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EccoS Revista Científica

ISSN: 1517-1949
eccos@uninove.br
Universidade Nove de Julho
Brasil

Luckesi, Cipriano Carlos


Avaliação da aprendizagem na escola e a questão das representações sociais
EccoS Revista Científica, vol. 4, núm. 2, dezembro, 2002, pp. 79-88
Universidade Nove de Julho
São Paulo, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=71540206

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Avaliação da aprendizagem na escola e a questão das representações sociais
EccoS Rev. Cient., UNINOVE, São Paulo: (n. 2, v. 4): 79-88

AVALIAÇÃO DA APRENDIZAGEM NA ESCOLA E A P ALAVRAS - CHAVE : avaliação da


aprendizagem; representações
sociais.
QUESTÃO DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS
Cipriano Carlos Luckesi* *Doutor em Educação e professor
do Programa de Pós-Graduação
em Educação na Faculdade de
Educação da Universidade Fe-
deral da Bahia.
RESUMO: Este artigo trata da presença do fenômeno das representações sociais dos
professores e professoras na compreensão e prática da avaliação da aprendizagem na
escola, a partir de noções que muito se aproximarão do senso comum e de leituras
eventuais e esparsas sobre o tema. Inicio por dizer o que compreendo por representa-
ções sociais, para, a seguir, articular essa compreensão com as questões relativas à
avaliação da aprendizagem.

E
A questão das representações sociais C
C
Entendo que as representações sociais são modos inconscientes de compreen- O
S
der um determinado fenômeno ou uma determinada prática existencial, individual
ou coletiva, que se expressam por meio de falas cotidianas, crenças, provérbios, R
modos de agir, que podem estar vinculados ao passado, ao presente ou ao futuro. E
São crenças ou práticas que, por si e aparentemente, não têm razão de ser, mas que V.
se dão, se realizam e permanecem como um padrão de conduta dos indivíduos C
e/ou de coletividades, sem que se tenha de dar justificativas de por que elas são I
como são. Em síntese, são crenças inconscientes que se manifestam nas falas, nos E
N
chistes, nos discursos, nas piadas e, especialmente, na ação cotidiana. T.
No que segue, tendo em vista dar fundamentos à compreensão do conceito
de representações sociais que aqui utilizo, expressa no parágrafo anterior, servir-me- n. 2
ei livremente (e, por isso, poderei cometer ‘gafes’) de diversos autores, sinalizando v. 4
como eles podem nos dar suporte para compreendermos e utilizarmos esse conceito
na abordagem do nosso cotidiano. dez.
Freud (1856-1939) estudou esses fenômenos como expressões de conteúdos 2002

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recalcados no inconsciente de cada indivíduo, ou como padrões psicoculturais assi-


milados como corretos e armazenados numa função da psique humana denominada
superego.1 Tanto os conteúdos do inconsciente recalcado quanto os do superego
1
Ver os estudos de Freud deno- atuam automaticamente sobre nossas expressões cotidianas, seja pela fala, seja pela
minados academicamente de
Primeira e Segunda Tópica, nos
ação. Por exemplo, nossas piadas sobre as mulheres, os portugueses, a sexualidade
quais aborda, de duas formas revelam, na quase totalidade das vezes, nossos ‘pré-conceitos’ relativos a esses seres
diferentes, a estrutura da psique humanos, ou a esses fenômenos, cuja origem nem sequer conseguimos identificar
humana.
– rimos das piadas e pronto, não nos damos conta de sua perversidade. Elas ex-
pressam representações sociais inconscientes que temos sobre os conteúdos de que
tratam. No entanto, os conteúdos do superego também produzem representações
sociais, quase sempre com algum caráter moralista, impositivo, tais como: nosso
modo herdado, imposto de fora, de nos relacionarmos com a autoridade, com a
religião, com a sexualidade. O superego define a forma ‘correta’ de agir nas mais
variadas circunstâncias. Esses conteúdos foram herdados – da família, da cultura
regional, de padrões religiosos confessionais – e entranharam-se num modo in-
consciente de agir, todavia não são recalcados, e sim superpostos ao modo de ser
E
C
do sujeito. Assim, podemos dizer que o superego é uma superposição cultural
C proveniente das heranças morais e ritualísticas impostas ao sujeito, produzindo
O um modo automático de agir.
S Wilhelm Reich (1896-1957), psiquiatra alemão, discípulo e, posteriormente,
R dissidente de Freud, compreendeu que as experiências psíquicas, das quais falava
E seu mestre, davam-se no corpo, vale dizer, as heranças passadas, fossem elas do
V. inconsciente recalcado, do superego ou do ego (como administrador das relações,
C as mais equilibradas possíveis entre o interior e o exterior do individuo, entre o
I interior [id] e o mundo exterior, entre o princípio do prazer e o princípio da rea-
E lidade), manifestavam-se no corpo, pelas denominadas couraças musculares.2 Ou
N
T.
seja, cada um de nós manifesta padrões corporais que sintetizam nossa história de
2
Ver as obras de Wilhelm Reich, vida congelada, como diz Reich. Esses padrões revelam as crenças mais íntimas
tais como: A função do orgasmo
n. 2 (Brasiliense, 1975), Análise do e profundas que temos, por estarem marcadas em nosso corpo, como cicatrizes
v. 4 caráter (Martins Fontes, 1989), do nosso caminhar pela vida, de nossas interações, de nossas heranças e crenças,
Psicologia de massas do fascismo adquiridas em nossas experiência pessoais ou em decorrência de nossas heranças
(Martins Fontes, s.d.).
dez. familiares e socioculturais. Tudo isso que se expressa em nosso corpo também dá
2002 forma a nossa ação, sem que prestemos atenção a ela. David Boadella (1985),

