis: por um lado, as principais corren-
tes liberais de novos movimentos sociais [...]; por outro, os setores mais dinâmicos,
de alto nível “simbólico” e financeiro da economia dos EUA” (FRASER, 2018, p. 46).

Para Fraser, o colapso desta política hegemônica levou a crise atual expres-
sa em algumas características em comum:

Todos envolvem um enfraquecimento dramático, se não evidente


colapso da autoridade das classes políticas estabelecidas e dos
partidos políticos. É como se massas de pessoas em todo o mundo
pararam de acreditar no reinante senso comum que sustentou a
dominação política nas últimas décadas. É como se tivessem per-
dido a confiança na boa fé das elites e buscavam novas ideologias,
organizações e lideranças. Dada a escala da falha, é improvável
que isso seja uma coincidência. Vamos supor, portanto, que enfren-
tamos uma crise política global (FRASER, 2018, p. 44).

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A Sociologia Nos Dias De Hoje: os Desafios do
Capítulo 3
Mundo Globalizado e Fragmentado

No entanto, como Fraser (2018) adverte, essa é a realidade compartilhada por


todos e pouco se avançaria se não buscarmos entender as origens desta crise. Para
a autora, esta é uma “crise geral”, e a expressão política faz parte de uma crise eco-
nômica, ecológica e social do mundo contemporâneo que pode ser definida da se-
guinte forma:

A “metaestatização das finanças; a proliferação de empregos


precários no setor de serviços, como aqueles no McDonald’s; o
inchamento da dívida dos consumidores para permitir a compra
de produtores baratos produzidos por alhures; o crescimento
simultâneo das emissões de carbono, de condições climáticas
extremas e do negacionismo climático; o encarceramento racia-
lizado em massa e a violência policial sistêmica; e o crescimento
do estresse na vida familiar e comunitária, graças, em parte, ao
prolongamento das horas de trabalho e a diminuição dos auxílios
sociais. Juntas, essas forças vinham esmagando nossa ordem
social há algum tempo sem produzir um terremoto político. Agora,
no entanto, todas as apostas estão encerradas. Na rejeição ge-
neralizada atual da política, como de costume, uma crise objetiva
e sistêmica encontrou sua voz política subjetiva. A vertente polí-
tica da nossa crise geral é a uma crise de hegemonia (FRASER,
2018, p. 44).

Para entender esta crise, portanto, Fraser (2018) resgata o conceito de A hegemonia
hegemonia do marxista Antonio Gramsci, conceito que descreve o processo capitalista nas
em que uma classe dominante naturalizada sua dominação, tornando seus últimas décadas foi
pressupostos como “senso comum” da sociedade. A hegemonia capitalista forjada combinando
dois aspectos: a
nas últimas décadas foi forjada combinando dois aspectos: a distribuição, ou
distribuição, ou
seja, “como a sociedade de alocar bens divisíveis, especialmente renda”; e, seja, “como a
o reconhecimento, “um senso de como a sociedade deve atribuir respeito e sociedade de alocar
estima [...], refere-se às suas hierarquias de status” (FRASER, 2018, p. 45). bens divisíveis,
especialmente
Para ela, portanto, o colapso do bloco hegemônico anterior, o “neolibe- renda”; e, o
reconhecimento,
ralismo progressista” levou a eclosão de movimentos como os que levaram
“um senso de como
Trump ao poder nos Estados Unidos. Esta situação se deu pelo fato de que a sociedade deve
os efeitos do neoliberalismo, implementado pelos governos norte-americanos atribuir respeito e
a partir de Ronaldo Reagan, “esvaziaram os padrões de vida da classe traba- estima [...], refere-se
lhadora e da classe média, enquanto transferiam riqueza e valor para cima, às suas hierarquias
principalmente para o grupo 1% mais rico” (FRASER, 2018, p. 45). de status”
(FRASER, 2018, p.
45).
No entanto, se os efeitos da distribuição eram negativos, a hege-
monia neoliberal necessitava compensar em outro aspecto, que foi o de
reconhecimento a partir de “aspirações não econômicas de emancipação”. Assim
“calhou, desse modo, aos ‘novos democratas’ contribuir com o ingrediente essen-
cial: uma política progressista de reconhecimento”, tendo por núcleo “os ideais de

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Temas e Teorias da Sociologia

‘diversidade’, ‘empoderamento’ das mulheres e direitos LGBTQ; pós-racialismo,


multiculturalismo e ambientalismo”, que levou a unidade descrita como neolibera-
lismo progressista.

Assim, como declara Fraser (2018), “o programa neoliberal progressista para atin-
gir uma ordem de status justa não visava a abolir a hierarquia social, mas ‘diversificá-
-la’, ‘empoderando’ mulheres ‘talentosas’, pessoas de cor e minorias sexuais para que
chegassem ao topo” (FRASER, 2018, p. 47). Obviamente que nem todos movimentos
sociais foram ganhos para a causa neoliberal progressista, mas aqueles que foram,
conscientes ou não, constituíam boa parte dos movimentos. Assim, o lado sombrio da
atividade econômica neoliberal adquiriu algo de emocionante ao proporcionar um am-
biente cosmopolita e progressista. Projetos antineoliberais eram marginalizados e deli-
beradamente excluídos da esfera pública.

Apesar de a crise econômica de 2008 possibilitar a ânsia por mudanças, expressas


na eleição do primeiro afro-americano para presidência dos Estados Unidos, não houve
rompimento com o neoliberalismo. A força, por exemplo, do movimento de jovens do Oc-
cupy Wall Street, em 2011, que chegou a contar com 60% de apoio público ao declara-
rem-se em defesa dos “99 por cento” da população contra a exploração dos super-ricos,
acabou tendo como efeito político a reeleição de Obama em 2012. Porém este nada fez
para mudar a realidade econômica do país. Para Fraser, o governo Obama “reforçou as
próprias divisões dentro da classe trabalhador que, de fato, se mostrariam tão politica-
mente fatais. Para dizer tudo, o impulso devastador de sua presidência era manter o sta-
tus quo do neoliberalismo progressista” (FRASER, 2018, p. 51).

Assim, a decadência norte-americana, simbolizada no declínio dos padrões de


vida da massa de trabalhadores (simbolizada para eles na decadência das grandes
cidades industriais) e a falta de uma alternativa de esquerda ao neoliberalismo (a can-
didata escolhida pelo partido Democrata foi Hilary Clinton, representante do neolibe-
ralismo progressista) levou uma parte considerável do eleitorado da classe trabalha-
dora (o que se identificava com a outrora poderosa classe operária industrial, branca,
masculina e cristã) à Trump. A alternativa antineoliberal apresentada por Bernie San-
ders, um “socialista democrático” com expressivo apoio popular, foi esmagada pelas
alavancas do poder partidário de Hilary Clinton, apoiado pelo grande capital financeiro
ligado ao neoliberalismo progressista.

Ainda segundo Fraser (2018), o sucesso de Trump foi combinar no período elei-
toral um novo bloco “proto-hegêmonico” que pode ser definido como “populismo rea-
cionário”, pois combinou uma política “hiper-reacionária de reconhecimento com uma
política populista de distribuição: o muro na fronteiro mexicana, além de gastos de
larga escala em infraestrutura”. Eleito, apesar da manutenção de índices de desem-

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A Sociologia Nos Dias De Hoje: os Desafios do
Capítulo 3
Mundo Globalizado e Fragmentado

prego baixos herdado de Obama, sua política ficou longe da política de distribuição
prometida e do protecionismo esperado, mantendo o neoliberalismo em uma versão
de compadrio e de beneficiamento direto dos 1% mais ricos.

Para compensar a falta de distribuição, sua política passou a compensar com


uma “política ultrarreacionária de reconhecimento”, buscando publicamente constran-
ger e provocar minorias e movimentos sociais, como muçulmanos, feministas, LGB-
TQ e negros, em defesa das “pessoas de bem”. Para Fraser a síntese conceitual é
que o neoliberalismo progressista foi substituído pelo “neoliberalismo hiper-reacioná-
rio” (FRASER, 2018, p. 55).

Assim, esta leitura da crise política mundial a partir do caso norte-americano, apre-
sentado por Fraser (2018), nos ilustra os paradoxos desta modernidade tardia e os peri-
gos que prenunciam o deslocamento discursivo das contradições sociais apenas sob a
ótica do reconhecimento social e não na distribuição de riquezas.