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estudioso e admirador dos estudos de Reich3, nos diz que é impossível o ser
humano não se comunicar: basta estar presente que está se comunicando, seja 3
David Boadella, pesquisador
pela configuração do seu corpo, pela postura, pelos gestos ou pela fala; enfim, inglês que hoje vive na Suíça,
publicou um livro intitulado
pelo estar presente. Stanley Keleman (1996), pesquisador norte-americano que Nos caminhos de Reich (Summus
hoje vive na Califórnia, USA, e que criou uma área de conhecimentos chamada Editorial, São Paulo, 1985), obra
fundamental para quem deseja
Psicologia Formativa, escreve um livro cujo título é Seu corpo fala de sua mente, conhecer um pouco desse autor.
ou seja, nosso corpo expressa nossas crenças, foi forjado por elas. Em síntese, quero
dizer que nosso corpo revela nossas representações sociais; basta saber lê-las.
No cotidiano, usamos muitas metáforas com as quais expressamos nossos
estados de ser, que são expressões do nosso inconsciente fixadas em nosso corpo.
Assim, para expressar um estado de não agüentar mais, dizemos “estou com um
peso nas costas”; para dizer que não conseguimos expressar alguma coisa, “estou
com um nó na garganta”; para dizer que estamos ansiosos, “tenho uma pedra no
estômago”; para demonstrar que estamos sentindo que uma situação qualquer
não está bem, dizemos “isto está me cheirando mal”, e assim por diante. De fato,
nada disso é real; são expressões metafóricas de experiências que estão, profunda
e inconscientemente, arraigadas em nosso corpo. E
C
Carl Gustav Jung (1875-1961), excepcional pesquisador da alma humana, C
revela que muitos padrões de condutas e crenças que possuímos provêm do O
inconsciente coletivo.4 Este é constituído de heranças socioculturais e históricas, S
que assumimos e praticamos sem ao menos saber de onde vieram e, muitas vezes, R
qual o seu real sentido. Jung trabalha com elementos simbólicos profundos das 4
Ver os estudos de Jung sobre E
múltiplas e ricas experiências sagradas, religiosas e culturais da humanidade; todavia, o inconsciente em suas Obras V.
completas.
para nosso uso neste texto, podemos nos ater ao prosaico, à nossa herança cotidiana. C
Temos crenças e repetimo-las, sem que saibamos seu significado originário, tais I
como: “passar por debaixo de uma escada dá azar”; “chupar manga e tomar leite E
faz mal”; “treze de agosto é dia do azar”; “sapato emborcado, pai morre”; “usar N
T.
cueca ou calcinha pelo avesso dá proteção”. De onde vieram essas crenças, quando
se iniciaram, quais são seus fundamentos? Até mesmo em famílias que nunca se n. 2
utilizaram dessas crenças, existem pessoas que respeitam esses valores. Como elas v. 4
assimilaram esses padrões? Na compreensão de Jung (e eu concordo plenamente
com ele), elas estão profunda e intimamente fixadas em nosso inconsciente coletivo, dez.
em nossas heranças – elas são nossas representações sociais. 2002

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De outro lado, sociólogos como Emile Durkheim (1858-1917), cientistas


políticos como Karl Marx (1818-1883), antropólogos como Margaret Mead (1901-
1978), entre muitos outros5, nos ensinam que tanto em sociedades complexas
quanto em sociedades simples padrões predominantes de conduta são assumidos,
5
Esses autores estão, usualmente, seja em função de forças materiais ou de forças culturais atuantes; padrões estes
comentados nos livros que tratam
do tema das representações so-
que, apesar de serem criados e recriados pelo ser humano, são praticados como
ciais, nos quais o leitor encontrará se fossem ‘naturais’, como se pertencessem à própria natureza do ser humano. Os
vasta bibliografia sobre eles. padrões culturais coletivos de uma determinada sociedade são tão consistentes
e fortes que imprimem sobre cada um de seus membros determinadas manei-
ras de compreender e de agir na vida. Evidentemente, não configuram padrões
monolíticos, que não admitem nenhuma transformação dialética; existem, sim,
modificações, embora lentas. Esses padrões de conduta vêm de fora do sujeito,
são introjetados e, com o tempo, passam a ser, sem nenhum questionamento, os
próprios padrões de conduta dos membros da referida sociedade, cuja origem se
desconhece, mas que permanecem vigentes.
Por último, quero mencionar os estudos do biólogo inglês Rupert Sheldrake
E
C
(1942) sobre os campos mórficos6 que nos constituem, por meio de um processo de
C
6
Ver, desse autor, o livro Renas- interação inconsciente com eles. Campos são regiões imateriais de influência, que já
cimento da idéia de natureza.
O foram estudados pela Física e pela Biologia. Constituem também regiões imateriais
S de influência, que têm por suporte a ambiência de nossas heranças, produzindo
R padrões de conduta, usualmente repetitivos. Campos mórficos são campos organi-
E zadores de padrões de conduta e modos de ser, e atuam por uma ação a distância,
V. sem os serviços de recursos materiais que façam a mediação. Representam um tipo
C de memória coletiva de um grupo, que molda cada indivíduo-membro, para a
I qual cada um contribui exercendo influências sobre membros futuros do mesmo
E grupo. A assimilação da herança viria por ressonância mórfica, ou seja, as formas
N
T.
do passado ressoam em nós, de tal forma que as assimilamos inconscientemente.
Os membros anteriores de uma sociedade, enquanto agem, formam um campo
n. 2 que atua sobre todos. Poderíamos pensar que o passado exerce uma pressão sobre
v. 4 o presente e que está potencialmente presente em todos os lugares. Influências
mórficas do passado se fazem presentes em organismos similares subseqüentes, e
dez. padrões de conduta, em todos os indivíduos daquela espécie, por um processo de
2002 ressonância mórfica. Quantos mais sejam os indivíduos que pratiquem um deter-

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minado padrão de conduta, mais força terá esse padrão sobre as heranças futuras.
Ao praticarmos rituais do passado, entramos em ressonância com as forças das
comunidades que os praticaram. Sem nos darmos conta, estamos sob o campo
de ressonância dessas forças e repetimos padrões de conduta: o campo mórfico
nos configura.
Todavia, importa observar que os campos mórficos não são monolíticos. Eles
tiveram um início, que, usualmente, não sabemos precisar; suas origens perdem-se
no tempo e na amplitude do espaço; contudo também sofrem modificações com
as múltiplas experiências dos que os acessam e vivenciam suas determinações. Tais
modificações atuarão sobre as gerações futuras que agirão e reagirão dialeticamente
sob sua influência. Assim, padrões mórficos de conduta fazem sentido no contexto
das representações sociais que vivenciamos, na medida em que nos configuram,
sem que tenhamos consciência deles.
Existem outras abordagens teóricas, de autores já consagrados, que pode-
riam ser úteis para compreendermos o significado de ‘representações sociais’. Por
exemplo, podemos nos lembrar do conceito de habitus em Pierre Bourdieu, ou
de ‘senso comum’ em Antonio Gramsci.7 E por que não nos lembrarmos também E
C
do velho René Descartes que nos disse que os conhecimentos provenientes dos 7
Ver, de Pierre Bourdieu e Jean-
C
Claude Passeron, A reprodução, e,
sentidos ou da cultura comum dos povos nos enganam? Ou ainda de Francis Bacon de Antonio Gramsci, Concepção
O
(1561-1626), com sua teoria dos ‘ídolos’, que obscurecem nossa consciência ao dialética da história. S
nos confrontarmos com a realidade na investigação científica? Certamente esses R
autores nem mesmo sonharam que, um dia, suas abordagens teóricas poderiam E
servir de suporte para compreender o conceito de representação social, o que não V.
nos impede de lê-los com esse olhar. C
Em síntese, tendo por base essas considerações teóricas, quero dizer que I
compreendo ‘representações sociais’ como padrões inconscientes de conduta, que E
formam nosso modo ser, agir e pensar sobre determinados fenômenos ou expe- N
T.
riências da vida prática. Esse modo de ser refere-se tanto a um padrão com uma
configuração predominante do passado quanto àquele que se configura numa n. 2
articulação dialética entre os elementos do passado e os do presente. Em todo caso, v. 4
assimilados do passado, ou de padrões inconscientes de conduta, são originários
da dialética passado-presente, na perspectiva do futuro. dez.
As representações sociais dos professores(as) sobre 2002