O mundo atual paradoxalmente mantém-se calcado nas contradições estudada pe-


los “fundadores” da sociologia e, além disso, apresenta o aprofundamento das contradi-
ções entre o novo e o velho. A perspectiva de liberdade individual e humana são ame-
açadas pelas próprias ferramentas que permitem essas perspectivas: a tecnologia e a
racionalidade podem também servir para a defesa do irracionalismo e da desigualdade.

O paradoxo do mundo contemporâneo: “Mas a pergunta se impõe:


como pode a antiga e independente tradição crítica dos intelectuais dos
séculos XIX e XX sobreviver numa era de irracionalidade política, refor-
çada por suas próprias dúvidas sobre o futuro? É um paradoxo do nosso
tempo o fato de que a irracionalidade na política e na ideologia não tem
tido dificuldade alguma para coexistir com, e na realidade usar, a tecno-
logia mais avançada. Os Estados Unidos e os militantes assentamen-
tos israelenses dentro das áreas ocupadas da Palestina demonstram
que não há escassez de especialistas em tecnologia da informação que
acreditam na história literal da criação do livro do Gênesis ou nas exor-
tações mais sangrentas do Velho Testamento à extirpação dos descren-
tes. [...] É possível tornar esse sistemático não racionalismo de vidas hu-
manas compatível com um mundo que depende mais do que nunca da
racionalidade de Max Weber em ciência e sociedade?” (HOBSBAWM,
2013, p. 148). “Pois o paradoxo do fundamentalismo religioso redivivo
é que ele surja num mundo em que a existência humana repousa em
alicerces técnico-científicos incompatíveis com ela, mas indispensáveis

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Temas e Teorias da Sociologia

até mesmo para os devotos. Os fundamentalistas contemporâneos, se


seguissem a lógica de seus ancestrais anabatistas, deveriam abrir mão
de qualquer inovação tecnológica produzida desde a fundação, como
os Amishes da Pensilvânia com seus cavalos e charretes. Mas os no-
vos convertidos pentecostais não recuam diante do mundo do Google
e do iPhone: florescem nele. A verdade literal do Gênesis é propagada
pela internet. As autoridades teocráticas do Irã baseiam o futuro do país
na força nuclear, enquanto seus cientistas nucleares são assassinados
com a mais sofisticada tecnologia, manejada a partir de salas de oficiais
em Nebraska, muito provavelmente por cristãos convertidos. Quem sa-
beria dizer em que termos a razão e a rediviva antirrazão coexistirão nos
terremotos e tsunamis do século XXI? (HOBSBAWM, 2013, p. 162).

1 Disserte sobre as principais consequências do crescimento da


desigualdade social no mundo contemporâneo e sua relação com
a situação política mundial.

R.:____________________________________________________
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____________________________________________________
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2 O que são as demandas “pós-materiais” apresentadas como


fundamento dos novos movimentos sociais?

R.:____________________________________________________
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A Sociologia Nos Dias De Hoje: os Desafios do
Capítulo 3
Mundo Globalizado e Fragmentado

3 Qual a avaliação de Fraser acerca da crise política vivida no mundo


contemporâneo?

R.:____________________________________________________
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4 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
Neste capítulo, estudamos sobre vários temas e perspectivas sociológicas para
compreensão do mundo contemporâneo. Observamos aspectos como as mudanças
geradas no mundo do trabalho e nas relações interpessoais, as mudanças de pers-
pectivas metodológicas (como os estudos influenciados pelo “pós-estruturalismo”, a
emergência dos “novos movimentos sociais” e, avaliamos em parte o processo de crise
política atual e de crescimento de desigualdades sociais.

Mais do que retomar esta trajetória intelectual apresentada ao longo do capítulo,


desejamos oferecer uma reflexão sobre as perspectivas da sociologia, tanto adotadas
nas últimas décadas, como as necessidades colocadas no mundo atual.

A crítica ao pensamento herdeiro do iluminismo, ou seja, boa parte da so-


ciologia até os anos 1960, trouxe a perspectiva de que o próprio conhecimento
intelectualmente produzido, além de explicar, ele impõe normas e disciplina as
relações sociais observadas. Por mais que esta perspectiva crítica seja neces-
sária para o aprofundamento da releitura crítica da produção científica e política,
ela não pode invalidar a produção anterior ou negar perspectivas de produção de
conhecimento, calcado no primado do estudo via conceitos e dados.