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avaliação da aprendizagem
Servindo-nos do arcabouço teórico comentado, são vários os aspectos em
que professores e professoras repetem modelos inconscientes de agir na prática da
avaliação da aprendizagem escolar. Para provocar uma reflexão, vamos sinalizar
alguns, entre muitos outros, nos quais padrões inconscientes de conduta atuam
fortemente, de modo automático.
O primeiro deles tem a ver com o equívoco de denominar sua prática de
‘avaliação’, quando o que se faz é exercitar ‘exames’. Professores, professoras, escolas
e sistemas de ensino dizem que estão praticando avaliação – assim, existem dias
de avaliação, práticas de avaliação, sistemas de avaliação... –, porém, efetivamente,
são dias de exames, práticas de exames, sistemas de exames, ou seja, somos traídos
por hábitos que já passaram para nosso inconsciente e atuamos automaticamente,
sem nos perguntarmos sobre o verdadeiro sentido daquilo que estamos fazendo.
Inconscientemente, ‘examinamos’, porém dizemos que ‘avaliamos’.
Avaliar é o ato de diagnosticar uma experiência, tendo em vista reorientá-
E
C la para produzir o melhor resultado possível; por isso, não é classificatória nem
C seletiva; ao contrário, é diagnóstica e inclusiva. O ato de examinar, por outro lado,
O é classificatório e seletivo e, por isso mesmo, excludente, já que não se destina
S
à construção do melhor resultado possível; tem a ver, sim, com a classificação
R estática do que é examinado. O ato de avaliar tem seu foco na construção dos
E melhores resultados possíveis, enquanto o de examinar está centrado no julga-
V.
mento de aprovação ou reprovação. Por suas características e modos de ser, são
C atos praticamente opostos; no entanto, professores e professoras, em sua prática
I escolar cotidiana, não fazem essa distinção e, deste modo, praticam exames como
E se estivessem praticando avaliação.
N
T. Aqui se manifesta uma ação regida por uma representação social que tem fon-
8
Ver Ratio Studiorum, no apên- tes históricas, aparentemente perdidas no tempo, mas que são datadas. O modelo de
dice do livro O método da peda-
n. 2 gogia jesuítica, do padre Leonel exames escolares hoje praticados foi sistematizado no decorrer do século XVI, com o
v. 4 Franca. nascimento da escola moderna, caracterizada pelo ensino simultâneo, em que um
9
Ver João Amos Comenio, Didac-
professor sozinho ensina, ao mesmo tempo, a muitos alunos. A sistematização das
dez. tica magna: tratado da arte univer- pedagogias produzidas pelos católicos (Companhia de Jesus)8 e pelos protestantes
2002 sal de ensinar tudo a todos. (João Amos Comenio, 1592-1670)9 deram forma aos atuais exames escolares. Nesses

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quatrocentos anos, nós educadores nem nos perguntamos se essa é a melhor forma
de acompanhar e orientar o aprendizado dos nossos alunos; simplesmente, exercitamos
essa prática. Hoje, de forma automática, por herança histórica, examinamos, sem
verdadeiramente tomar consciência do que fazemos. A essa prática damos o nome
de avaliação.
Para, efetivamente, trabalharmos com avaliação, necessitamos criar um novo
padrão de conduta, consciente – o padrão da avaliação. É preciso romper com o
campo mórfico estabelecido e herdado, abrindo espaço a uma verdadeira experiência
de avaliação, liberta do campo mórfico de forças dessa representação social.
Um segundo aspecto dessa discussão, que se transformou numa representação
social de professores e professoras, nesse campo de prática escolar, é tomar a nota
como avaliação. É comum ouvir expressões, tais como: “Na avaliação, meus alunos
não foram muito bem; em média, obtiveram notas entre 5 e 6”. As notas 5 e 6, em si,
não dizem respeito à avaliação, mas ao registro de resultados em documentos oficiais.
Ninguém duvida de que haja necessidade de um registro da passagem de um aluno
por determinada escola, com a respectiva qualidade de sua aprendizagem. Todavia,
esse registro não compõe a avaliação. Avaliação é diagnóstico que pode ser registrado E
C
em forma de nota, mas nota não é avaliação. No entanto, na prática escolar cotidiana C
e corriqueira, ela é tomada como avaliação, embora, de fato, não represente a avaliação O
da aprendizagem em si, mas tão-somente o registro da experiência de aprendizagem S
do aluno. O uso do conceito e da prática de ‘notas’ na escola como equivalente de R
avaliação é outro ponto de representação social dos educadores no contexto do tema E
avaliação. A nota esconde nela mesma o seu verdadeiro significado, que não vem à V.
tona num primeiro momento, em razão de nosso comprometimento com o significado C
costumeiro de que nota e avaliação são conceitos que se equivalem, quando, de fato, I
isto não acontece. E
Um terceiro aspecto refere-se à frase que, por vezes, ouvimos de professores e N
T.
professoras: “na avaliação, eu dei uma nova oportunidade aos meus alunos”. Num
processo de avaliação, inexiste a possibilidade de “dar uma nova oportunidade”, n. 2
mas, sim, um processo contínuo de orientação e reorientação da aprendizagem, v. 4
para obter-se o melhor resultado possível. A expressão “dar nova oportunidade
ao aluno” significa que o educador já julgou classificatoriamente o aluno como dez.
reprovado; contudo, para não dizer que ele não teve uma nova chance de ser 2002

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aprovado, concede-lhe nova oportunidade. Em avaliação, não se concede nova


oportunidade a ninguém, acompanha-se construtivamente o aluno em seu processo
de aprendizagem. Dar oportunidade é um ato de quem tem autoridade para fazer
isso; diagnosticar a aprendizagem é um ato de quem faz parceria com o educando,
auxiliando-o a construir seu caminho, sua aprendizagem. Essa expressão é uma
representação de social do nosso modo inconsciente e automático de confundir
avaliação com exames.
Vale a pena trazer à cena a expressão ‘instrumentos de avaliação’, utilizada com
o significado de testes, provas, redações, monografias etc. Esses instrumentos são os
recursos utilizados para proceder à avaliação, ou seja: (1) modos de constatar e configurar
a realidade; (2) critérios de qualidade a serem utilizados no processo de qualificação da
realidade; (3) procedimentos de comparação da realidade configurada com os critérios
de qualificação preestabelecidos. Testes, provas, questionários, redação, argüição, entre
outros, de fato são instrumentos de coleta de dados para subsidiar a constatação (ou
configuração) da realidade, que, por sua vez, permitirão a qualificação dessa mesma
realidade, centro da atividade de avaliar. Com isso, queremos lembrar que, coti-
E
C
dianamente, confundimos instrumentos de coleta de dados com instrumentos
C de avaliação, o que dificulta ainda mais as tentativas de superação do equívoco
O de praticar exames e chamá-los de avaliação. As provas, que são os instrumentos dos
S exames, passaram, direta e imediatamente, a ser denominadas instrumentos de avaliação.
R Trata-se, no entanto, de uma inadequação que automaticamente repetimos.
E Importante salientar ainda o equívoco existente no uso dos conceitos de ‘ava-
V. liação qualitativa’ e ‘avaliação quantitativa’. Avaliação, para ser constitutivamente
C avaliação, só pode ser qualitativa. O termo avaliar provém etimologicamente de
I dois outros termos latinos: prefixo a e verbo valere, que significa ‘dar preço a’, ‘dar
E valor a’; em síntese, atribuir ‘qualidade a’. Com isso, compreendo que toda avaliação
N
T.
é qualitativa: levado a sério o conceito, não existe avaliação quantitativa.
A avaliação é sempre uma atribuição de qualidade a alguma coisa, experi-
n. 2 ência, situação, ação, vale dizer, o ato de avaliar incide sempre sobre alguma coisa
v. 4 que existe extensiva e quantitativamente. Para proceder a uma avaliação sobre
atos humanos e, em especial, à aprendizagem, devemos considerar a contagem
dez. de freqüência e, a partir dela, emitimos nosso juízo de qualidade. Vejamos alguns
2002 exemplos: o fato de um aluno acertar 15 questões, num teste de 20, significa tão-
somente que ele acertou 15, em vinte; a qualificação dessa quantidade só virá no

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momento em que atribuirmos a essa situação uma qualidade positiva ou negativa.