Caso neguemos a primazia do conhecimento científico na produção do saber ob-


jetivo, ficaremos refém de um retorno romântico e a equalização do saber científico com
outras formas de saber, calcadas na mera avaliação subjetiva, no específico e o no
etnocentrismo cultural.

Se a crítica e aprofundamento da análise em perspectivas para além das grandes de-


terminações político-econômicas permitiu uma crítica das relações de opressão e do respei-

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Temas e Teorias da Sociologia

to ao indivíduo na análise sociológica, por outro lado a adoção da leitura romântica, do espe-
cífico pelo específico, da fuga da objetividade pela aceitação da subjetividade como ótica de
análise e fora das regras da crítica científica parecem apenas servir como fugas intelectuais
e deslegitimam o conhecimento acadêmico na sociedade.

Além disso, análises como de Fraser, de crítica teórica e política dos movimentos so-
ciais na fase neoliberal do capitalismo, evidenciam que a fuga das análises estruturadas
da sociologia clássica demonstra limites na compreensão dos fenômenos de crise política
e desconforto em torno do avanço das pautas destes movimentos. Se o dualismo ante-
rior parecia estar sob o primado econômico-coletivo e de oposição de classes, o primado
passou a ser cultural-individual e centrado no conflito progressismo vs. conservadorismo.
Sínteses tornam-se necessárias e por isso privilegiamos a exposição desta autora na
avaliação da crise política atual, que também atinge o nosso país.

A era inaugurada pela filosofia, artes e movimentos desta era “pós-moderna” não
conseguiu apresentar alternativas de transformação social às antigas contradições iden-
tificadas pela sociologia clássica de Marx, Weber e Durkheim, que se apresentam ainda
como presente no mundo atual.

Apesar das várias e intensas mudanças em padrões sociais, instituições e apa-


rências, a continuidade da exploração de cunho econômico, o aprofundamento da
racionalização opressora (a “jaula de ferro” da racionalidade de Weber) e a carência
e quebra de instituições morais capazes de servir de guia e garantir a construção do
“caráter” das pessoas, típicos dessa era “líquida”, evocam a necessidade de buscar
sínteses no pensamento sociológico.

O fenômeno populista e reacionário do mundo contemporâneo apresenta-se


também como um discurso crítico do legado iluminista ao questionar os conhecimen-
tos científicos em torno da crise ambiental e social do mundo contemporâneo e ao
ordenar o mundo em torno de valores a-históricos, como “família tradicional”, o nacio-
nalismo, a hierarquia social-econômica. E o faz, paradoxalmente, utilizando-se das
ferramentas tecnológicas trazidas pela revolução científica do iluminismo.

Este contexto tem trazido ameaças à produção sociológica, à legitimidade do


saber científico e à liberdade de cátedra dos professores. Um dos pontos mais con-
troversos do debate atual gira em torno das indefinições curriculares nas ciências
humanas no Brasil, notadamente da Sociologia, seja da manutenção da sua obriga-
toriedade no ensino médio e definições curriculares.

Além disso, temos visto neste debate, a partir da publicação da Base Na-
cional Curricular Comum, o ataque a premissas básicas do estado leigo e da li-
berdade de pesquisa e ensino no Brasil. Primeiramente, temos o prenúncio da
obrigatoriedade da oferta de ensino religioso e a retirada do termo “gênero” dos

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A Sociologia Nos Dias De Hoje: os Desafios do
Capítulo 3
Mundo Globalizado e Fragmentado

temas e competências a serem desenvolvidas em aula. Os temas de gênero e


sexualidade, seja no objetivo de desenvolvimento de indivíduos sem preconceito
de gênero ou no desenvolvimento de uma educação sexual (cuidado do corpo,
doenças, gravidez, combate ao estupro e abusos sexuais, do respeito aos outros)
são considerados tabus por grupos políticos ligados a bancadas religiosas no con-
gresso nacional.

Por isso, consideramos que a defesa do conhecimento e ensino sociológico são


pressupostos para o desenvolvimento de uma sociedade calcada em valores sociais
de liberdade, igualdade, respeito e solidariedade humanas. Esperamos que a exposi-
ção de temas e debates da sociologia realizados ao longo deste livro possam auxiliar a
ampliar o alcance deste conhecimento, tão importante em nossa sociedade contempo-
rânea.

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A Sociologia Nos Dias De Hoje: os Desafios do
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Mundo Globalizado e Fragmentado

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