O mesmo ocorre em situações nas quais o fenômeno a ser avaliado se configura
por nossa afetividade. Vamos supor que um aluno tenha 100 (cem) oportunidades
de manifestar sua criatividade; porém, se ele somente se manifestar criativo em
cinco dessas cem oportunidades, tanto eu quanto você, leitor, atribuiremos a ele
uma qualidade ‘de pouco criativo’. Se, em vez disso, ele for criativo em 95 vezes,
todos nós atribuiremos a ele a qualidade de ‘muito criativo’. Assim, a qualidade é
atribuída sobre uma quantidade, sobre uma contagem de freqüências.
Esses conceitos de avaliação quantitativa e avaliação qualitativa nasceram de
uma distorção no entendimento dos dispositivos legais da Lei 5692/71, quando
trata do tema da aferição do aproveitamento escolar, no qual se afirma que, em
relação ao aproveitamento escolar, é preciso levar em conta predominantemente
os aspectos qualitativos sobre os quantitativos. Numa compreensão distorcida, cor-
rente em nosso meio escolar, entendeu-se qualitativo por afetivo e quantitativo por
cognitivo. A lei, na verdade, dizia outra coisa: por qualitativo, entendia-se o
aprofundamento, seja da assimilação de uma informação, seja de uma habilidade,
seja de um conjunto de procedimentos, ou elementos semelhantes. Digamos que E
C
o qualitativo seja a preciosidade do desenvolvimento. Então, pode-se dizer que C
todos os pianistas tocam piano, mas uns são melhores que os outros, pelo fato de O
apresentarem certa preciosidade na maneira de tocar seu instrumento. Aprender S
com qualidade é aprender com profundidade, com sutileza, com preciosidade um R
conjunto de informações, uma habilidade ou os mais variados procedimentos. Os E
preciosi, num campo de conhecimento qualquer, são os mais hábeis, os mais perfeitos V.
nessa área. Dar mais atenção ao qualitativo que ao quantitativo não significa dar C
mais atenção ao afetivo que ao cognitivo, e sim estar atento ao aperfeiçoamento, I
ao aprofundamento da aprendizagem, seja no campo afetivo, seja no cognitivo, E
ou no psicomotor. N
T.
Essa distorção é mais um elemento em que uma representação social distorce
a compreensão crítica e adequada de determinada experiência. Acostumamo-nos n. 2
a esse entendimento e não nos perguntamos mais sobre a adequada significação v. 4
das coisas. Esse equívoco revela-se somente como mais um hábito do senso co-
mum, uma representação social inconsciente no âmbito da temática da avaliação dez.
da aprendizagem. 2002

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Creio que ainda poderia levantar um conjunto de outras questões teóricas


ou práticas da avaliação da aprendizagem, reveladoras do quanto nós, educadores,
agimos mais pelo padrão inconsciente do que por um ato consciente, o que quer
dizer que, em nossa prática da avaliação da aprendizagem na escola, orientamo-nos
muito mais por representações sociais do que por decisões conscientes. Porém, paro
por aqui. Fica o convite para que cada um por si, servindo-se do instrumental teórico
formulado na primeira parte deste texto e dos indicadores em seguida apontados,
investigue sua experiência cotidiana de avaliação da aprendizagem, identifique e
KEY WORDS: learning evaluation; compreenda outros elementos que se expressam como representações sociais nesse
social representations.
campo de entendimento e de prática pedagógica.

ABSTRACT: This paper discusses the presence of the teachers’ social representations
phenomenon in the comprehension and practice of the learning evaluation in
school, starting from notions that will be very near to common sense and to even-
tually and sparse readings about the theme. I start explaining what I understand
E
C
to be social representations and, afterwards, I articulate this comprehension with
C the questions related to the learning evaluation.
O
S

R REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
E
V. BOADELLA, DAVID. Nos caminhos de Reich. São Paulo: Summus, 1985.
C BOURDIEU, PIERRE & PASSERON, JEAN-CLAUDE. A reprodução: elementos para uma
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N
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